Projeto Banco do Brasil - 200 anos de Brasil
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Dea Santos Melo
Entrevistada por Nádia Lopes e Marta Delelis
Belém, 03 de dezembro de 2008
Código: BB200_HV024
Transcrito por Vanuza Ramos
Revisado por Adriane Pena da Silva
P/1 – Dea, bom...Continuar leitura
Projeto Banco do Brasil - 200 anos de Brasil
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Dea Santos Melo
Entrevistada por Nádia Lopes e Marta Delelis
Belém, 03 de dezembro de 2008
Código: BB200_HV024
Transcrito por Vanuza Ramos
Revisado por Adriane Pena da Silva
P/1 – Dea, bom dia! Obrigada por nos receber aqui.
R – Bom dia.
P/1 – A gente vai começar pela sua identificação. Eu queria que você nos dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Então, o meu nome é Dea Santos Melo. Nasci aqui em Belém no dia 26 de dezembro de 1964.
P/1 – Você estava falando alguma coisa do seu nome.
R – É. Então, o meu nome... Primeiro, assim, a minha mãe quando estudava em colégio de freira no Maranhão, tinha duas gêmeas que se chamavam Dea e Lea. E ela achava esse nomes lindos, né? Ela dizia que quando tivesse filhas, elas teriam esse nome. E eu nasci, eu sou a terceira de cinco e aí ela me deu o nome de Dea. Depois eu descobri que Dea é um nome grego, que é o diminutivo de Deva, que é deusa. E tinha um amigo dela que dizia que eu tinha um nome muito abençoado. Mas eu não sabia porque ele dizia isso. Depois que eu vim saber. E estudando a tradição indígena, eles dizem que o nosso nome, que cada um recebe o nome que precisa receber. Então por mais que, às vezes, a gente não goste do nome que a gente tem, mas é a palavra que a gente mais gosta de ouvir. É a nossa primeira identidade, é o nosso poder. É tanto que eles cantam muito os nomes, né? Então em algumas tradições, as índias quando estão grávidas vão pra floresta e vão cantar, cantar, cantar até que o nome dessa criança venha. Então, os nomes têm um significado muito importante. A gente perdeu muito isso nas nossas referências ocidentais, mas na nossa tradição existe esse cuidado e esse valor do nome que a gente tem.
P/1 – Eu gostaria agora que você dissesse o nome dos seus pais.
R – Minha mãe é Guiomar e o meu pai é Anastácio. Aí eu estava pensando outro dia, eu acho que a minha avó materna é Guajarina. Minha avó não tinha nenhuma matriz indígena. E falei com minha mãe, ela disse: "Não, de jeito nenhum". Mas é um nome de origem indígena e aqui nós temos a Baía do Guajará. A minha avó paterna tinha nome cristão ocidental, Eva. Minha avó era Eva, minha avó paterna. Então eu tenho uma avó paterna de nome cristão e uma avó materna de nome indígena, né? Embora minha mãe teime que não é e eu digo: "Apôs, eu digo pra todo mundo que minha avó era índia" [risos]. Mas não tem essa... Como eu disse, a gente perde essas referências e acha que não é interessante ter origem indígena, ter origem africana e é onde está a nossa força.
P/1 – Fala um pouco sobre a origem dos seus pais. Eles não são de Belém, né?
R – Não. Então, minha mãe nasceu no Maranhão, os dois nasceram no Maranhão mas foram criados em Goiás. Foi onde eles se conheceram, namoraram por carta, se casaram e foram morar em Goiânia. Depois foram morar em Brasília. Quando a minha mãe já estava grávida da segunda filha, eu sou a terceira, eles vieram pra cá. Meu pai trabalhava na Sudam, que era a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia. E vieram para cá e aqui eu nasci. Depois que a minha ____ chegou, ela não quis ir mais embora daqui. Ela não queria vir pra cá. Porque a referência dela era o Centro-Oeste, é um mundo diferente. O Norte é muito diferente, né? Mas depois que ela veio pra cá e ela ficou, assim, encantada com os rios, encantada com a diversidade de frutas. Achou que aqui foi um lugar que depois que ela veio, ela não quis mais sair. E aqui ela foi ficando e nascemos nós quatro. Porque ela já veio grávida da segunda. Veio eu e depois mais dois irmãos. Eu tenho um irmão: somos quatro mulheres e o mais novo é um menino.
P/1 – Qual o nome dos seus irmãos?
R – Os meus irmãos, é tudo "D": Deliane, Denise, eu, Deise e o Anastácio Junior, que é o mesmo do meu pai.
P/1 – A idade deles?
R – Então, a mais velha tem 45. A segunda tem 44. Depois vem eu com 43. Vem a Deise com 41 e vem o Júnior com 40. Uma escadinha!
P/1 – Antes de você falar o que eles fazem, o que a sua mãe faz? Ela vem aqui dar aula? Conta um pouco isso.
R – Pois então, ela veio pra cá. Meu pai é funcionário público, e ela veio pra cá e tinha estudado em colégio de freira, terminou o segundo grau em colégio de freira. Quando vieram pra cá foi um momento interessante porque a Amazônia estava se desenvolvendo. Meu pai veio como assessor de alguém que eu não lembro quem era. Mas depois, as coisas ficaram difíceis e a minha mãe sentiu a necessidade de estudar para ajudar em casa. Aí ela foi fazer vestibular, já com nós cinco nascidos. Ela fez vestibular para Letras e Artes e se formou. Ela trabalhava de noite. Então, nós ficávamos de dia com ela, né? E ela estudava à noite para não deixar a gente sozinho de dia. Então, assim, foi toda uma história de muita luta. Essa casa, nós construímos morando aqui. Tem até a foto como ela era, então, foi algo construído aos pouquinhos. Meu pai era funcionário público e minha mãe professora, então foi tudo construído com tempo, parte por parte, pedaço por pedaço. Teve uma época que meu pai teve que vender galinha, vendia frango para ajudar no orçamento.
P/1 – Você tinha quantos anos, mais ou menos nessa época?
R – Olha, eu deveria ter uns 15 anos, por aí.
P/1 – Já grandinha.
R – E a casa foi construída bem aos poucos. Quando a primeira parte foi construída, que foi aqui embaixo, a gente morava aqui embaixo. Aí quebrou metade da casa, ficávamos morando na primeira metade. Depois construiu... Não sei quantos anos foram, mas foram muitos anos construindo essa casa. Nós ajudávamos a carregar tijolo, foi toda uma participação de todo mundo para construir isso. E nós fomos criados assim. Como nós não tínhamos parentes aqui, fomos criados só os filhos e pais. Nossa família era toda de fora. E a gente foi criado muito com eles. Dentro de muitas regras, muito conservadores. Meu pai queria muito que eu fizesse Direito, ele achava que eu tinha tudo pra ser uma advogada [risos].
P/1 – Dea, deixa só eu voltar um pouquinho numa coisa. Quando você era pequenininha, você praticamente nasceu aqui, né? Você lembra como era, quando você era pequenininha, como era a rua dessa casa? Das brincadeiras, como era quando você era criança aqui?
R – Lembro, era uma rua larga. Quando foi asfaltada é que ela ficou baixa, a gente vê esses barrancos. Mas eram terrenos grandes na frente. A gente brincava muito de cemitério, que hoje se chama queimada. A gente brincava de cemitério, brincava de roda, brincava muito de casinha e brincava de pira.
P/1 – O que é pira?
R – [ri muito] Lá vocês chamam de pique, né? Pique-esconde, alguma coisa assim. Aqui a gente chama de pira, pira-esconde, que era fechar os olhos e correr atrás. Brincava de cemitério, queimada. Fazíamos fogueira na rua quando era época de São João. Esse vizinho aqui, na época era vizinha, tinha um terreno que era um quintal imenso, só areia e algumas árvores. Nossa, a maior alegria era no dia que a mamãe deixava a gente ir na casa da vizinha. Porque para ir na casa da vizinha tinha que ter o dia certo, tinha regra. Não era pra ser em qualquer dia, ela não gostava que a gente andasse na casa de vizinho. Então, quando a gente ia pra lá era um festa porque a gente brincava de bandeirinha. Bandeirinha é dividir o terreno ao meio e aí a turma daqui tem que pegar a bandeirinha de lá sem tocar no outro e vice-versa. Então, quem pegava a bandeirinha primeiro, ganhava. A gente adorava brincar disso aí. Quando era uma coisa mais quieta, brincávamos muito de bambolê, era uma brincadeira de jogar pedra. Essas brincadeiras todas eu vivenciei muito e hoje eu observo a importância do que é o brincar. Nossa, eu tive uma infância, tive essa oportunidade. Eu acho que todos nós, quando a televisão não era tão imposta como é hoje, a gente não via televisão. Chegava 6h ou 7h, o papai e a mamãe não deixavam a gente ver televisão. Eu lembro que ficávamos atrás da cortina querendo olhar: "O quê? Vão já pra cama!". Era muito diferente, foi uma criação bem diferente dessa que a gente tem hoje.
