Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Antônia Nunes Café (Antônia Fogo)
Entrevistada por Antônia Castro e Winny Choe
Barra da Cruz, 01/12/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV082
Transcrito por Vanuza Ramos
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 05/02/2009
P1 – Dona Antônia, vou pedir para a senhora falar o nome inteiro.
R – Antônia Nunes Café.
P1 – Onde a senhora nasceu?
R – Eu nasci em Pau a Pique.
P1 – Qual era o nome do pai e da mãe da senhora?
R – Manoel Ribeiro da Silva e Maria Nunes.
P1 – Onde eles nasceram?
R – No Piauí, numa cidade chamada Canindé.
P1 – Como eles vieram para cá?
R – Eles vieram para cá em 33. A seca foi muito grande no Piauí na época, e eles casadinhos novos, com três filhos. Atravessaram esse mundo a pé, com esses filhos nas costas. É, um no braço, outro nas costas. Sacolinha com as bolsinhas nas costas. Eu não sei nem quantos dias eles passaram até quando eles chegaram aqui em Pau a Pique. Quando chegou em Pau a Pique, ele era muito trabalhador, que ele trabalhava de roça, começou trabalhar e começou a criar os filhos, começaram a chegar mais filhos. Eu mesma nasci aqui no município. E, graças a Deus, vim ver o mundo. Ele morreu com 60 e poucos anos. Mas deixou os filhos criados. E depois a velha morreu também, e nós ficamos. Cada quem se casou, cada quem procurou o seu destino. E hoje não estamos reunidos porque essa barragem foi uma tragédia na vida da gente. Hoje, nós estamos tudo separados, mas a gente fica sabendo notícias um do outro, que estamos vivendo até hoje.
P1 – Quantos irmãos a senhora tem?
R – Eu tinha nove irmãos.
P1 – Quando a senhora nasceu?
R – Quando eu nasci? Eu nasci em 39, nasci. Daí para cá, nasceram mais uns três ou quatro irmãos mais novos. Nasceram, e a gente ficou trabalhando. Morava num sitiozinho, carregando de tão longe água salgada, sofrendo no sol quente. A gente carregando água para sobreviver, criando bode, plantando roça, criando galinha. E a gente viveu um tempo até que a gente ficou moça na época. Vocês passaram lá no lugarzinho que a gente morava, na estrada de Pau a Pique. É, a gente achava tão gostoso, uma casinha sozinha, sem luz sem nada, mas a gente achava, moça, rapaz, achava tão gostoso aquilo ali. E depois a gente casou, cada quem foi embora para os seus lugares. Como eu mesma morava na velha Barra da Cruz, que ainda hoje tenho paixão de ter saído de lá. Porque essa mudança nossa foi o quê? Uma tragédia. Para uns, foi muito boa e, para outros, foi a morte. Eu mesma não me sinto feliz, não. E a gente morou esse tempo todo em Barra da Cruz, era bom também. A gente vivia de plantar as roças, de ilhote, pegava muito feijão de arranca, muita abóbora, muita batata. E a gente passou aquele tempo todo lá, criei meus filhos lá. Vivia do peixe, da mandioca. Ninguém tinha emprego, ninguém falava em emprego. O lugar que a gente morava não tinha nem ninguém formado. Vinham as professoras de fora. Mas era um lugar tranquilo, um lugar que você tinha aquela liberdade, não tinha medo de nada. Você podia dormir no terreiro. E, aí, foi o tempo que chegou essa barragem, e a gente se mudou para Bom Jesus da Lapa. Mas ainda hoje eu tenho paixão porque, de lá para cá, da mudança, que eu apresento esse problema. E esse problema tem sido triste, as dificuldades têm aumentado, sofrimento. Ficamos todos longe dos outros, longe dos filhos, longe dos parentes. Entrou um monte de gente nos nossos lugares, onde a gente morou. A gente não se sente feliz, ninguém tem uma tranquilidade, ninguém tem aquele amor como tinha antigamente. E a gente está lutando com a vida até quando Deus vai preparar a gente para viver. E a gente, como é que diz, vive do trabalho. O lugar muito atrasado, mas a gente vive do trabalho, com essa falta de chuva, não tem chuva, rio está muito longe. E, a cada dia que vai passando, parece que as coisas estão piorando cada vez mais.
P1 – Conta um pouco mais para a gente como era a infância da senhora em Pau a Pique.
R – Ah, minha infância em Pau a Pique era muito boa. Porque você sabe que, naquele tempo, menino, mocinha nova, era namorar, era dançar, era ir para o colégio. Agora, ao colégio, a gente caminhava o quê? Mais de uns cinco ou seis quilômetros a pé para ir para a escola. Era uma senhora que dava escola lá nesse lugar, e a gente todo dia ia a pé. Até que, num momento, a gente mais velho aprendeu somente assinar o nome. A gente ia todo dia, ia a pé e vinha a pé. Era difícil naquele tempo os pais botarem os filhos para sair para fora, para uma cidade fora, para estudar. Porque tudo era difícil. Agora, hoje não, hoje tem muita facilidade. Eu, mesmo com todo sofrimento, eu tenho três filhos formados e estou formando um no dia 14, neto. Criei um netinho e eu estou formando ele no dia 14, esse netinho. E hoje tem muita facilidade, mas, naquele tempo, era muito difícil. Mas eu, ainda hoje, sinto saudade do tempo que eu era jovem. Que eu era moça. Vixe! Eu gostava duma festa! Namorava que só na festa! (risos)
P1 – Tudo isso em Pau a Pique?
R – É. Em Pau a Pique, em Barra da Cruz Velha. Os outros lugares, povoados mais perto. E, graças a Deus, cheguei a me casar, hoje tenho meus filhos, meu marido, meu esposo. Já casei com um homem avançado de idade, mas foi muito bom, trabalhador, muito legal. Nunca me proibiu de eu fazer nada. Soube criar os filhos. Hoje eu tenho aquele prazer de estar lutando com ele velho, doente, mas eu tenho aquele prazer de estar lutando com ele porque foi um bom pai. Ele foi um bom pai. Ele foi um bom pai. E a gente está lutando com os netos. Não temos mais filhos solteiros, só temos netos. Mas a gente está trabalhando e está lutando com a vida até o dia que Deus quiser.
P1 – E quando a senhora se mudou para Barra da Cruz?
R – Quando eu me casei. Eu morava nesses lugares fora da cidade, num sítio, com meu pais. Aí, quando eu me casei, meu esposo era da Barra da Cruz, eu fui embora para Barra da Cruz. Passei o quê? Uns 20 anos morando lá. Maravilhoso, beira do rio, os ilhotes lá, a gente atravessava um rio para ir plantar. Era meio mundo de feijão de arranca, abóbora, melancia, milho-verde. Naquele ilhote. A gente passava a seca toda. Quando o rio enchia, a gente carregava as coisas cá para a cidadezinha, para o povoado. A gente morava cá. Cá, a gente plantava muita mandioca. Quando o rio enchia, a gente tinha aquele trabalho de arrancar, de mexer farinha, de fazer aquilo, aquele movimento. Movimentava. Todo mundo vivia. Não tinha firma, não tinha nada, mas todo mundo vivia tranquilo. É sobre a planta do rio e sobre o peixe do Rio do São Francisco que a gente, que os maridos da gente pegavam bastante peixe, vendiam, faziam dinheiro, e dava para a gente sobreviver. Agora, hoje, a gente está aqui num lugar mais difícil. Mais difícil. Sinto muita paixão porque eu tenho a certeza absoluta de que, se eu morasse em meu velho lugar, como era antigamente, eu hoje era uma pessoa, pelo menos eu tinha certeza que, pelo menos, a minha saúde e meu meio de viver eu acreditava que eram melhores. Era melhor do que hoje. E a tranquilidade, eu tinha certeza como também era muito superior do que hoje. E hoje a gente vive por aqui, mas não se sente bem, não se sente feliz, mas já estamos velhos, no fim da vida. Nós não temos mais para onde ir, né? O jeito é a gente ficar aqui até o dia que Deus preparar, que nos levar para onde Deus for servido.
