Eu morei com a minha avó desde pequenininha. A minha mãe nunca teve aquela coisa de cuidar dos filhos, da casa. E a minha avó fez esse papel de cuidar de mim e do meu irmão. Eu passava o dia com ela e lá eu aprendi a ser tipo uma dona de casa, cuidar das coisas pra poder ajudar, porque ela já ...Continuar leitura
Eu morei com a minha avó desde pequenininha. A minha mãe nunca teve aquela coisa de cuidar dos filhos, da casa. E a minha avó fez esse papel de cuidar de mim e do meu irmão. Eu passava o dia com ela e lá eu aprendi a ser tipo uma dona de casa, cuidar das coisas pra poder ajudar, porque ela já foi ficando velha e eu tive que tomar algumas responsabilidades pra ajudá-la. Ajudava nos afazeres domésticos, e no bar que ela tinha, a servir e a lavar pratos.
Eu sempre morei, vamos dizer, em favela. Eu lembro que na época de chuva entrava bastante água, era uma casa feita de barro, madeirites e tapada com bairro. Era muito pobre mesmo. Eu lembro que quando chovia a gente ficava segurando a rede pra não molhar, essas coisas todas. Mas sempre fomos tentando melhorar um pouquinho de vida. Agora ela tem uma casinha até legal. Também pelo sacrifício que meu tio fazia. Eu tenho um tio que sempre trabalhou pra ajudar dentro de casa, à minha avó, a também a me criar e meu irmão, ele sempre ajudou, ele praticamente fez o papel de pai. E minha avó hoje tem essa casa graças a ele. Ele trabalhava na reciclagem, conseguiu comprar um quartinho e desse quartinho com muito tempo a gente construiu uma casinha.
Eu nunca tive o carinho de um pai. Eu não vou dizer que não sinto falta, porque a gente sente, mas eu consigo viver muito bem com isso, com a falta dele. Eu digo que ele nem influi, nem contribui na minha vida. Ele vive com outra família, tem outros filhos. Ele é traficante de armas, de droga, é metido com essas coisas muito pesadas. Eu evito muito o contato dele. Teve uma ocasião que meu irmão teve que ir lá pra casa dele, porque estava acontecendo algumas coisas lá onde a gente mora. E chegou lá o meu irmão, disse que a primeira coisa que ele foi fazer foi: “Olha que arma que eu tenho, não sei o quê. Quer pegar?”. Nunca mais eu vou deixá-lo ir pra lá, porque a assistência que ele devia ter, ele não teve, pelo contrário, foi uma recepção totalmente diferente do que eu esperava.
Eu e meu irmão somos do mesmo pai. A minha irmã mais nova, de oito anos, é de um pai diferente. Meu irmão agora tem dezessete anos e ele sente falta, ele é bem revoltado mesmo com a questão de não ter tido o pai. Eu digo pra ele: “A gente não tá vivo? A gente não sobreviveu até hoje? A gente tá muito bem sem ele”. Mas ele é revoltado mesmo nessa questão do pai, de não ter.
Lembro muito de uma professora que me apoiou muito. Porque eu não tinha aquela pessoa pra me deixar e buscar no colégio. Então ela fazia esse papel, ia me buscar em casa, me deixar em casa. Mas algumas vezes era até meio constrangedor, porque as pessoas viam, comentavam que aquele papel tinha que ser feito pela minha mãe. Só que a professora foi tipo um anjo na minha vida, que me incentivou muito a estudar, me ajudava bastante mesmo. Até chegar o horário de eu ir pra escola eu ficava muito ansiosa esperando. Lá eu me sentia mais à vontade. Podia brincar, estudava, me alimentava legal na escola.
Eu estudava no período da tarde. Durante a manhã eu ajudava a minha mãe. Minha mãe sempre fumou bastante, eu nunca gostei. Minha avó também fumava, aí ficava aquele clima. Eu lembro que uma vez a gente não tinha nada pra se alimentar, minha avó tinha alguns trocados, isso eu lembro bastante, aí ela disse: “Vai ali comprar um cigarro”. Eu disse: “Mãe, mas a gente tá com fome.” “Não, vá comprar meu cigarro, depois a gente vê o que vocês vão comer.” Aí isso me chocou um pouco, até hoje eu me lembro disso. Quer dizer, ela preferiu comprar o cigarro a comprar alimento pra gente.