P/1 – Tinham histórias? Pra gente que é paulistana, tem essas coisas de lendas daqui. Como é isso?
R – Pois é. Eu já fui ter um contato mais profundo com isso quando eu comecei... Assim, como eu não tive uma família de origem amazônica, então, eu vim aprender e ouvir isso aqui. Mas era assim: quando faltava luz, a gente ficava na porta, e como tinha história de assombração, né? Sempre tinha... Nossa senhora, aqui tinha uma velhinha, dona Maroca, que ela contava sempre muitas histórias para os netos dela. Ela vivia aí, a dona Maroca e a dona Chiquinha, que eram filhas de dona Maroca. E a dona Elza que era filha de dona Chiquinha, viviam todas aí. Os netos dela sempre diziam que tinha histórias, que a vó via “visagem”? Que via visagem lá no fundo do quintal, eu tinha horror. Esses papos só vinham quando faltava luz. Eu não gostava, mas tinha muito essas histórias, assim, de gente que via isso. Depois eu vi que as lendas aqui na Amazônia, as pessoas vivenciam, têm histórias. Eu já pude presenciar pessoas, meninas que tiveram uma experiência com alma do mangue, homens que tiveram experiência com bota. Então, tinha umas histórias assim, quando a gente chegar mais pra frente eu posso contar. Mas, assim, eu fui uma criança... Eu nasci e fui a maior das filhas. Eu nasci grande, com quatro quilos. Mas eu peguei uma gripe na época que chamava gripe russa e ela matava. Assim, 80% das crianças que tiveram essa gripe morreram. E eu fui... 40 dias de febre, minha mãe achava que eu ia morrer ali mesmo, que eu não ia sair. Eu fui batizada no hospital por conta disso, porque achavam que eu não ia sair viva. Então, assim, eu cresci com minha mãe tendo muito cuidado, com medo que eu gripasse. Ela dizia que quando eu via um sorvete, um picolé, eu dizia: "oh picolé bonito", mas me conformava que eu não podia. Eu já tinha aquilo que eu não podia tomar. Então ela tinha muitos cuidados, eu fui super protegida por conta disso. Eu lembro que… [pausa] Então, a mãe dizia que não sabia porque eu tinha sobrevivido [choro]. Eu não sei quantos anos eu tinha, quando disse que eu tinha uma coisa muito importante pra fazer [choro]. Mas eu me lembro de falar isso, sabe? Num momento, num instante qualquer numa conversa de sala, mas me lembro. Eu não sei que idade eu tinha falado, né? E eu aumentei isso, eu não sei porque, ficou na minha cabeça. Aí meu pai queria que eu fizesse Direito, que eu fosse advogada. Porque eu era a defensora das causas dos oprimidos, ele dizia. Papai sempre foi um grande falador, um grande discursador. Ele veio pra cá com os políticos, então ele discursava. A mãe dizia que quando a minha fez o primeiro vestibular, ele fez vestibular também. Todo ano ele fazia vestibular, mas nunca estudava. Ele nunca passou, claro. Era Direito que ele fazia e ele queria que eu fizesse Direito. Eu dizia: "Não, Direito não tem nada a ver". Aí quando eu terminei... Primeiro eu quis fazer psicologia.
P/1 – Antes de você ir pra psicologia, volta um pouco. Eu queria saber um pouco da sua primeira escola, se você lembra.
R – Lembro, lembro.
P/1 – Dá para você contar pra gente essa trajetória?
R – Então, a minha primeira escola foi aqui em casa. A minha mãe alfabetizou todos nós. Quando nós entramos na escola, todo mundo já sabia o ABC. Eu tenho o ABC aí que eu estudei. Foi no Colégio Adventista, que até hoje existe. Então eu já entrei na alfabetização. Era um colégio em que a religião... Segunda-feira, por exemplo, era o dia de estudar religião. Eu estudei lá até a quarta série primária. Depois, minha mãe achava que... Minha mãe era uma católica fervorosa, então ela achava que não ia dar certo estudarmos nesse colégio porque ele ia ensinar a gente a ser adventista e ela não queria [risos]. Aí nos tirou e pôs no colégio de freiras, o Bittencourt, que é um colégio tradicional. Na época a Sudam, que era o órgão que papai trabalhava, pagava o colégio particular, esse colégio de freiras. E fomos todos pro Gentil Bittencourt. Lá eu terminei o meu segundo grau, fiquei da quinta série até o meu segundo grau lá no Gentil.
P/1 – Dessa época o que você lembra dos seus amigos, alguma coisa marcante?
P/2 – Professora?
R – No Grão Pará tinha... A primeira professora, Mirian, eu gostava muito dela, era uma pessoa muito amorosa e que me estimulava muito. Eu me lembro desse momento e lembro também de uma situação marcante. Na época que estava construindo essa avenida aqui, tinha uma amiguinha que era uma vizinha e a gente brincava. Eu devia ter uns 7 ou 8 anos por aí. E aconteceu um acidente. Ela foi atropelada e morreu. O meu pai ficou tão preocupado como é que ele iria me contar essa história e foi bater lá no colégio. Era hora do recreio, na verdade, foi depois do recreio. Eu lembro que o meu irmão, o caçula, a professora tinha ido me chamar porque ele estava com dor no ouvido e estava chorando. Eu já estava meio agoniada, sabe? Quando chegou na hora do recreio, a minha irmã que era mais velha do que eu chegou e falou assim: "Ah, Dea, a Tânia morreu". "Eu não vim aqui falar...", eu fiz de conta que não era verdade aquilo: "Eu não vim falar aqui disso contigo, o Júnior está com dor de ouvido." Aí eu fui pra sala, mas agoniada, né? Quando eu vi o papai lá, pensei: "Vixe Maria, então a conversa é séria". Então ele foi lá dizer que ela sofreu um acidente, que estava mal, mas que não tinha acontecido nada com ela. Mentira, eu já sabia que ela tinha morrido. Aí eu vim pra casa e não queria ir na porta. Porque eu não queria ver a hora que o corpo ia chegar. Nessa época, as pessoas velavam os corpos em casa, né? Aí então eu fiquei com medo, foi um momento que eu lembro porque eu vi o papai na escola num momento que não era comum, uma notícia dessa assim... Foi a primeira sensação de perda que eu tive na infância... Isso é uma coisa que eu lembro. Assim, também de uma situação em que era com os colégios de adventista, os adventistas são classe média. Tinha uma menina na minha turma que era negra e na nossa cadernetinha tinha nossa foto. Uma vez pegaram a cadernetinha dela e começaram a fazer pouco dela, sabe? Porque ela era feia, porque ela era negra... Ah, eu fiquei indignada com aquilo. Eu me juntei a ela, fiquei com ela. Fiquei com muita raiva, como é que eles que são adventistas, que falam tanto de Deus, tratam... E ela além de negra, era pobre. Ela estudava lá porque a mãe era merendeira. Então ela meio que tinha uma bolsa. São situações... Tem uma outra situação também, que eu lembro de um colega meu da minha idade. A gente tinha que fazer leitura na frente da professora, levantar e fazer a leitura. O bichinho ficou tão nervoso, eu realmente era sempre compadecida dos mais fracos [risos]. Ele foi fazer a leitura, ele começou a ler e começou a fazer xixi na calça, sabe? Gente, foi uma situação. Ele começou a chorar. Eu fiquei com tanta pena dele, então... Eu me colocava no lugar do outro. Ele nervoso, achava que não ia dar conta. Então são situações, assim... Teve uma situação também de um menino que era apaixonado por mim [risos]...
P/1 – E você tinha quantos anos aí?