P1 – E tinha diferença o trabalho de homem, trabalho de mulher? Como era: quem plantava, quem pescava?
R – Era. Os homens plantavam, as mulheres também trabalhavam. Mulher também trabalhava na enxada, também ajudava os maridos a plantar. E os homens pescavam. Era de anzol, era de tarrafa, era de rede. Mas pegavam bastante peixe. Bastante peixe. Que dava para a pessoa sobreviver numa boa lá. Agora, aqui, tudo ficou mais difícil. Peixe, com esse mundo de água, do rio, peixe fica difícil. Acontece que os homens vão botar a rede, quando vêm para cá, não pegam nada. Por causa da água, tem muita água, o peixe diminuiu no monte de água. Porque lá os rios eram estreitos, antigamente. O rio era estreito. Então, ali acumulava mais o peixe. Tinha como facilidade de pegar mais o peixe. Mas agora, aí, nesse monte de água, é meio difícil. Meio difícil pegar. E plantar. Daqueles tempos nossos, a gente plantava uma roça só com o molhar da chuva. Aquela planta dava muita coisa. Hoje, a terra está negando pão. E hoje a gente planta através do veneno. Que é o que mais está prejudicando a gente, a saúde da gente, é o veneno. Porque hoje a gente, se não colocar o veneno, o adubo, na planta, a planta não brota. Não tem fruto. E aí prejudica a saúde da pessoa. Agora, antigamente, não. Era: molhou, o chão molhou, choveu, a gente plantava, de tudo tinha, de tudo dava. Mas, hoje em dia, está mudando. Mudou-se muito. Os tempos vão passando, as coisas vão mudando, e a gente tem que enfrentar a vida porque a gente não morre antes que não chegue a hora, a gente só morre na hora certa. Nem que peça, porque eu já pedi muito. Mas não morre (risos). Só morre na hora certa, né?
P2 – Dona Antônia, a senhora falou sobre a barragem, o que foi que aconteceu? Você falou que antes era melhor, agora não está tão bom? O que aconteceu?
R – O que aconteceu é que a gente vendeu as besteiras que a gente tinha. E a gente foi para lá para o Bom Jesus da Lapa. Quando chegou lá, a gente não se deu, por conta do lugar. Tudo lá era diferente de nós aqui, de onde nós morávamos. E a gente não se deu bem com o clima do lugar, e eu mesma adoeci muito com a mudança. Acho que, com o clima de lá, não deu certo, né? A gente tornou voltar novamente para aqui. Quando a gente voltou para aqui, a gente já não tinha mais nada. A gente já tinha acabado com o que a gente levou, que a gente desfez daqui, a gente tinha acabado como que a gente levou. E, quando a gente chegou, a gente foi continuar a trabalhar novamente numa, como é que diz… Nunca chegou mais, nunca o que a gente tinha. Não deu mais para alcançar o que a gente tinha. Agora, se a gente tivesse ficado, se não fosse a barragem, com o começo, que a gente tinha, que a gente ficava zelando, ficávamos duplicando, ficávamos crescendo. Aí, as coisas eram muito melhores. Mas essa barragem foi uma infelicidade. Foi. Família, ninguém se vê mais. Tem tanto parente, primo, tio, irmão, filho que não vê mais. Eu mesma tive um filho em São Paulo, que eu sei que eu não vejo mais ele. Eu não vou lá. E ele não vem. Então, por isso eu lhe digo que, se não fosse essa maldita barragem, estava todo mundo reunido.
P1 – Como a senhora ficou sabendo, qual foi o dia em que falaram para a senhora que a cidade ia ser alagada?
R– Eles avisaram, o pessoal da Chesf [Companhia Hidrelétrica do São Francisco]. Eles faziam pesquisa também, eles andavam, eles faziam reunião. E aí eles avisava. Só que muita gente, o pessoal, a maioria do pessoal não acreditava que ia chegar a esse ponto. Não. Diziam que eles não faziam essa barragem, não conseguiam fazer essa barragem para segurar a água. E a maioria do povo não acreditava que isso ia ser vigorado. Mas, com certeza, foi mesmo. E até hoje, graças a Deus, que o pessoal que mora para o lado de baixo da barragem, graças a Deus, tem segurado porque, se, Deus me livre, quebrar, é um meio mundo de gente que morre, que mora para o lado de baixo. Eu mesmo tenho uma filha que mora para o lado de baixo e eu não sou satisfeita porque ela mora lá. Eu tinha aquela intenção comigo que a barragem ia quebrar. Mas, graças a Deus, não. Eles fizeram uma coisa que Deus consentiu. É, eles fizeram uma coisa que Deus consentiu porque, até o momento, hoje, ela está segura. E não vai quebrar mais, não. Porque a areia já chegou muito para o pé da pedra da barragem. Então, aquela areia ali é o grande “fortidão” para aquela parede, que não vai deixar mais ela quebrar.
P1 – Mas a senhora queria que ela quebrasse?
R – Não. Eu queria que eles não conseguissem fazer na época que eles estavam trabalhando. A gente pedia a Deus para eles não conseguirem fazer. Mas, desde que eles conseguiram fazer, a gente tem aquele prazer, que – Deus o livre! – a gente se apega com Deus para ela segurar porque, se não, mata a maioria do pessoal. Acaba com o mundo, que tem gente demais, cidade de Juazeiro, Petrolina. E aí para baixo mais outros lugares. Deus o livre de ela quebrar hoje.
P1 – Eles diziam para que iam construir a barragem?
R – Não. Eles diziam que iam construir a barragem por causa que iam fazer muitos canais, modos da energia. Eles diziam que tinham que construir por isso. E que iam mudar o povo da beira do rio para esse lugar lá, como muitos lugares, né? Que todos os lugares perto foram mudados. Mas a gente não sabe nem assim, futuramente, o que foi que eles adquiriram, e eles mudaram a barragem. Porque, até o momento, a gente não alcançou uma coisa que não fossem os canais que beneficiaram muitos lugares que não tinham água. Aí, beneficiou sobre a enchente do rio. Mas outra coisa avançada, que ouvi dizer, a gente não achou que aparecesse.
P1 – E como eram as enchentes antes da barragem?
R – Antes da barragem, tinha os meses que o rio enchia. Devido às chuvas nas cabeceiras do rio, o rio enchia. Não chegava a inundar nada. Vinha para o pé das casas que eram perto do rio. Vinha água, vinha para perto das casas o rio. Quando era no mês de março, o rio começava a voltar, a vazar. Começava a vazar, começava a vazar. Lá nas terras da gente, dos ilhotes, descobriam o que cobria quando o rio enchia, elas lá cobriam de água. Quando descobria, ia todo mundo, começava a trabalhar lá nos ilhotes, terreno muito bom. A gente começava a trabalhar, e o rio ia, ia, ia, que tinha vez que ele ficava bem estreitinho. Mas a gente só atravessava de barco. Nos barcos, de remo, a gente atravessava para ir trabalhar no ilhote. Mas era muito superior a hoje, muito superior a hoje. Hoje tem esse meio mundo de rio que, para a gente atravessar, misericórdia de Deus! É em barco de motor, são três horas para se atravessar direto, para se chegar do outro lado, correndo perigo de morte. E, antigamente não, era barquinho de rio, o riozinho era estreito. Você atravessava, ia para os ilhotes, passava o dia lá, curtindo, comendo milho-verde. Aquela multidão se encontrava no ilhote: moça, rapaz, aquela farra toda, todo mundo com aquela maior alegria. Era bom, era muito superior a hoje, com certeza. Mas, como é que diz, tudo muda, né? Tudo muda, e a gente está vivendo até o dia que Deus quiser.