Eu lembro que uma vez, ela estava cheirando cola dentro de um quartinho lá que a gente tinha e a minha avó nunca aceitou isso. Eu via aquilo, eu fiquei: “Poxa, pra quê serve isso aí? Por que minha mãe tá fazendo isso na frente do meu irmão?”. Eu sempre fui muito protetora do meu irmão. “Ela não podia estar fazendo isso. Por que ela não tá cuidando da gente como as outras mães fazem?”. Ela usava todo tipo de droga. Eu acho que até mesmo por isso eu nunca nem pensei em usar, porque eu via que não era uma coisa legal. Eu tinha muito medo do meu irmão não ter esse mesmo pensamento que eu. Hoje em dia eu luto muito por ele, porque até hoje ela ainda não dá as assistências que a gente precisa. Eu procuro o melhor pra ele.
A minha mãe se prostituía e conseguia dinheiro. Eu lembro que ia muito cara lá em casa atrás dela. Era da prostituição que vinha o dinheiro pra comprar as drogas. E minha avó lutando, lutando, brigando com ela pra ela sair dessa vida. Minha avó já apanhou da polícia por causa da minha mãe. E eu vendo tudo aquilo, aí teve uma hora que eu disse: “Não. Não é isso que eu quero pra minha vida. Não é isso que eu quero”.
Enfim, eu fui crescendo com isso aí, vendo homens buscar minha mãe. E essa foi uma forma que eu usei pra conseguir dinheiro, porque eu vi que era fácil. A primeira vez, foi quando lá em casa a gente estava passando por uma situação difícil e tinha um vizinho da minha mãe que era até legal de vida, tinha um carro. E foi tudo escondido, ninguém sabia de nada, mas assim, foi muito nojento. Ele não abusou. Não teve a relação sexual, mas falava coisas nojentas que eu nunca tinha ouvido antes, que pra mim foi muito estranho.
Até hoje em dia eu tenho um trauma de homem, porque eu só fiz isso mesmo pelo fato de estar precisando e depois eu fiz de novo também pela necessidade, só que aí eu já estava ficando mal acostumada, digamos assim. Eu continuei fazendo isso, só que mais pela questão de querer comprar as coisas pra mim, porque eu estava chegando na adolescência e eu não tinha um sapato legal, uma blusinha legal pra sair. Eu precisava daquilo e não tinha quem me desse. Eu acho que talvez por isso que eu fui mãe muito cedo, que eu encontrei uma pessoa que queria uma coisa séria comigo, acabei sendo mãe aos treze anos de idade.
Eu quis sair de casa logo, porque eu não aguentava mais aquela situação, disse: “Então, ele quer alguma coisa comigo, eu vou. Vou sair dessa vida, não vou precisar mais fazer isso. Ele trabalha, ele vai conseguir me dar as coisas”. Eu acabei engravidando logo, foi muito rápido. Realmente eu saí dessa vida, só que eu não via nessa pessoa, eu não sentia amor, eu estava com ela mesmo por necessidade, que é justamente a pessoa que eu tô hoje, que eu vivo com ela, tipo, ameaçada. Ele é bem mais velho que eu. Ele fala pra mim: “Olha, cuidado, não sei o quê, se tu fizer isso eu vou te matar”. É muito difícil. Mesmo que você não faça, você fica com aquela coisa na cabeça: “Poxa, se ele achar que eu tô fazendo, eu vou morrer”.
Eu me sinto meio presa, aprisionada. Eu não consigo ser a pessoa que eu sou fora de casa perto dele. Perto dele eu sou uma pessoa quietinha, calada, não posso falar com ninguém, faço tudo que ele quer. Mas eu não sou assim, eu sou uma pessoa bem extrovertida, eu gosto de rir, gosto de falar, só que eu não posso ser isso. Eu me sinto assim, coração apertado, bem amargurada mesmo por causa disso. E eu sei que essa pessoa tem coragem, por isso que eu ando, digamos, na linha. Eu faço as coisas que ele quer, eu deixo de ser eu pra agradar essa pessoa. E também, boa parte disso é por causa da minha filha, porque eu sou capaz de fazer tudo por ela, de aguentar o que eu aguento por ela.
Eu recebo da minha filha carinho que eu não dei pra minha mãe, porque eu não recebia carinho. Ela diz: “Mamãe, tu é linda, não sei o quê”. Receber o carinho dela é muito importante pra mim. Muito importante. E criá-la com o pai dela, isso pra mim também é outra coisa, uma regra que eu queria quebrar na minha família. A minha avó criou a minha mãe e os irmãos dela sem pai. Minha mãe continuou, eu e meu irmão sem pai. Eu tô fazendo tudo diferente. Quer dizer, eu aguento tudo que eu tenho que aguentar pra dar uma melhor vida à minha filha.