R – Eu devia ter o quê? Uns 12 anos ou menos, por aí. E ele me perseguia que só e eu não queria nada com ele mas vivia me perseguindo. Aí sabe o que ele fez uma vez? No recreio ele pegou duas garrafas de refrigerante e quebrou em cima do meu pé. Cortou o meu pé. Eu fiquei horrorizada. Eu pensei: "Gente, agora que eu não quero mais mesmo, esse menino é doido! Por que ele fez isso comigo?" [risos]. Eu fiquei com horror dele, sabe? Eu via ele vindo de um lado e saía correndo pro outro lado. Eu não queria graça com ele de jeito nenhum, ele era meio gordinho, sabe? Aquele danado. Engraçado é que ele depois veio fazer comunicação também, se tornou... E era meu vizinho, morava aqui na frente, do outro lado. Eu tinha horror dele. Depois que a gente foi fazer comunicação, ele fez pouco depois de mim. A gente trabalhou uma época na TV Cultura, eu disse pra ele: "Olha, Iran, eu tinha um ódio de ti, eu morria de medo. Tu lembra o que fizestes comigo?". Ele falou: "Eu me lembro". Eu até tentei namorar com ele uma época, mas não dava [risos]. Não rolou de jeito nenhum, né? Então, eram umas situações assim, foi engraçado. Depois, já no Gentil, andava sempre eu e mais duas amigas, né? Então a coordenadora, que era a irmã (Elenita?) gostava muito da gente, sabe? A gente era amiga, mas éramos muito estudiosas, muito dedicadas. E a gente estava naquela fase de descoberta da sexualidade, da menina que menstrua e tal. Eu bem me lembro, colégio de freira é aquele colégio antigo, onde as freiras moram. A gente estava no banheiro das meninas conversando sobre menstruação, na janela: "Como deve ser, como e quando a menina menstrua?", cada uma dava a sua opinião parara.... A gente no maior papo lá, quando saímos, a irmã (Elenita?): "Muito bem, né? Gostei de ver a conversa de vocês!".
P/2 – Não podia falar nem de menstruação?
R – Não podia! Imagina? Isso não era papo pra menina estar conversando, né? Olha! Era muito engraçado, toda vez que a gente via. Ficavam aqueles corredores, as salas todinhas no corredor e bem aqui no início ficava ela sentada, observando o movimento. Quando a gente saía e quando chegava, a gente corria pro outro lado. Menina, nós ficamos com tanta vergonha. Ela era gente boa, simpática, sabe? Mas eu acho que ela fez assim mais para nos encabular, eu não sei. A gente ficou: "Olha só, tem que ter cuidado porque nesse colégio aqui, onde a gente pensa que não tem gente, tem gente olhando!". Elas ficavam no quarto delas que era bem grudado no banheiro.
P/2 – E eram as meninas separadas dos meninos?
R – Não. Já éramos juntos nessa época... No começo lá era assim, mas na época que nós estudamos já eram meninos e meninas juntos. Então ali, a gente achava que estávamos a sós, que a gente poderia conversar [risos].
P/1 – E você concluiu os estudos nesse colégio mesmo?
R – Conclui, lá eu terminei o meu segundo grau. O primeiro curso que eu pensei em fazer foi psicologia. Aí minha mãe começou a dizer que eu ia morrer de estudar e que não ia ter trabalho. Porque naquela época psicologia era uma coisa que não tinha reconhecimento. Aí eu disse: "Quantos anos é a faculdade? São seis. Ah é, realmente eu vou estudar muitos anos e não vou ter trabalho". Aí desisti e pensei em Nutrição. Quando eu comecei no segundo grau a estudar biologia, eu pensei: "Não, não é na área de biológicas também". Aí eu resolvi fazer Serviço Social. Terminei o segundo grau, fui ótima, sem fazer prova final, uma das melhores alunas. Todo mundo crente que eu estava dentro. Quando saiu o resultado do vestibular eu não passei. Menina. Aí foi uma crise, uma crise comigo mesma. Como que eu não passei no vestibular? O que aconteceu? Chorava, chorava, chorava. O pessoal do colégio, as freiras: "Como que a Dea não passou? Como? Uma das melhores alunas". Aí passou. Tudo bem, ok, vamos recomeçar, fazer cursinho. A essas alturas eu não sabia mais se era Serviço Social mesmo ou história. Quando eu estava na metade do primeiro semestre, eu ouvi uma menina falar. Eu até sei quem é ela hoje, ela trabalha na Cruz Vermelha. Eu ouvi ela falar num curso chamado Comunicação Social, que eu nem sabia que existia. Quando ela falou isso, sabe, comentando: "Comunicação Social, não sei o que...", eu disse: "É isso que eu tenho que fazer”. Eu não sabia nem o que era, é isso que eu tenho que fazer e pronto. Aí fui, fiz e passei. Minha irmã que é depois de mim, ela é muito ligada a mim, fez Comunicação Social também, passou também no mesmo ano que eu fiz. Aí pronto, fui cursar Comunicação. Fiz primeiro Publicidade. Quando eu terminei Publicidade, eu continuei e conclui Jornalismo também.
P/1 – Tudo no mesmo período?
R – É, porque são quatro anos a graduação. Para completar, fazer outro curso, são mais dois anos. Eu fiz mais dois anos para completar as matérias e concluir jornalismo. Assim que eu terminei publicidade, tinha um curso de classificação em telejornalismo na Globo local. Ah, as pessoas diziam: "Vai fazer, tu é jeitosinha pra televisão". Eu peguei e fui na corda. Eu dizia: "Mas eu fiz publicidade" e as pessoas diziam: "Não tem essa, não". Eu peguei, fui e fiz. Era um curso com umas 25, 30 pessoas mais ou menos. Dessas duas pessoas, iam ser contratadas para ser repórter, né? E eu fui uma dessas convidadas para ser repórter. Na mesma época a TV Cultura aqui estava começando, tinha uns dois anos de TV Cultura. E eu sabia como é que funcionava, que tinha espaço para a produção local, para fazer programas, tinha muito mais oportunidades de espaço mesmo, de trabalho, de atuação. O diretor da TV Cultura na época foi meu professor na universidade.
P/1 – Qual era o nome dele?
R – Afonso Klautau. Ele sabia que eu estava fazendo esse curso na TV Liberal. Os melhores profissionais na época foram trabalhar na TV Cultura. Era uma coisa meio de competição: a Globo se achando a tal e a TV Cultura reunindo a intelectualidade, o povo que tem uma coisa com a visão menos comercial da comunicação. Terminou o curso e o Afonso me convidou para trabalhar, para ser repórter na TV Cultura, ao mesmo tempo que a TV Liberal: "E agora, o que é que eu faço?". Conversei com um, conversei com outro, meu coração sempre me chamando para a TV Cultura. Converso com um, converso com outro... Aí resolvi. O que acontecia? A TV Liberal era a que me daria projeção, né? Porque eu estava começando e a Globo todo mundo vê. Mas isso não me seduzia. Na TV Cultura tinha um outro mundo, a gente podia trabalhar com documentários, com um jornalismo com outra abordagem. E aí eu decidi: "Vou para a TV Cultura". Quando eu decidi isso, um diretor da TV Liberal liga na minha casa. Agora imagina, eu começando a carreira, recém saída da universidade e o cara me liga e diz: "Olha, você tem certeza do que você vai fazer, que você vai ficar na TV Cultura? Acho bom você conversar com seus pais, com pessoas mais velhas porque eu acho que você não está fazendo a coisa certa". Eu pensei: "Égua, agora que eu não vou mesmo". Eu nem fui trabalhar lá ainda e o cara já está me ameaçando, imagina? Eu disse: "Tá, tá bom, muito obrigada, eu vou pensar". Sumi, nem morta. Eu fiquei, sabe, horrorizada com isso. As pessoas: "Olha, realmente, tu estás fazendo uma decisão, mas com certeza você vai ser rechaçada daqui pra frente. Qualquer coisa que tu fores fazer na TV Liberal eles não vão aceitar porque tu negaste. Imagina, um convite da TV Liberal, quem é que vai deixar de trabalhar na...". E assim foi, trabalhei durante dez anos na TV Cultura.
P/1 – Então você aceitou?
R – Aceitei, encarei, né? Mesmo com a pressão da família. Ainda tem mais, na época eu era funcionária da Sudam.
P/1 – Então, quando você saiu da faculdade você chegou a ir para a Sudam?