P1 – E, na época da enchente, o que vocês faziam?
R – Na época da enchente, não tinha trabalho. A pessoa pegava todos os mantimentos, porque, quando o rio vinha enchendo, as pessoas colhiam as coisas, botavam dentro de casa. E a gente esperava aquele mantimento que botava dentro de casa, dava para atravessar aqueles três meses, até enquanto que a gente plantava. O que dava muito era peixe, que a gente pescava de redinha, de anzol. Pegava aqueles peixinhos pequenos e a gente vivia assim. Não trabalhava, durante esses três meses a gente não trabalhava. Somente pegar o peixe. Que não tinha as roças, cobriam, e a gente não tinha onde trabalhar. E a gente esperava o rio vazar novamente, aí o pessoal voltava a trabalhar.
P1 – E que tipos de mantimentos vocês faziam?
R – Era farinha, uma tapioca, o feijão, o milho. Abóbora não, melancia não, porque esses não esperam muitos dias, logo terminam, acabam, apodrecem e logo acabam. Mas o feijão, o milho, a farinha, a tapioca. Uns chamam tapioca, outros chamam bolo de milho. Esses, a gente fazia essas farinhas dentro de casa e comia até chegar outro, sem precisar comprar.
P1 – E onde está hoje, mais ou menos, a antiga Barra da Cruz? Onde ela ficava?
R – Ela ficava aqui no morro. Hoje é uma praia muito linda lá. O pessoal vem, gente de fora, de longe vem para tomar banho lá na praia, na Barra da Cruz. Uns morrões altos, de areia alvinha que é uma maravilha, perto do morro, lá embaixo. Vieram fazer essa daqui, mas tem muita diferença, grande diferença e grande para a velha Barra da Cruz.
P2 – Dona Antônia, como foi quando eles tiraram vocês de lá? Como foi para chegar aqui? Emprestaram transporte? Como foi?
R – Foi. Quando nós fomos, todo mundo, que ele levou todo mundo, foi todo mundo de vapor. Uns iam de ônibus e outras, maioria ia de vapor, porque levavam as mudanças. Como nós fomos, fomos e levamos as mudanças todas. Foi em vapor, que a maioria ia de carro. Só o pessoal em ônibus. Quando a gente veio embora, já eles não deram mais. A gente já veio por conta própria. A gente pagou as passagens da gente para poder vir embora. E as coisas que a gente recebeu lá, casa nossa, os lotes grandes, ninguém conseguiu vender, ficou tudo lá. Ficou tudo lá. A gente pagou, vendeu um gadinho que a gente tinha ainda. Aí, a gente pagou as passagem e viemos embora. Quando chegamos aqui, era multidão, um bocado de nós. Aí, o que fizemos? Todos em barraquinha de lona. Uns faziam de barro e outros só mesmo a coberturinha de lona. Isso aqui era uma mata, mata bruta. E o prefeito de Casa Nova, Doutor Adolfo, ajudou o Edu, que era da comunidade, também ajudou. Ele que nos ajudou. Ele pagou para desmatar a terra, deu ganho ao pessoal que veio, que tudo vinha sem nada. Ele deu ganho, ele pagou para desmatar. Depois, ele deu os blocos para a pessoa construir, a pessoa só pagava o pedreiro para construir o barraco da gente. E ficamos até que, graças a Deus, a Chesf loteou. Cada quem deu um lotezinho pequeno para a gente trabalhar. Hoje estamos ainda. O pessoal chegou, começou essa planta de cebola. Com essa planta de cebola, o ano que dá dinheiro, o pessoal faz bastante dinheiro. Agora, quando não tem preço, é um prejuízo total. Mas quando tem preço é muito bom.
P1 – Dona Antônia, me conta uma coisa. Todo mundo teve que sair da cidade antiga ou algumas pessoas puderam ficar?
R – Não ficou ninguém, não ficou ninguém. Agora, não reuniram todo mundo para ir para um local só. Uns foram para o velho Sento Sé, outros foram para Pau a Pique, outros foram para Casa Nova, outros foram para as agrovilas, para Bom Jesus da Lapa, outros foram para uns lugares mais perto. Mas não conseguiram, não ficou ninguém, cobriu. Lá cobriu, a água inundou, cobriu tudo. Só ficaram os morros de areia, que eram para trás, mas os lugares mesmo da cidade, das ruas, encobriram. Ainda hoje está coberto. Agora não, que descobriu um pouco, que o rio vazou muito.
P1 – Mas, para não ir tão longe, para ficar na beira do lago, tinha alguma escolha? As pessoas podiam escolher as cidades para onde ir?
R – Tinha. Tinha a cidade nova que eles fizeram. Agora, a pessoa dizia para onde queria ir e eles levavam. Eles levavam.
P1 – E por que a senhora escolheu ir para Bom Jesus da Lapa?
R – É porque lá em Bom Jesus da Lapa, ele enganou, ele iludiu o pessoal, ele enganou o pessoal. Fomos justamente, lá é muito bom, as terras para trabalhar. Mas é que se chover bastante; se não chover também, a planta morre tudo. E aí ele iludiu o povo, que lá era muito bom e que, quando a gente chegasse, tinha seis meses de salário para a gente receber enquanto a pessoa plantava, chegasse a colher alguma coisa. E, com isso, o pessoal trazia umas amostras das espigas de milho, eram deste tamanho, de melancia, de feijão, tudo aquelas coisas bem grandes. O pessoal, com aquilo, disse: “Oxe, vamos trabalhar. Esse que é o lugar da gente trabalhar!” Mas, quando chegou lá, tudo foi o contrário. Se chovesse, dava planta. Se não chovesse... Uma água ruim, salgada a água. Adoecia o povo. Agora, hoje, lá está bom. Mas, quando a gente começou, não. A gente, quando adoecia, qualquer coisa, vinha para Bom Jesus da Lapa, à cidade de Bom Jesus da Lapa para se consultar com os médicos cá. Aí não deu certo. A maioria do povo, ficou muita gente lá, ainda tem muita gente da gente lá. Os parentes da gente, ainda ficaram muito, mas a maioria veio embora. A maioria veio toda embora, e os que estão lá também não deu para adquirir, arrumar nada também. Sobre a vida, para sobreviver, não adquiriu nada também, está igual a nós aqui. É igual a nós aqui.
P1 – E como eram organizadas as famílias? Elas ficaram juntas ou foram separadas?
R – Não. Quando? Você diz viajando daqui para lá? Um vapor levava três, quatro famílias. Quando chegava lá, quando você já saía daqui, você já saía com o número da sua casa, que eles mandaram fazer as casinhas para a gente. Cada quem, a sua casinha. Mas, quando a gente saía daqui, quando a gente pegava o vapor, a Dulce, que era chefe, ela já dava o cartãozinho com um número e a chave da sua casa. Quando chegava lá, iam levar na porta. Quando a gente encostava no porto, na Lapa, tinham os carros, caminhões, os carros para ir buscar as mudanças da gente para chegar até lá nas casas que a gente ganhava. Só que, quando a gente saiu, deixou tudo: ficou casa, ficou roça, ficou planta, ficou tudo. A gente só conseguiu vender uma besteirinha, que tinha um gadinho, uma coisa, assim, que a gente tinha, a gente conseguiu vender. Mas o resto ficou tudo lá.
P1 – Por que ninguém queria comprar?