Ele é agressivo, mas ele não bebe, não fuma e também não usa droga, mas ele é uma pessoa extremamente difícil de conviver. As brigas sempre são difíceis, porque nas confusões eu sempre saio como errada e tudo, e aquela coisa assim, de quebrar mesmo, quebrar as coisas. Mas a gente não faz isso na frente da neném: “Vamos sentar pra conversar”. Aí quando a coisa extrapola mesmo, não tem como se segurar, quebra o pau. Eu a coloco lá pra casa da avó dela. Porque eu não quero que ela presencie isso, fica uma criança nervosa, fica agressiva também. E ela é um amor de criança.
Foi difícil continuar estudando depois de ter a neném, porque eu tinha que me dividir em várias. Eu tinha que cuidar da casa, cuidar do marido e também cuidar da minha filha, que eu não abria mão disso. Eu passei dois anos sem estudar, cuidando só dela. Só que eu não queria parar de estudar, queria terminar. Fiquei um pouco desinteressada nos estudos. Eu voltei à noite e era bem cansativo. A minha avó me ajudava ficando com a minha filha, aí eu ia para o colégio. Chegava cansada, acabei desistindo novamente, isso na metade do ano, eu perdi três anos. Foi o projeto ViraVida que me incentivou mais ainda a estudar, aí sim que eu consegui terminar, porque senão... Porque é difícil estudar com filho. É muito difícil.
O ViraVida eu conheci através de um projeto lá na comunidade, são oficinas de dança, teatro, pra tirar adolescentes do trabalho. Eu fazia teatro e também dança. O bairro que eu moro é muito carente e eu já tinha visto as meninas participando. Vi que uma delas tinha engordado, estava bem, estava mudando a vida mesmo, a postura, a maneira de falar. E eu sempre corria atrás das melhoras: “Poxa, eu tô vendo que aquilo tá dando certo, então eu vou ver se dá pra mim também”. Eu me inscrevi umas duas vezes, na terceira tentativa consegui passar e foi a virada mesmo na minha vida.
Sempre me dediquei muito no curso. Algumas vezes era período integral, fazia Gastronomia de manhã e à tarde era aula de Educação Continuada: Português, Matemática e Cidadania. Tinham algumas aulas com o SEBRAE também. Só coisa legal que eu nunca tinha visto antes. Eu aproveitei bastante. Eu trabalhei na área de cozinha. Fazia o almoço, as saladas, tudo isso. Foi meu primeiro emprego de carteira assinada e também primeiro de todos. Eu fiquei muito feliz de estar trabalhando e me dedicava muito. Poxa, eu fazia aquela comida bem caprichada para as pessoas gostarem. Eu me senti capaz mesmo, eu sei que posso ser muito mais do que isso.
Estou tendo também o apoio da minha professora, ela gosta muito de mim e ela disse: “Olha, eu não te vejo só como uma técnica de Enfermagem, te vejo como uma enfermeira”. Aí eu adorei ouvir isso. Eu disse: “Então é isso que eu vou ser”. Eu vou ser uma pessoa extremamente atenciosa com os pacientes. Eu gosto de cuidar das pessoas, sempre gostei, sempre. Na cozinha eu ficava muito fechada, lá dentro ninguém me via, não conversava com ninguém. E a Enfermagem é coisa de infância, sempre gostei. Eu via aquelas mulheres todas de branco, achava muito lindo cuidando do pessoal. Poxa, aí vim trazendo comigo essa vontade, aí apareceu e eu vou ser.
E a formatura aqui do projeto, nossa... A minha mãe foi, ficou orgulhosa, a gente estava se aproximando muito mais através do projeto. Eu nunca tinha participado de nenhuma formatura, eu fiquei assim: “Poxa, que lindo”. Eu fui chamada pra receber o certificado lá na frente, um aluno ia representar a turma, meus colegas de classe me escolheram, aí achei muito legal. Foi muito importante pra mim. E a minha mãe ver aquilo foi mais importante ainda.
O ViraVida pra mim foi o que faltava pra fazer a mudança geral na minha vida, pra eu perceber que eu realmente podia ser alguém.
Nesta entrevista foram utilizados nomes fantasia para preservar a integridade da imagem dos entrevistados. A entrevista na íntegra bem como a identidade dos entrevistados tem veiculação restrita e qualquer uso deve respeitar a confidencialidade destas informações.Recolher