R – Eu já estava na Sudam. Eu fiz faculdade já trabalhando na Sudam, porque meu pai trabalhava lá e eu acabei arrumando um lugar como secretária, trabalhava como...
P/2 – Foi o seu primeiro trabalho?
R – Meu primeiro trabalho. Naquela época podiam contratar e a idéia do meu pai era que eu ficasse lá eternamente porque era um serviço público e em breve eu poderia ser admitida como emprego fixo e tal. O primeiro dilema foi esse, eu tinha que largar porque na Sudam eram oito horas. Na TV eram seis horas, mas não dava para ficar com dois, eu ia ter que fazer uma opção. Ah, a primeira crise foi aqui, né?: "Como que você vai largar um emprego federal por um emprego que você não sabe se amanhã eles invocam com a tua cara e tu vais, tu podes ser demitida, não sei o que, não sei que...". Ai eu, ai meu Deus, pensei, pensei, refleti e segui meu coração novamente: "Vou largar a Sudam porque não é isso que eu quero. Não me interessa ficar empregada e passar a minha vida fazendo trabalho burocrático, não é essa a minha história”.
P/1 – Você ficou quanto tempo lá?
R – Eu acho que uns quatro anos, que foi mais ou menos a época que eu fiquei na faculdade. Nessa época eu sempre dava um jeito de fazer alguma coisa para ter uma graninha. Eu pintava musas na época, eu lembro que eu fazia umas bolsinhas. Lá no Grão Pará mesmo eu fazia umas bolsinhas de papelão com capa de folhinha de gibi. Eu encapava, costurava, fazia umas carteirinhas e vendia para as minhas colegas lá no Grão Pará. Na época eu estava fazendo umas camisetas, quando entrei na Sudam. Eu fiz toda a minha faculdade lá, o maior jogo de cintura porque eu trabalhava oito horas e conclui meu curso em quatro anos, o primeiro. E estudava inglês. Fazia mil coisas. Aí tá, saí da Sudam e fui para a TV Cultura. Não teve jeito: "Eu vou para a televisão mesmo, não tem jeito". Embora eu não tivesse essa expectativa que eu ia trabalhar como repórter, eu sempre achei que ia ser alguma coisa voltada para a arte. A primeira coisa que eu quis fazer foi publicidade e quando foi para eu decidir entre a Cultura e Liberal foi outra crise, mas acabei ficando mesmo. Lá eu fiquei até 1995. Eu queria trabalhar com cultura e queria fazer um curso que eu sabia que não tinha aqui. Eu comecei a procurar, fui bater na Fundação Getúlio Vargas e fui fazer Administração da Cultura.
P/1 – Antes de você ir, quanto tempo você ficou na Cultura?
R – Eu fiquei de... Eu saí de lá em 2005, então foi mais ou menos em 1995.
P/1 – Conta um pouco como foi isso. Porque é um mundo completamente diferente, você estava como secretária e depois...
R – Eu tinha acabado de fazer um curso de qualificação em telejornalismo, então eu já entrei como repórter.
P/1 – você lembra o que você fez?
R – Lembro, a primeira matéria foi uma matéria de arte. Então, a gente vai vendo que as coisas tem uma roda que gira, que tem uma razão de ser. A primeira matéria eu fui acompanhando uma repórter para ver como era, mas eu tive que fazer a matéria também, foi uma matéria de arte numa galeriazinha bem pequenininha. Eu adorei, eu disse: "É essa aqui a onda". Mas para mim foi um desafio danado porque o meio da televisão é um meio muito competitivo e a gente se expõe de todas as formas, então tem que botar a cara mesmo e tem que fazer. Só que não era tudo arte, né? Tinha a parte da política, o corre-corre do dia a dia. Você tinha que sair numa sexta de manhã e cobrir três pautas, aquele pique doido. Tinha competição dentro da redação, então tinha dias que eu chegava acabada de lá, chorava pra caramba. Eu disse: "Esse mundo não é o meu mundo". Essa coisa dessa competição, um querendo derrubar o outro, eu sofria pra caramba, ainda fui assediada por chefe. O primeiro editor-chefe... Não, o chefe de reportagem. Logo assim de cara, eu cheguei e ele começou a ligar para a minha casa, sabe? Querendo, sabe, para a gente tomar uma cervejinha. Primeiro porque eu não bebia e eu não tinha essa coisa do povo... Os repórteres todos me olhavam, assim, meio esquisito: "Que nossa, de que mundo essa menina é?". Eu não fumava, eu não bebia, eu não andava nas ondas deles. Eu era muito na minha, então eles me viam como se eu não fizesse parte daquilo ali. E eu me sentia assim. Quando eu estava fazendo minhas matérias, tudo bem. Mas quando eu estava ali na redação com eles, naquele ritmo, naquela coisa... E aí o cara me ligando, querendo fazer alguma coisa e eu dava uma desculpa. Eu comecei a perceber que ele estava começando a me cortar nas matérias. Eu chegava lá e ele estava de cara feia. Depois eu comecei a me tocar que aquilo era assédio [risos]. Sabe, o cara começou bem, depois daí pronto, ele sempre estava de cara feia e eu não estava nem aí. Graças a Deus depois ele saiu, né? Na época eu comecei a namorar com um rapaz que era jornalista também, ele se tornou o editor-chefe de lá. Eu fiquei lá durante esses dez anos, mais ou menos, e com várias mudanças. Eu já estava de saco cheio daquilo, sabe? Eu sempre fui uma jornalista que buscava outras coisas que não era só o meio da comunicação. Então quando tinha Sbpc [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] eu queria estar no meio, quando tinha congresso... Eu saí uma vez para ir num congresso de psicologia (interpessoal?) lá em São Paulo, no interior de São Paulo, em Campinas. Todo mundo de psicologia e eu jornalista. Eu sempre busquei outras coisas que eu achava que era pra complementar o que eu fazia. Teve uma Sbpc que ia acontecer em São Luís. Era um mês de julho, eu já tinha me planejado toda para ir, tinha pedido autorização e a resposta não vinha. Não vinha, não vinha. Todo mundo de férias, eu estava meio que à frente da redação nessa época. Eu disse: "Bom, mas minha passagem já está comprada, eu já pedi faz tempo. Não me deram a resposta porque não quiseram, eu vou". Fui embora para a Sbpc. Quando terminou, que eu liguei... Aí recebi uma ligação do chefe de reportagem na época: "Dea". Eu disse: “Semana que vem eu estou voltando”. Ele disse: "Não, o Afonso disse que você não precisa mais vir", foi ele quem me colocou lá. Aí eu desliguei o telefone e ria, minha amiga falou: "O que é? Tá ficando doida?". Eu falei: "Eu fui demitida", ela: "Ah, e tu ri, é?". Eu acho que no fundo eu queria que isso acontecesse. Mas é aquela história, você tem um emprego, a gente fica sempre... Ainda mais com a cobrança da família. O meu pai não se conformava de jeito nenhum porque ele queria porque queria me ver na televisão. Então ele não se conformava, dizia que eu fui responsável, que não sei o que... Eu disse: "Olha, estou morta de feliz, é uma nova vida que começa". Terminei de curtir lá em São Luís, foi maravilhoso. Quando eu voltei, eu comecei a trabalhar com um amigo meu que é músico. Comecei a dar consultoria, desenvolver projetos com músicos em bar. Eu passei dois anos fazendo isso quando eu senti a necessidade de entender melhor essa relação entre cultura e mercado. E aí foi quando eu busquei o marketing cultural, a administração da cultura. Eu fui a primeira pessoa a falar em marketing cultural aqui. Então eu fui pra São Paulo, fiz durante seis meses um curso lá na Fundação Getúlio Vargas. Quando eu voltei, comecei a dar consultoria a uma TV por assinatura. Sempre a minha história foi com televisão, vira e mexe tem essa coisa com a televisão.
P/2 – E como foi a sua chegada a São Paulo?
R – São Paulo? Foi muito melhor do que eu esperava. Porque o meu grande horror com São Paulo era o frio: "Como é que eu vou..."...
P/1 – Em que época que você foi?