R – Não, ninguém queria, não tinha condições de comprar um do outro. A gente vendia para o pessoal de fora os gadinhos. As outras coisas não, ninguém queria, ninguém se interessava para comprar. Ficou tudo lá. Depois que a gente veio, deu para a reforma agrária de São Paulo, de um lugar, de uma cidade que tinha aí. Começou a vir gente, quem chegava eles arrumavam também. Eles recebiam a casa e o lote da maneira como nós recebemos. Só que chegou a receber de graça. Faziam as fichas e receberam, eles receberam as casas que estavam abandonadas, as roças que estavam abandonadas. A gente perdeu até para esse povo do Mato Grosso, tinha gente até do Mato Grosso que veio. Horrível. Nós perdemos. Aquilo que a gente tem, eu mesmo ainda tenho o carnê, ainda tenho o documento, tenho tudo de lá do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], mas nunca deu nada. Até um dia que eu fui fazer um tratamento, eu digo: “Eu vou levar essa carteirinha do Incra para ver.” Levei, quando chegamos lá, que mostramos: “Não, não tem validade nenhuma, não tem mesmo.”
P1 – E a senhora sabia que era longe do rio?
R – Lá? Ele dizia as metragens, os quilômetros para o rio, era longe, era longe. Mas só que tinha poço artesiano, tinha muita água, rios também, tinha água, era muita mesmo. Mas só que a água não prestava, a água era ruim, a água era salgada. A água, você lavava um pano, ela cortava o sabão. Você lavava aquele pano com a água, cortava o sabão, não dava espuma para você lavar o pano. Agora, água tinha bastante, tinha não sei quantas lavanderias de água para o povo. Só que a água não prestava. Você botava a água numa vasilha de barro, quando era no outro dia, tinha um dedo de sal. Aquele negócio branco no vaso, tinha um dedo de sal na água quando ela assentava.
P2 – Dona Antônia, e, antes, como era a água?
R – Aqui do rio? Ah, era boa. Era boa toda vida. O rio era estreitinho, mas a água era boa. Era.
P2 – E era fácil, era perto?
R – Era perto. Era aí, à vontade, não tinha ninguém que proibisse, não tinha nada, era à vontade da gente usar, tomar banho e lavar roupa, fazer o que queria. Era à vontade, você podia apanhar o tanto que quisesse.
P2 – Mudou para fazer comida também, desde quando você veio para cá?
R – Comida como?
P2 – Fazer comida do dia a dia para se alimentar?
R – Tinha, fazia.
P2 – Mas mudou muito de quando você morava aqui, para lá?
R – Ah, mudou. Mudou. Mudou muito, muito, muito. Eu mesmo conheço uma pessoa que, desde o tempo que eu era nova, criada com meus pais, que nós tínhamos bastante criação, nós tínhamos o nosso gadinho. Eu fui uma pessoa que fui criada, alimentada com leite, como ainda eu sou dominada por leite. Mas aqui, nem para você comprar um litro de leite, você não compra. Nem para você comprar um litro de leite, você não encontra. E eu fui criada, sinto muito, porque nós tínhamos bastante criação de bode, nós tirávamos leite, nós tínhamos o nosso gadinho, tirávamos leite. E hoje, aqui, nós moramos num lugar que, nem para comprar, nem para comprar. Dias que eu estou assim muito atacada, que eu estou tomando remédio, o estômago dói muito. Aí, meu filho vai comprar no Pau a Pique. No Pau a Pique tem bastante, mas aqui não.
P1 – E quando foi que a senhora tomou a decisão de voltar para cá e construir um povoado?
R – Mas nós tomamos a decisão pensando que, se nós voltássemos, nós íamos encontrar o mesmo que nós tínhamos. Porque dois anos que nós passamos lá. A gente achou terra muito próxima, a gente achou que, quando a gente chegasse trabalhando, a gente ia encontrar novamente o que a gente tinha perdido, a gente ia receber de volta. Mas foi engano, foi engano.
P1 – A senhora chegou a ver a cidade alagando ou a senhora foi embora antes dela alagar?
R – Fui embora antes. O rio já enchia bastante quando a gente saiu. Mas eles, com pressa do pessoal sair logo, eles tinham pressa do pessoal sair. Eles faziam medo ao pessoal, que os que não saíssem iam morrer afogados. Que ia inundar de uma vez, e ia morrer afogado. O pessoal deu pressa de todo mundo de sair, né? Todo mundo saiu, mas, quando todo mundo saiu, ficaram essas casinhas, tudo em “pezinha”, tudo direitinha. Alguns que ficaram aqui por essas casinhas, por aqui, o pessoal aproveitou muito a madeira, porta, telha. Só não os tijolos das paredes, mas telha, porta, cabo, o pessoal tirou muito. E outras, o rio derrubou.
P1 – Qual foi a sensação da senhora da primeira vez que a senhora voltou e viu o lago, a região onde eram as casas?
R – Ah, foi chorar, foi chorar, acredita? Porque eu... Uns vieram visitar, ainda passearam, vieram ver como era o rio. E eu deixei para vir só de uma vez, só quando eu vim embora. Quando eu vim embora, que não tinha ninguém no lugar, só um monte de água, você não via mais nada, o rio encobriu tudo. Os pés de árvore tudo morreram, tudo encoberto, que você nem enxergava nada, aquilo ali. Ai, meu Deus, chorei tanto quando eu vim. Só sabia a direção, que ali era a minha casa, ali era a casa de fulano. Por cima da areia, do morro. Que a gente subia no morro e pegava lenha em cima do morro e botava os bodes de cima do morro para cá. Aí, a gente sabia a direção, de cima do morro. E marcava: ali era a casa de fulano, ali era a minha casa. Ah, chorei um bocado.
P1 – A senhora ficava olhando muito o lago?
R – É, ficamos. Uns tomando banho, uns tomando banho na praia, e a gente ficava andando no morro.
P2 – Na agrovila que a senhora foi morar, tinha muitas famílias?
R – Tinham.
P2 – Você sabe mais ou menos quantos eram, se tinha muitos, poucos? Como era lá? Sentavam para conversar no fim da tarde?
R – Conversava, tinha muita gente. Lá tinha muita gente. Agora, tinha gente de todo canto, todos os lugares. Não fizeram um povoado para dizer “aqui é só uma localidade”. Não, porque era bastante casa, não sei nem a quantia, não sei se eram 300 casas, não sei a quantia. Mas não localizaram todo mundo. Que era bom assim: essa rua aqui toda da Barra da Cruz, aquela outra toda da Barra da Cruz, aquela outra toda do Pau a Pique. Não, ficaram misturando. Acontecia que tinha até gente que botava vizinho da gente que não dava certo com a gente. Não dava certo com a gente.
P2 – E, quando a senhora começou a voltar, a senhora conversava isso com o pessoal da Barra da Cruz?
R – Conversava, conversava. Veio um bocado de vez junto comigo, e os outros não podiam vir, não tinham condições, não tinham coragem, outros não queriam vir e ficaram até hoje.
P2 – E, quando vocês vieram, vocês vieram como?
R – Viemos de vapor até velho Sento Sé, Sento Sé novo. Quando nós chegamos em Sento Sé novo, a gente pagou uma lanchona, que é uma lanchona muito grande, não sabe? Aí, veio nos deixar aqui no porto.
P2 – E lembra quantas pessoas vieram com a senhora, quantas famílias?
R – Da vez que eu vim, vieram quatro famílias. Quatro famílias!
P2 – O que vocês conversavam junto, Dona Antônia?