R – Eu fui no início do ano e fiquei até agosto. Então tá. Eu fui morar com duas paraenses, uma delas foi namorada durante muitos anos do meu irmão. Eram duas médicas. Mas eu cheguei lá, assim, deu tudo tão certo. Porque eu fui buscar patrocínio de uma empresa para bancar o meu curso lá. É engraçado, como eu consegui isso, eu não sei. É porque eu tinha que ir mesmo. Ela simplesmente era dona de uma empresa de ônibus aqui, ela bancou todo o meu curso, que na época era R$ 670 por mês. Eu não tinha condições de bancar esse curso. Eu fui me comprometendo que quando eu voltasse, iria desenvolver um projeto de marketing cultural pra ela. Ela prontamente pagou o curso. A passagem de ida e de volta eu consegui com outro empresário daqui, eu não lembro nem como é que eu entrei em contato com ele. Ele simpatizou muito comigo... Ah não, foi um deputado. A passagem de ida foi Paulo Rocha, que é muito amigo de uma amiga minha, que foi uma das fundadoras do PT daqui. Ele me deu a passagem de ida, a passagem de volta foi esse outro empresário, que era da área de segurança. Ele me mandou a passagem de volta. Chegando lá, as meninas me acolheram muito. Não quiseram que eu dividisse nada. Então, assim, eu estava lá para estudar...
P/2 – Que bairro que era?
R – Era na Vila Mariana. Eu fazia... (troca de fita).
P/1 – Você estava falando que estava em São Paulo na casa das amigas.
R – Pois é. Então deu tudo tão certo que aí eu cheguei e, sabe, fui atrás de um curso de jornalismo cultural na PUC [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Então eu fazia PUC e a Fundação Getúlio Vargas e numa desenvoltura total. Fiz o que tinha que fazer. Eu lembro que, elas são médicas, então a coisa mais difícil era elas comerem em casa. Então eu inaugurei a panela de pressão fazendo feijão. Os paraenses começaram a frequentar a casa: "Dea, tu mudastes totalmente a nossa rotina", porque a relação delas era com médicos e a minha relação era com o povo da comunicação, os paraenses que estavam lá. Foi um momento de muito aprendizado também.
P/1 – Quem eram esses paraenses? Eles estudavam com você?
R – Então, tinha uma colega minha que fez publicidade comigo, a Meire, que hoje até voltou pra lá. Ela tinha vindo embora, mas voltou pra lá. Tinha o Araí que era paulistano, mas era amigo da Meire e acabou se entrosando. Tinha a Ângela. Sempre tinha alguém que era ligado a alguém, que era ligado a algum paraense. Onde tem paraense, então os pais sempre mandam açaí, mandavam a farinha, camarão. Então a gente estava sempre fazendo os carurus, os vatapás da vida, os açaís, os doces de cupuaçu, as coisas que têm aqui. Então era comum. Quem viaja e mora fora, é praxe a família mandar, entendeu? Que a gente se alimenta dessas coisas, então sente falta. Teve até um dia interessante, eu saí pra aula, eu estudava à noite na Fundação Getúlio Vargas. Eu saí e eu senti um cheiro diferente na rua, sabe? Um cheiro diferente. Eu disse: "Gente, eu conheço esse cheiro, mas não sei o que é". Para ver como é, quando a gente sai, começa a ter umas referências assim. Aí tal, fui para a aula, voltei, a aula terminava às 10h. Eu cheguei em casa 10h30, quando entrei em casa caiu uma chuva, era cheiro de chuva [risos]. Eu percebi seis horas da tarde, cinco e meia, quando ia cair. Gente, era o cheiro da chuva, ah quanta falta da chuva e tal. Então eram essas coisas que a gente vivenciava lá, foi uma época que passou muito rápido, né? Então eu vivenciava umas coisas assim. Uma vez eu fui para um show no Memorial da América Latina, fui sozinha. O show terminou lá pelas 11h. Eu vim no último metrô que saía de lá, e fui nele. As meninas: "Dea, como? Tu “tais” em São Paulo, tu não “tas” em Belém!". Uma outra vez eu saí com um vestido bem amazônico, sabe? Um paninho fino, todo de trançadinho, costas nua atrás e saí. Eu saí e observava que os caras me olhavam, assim. Teve um que chegou, eu estava voltando já, era perto da faculdade de medicina, ali na Onze. Ah esqueci o nome da rua, eu sei que era perto do Metrô Santa Cruz. Aí chegou um cara, sentou do meu lado, todo vestido de branco, chegou e disse: "Eu posso lhe acompanhar?". Eu disse: "A rua é pública". Ele começou a me indagar: "Você não é daqui, né?", eu disse: "Por quê?". "Porque você não tem jeito de paulistana" [risos]. Aí eu comecei a falar que eu era daqui e lalala, dei meu telefone e tal. Quando eu cheguei em casa, as meninas me olharam: "Tu não foste para a rua com esse vestido?", eu falei "Eu fui. O único dia que eu senti calor aqui, tu acha que eu não ia usar meu vestido?". Eu acordava, às vezes, com o corpo doído de tanto cobertor em cima de mim, gente, tanta roupa. Eu falava aos meus amigos depois: "Olha, essa que você está vendo aqui não sou eu. Com calça, com blusa, com não sei o que, com um monte de roupa por cima". Aí tem dia que eu ficava me sentindo oprimida, sabe? Aí a gente vê que o ambiente faz o nosso jeito de ser também. Então por que o povo do Norte é um povo aberto, expansivo? Por causa do calor, pouca roupa é normal. Então, o povo do Sul é mais fechado, é mais retraído porque o próprio clima faz com que as pessoas se fechem no seu jeito de vestir, no seu jeito de ser. São roupas escuras, roupas pretas. Eu vejo que o paulistano usa muito o preto, né? Aqui é uma coisa totalmente diferente: "Dea, não se anda com essa roupa! Tu vai ser atacada aqui." Eu disse: "Não, eles olham muito, mas eles são muito educados, olham pelo rabo do olho, mas não chegam muito junto, não". É uma coisa mais discreta [risos]. É tudo: "Por favor", "Muito obrigada", "Com licença", né? Essa coisa bem paulistana [risos].
P/1 – E como são os homens daqui?
R – Ah, os homens daqui vão chegando junto, entendeu? Se é para dançar, é para dançar. Ele te pega e te leva. O homem urbano nem tanto, mas o caboclo! Ah minha filha, ele chega junto mesmo e vamos lá. E a mulher paraense, a forma da mulher paraense, da mulher do Norte é de que é muito atirada, muito sedutora. E o homem daqui, ele é mais assim. Ele já é mais direto, menos educado, poderia dizer que é mais grosseiro nesse sentido de ser mais direto. Não tem esse negócio de muito "Por favor", muito "Obrigado", não tem isso de: "Posso isso, posso aquilo", não. São mais diretos, né?
P/1 – Então você ficou pouco tempo lá e rapidinho...
R – Foi, rapidinho eu me senti muito... Eu me sinto muito cidadã do mundo. Quanto mais eu me aprofundo nas minhas raízes daqui, mais eu me sinto fortalecida para estar no mundo. Eu percebo bem essa relação mesmo se voltar para a nossa identidade, se fortalecer e depois estar no mundo de uma forma normal, natural. Trocando no mesmo nível, cada um com seu jeito de ser. Preservar o seu jeito de ser, não querer ser igual ao outro. Reconhecer o seu jeito e valorizar isso sem querer chegar lá e ser como o outro é. Eu ser como eu e você sabe como você é, é se encontrar na nossa diferença. Isso é criatividade, isso é diversidade, não é? Porque se for tudo igual... Isso é o que a globalização está fazendo, está pasteurizando tudo, está tudo ficando muito igual. E aí a gente perde. Se o povo de São Paulo vem para cá para ver pessoas que fazem as mesmas coisas que fazem lá, vestidas do mesmo jeito que se vestem lá, dançando e conversando as mesmas coisas, qual é a graça? Quem é que vai sair de lá para vir pra cá e quem vai sair daqui pra lá e chegar vai encontrar... E a gente ainda tem muito essa imagem e esse sentimento do colonizado. Então o Brasil para o resto do mundo é o Norte do Brasil para o Sul do Brasil. Então o Norte do Brasil, as pessoas do norte se sentem muito diminuídas com relação a São Paulo, Rio de Janeiro, Sudeste, né? Então você vê as mulheres, elas sem poder e sem a sua beleza. Porque não reconhecem a sua própria beleza. A mulher com essa cara de índia, ela quer ter cara européia. Quer ter jeito europeu. Então elas idealizam o cabelo, ela quer estar com um jeito de ser que não é o dela. Ela não usa sementes como uma jóia, como os indígenas usam. Então nesse movimento, quando a saia que a gente dança, e que não é só dança, que deveria usar no cotidiano. Seria uma saia que dá a volta ao mundo. Então isso é tão simbólico. Quando eu abro a saia, quando eu giro e abro a saia, que gira junto comigo, nesse giro eu saio de mim e vejo o mundo todo ao meu redor. Então eu posso abraçar o mundo com a minha saia, né? Mas isso está muito perdido, foi perdido, essas referências foram perdidas. Então até no interior as meninas colocam a saia de chita para dançar; terminou a dança, elas tiram a saia.