R – Ah, a gente conversava era a alegria de quando a gente chegar lá: “Eita, e quando a gente chegar lá, nós vamos pegar peixe!” Outros diziam: “Quando chegar lá, ainda vou pegar minhas coisa lá que ficaram. Se ainda tiver alguma coisa descoberta, a gente vai pegar.” Outros: “Quando chegar lá, eu vou cercar minha roça que eu deixei para secar.” Outros diziam: “Quando você chegar lá, fulano já pegou.” E a gente era animado, todo mundo alegre porque vinha para a terra da gente. Todo mundo era alegre, todo mundo se encontrava, todo mundo alegre.
P1– Dona Antônia, tem algum nome para essas pessoas que foram para Serra do Ramalho e voltaram para cá?
R – Ah, tem muito. Tem Nelson, tem Zé Libório, tem Zé Rizina, tem Chiquinho, tem Almiro, tem Geraldo, meio mundo de gente que voltou. Tem muita gente que voltou tudo. Na época que a gente voltou mesmo, voltou um bocado e depois ficou vindo de vez em quando. Ficou vindo alguém, ficaram vindo alguns deles, ficaram vindo. E outros ficaram lá, coitados. Lá tem alguns da família da gente que não vêm mais nunca. Lá é ruim, aqui é ruim também, então, ruim por ruim, a pessoa fica logo no lugar que está, para esperar o dia que Deus chamar. Porque, se a pessoa está passando dificuldade num lugar, ele mudar para outro lugar atrasadíssimo, ele vai esperar o quê? Então, fica logo onde está. Porque, quando a pessoa mora num lugar ruim, atrasado, mas aquele lugar lá tem emprego, tem trabalho, você chega lá, você vai trabalhar, seu filho vai trabalhar, seu marido vai trabalhar, a pessoa vai se esforçar para conseguir ir. Mas para vir para um lugar parado, pior do que lá? Então, fica logo lá, não vem. Fica lá.
P1 – E como foi a adaptação das pessoas que chegaram aqui?
R – A mesma: trabalhar, plantar rocinha, plantar cebola de meia para o pessoal, para aqueles que ficaram, que tinham condições de botar a pessoa para trabalhar, plantar cebola de meia. Trabalha três meses, se, dentro daqueles três meses, aquela cebola der dinheiro, o dono tira todas as suas despesas e, o que sobra, parte com o meeiro. E, se não der nada, o meeiro sai só com a enxadinha nas costas. Trabalha três meses, quatro, fica devendo ao armazém, comprando para comer para poder trabalhar, e fica devendo ao armazém.
P1 – Quais foram as maiores mudanças para as pessoas, além de terem perdido suas terras?
R – Ah, a maior foi essa mesmo. Isso grande, a gente foi para Bom Jesus da Lapa, essa foi a grande, deslocalizou foi muita gente. De todos os lugares, dos municípios, foi muita gente, essa foi grande. Dessa outra, não. Lá de um, quando não se dava bem naquele lugar, saía daquele lugar para outro, mas a maioria ficou mesmo. Sento Sé velho, Sento Sé novo, Pilão Arcado, esses outros lugares, tudo mudaram. Mas em muitos lugares mudaram assim: dali para aqui. Como se nós não tivéssemos mudado para agrovila, nós tínhamos mudado da Barra da Cruz para essa. Aí todo mundo tinha aproveitado tudo que tinha, só não as roças dos ilhotes, porque o rio cobriu e não descobriu. Só isso que nós tínhamos perdido. Mas aí não. Nós crescemos os olhos, achamos que lá era muito melhor para a gente crescer, todo mundo fez essa cabeça para ir para esse mundo, lá para Bom Jesus da Lapa. E a maioria deles ficou. Pau a Pique novo ali, Pau a Pique mudou de um Pau a Pique para outro. O pessoal de Pau a Pique não foi para Bom Jesus da Lapa, só mudou de um para outro, bem pertinho. E carregaram as coisas do velho Pau a Pique para o novo na cabeça, era botar as coisas aqui na cabeça e carregaram. Esses não foram, mas os outros que se mudaram para esse fim de mundo? Oh, Jesus.
P2 – Dona Antônia, a senhora conheceu o seu marido aqui?
R – Conheci, nascido e criado, todos dois. Tanto eu nasci em Pau a Pique, quanto ele nasceu em Barra da Cruz. Ele foi uma pessoa que passou muito tempo em São Paulo. Ele já casou uma pessoa de idade, e eu novinha. Eu era mais nova do que ele, hoje eu estou muito velha. Eu era forte, eu pesava 60 quilos. Hoje, eu estou com peso de bode, estou com 40 quilos. Eu pesava 60 quilos. Eu era forte, nova, namoradeira, dançadeira. Aí, ele chegou de São Paulo, quando ele chegou de São Paulo, eu: “Ah, eu namoro com ele.” Pois namorei com ele, foi logo casamento, me casei com ele. Mas não era nem para casar logo com ele, era para passar mais um tempo curtindo (risos).
P2 – E os seus filhos cresceram aqui?
R – Cresceram.
P2 – Como foi criá-los aqui nesse lugar novo?
R – Os meus filhos, eu criei eles botando para trabalhar. Botando para trabalhar e botando para estudar. Eu tenho três formados, com dificuldade. Porque aqui, para você estudar, é com dificuldade. Para você ter uma casa em Sento Sé, em Casa Nova, em Juazeiro, para botar aquele menino, tinha um parente lá para botar aquele menino. Porque ninguém tinha condição para pagar uma pensão, para botar aquela criança para estudar. Mas, tendo um parente, encosta naquele parente, e a pessoa fica ajudando, como eu tenho três formados. Mas meus filhos, eu criei meus filhos trabalhando, trabalhando e estudando e, graças a Deus, até o momento eu só me sinto... Não me sinto muito feliz também porque essa daí da esquina é formada e é formado o marido, são professores os dois, mas eles estão sem trabalhar. Porque teve um concurso muito ordinário, muito difícil, e eles não passaram no concurso. Que foi a maioria que não passou, não foi só eles, foi a maioria que não passou no concurso. Eles não passaram no concurso e estão parados, sem trabalhar.
P2 – Quando eles eram pequenos, eles trabalhavam ajudando em quê?
R – As mulheres eram em casa, e os homens eram na roça.
P2 – A roça era aqui perto?
R – Era, era. Os homens eram na roça, e as mulheres não, eram na casa. Eu também só tenho três mulheres. Três meninas mulheres, três moças. Uma, quando eu me mudei, eu botei para Sento Sé, para estudar, que lá eu tinha uma irmã. Ainda hoje tenho uma irmã lá em Sento Sé. Quando ela terminou aqui, que tirou o quarto ano, eu botei ela em Sento Sé. Aí, ela terminou, passou um bocado de tempo. Quando ela se formou, quando veio, se casou logo quando veio de Sento Sé. E tem outro formado, que mora em São Paulo.
P1 – Ninguém pensou em ficar aqui em Barra da Cruz?
R – Não. Uns falavam em ficar, que iam ficar aqui nesse local mesmo, em Serrote, que aqui se chama Serrote. Uns queriam vir para o Serrote, mas outros não queriam. Dois ou três também não vieram, não ficaram. Mas era para ser, foi projetado para ser a nova Barra da Cruz aqui nesse lugar, como justamente foi feito, mas depois que a gente voltou. Depois que a gente veio de lá, foi que construiu a Barra da Cruz. Mas, se nós não tivéssemos ido, que o pessoal de Barra da Cruz todos disseram que, se fosse para mudar a velha Barra da Cruz para aqui, todo mundo tinha mudado. Então, aqui estava uma cidade, aqui estava uma cidade grande, porque tinha muita gente na outra. Mas um pessoal, por uma parte, foi para a agrovila, uma parte pra Sento Sé, uma outra foi para Casa Nova, e o pessoal debandou, uns para um canto e outros para outro. Mas, se tivesse ido todo mundo, tivesse reunido todo mundo para fazer aqui a Barra da Cruz, aqui estava grande.
P2 – Dona Antônia, desse tempo todo que a senhora morou perto do rio, desde pequena, com a ida e depois a volta, conta para a gente alguma coisa que a senhora já viu no rio que emocionou, te assustou, alguma história que a senhora tenha escutado de pequena.
R – Não, minha querida. Só que o quê? O que a gente viu no rio que se admirou é que a gente viu uma luz. Uma luz grande, que a gente via a luz vindo de dentro da água, por cima da água, bem grande. Depois, aquela luz ia indo, ia indo e ela sumia na água. E isso aí, várias pessoas daqui, todo mundo viu, via. Não só foi uma vez só essa luz. Bem grande assim, ó. Essa luz bem grande, maior que um farol de carro. Ela vinha de lá para cá, outras vezes, ela passava dentro d’água, perto da beira do rio. Ela passava dentro da água, descendo, de cabeça baixa, tocha bem grande assim.
P2 – E dava medo?
R – Dava, dava medo. E as pessoas que dormiam, estavam dormindo nas roças ali para olhar a planta, depois que começaram a ver essa luz, as pessoas não dormiram mais. Ficaram com medo de noite.
P2 – O que será que era, Dona Antônia?
R – Ninguém sabe.
P2 – Dona Antônia, conta para mim então, como era esse lance da luz, se dava medo, se não dava.
R – Ah, dava medo, mas tanto medo. Até os homens, quando viam, admiravam. Que ela também só aparecia de noite, só de noite. Aparecia, e o pessoal tinha medo, tinha medo dessa luz. Que ela era grande, e ninguém podia saber o que era que significava essa luz. Uns diziam que era caipora, outros diziam que era avó d’água, e ninguém sabe o que significava ela.
P2 – Você conta para mim essa história da caipora?
R – Da caipora, eu mesmo nunca vi, né? Mas o povo conta que dizem que, antigamente, ela vinha, penteava cabelos. Outros, tem um rapaz aqui que disse que já a viu no piloto de um barco, disse que muito linda, disse que ela caía na água, sumia na água. Um pentão muito grande atravessado na cabeça. Mas eu mesmo nunca vi, não. Mas ele conta, o rapaz diz que viu. Ela era uma moça muito bonita, muito bonita a avó d’água. Lá no velho rio que nós morávamos é que tinha umas pedras, uns montes de pedras, uns lajedos. Quando o rio vazava, aqueles lajedos descobriam, ficavam no seco, não sabe? E a água ficava lá afastada. Então, eles diziam que cansavam de vir meia-noite ou no romper do dia, e ela está em cima daquela pedra. E aí, quando ela via o povo, disse que ela caía na água, disse que ela caía n’água. Esse rapaz mesmo disse que viu ela, disse que muito bonita, muito linda, disse que era uma moça muito linda a avó d’água. Mas de tudo acontece, né? Agora, eu mesmo nunca vi. Eu mesmo nunca vi.
P2 – Quando a senhora era criança, que bichos tinha? Que bichos a senhora via?
R – Nesse tempo, via peixe, jacaré, os peixes grandes e jacaré. Jacaré, a gente via muito. Porque esse daí pegava até gente, o jacaré. Mas também era pouco o jacaré. Mas teve um rapaz mesmo que ele levou para o meio do rio, quebrou o braço, trouxe. Um rapaz daqui, da Barra da Cruz velha. Só não conseguiu matar o rapaz porque chegou um pessoal e tomou o rapaz do jacaré. Porque ele puxou, agarrou nele e levou ele mais para o fundo da água e lá ia matar e ia comer. Ainda hoje ele é vivo, ele tem o braço aleijado do jacaré que quebrou o braço dele.
P2 – Nossa, perigoso jacaré.
R – É uma fera perigosa ele, o jacaré. Sendo um jacaré grande, oxe! Ele mata qualquer pessoa, gado. Ele pega na bebida também, ele mata criação de bode também, na bebida, eles pegam também e comem, matam também, jacaré. Agora o peixe não, peixe nenhum faz medo. Quanto mais ele é grande, mais a pessoa fica alegre quando pega, quando ver ou quando pega. Porque fica melhor para a pessoa.
P1 – Qual é o maior peixe que tinha?
R – O maior peixe que tinha era surubim, o maior peixe que nós tínhamos aqui no nosso rio era surubim. Porque tinha surubim que é do tamanho de um homem, surubinho. O pirá também. Ele fica grande, mas ele é menos do que o surubim.
P1 – E, quando pegava um surubim desse tamanho, grande, o que se fazia?
R – Oh, meu Deus do céu, vendia. Tirava a cabeça, a cabeça dava para duas, três famílias comer a cabeça de um surubim cortado. Agora, a massa mesmo, o corpo a pessoa vendia, a pessoa vendia a carne, o corpo do surubim. Gordo, cortava assim, ele dava um dedo de toucinho. Tão gostoso ele assado na brasa. Ou servia para fazer moqueca. Surubim é gostoso, peixe que não tem espinha, bom o surubim. E hoje aqui é difícil. Depois desse lago do rio, ficou difícil encontrar eles, é difícil mesmo encontrar eles. Agora no rio velho não. Meu marido mesmo, ele cansava de pegar. De uma vez, ele pegou foram seis. Ele pegou foram seis, que o barquinho não deu para vir, que ele atravessou do outro lado para vender ao rapaz. Mas aqui não, aqui é difícil. É difícil pegar e, quando pega, não pega grande, pega pequeno.
P1 – E como cozinhava o peixe? O que vocês faziam?
R – Fazia? Cortava os pedaços, colocava no fogo com todos os temperos, com folha de coentro, com cebola, com pimenta, com limão e botava no fogo e cozinhava em meio caldo. Oh, mas era gostoso! A gente botava nos pratos, comia. Outros faziam o pirão, a gente comia, era gostoso. Aí, acabou-se. Cabeça, matava um surubim grande, com a cabeça, a gente cortava miúdo assim, dava uma bacia grande de pedaço. A gente dava para os vizinhos. Todo mundo naquele dia ia fazer aquela refeição só da cabeça do surubim. Que a cabeça ainda é mais gostosa do que o corpo, a carne do surubim.
P2 – O pessoal fala que peixe é bom porque dá para aproveitar ele inteiro, né? Dá para fazer tudo.
R – É.
P1 – E, além do peixe, tinha outra tradição de comida, da cozinha?
R – Não. Tinha o peixe, o feijão que a gente cozinhava na roça. Uns dizem: “Hoje, vamo fazer uma feijoada, um piquenique, vamos fazer isso.” “Não, vamos fazer uma panelada. Hoje vamos fazer uma panelada.” Moça, rapaz. Botava aquele bocado de panelinha no fogo para cozinhar feijão, cozinhava milho, cozinhava o peixe, cozinhava carne. Outros matavam aquele bocado de passarinho, de pássaro, os rapazes. Matavam aquele bocado de pássaro, depenava, tratava e cozinhava em outra panela. A gente levava a vida assim, menina. A gente, quando é novo, tem outra vida.
P1 – E as famílias dividiam entre si o que elas plantavam nas ilhas?
R – Era cada qual plantava o seu. Era que, nas ilhas, não tinha cerca, não tinha arame. Mas um vizinho, a sua, aquele vizinho, outro. Só botava um murãozinho para saber as extremidades do quadro da sua roça. E todo mundo plantava. E quando era no tempo de colher, todo mundo fazia seu barraquinho e ficava montado. Lá não tinha medo, não fazia medo, e o povo comia lá pela roça. Não tinha medo de nada, não acontecia nada. Hoje, ninguém pode dormir assim porque a bandidagem, a malandragem está demais. Uma falta de confiança, ninguém confia. Mas, no outro tempo, não. No outro tempo, você podia chegar, qualquer pessoa, e deitar no meio de um terreiro desse, na caatinga e em qualquer canto, não tinha nada, a não ser uma cobra que viesse pelo chão para picar a pessoa. Que por outra coisa a pessoa poderia ficar tranquilo. Já hoje não se pode fazer isso.