P/1 – No seu retorno é que você começou a fazer esse resgate? Como foi isso?
R – Isso. Quando eu retornei, eu comecei a dar consultoria na área de marketing cultural. Fui dar um curso de extensão na universidade na mesma área. Eu comecei a levantar essa discussão numa relação que hoje eu vejo que pouco é de marketing cultural na verdade. O que se vê muito mesmo é venda. Porque é um marketing de massa, revestido de marketing cultural. É igual a responsabilidade social, agora toda empresa tem responsabilidade social, mas vai ver a prática dela internamente. E eu parti dessa coisa: "Sim, a gente vai fazer projetos culturais, mas como é a nossa relação aqui dentro da empresa?", comecei a trabalhar a partir das pessoas. Consegui levar as pessoas das empresas para dentro da roda. Aí eu fiz a primeira dança circular, em 2000.
P/1 – Mas como é que você começou a entrar no mundo da dança?
R – Então, isso que eu estou dizendo. Mesmo quando eu entrei na universidade, no jornalismo, na cultura local pelo jornalismo, eu via na nossa dança uma coisa... Quando eu via os espetáculos folclóricos, eu via alguma coisa que não era só aquilo, mas eu não sabia o que era, sabe? Da nossa dança ter alguma coisa muito poderosa, mas não é isso. Quando foi em 2000 teve um encontro aqui de dinâmica de grupos, um encontro estadual de dinâmica dos grupos. E veio uma moça que fez uma dinâmica circular que é essa que a gente fez aqui. Quando eu fiz essa dança, eu disse é isso aqui que eu tenho que descobrir na nossa dança. Nossa dança é poderosa como essa, eu tenho que descobrir como é. Isso ficou em mim e eu comecei a ter um outro olhar. Quando foi em 2002 teve uma amiga minha que abriu uma organização junto comigo que é Esperança... Ela tinha me visto na televisão dando uma entrevista sobre marketing cultural e ela ficou encantada. Aí já quis fazer uma comunicação, queria não sei o quê. Na época eu fazia Unipaz, que é a Universidade Internacional Holística da Paz. Eu fiz durante cinco anos.
P/1 – Onde era?
R – Aqui em Belém. Eu fiz dois anos e meio formação para um seminário chamado, A arte de viver em paz e depois fiz dois anos e meio na formação holística de base. Foi nesse curso que ela me conheceu. Ela já tinha me visto na televisão, me conheceu nesse curso e ela me chamou... Ela tinha feito também em 2000, nesse mesmo encontro da dinâmica dos grupos, tinha feito essa dança também. Ela sempre me via, mas eu nunca a via. Eu já fui vê-la dentro da Unipaz. Ela quis fazer uma... Ela: "Como é que a gente pode fazer uma formação para a gente aprender as danças de outros povos e tal?". E isso eu já tinha feito há um ano atrás. Eu entrei com um projeto na... É uma organização que financia projetos de cultura em São Paulo. Eu mandei um projeto que não foi aprovado para estudar essas danças. Aí ela me chamou: "Dea, vamos reunir um grupo para trazer uma pessoas que focalize, que trabalhe com as danças". Aí nós chamamos a Renata Ramos que é a dona da Triunfo em São Paulo. Ela foi uma das primeiras pessoas que foi aprender essas danças, lá na Escócia, no Centro de Formação Transdisciplinar. Essa escola era na Escócia e lá tinha um bailarino que já tinha dançado tudo que ele tinha direito. Ele começou a dançar pelo norte da Europa e começou a perceber que nas danças dos povos tinha um caminho de sabedoria e que não era aquele vivenciado nos palcos. E começou a levar para dentro do Centro de Formação lá na Escócia. Brasileiros e gente do mundo inteiro vão pra lá estudar. A Renata foi uma dessas, no início da década de 1990. Então ela é uma dessas pessoas, uma das referências aqui no Brasil. Então nós trouxemos a Renata e começamos a reunir um grupo e fazer uma formação. Durante um ano e meio nós trouxemos pessoas para dar essa formação em danças de outros povos, que vieram de lá. Nesse primeiro encontro que ela veio, percebeu minha relação com a nossa tradição, com a nossa música, com o carimbó. Ela veio em maio e em junho ia ter o primeiro Encontro Brasileiro de Danças Circulares em São Paulo e ela me convidou para ir fazer uma vivência com o carimbó. Eu ainda não tinha
aprofundado no assunto que eu tenho hoje, mas eu fiz uma coisa mais de dançar mesmo e fui para esse encontro. De lá pra cá, estou viajando pelas comunidades, viajando pelas tradições e construindo essa relação entre a vida do caboclo e a dança, como é que isso influencia e como isso nasce. Aí chamei a Esperança para ir comigo, essa pessoa que acabou abrindo a organização junto comigo. Foi em 2004, quando a Mana-Maní começou a existir juridicamente. Eu digo 2002 porque foi quando nós fizemos nosso primeiro treinamento, nosso primeiro encontro de danças circulares, que reunimos o grupo. Foi em maio de 2002. Depois disso então, várias pessoas vieram... Em 2004 que nós tornamos a organização oficial, com CNPJ e tal. Mas é uma organização que a gente acaba, é meio um ativismo. Porque nunca conseguimos um patrocínio, um financiamento sistemático para os programas desenvolvidos. A gente vai fazendo as coisas porque acreditamos. Em agosto começamos a fazer a roda na praça, aí era a roda semanal. Agora no segundo semestre eu deixei de fazer a roda semanal porque a Esperança se afastou do programa da praça e eu assumi. Como eu assumi a facilitação do grupo de trabalho do Fórum Social Mundial de Cultura, não dava para fazer roda semanal. Então a roda tem sido semanal, onde eu estou trabalhando os princípios do Fórum. Porque em cada dança você pode trabalhar mil e uma abordagens. Então nesses seis anos outros grupos já nasceram. Têm pessoas que já estão fazendo rodas, são frutos disso, então a gente iniciou esse movimento aqui no Norte do Brasil.
P/1 – Dea, então fala um pouco mais dessas crenças e histórias engraçadas que ocorrem.
R – Pois é, têm essas coisas que eles acreditam, sempre tem uma relação com o ambiente, né? E acaba que o ambiente ser protegido, porque é que é tão... Nessa dimensão mais simbólica, por que é importante preservar a Amazônia? Então, esses saberes estão contidos nessa relação com o ambiente. Quando morre esse ambiente, morre esse saber junto. Então, por exemplo, quando eles estão fazendo uma canoa que é chamada casquinho, que é aquela que vai com um remo e é feita de um tronco de árvore, é cavado, né? Que uma mulher grávida não pode ver porque se não, vai rachar e a canoa não vai prestar. Então, a mulher grávida não pode ver. Prenha, né? Uma mulher prenha não pode ver a canoa. Por isso que eles fazem escondidos, lá no meio do mato para a mulher não ver. Descascar a mandioca, se a mulher descascar agachada, ela não pode descascar assim. Porque dizem que a relação com o sexo da mulher, a mandioca não vai render [risos] sabe? Têm muitas histórias assim, isso faz a vida do caboclo, do homem “amazônida”. A partir daí é que me interessa essa comunicação. Quando a gente dança, quando a gente come uma mandioca... A mandioca é importante não só para a Amazônia, mas para o Brasil todo. A lenda da mandioca conta que ela nasceu num momento em que a tribo não tinha o que comer e que o pai sacrifica a filha e que disso nasce essa planta, essa raiz. A filha não, a neta. Conta a lenda que a filha engravida de um homem branco e quando ela aparece grávida, o pajé quer saber quem era e a filha não sabe explicar porque foi uma coisa em sonho. Quando nasce a menina, é uma criança branca e o pajé sonha. Esse homem vem contar pra ele que foi isso mesmo e o pajé acaba aceitando. Porque o sonho pro indígena é muito importante, né? E ele acaba aceitando e nasce a menina, uma menina linda. Só que logo ela adoece e morre. Ela é enterrada na frente da horta e lá a mãe chora todo dia, quando nasce uma plantinha. Quando eles arrancam essa planta, é a raiz. Quando eles vão descascar ela é branca. Mani oca, casa de mani, que é bem na frente da casa. A tribo estava se extinguindo porque não tinha mais o que comer, aí eles começam a usar a mandioca como alimento. Daí vem a farinha, a mandioca assada e o mingau que é feito para a criança. De tudo se faz com a mandioca. É um grande maná, um grande alimento, nos nutre muito. E é uma raiz, né? Olha o que isso simbolicamente quer dizer: então eu como a raiz, eu me recomeço como brasileiro, como brasileira e isso salva toda a humanidade. Olha o que simbolicamente quer dizer. Como é que nós brasileiros vamos salvar a Amazônia se a gente não conhece esses valores, a gente não dança esses valores. A gente não reconhece no nosso corpo nisso, nem aqui quanto mais fora.
P/2 – Você acabou de contar um pouquinho do sentido desse nome Mana-Maní.
R – Isso. E mana é o jeito que a gente se trata aqui: mana, maninho, mano, irmandade, irmão, né? E no Oriente, lá na Polinésia, Mana é uma força essencial que todo ser vivo possui. Então é o ocidente e o oriente, é o feminino e o masculino, é o local e o global. É o todo, né? É o maná, é o mana. Quem tem mana tem essa força essencial. E a gente se trata muito assim aqui, é o mana, o maninho, mano, é muito o jeito do...
P/1 – E a escolha do nome...
P/2 – Mano?
R – É da mandioca, manioca que ficou mandioca.
P/1 – E como surgiu o Mana-Maní?
R – Pois é, surgiu desse movimento. Começamos a fazer os treinamentos de danças circulares e ao mesmo tempo essa pesquisa foi tomando um corpo, tomando uma cara. Quando eu fiz _________ e criatividade, meu trabalho de conclusão foi de comunicação criativa. Foi uma coisa que foi se construindo e está em construção, é como essa síntese aqui. Eu vejo o planeta Terra que é feito no cipó, é aquilo que é essencial de cada povo e que vai se construindo, que vai tendo outras camadas e a essência está no meio. Mas o que está aqui fora tem toda uma relação com o que está aqui dentro. Então quando eu falo que a comunicação criativa faz parte das danças, as danças circulares versus corpo. Então primeiro é a nossa parte física. Quando eu relaciono esse corpo, têm as glândulas que comandam nosso sistema todinho, que são sete glândulas principais: tireóide, pineal, as glândulas sexuais, supra-renal. Na cultura oriental essas glândulas correspondem a centros energéticos, então a gente vai entrando nessa caixa. Esses centros, desenvolvidos ou bloqueados, eles fazem com que certas qualidades e valores em nós estejam em ação ou estejam bloqueados também. Quando eu danço, quando eu respiro, quando eu trabalho isso, desde o nível físico até o nível mais celular, eu aciono o funcionamento dessas glândulas, que acionam o funcionamento desses valores, a abertura para o desenvolvimento desses valores. Esses valores têm toda uma relação com as lendas, com os mitos e com os símbolos, e tem toda uma relação com os ecossistemas, que tem toda uma relação com a arte, com a tradição, com a espiritualidade e com a identidade. Então aqui estão as ações, né? Comunica a ação. Tem que ter uma atitude para que essa comunicação possa fluir. Então, a criatividade tá no círculo, está no todo. Eu vi nessa imagem aqui, eu vi um senhor tecendo uma bolinha dessas lá no Ver o Peso; quando eu vi aquilo eu disse: "Olha, aqui é planeta Terra pra mim". E as imagens foram vindo, essa coisa da criação, a gente não tem uma coisa pronta e eu vi nisso, a imagem do que é uma comunicação criativa. É esse espaço que a gente pode chegar no instrumento. Assim, por exemplo, foi muito importante que vocês dançassem para esse trabalho, essa entrevista. Porque quando você compreende isso no corpo, você já está meio caminho andado, para depois trazer isso para a mente, ir integrando. As partes vão se integrando e vão formando esse todo aqui. Então falar de dança circular não é a mesma coisa que dançar ou olhar. Vocês também poderiam ir lá e olhar o curso que eu estou dando e fazer uma imagem das pessoas que estão dançando. Mas vocês nunca iam saber se vocês não tivessem dançado pelo menos uma dança na roda. A importância de vivenciar faz toda a diferença entre o pesquisador que chega para olhar... Então quando eu vou dançar na estrada, por exemplo em Bragança, eu me visto como Maruja, boto a roupa. Porque aquela é a roupa ritual, né? Quando eu danço de saia é totalmente diferente de dançar de calça. Quando essa saia é rodada, então, que eu posso dar a volta ao mundo, eu me sinto com essa capacidade de estar com essa relação com o mundo, de poder me comunicar e conhecer a beleza do outro e poder me reconhecer também.
P/1 – Como funciona a Mana-Maní? Você dá curso, você falou que vai na praça. Tem horário, como funciona?
R – A Mana-Maní tem programas dos quais esse da praça estamos mantendo, é meio ativismo porque como eu disse, os programas não são financiados ainda. A gente tem, às vezes, uma ação ou outra que acaba sendo, que pode acontecer de um convite, de um financiamento. É minha doação manter a organização para nós, é manter essa possibilidade de que esse tipo de ferramenta possa se tornar uma ferramenta acessível a qualquer pessoa. Tem um programa, A Rede de Embalo, que é um programa de imersão que acontece uma vez por ano e normalmente a gente traz uma pessoa de fora para fazer uma vivência num espaço de natureza em Igarapé. Esse ano inclusive o convidado é um pajé lá de perto de Bertioga, um guarani, papá-guarani. E quem financia isso? São pessoas que acreditam nesse trabalho e pagam as bolsas. As bolsas é que vão arrecadar o recurso necessário para que essa ação aconteça. Essa ação de pesquisa com as comunidades é um programa chamado, Peneirando, que é tirar a essência... Esse programa, em 2006, foi premiado, chegou a semi-finalista no Cultura Viva, do Ministério da Cultura. E com recurso próprio, nós indo pela nossa conta e as coisas acontecem com essa consciência mesmo. Eu acho que cada um deve fazer a sua parte, essa coisa parte, né? Foi por isso inclusive que eu entrei no Fórum Social por conta da dança, com essa visão que a roda me trouxe. Eu fui atrás de onde estavam acontecendo esses encontros, estou desde fevereiro, semanalmente por uma tarde inteira... E agora então, são dois, três dias de reunião para estar desenvolvendo. Conseguimos criar um termo de referência de cultura do Fórum Social Mundial que não existia, esse Fórum na Amazônia foi uma conquista, que é um termo que coloca a cultura no seu devido lugar. Não é só aquele momento da festa, do show, do lazer. Não, cultura se presta a isso, a refletir e transformar, a fazer com que a nossa realidade possa ser dialogada a partir da dança, da fotografia, do teatro. Um acadêmico, um doutor, pode estar falando ali sobre meio ambiente e se nós pudermos dançar o carimbó na hora que ele estiver falando sobre a sua pesquisa acadêmica, aí nós estaremos dialogando, mostrando como é que isso acontece no nosso cotidiano, como é que a gente pode dançar isso aqui. Então o termo de referência traz esse conceito. É um conceito que tenta coloca o pouco que nós temos. A gente ainda vê a cultura como uma cereja do bolo, né? E que nenhum outro Fórum foi tratado assim, estamos tentando ver o que conseguimos trazer porque não é fácil. Esse termo nasceu agora em setembro durante um seminário do Fórum. E foi a partir de setembro que eu fui indicada e acabei ficando na facilitação do GT [Grupo de Estudos] embora eu não quisesse porque é muito trabalho, muita responsabilidade. Mas eu senti que se eu não assumisse, eu estaria me omitindo porque eu venho puxando muito essa discussão, trazendo muito essa... Para que a gente possa realmente se relacionar em um outro nível com a cultura. Eu dei uma entrevista, ontem, sexta-feira, na TV Cultura e aí: "O que o povo pode esperar de cultura no Fórum Mundial Social?". Tipo assim: "Qual o show que se espera?", a visão é essa. O que a gente quer é que aconteça um diálogo de saberes, de tradições e que os povos estejam presentes. Então não é uma construção. O Fórum não é esse espaço ideal porque somos pessoas, somos falhos, temos a nossa visão fragmentada de mundo. Eu acho que o caminho é a gente buscar sair desse modelo cartesiano mecanicista para um modelo mais sistêmico, mais circular, mais feminino, mais cooperativo. Eu acho que a salvação, entre aspas, é por aí.