P2 – O que sua mãe fazia de comer que você gostava?
R – Ah, minha mãe gostava muito de fazer angu de milho. Tinha o trabalho de tirar o milho, pisar o milho no pilão e tirar a massa do milho, fazer aquelas panelonas de angu. Botava para cada quem seu prato. Aquilo era gostoso que ela fazia. Mãe só trabalhava. Outras vezes, o tempo duro, ela arrancava muita mandioca. Ralava a mandioca para fazer beiju na panela. Ficava gostoso para a gente comer com peixe assado, com carne assada. Era gostoso demais.
P2 – E você, quando pequena, brincava muito no rio? Nadava, andava de barquinho?
R – Não, nós não, eu não fui criada na beira do rio. Fui criada no sítio, tinha o poço. E, no poço, a gente não podia tomar banho dentro do poço que era a água que a gente usava. Tinham que tirar água fora e banhar fora. Eu não sei nadar, não sei nadar porque eu não fui criada na beira do rio. Onde tem essa menininhas bem assim, essas meninas parecem uma piaba: vão lá para o meio do rio, somem que desaparecem, quando pensa que não, saem lá de novo. Eu não sei tomar banho, nadar porque eu fui criada em sítio, em poço. Aí, não se podia entrar dentro porque a água era a que a gente bebia, usava.
P2 – Mas você já tinha atravessado o rio de barquinho?
R – De barco já. De vapor, de barco. Já atravessei várias vezes já.
P2 – E, quando você era pequena, você via o vapor passando?
R – Via, via. Tinha o porto, ali mesmo nas areias, a balsa de Barra da Cruz velha tinha um porto, que ele dormia e lenhava, pegava lenha. Tinha aquele pessoal que cortava aqueles mundões de lenha para vender os metros de lenha para o vapor. Aí, o vapor encostava, quando ele vinha de longe, ele já vinha apitando. Aquele apitão tão bonito, a gente gostava, dormia lá nas areias. Quando era de noite, os comandantes, os empregados carregavam a lenha para o vapor de lenha. E, quando era de manhã, eles voltavam, o vapor. É gostosa a viagem de vapor. Eu já andei umas três vezes de vapor, é gostosa a viagem.
P1 – Como era a viagem?
R – Era uma viagem muito boa. É o mesmo que um carro, uma casa bem confortável, bem ventilada. No vapor tem de tudo: tem o banheiro, tem as comidas de toda diversidade, que tinham aquelas empregadas, tinha aquele povo para fazer as comidas. É muito boa a viagem de vapor. Tem os quartos das camas, outros armam as redes nos pés-direitos. Gostosa a viagem de vapor.
P2 – Dona Antônia, por que te chamam de Antônia Fogo?
R – É porque sempre, toda vida, eu fui terrível. Toda vida, eu fui assim, eu nunca levei desaforo para casa. E estou com essa idade que estou, eu nunca bati e nem nunca apanhei, agora também nunca tive medo de ninguém, de homem nenhum, nem de mulher nenhuma. Nunca tive medo. Mas eu nunca dei um tapa e nem nunca levei um tapa. Mas nunca tive medo. Pode ser quem for, podia ser quem fosse, podia ser do tamanho que fosse, podia ser quem fosse. Tinha que respeitar um pouquinho para eu poder respeitar. Porque tinham que me respeitar. E, por causa disso, me botaram o apelido de Antônia Fogo. E, por Antônia Fogo, eu vou morrer, porque o meu nome é Antônia Nunes Café e botaram o apelido de Antônia Fogo e por isso ficou. Que até de São Paulo vem carta minha sobrescrito Antônia Fogo.
P1 – Mas a senhora era terrível por quê?
R – Porque eu não tinha medo de nada, eu enfrentava qualquer coisa, não tinha medo, conversava.
P1 – O que a senhora achava que estava errado?
R – Ah, eu ia lá e queria consolar, eu queria desmanchar aquilo ali que estava errado. Queria não, desmanchava. Era. Podia estar a briga da maneira que fosse, eu também não tinha medo de encostar junto, não, para fazer as pazes, né? Para fazer as pazes. Não tinha medo, não. Quando minhas meninas viam uma briga, que eu começava a chegar junto, eu dizia: “Para por isso aí, para.” E o povo ficou com isso.
P1 – Quando a senhora lutou com o pessoal na agrovila para vir para cá, foi esse sentimento de contestação? Não estava se sentindo bem?
R – Não estava não, estava não. O chefão de lá, eu fui encarar foi com ele, eu encarei foi com ele. Que eu ia embora e fui cobrar, eu queria que ele pagasse era o dinheiro da minha casa. Mas ele não pagou, não. Eu queria que ele pagasse o dinheiro da minha casa porque eu ia embora, que não estava dando certo, que eles mentiram, que eles disseram que era uma coisa e era outra, e eu perdi o dinheiro de minha casa. Eu queria ir-me embora para minha terra.
P2 – E o pessoal fala do “movimento dos arrependidos”, que se arrependeram e voltaram. A senhora sabe alguma coisa disso?
R – Não, foi assim: as pessoas se arrependeram, vieram. Quando chegaram aqui, não tinha mais o que fazer. Eles não ajudaram ninguém em volta, eles não ajudaram ninguém. Eles ajudaram o pessoal de ida, para levar, eles ajudaram. Mas de volta cada quem veio por sua conta própria. Quem teve coragem e quem teve condições de vir, veio. E quem não teve por lá mesmo ficou. Até hoje, lá mesmo ficou.
P1 – E, quando as pessoas saíram daqui, eles pagaram alguma indenização?
R – Pagaram, eles pagaram. Uns mais, outros menos, mas eles pagaram indenização, eles pagaram.
P1 – Vocês negociavam com eles, eles que davam o preço, como era?
R – A gente dava o preço. É que a gente pedia um preço, e eles davam outro, né? Eu mesmo, o que eu tinha, minhas roças com minha casa, eu negociei naquela época por 18 mil, 18 mil. Esse dinheiro a gente levou de mão beijada, esse dinheiro a gente não dependeu com nada na viagem. A gente levou esse dinheiro, quando chegou lá, eu botei comércio, um “comercinho” até bom. Eu levei umas vacas, um gadinho, e a gente ficou por lá. Ele, meu esposo, ele era muito trabalhador, esse homem, quando a gente saiu de lá, ele deixou meio mundo de mandioca e de algodão plantado, de feijão plantado. Ficou lá. Se não fosse o que tomaram de cultivo lá, foi que tomaram conta. Mas eu não me dei, não me dei bem com o clima de jeito nenhum lá. Eu adoeci, comecei a adoecer e comecei a andar no médico, e nada, e nada. O povo disse: “É porque ela não se dá com o clima, ela tem que ir embora.” Muitas pessoas diziam: “Ela tem que ir embora, ela não se dá com o clima.” Aí, voltamos. Eu: “Por onde fulano?” Chegava um conterrâneo, eu: “Vamos embora. Rapaz, nós estamos fazendo o quê aqui? Nós estamos passando nossa vida, nós estamos é nos acabando aqui, nós vamos é morrer com essa água e nós vamos morrer aqui. Vamos embora?” “Vamos.” “Você vai mesmo?” “Vou.” E, quando chegava outro, fazia do mesmo jeito. Eu sei que, de repente, junto comigo, vieram quatro famílias, vieram quatro famílias junto comigo. E aí que, quando nós chegamos, todo mundo sabia em que pisava, sabia em que entrava, conhecia todos aqui, a caatinga, as roças e tudo o mais. Nós fomos cada quem cercar sua roça, com os cuidados, fazer o nosso barraco e estamos até hoje.
P1 – Depois vieram outras famílias?
R – Vieram, depois vieram.
P1 – Elas ficaram sabendo? Como é que foi?
R – No início, quando a gente chegou, foi até muito melhor. Corria que começou a dar muito peixe, o pessoal fazia muito dinheiro de peixe. E corre a história que estava bom aqui de dinheiro, estava bom de peixe, o pessoal estava fazendo muito dinheiro. Aí, muita gente veio embora. Depois, ficou vindo, ficou vindo, vindo. Até dois anos, não parava de vir gente de vez em quando. Agora, de dois anos para cá também, parou. Pararam de vir, não vieram mais.
P1 – Até há alguns anos, as pessoas estavam voltando?
R – Estavam, estavam. Eu pensava que não, pronto, chegou, veio embora com família. “Fulano do Bem Bom? Chegou. Fulano do Pau a Pique veio. Fulano de Casa Nova chegou.” Era assim. De uns tempos para cá, parou. Acho que cansaram, coitados. Cansaram, acabaram com o que tinham e aquietaram.
P1– E as plantações de cebola, quando começaram?
R – A plantação de cebola aqui é na vazante do rio. Esse rio, quando enche, ele vai água até lá fora, pelas baixas, não sabe? Até lá fora vai. Aí, o pessoal planta, planta cebola.
P1 – Foi uma iniciativa das pessoas daqui?
R – Dos daqui. Os que ficaram. É que, na velha Barra da Cruz, nós não plantávamos cebola, não tinha esse plantio de cebola. Nós lá tínhamos o plantio de feijão de arranca. Mas lá nós não conhecíamos, não trabalhávamos com cebola. Os que ficaram aqui, veio alguém de fora que incentivou, que sabia trabalhar lá fora na cebola. E eu sei que, quando nós chegamos, já tinha muita gente trabalhando e enricou muita gente. A planta de cebola enricou muita gente. E outras pessoas também tiraram do ramo. Porque a cebola é assim: são três meses que você trabalha nela. E, se com três meses, ela der pé, você arranca. Porque, se você não arrancar, ela apodrece. Agora, se ela der dinheiro, é muito dinheiro. Agora, também, se ela der prejuízo, é grande. Porque é o veneno, é o adubo, é água, é tudo que a pessoa gasta, gasta muito com ela. Mas, quando ela dá dinheiro, é bom demais. Num instante, a pessoa sobe.
P2 – A senhora já pensou em ir na agrovila que a senhora deixou? Já passou por lá de novo?
R – Não, nunca, nunca mais. E nem tenho intenção de voltar mais lá. Só se fosse uma coisa que dissessem assim: você tem o direito de vender a sua casa, você tem o direito de vender o seu lote. Aí, eu ia lá. Porque o nosso lote era bom, nossa roça lá era boa, era grande, bem cercada. A minha casa que eu ganhei lá do projeto, eu fiz serviço, cresci mais, eu fiz serviço. Aí, se dissesse assim: você tem o direto de vender. Aí, eu ia lá. Mas só para ir lá, não. Nem eu e nem meus filhos que vieram.
P1 – Dona Antônia, deixa eu perguntar uma coisa: se o lote era bom, se a casa era boa, por que vocês quiseram voltar? O que aconteceu para vocês quererem voltar?
R – Voltar para aqui? É porque eu adoeci, não sabe? Eu adoeci, e muita gente dizia que era o clima do lugar, era modo da água. A água era salobra. Você botava num pote de barro, a gente comprava as vasilhas de barro para botar para filtrar, oxe! Quando era no outro dia, amanhecia assim, dois dedos daquele sal banco, nem sal não era aquele trem branco. E aquilo a gente bebia, aquela água, não sabe? E aquilo sentava toda no pulmão, no intestino da pessoa. E pessoas não aguentavam, adoeciam mesmo. E eu adoeci e, aí, eu digo: “Não, eu vou embora, não vou ficar aqui.” Aí, a gente veio embora. E mesmo de saudade, mulher! A gente tinha saudade demais das terras da gente, dos conterrâneos da gente, da terra da gente, e eu deixei meu pai e minha mãe. Quando eu estava lá, meu pai morreu. Ficou só minha mãe. E minha mãe morava lá no sítio, ela morava sozinha. Não, nós vamos embora, vamos embora. E nós tínhamos uma saudade dos conterrâneos da terra da gente! Que lá era tudo diferente daqui. Aí, a gente veio embora, eu vim embora. Se eu, pelo menos, quando eu cheguei aqui, como eu estou, se eu tivesse saúde, não, eu não tinha me arrependido, não arrependia de jeito nenhum. Mas meu problema, eu não sei contar o que é minha doença. E nem os médicos descobrem o que é minha doença. O ano passado, mulher, eu fiz foi um check-up, tirei foi um check-up do corpo inteiro, e não mostra. Não mostra o que é minha doença e eu me acabando cada vez mais.
P1 – O que a senhora sente?
R – Eu sinto uma fraqueza muito grande, uma dor muito grande em minha cabeça. E minha cabeça é assim, rodando, aquela coisa, aquela fadiga. Todo dia, eu amanheço com a cara inchada, com os olhos inchados, com aquele peso muito grande, inchado. E tem vez que minha cabeça, chegam os ossos da minha cabeça estalar. E eu tomo remédio, eu tomo remédio, minha boca tem um fogo, de tanto remédio que eu tomo, que amarga. E, cada dia que passa, eu sinto pior.
P1 – E era a mesma coisa que a senhora sentia lá em Serra do Ramalho?
R – Era, era o mesmo que eu sentia lá. Quando eu fui, eu não sabia, não sentia isso quando cheguei lá. Não sentia isso de jeito nenhum e, depois de lá, me apresentou isso e, para cá, pronto, vem até hoje.
P1 – E outras pessoas tinham as mesmas coisas devido a essa água?
R – Não. Aí, o pessoal de lá começou a pegar água do rio para beber, só para beber, né? Para usar, outros começaram a fazer poço de água doce, que a água era mais doce. Tinha lugar que fazia o poço da água mais doce e outros começaram a carregar água do rio para beber. E outros vieram embora. Tem muitos deles que vieram embora para a cidade mesmo do Bom Jesus da Lapa. Ficava do Bom Jesus da Lapa lá para as roças, trabalhando.
P1 – A senhora sabe se outras pessoas tiveram esses mesmos sintomas que a senhora? Outras pessoas adoeceram também?
R – Adoeceram, as pessoas adoeceram. Tiveram umas pessoas que andaram, morreram muitas já. E muitos diziam que era através da água.
P1 – Dona Antônia, tem mais alguma coisa que a senhora gostaria de dizer sobre a vida da senhora, sobre o rio, sobre algum desejo que a senhora tenha?
R – O desejo que eu tenho é que... Quando a gente lembra o que era, para o que é hoje, o que a gente tinha, não tem mais, o que a gente vê, não vê mais...
P1 – Eu gostaria de agradecer a senhora em nome do Museu da Pessoa por ter concedido essa entrevista para a gente. Muito obrigada.
R – Nada, minha querida, vocês desculpem também, porque você sabe que eu sou analfabeta, não sei ler nem nada. Vocês devem desculpar porque vocês sabem que as pessoas que são formadas, as pessoas que são bem de vida nem relevam, não relevam a matutagem da gente do mato.
P2 – Obrigada pela entrevista.
R – Nada, minha querida.
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