P/1 – E uma curiosidade, como você vê isso para os mais jovens? Você vem ganhando...
R – Nossa! É lindo quando nós vemos os jovens, principalmente na comunidade em que eles têm uma resistência: "Ah, samba de cacete quem dança é só velho", "Carimbó quem dança é só velho". Quando a gente chega na comunidade e vai pesquisar, trabalhar a oficina com eles, que a gente começa a falar dessas coisas e mostrar para eles... Em Saracura foi muito, muito ____________ lá. Normalmente são descendentes dessas meninas, então o filho acaba ficando lá, o neto e tal: "Nossa, olha o vovô dançando lundu, não sabia!" E o vovô dançando na frente e os netos todos querendo ir atrás para aprender: "Olha, o vovô está dando de dez em vocês!" E aí eles começam a ver, eles começam a reverenciar esses velhos, os saberes. Nós temos alguns depoimentos deles escrevendo: "Nossa, agora eu vejo como é importante preservar a nossa tradição. Agora eu me sinto capaz de aprender e ensinar para as crianças menores". Porque entra na roda dos 12 anos até os 100 anos, quem tiver entra. Nesse trabalho que eu fiz, esse senhor de 87 anos, nesse trabalho, às vezes, tem posturas de ioga, e ele fazia. Nós íamos lá na beira do rio buscar argila para fazer uma trabalho, ele foi lá com a gente. E a dona, como é o nome dela? Um nome engraçado... Ela participava também de todos os momentos. Se nós estávamos na beira do rio, ela ia para a beira do rio. Se a gente estava dançando, ela estava dançando. Se a gente estava fazendo ioga, ela estava fazendo ioga. Há uma grande interação na relação, a comunicação se dá aí também, termina essa separatividade. É um outro olhar diante dos mais velhos.
P/1 – Dea, a gente está quase encaminhando. Eu queria que você dissesse quais foram as maiores dificuldades no seu trabalho que você sentiu?
R – Olha, a primeira dificuldade é financeira para nós podermos chegar nesses lugares, em termos de Fórum de Belém. Chegar nessas comunidades, nem sempre a gente chega onde a gente quer. A Amazônia é essa imensidão, né? São seis anos, mas a
gente está só começando, há muito a descobrir. E como fazer continuidade desse trabalho para quem está na comunidade? Porque uma oficina transforma, mas precisa ter uma continuidade. Então faltam programas e políticas públicas. Eu cheguei no Fórum com essa visão: “Bom, no Fórum 80 mil pessoas vão estar aqui, pessoas do mundo inteiro. Para mim é a concretização da roda. O que a gente fala aqui, que dança, isso é o meu chamamento para as pessoas quando eu faço as rodas para o Fórum na praça. Como é que nós podemos fazer com que isso seja real no cotidiano? É importante dançar? É. Mas como é que a gente vai estar? A gente vai estar no Fórum levantando uma bandeira fazendo a nossa parte para um outro mundo possível de fato?”. Eu acho que isso é possível quando a gente faz cada um a sua parte. Não adianta a gente ficar só elucubrando, lamentando e dizendo: "Ai, meu Deus, que pena o meio ambiente", "A culpa é do político". Não é, começa em mim. A paz está em mim, se eu não estou em paz, como é que o mundo vai estar em paz? A violência começa em mim. Eu acho que a grande dificuldade está nesse modelo que a gente vivencia e esses níveis de consciência que nós ainda não alcançamos. Eu acho que o nosso maior embate está no mundo das idéias, eu vejo muito isso dentro do Fórum. Então está todo mundo querendo o outro mundo possível, mas está um se batendo pra cá, outro querendo puxar para lá, né? A gente não consegue muito ter essa visão do todo. O Fórum discute muito no nível de Belém como se o Fórum fosse de Belém. Não é apenas a cultura paraense que tem que estar, nós temos que estar dialogando com o mundo inteiro. É importante que os povos que não têm voz, nem vez e nem visibilidade, que são os africanos de matriz desses povos, que estejam em evidência. É importante. Tanto que a idéia é começar com os africanos na marcha de abertura e terminar com os indígenas. E eles são os grandes mestres, os indígenas, nessa relação de viver circularmente, de sentar na roda, de contar de seus sonhos, tudo é circular. A criança não tem hora para dormir, ela fica colada na mãe. Se ela está dançando, ela fica com a criança na tipóia. E ali ela dorme, ali ela mama, ali ela acorda. Não tem a coisa de botar a criança para dormir que nem nós que não somos índios temos. A criança tá ali, ela dança, ela come, ela brinca. Se ela já estiver na fase de caminhar, ela vai pro chão e ela brincar ali, nua na terra, pé descalço. Ainda que seja com a barriga grande, cheia de verme, mas são crianças que se comparadas com as crianças da cidade, são crianças muito mais tranquilas. Crianças que não vivem chorando como as nossas crianças, com depressão. Acho que o maior embate é no nível das idéias. É trazer as pessoas para a roda, é difícil. Dentro das nossas reuniões do Fórum, eu nunca consegui fazer uma roda. Eu faço lá na praça, convido. Mas as pessoas que estão no debate, são poucas as que chegam lá e vão dançar. É difícil. Porque quando eu danço, eu me coloco por inteira. Então, minimamente a leitura que a gente puder ter, mesmo que inconscientemente, do outro, a gente consegue sacar um pouco da pessoa só ela dançando: onde estão as minhas dificuldades, as minhas facilidades, onde é que eu estou bloqueado, onde é que eu estou travada. Então eu me exponho. Músicos, nossa! A coisa mais difícil é um músico entrar na roda. Não, ele quer estar tocando, cantando aqui e tal, mas entrar na roda são outros 500. Dançar, trazer essa comunicação plena é difícil. É um exercício, uma prática que...
P/2 – Que tipo de gente dança lá na praça?
R – Olha, pessoas de todos o lugares: jovens, mulheres dona de casa, professores da universidade, intelectuais, pessoas de comunidade que têm um trabalho social. Ali eu encontro a diversidade, a gente nunca sabe quem é que vai estar lá na roda.
P/1 – Tem um dia específico, um horário?
R – Tem. Atualmente a gente está dançando uma vez por mês, na última terça-feira do mês.
P/1 – Isso é divulgado? O pessoal já sabe?
R – Tem uma rede em que a gente divulga por e-mail e, algumas vezes, sai alguma chamada em jornal. Eu não tenho tido muito tempo para divulgar diretamente em jornal, mas tem uma história. As pessoas já sabem que é um movimento que começou a partir de nós e as coisas vão acontecendo meio que por atração, sintonia. Foi nesse papo dentro do Fórum, esse debate que eu comecei a levar dentro da comunicação, que a Rita acabou conhecendo e foi assim que eu acabei chegando ao ouvido de vocês, né? Falando nessa comunicação. Porque eu vi no Fórum essa preocupação de: "Como é que nós vamos divulgar?", como é que vai ser a internet, não sei o que... Eu disse: "Sim, gente, nós temos uma outra comunicação". "Que comunicação é essa?" E aí eu comecei a falar sobre essa comunicação e que ela tem muito a dizer, que a gente precisa dar um olhar, dar um foco para essa comunicação. Porque eu acho que com essa comunicação que temos aí, apenas instrumental, a gente não tem como interromper esse caminho destrutivo que nós estamos vivenciando. Então sair dessa visão de competição para cooperação é um caminho de uma sociedade evoluída. Tem uma frase que diz assim: Se queres ser universal, canta tua aldeia. Eu acho que é isso.
P/1 – Já pensando num fechamento, o que você diria nessa sua trajetória, quais foram os maiores aprendizados, lições que você tirou?
R – A primeira é essa, que eu preciso realmente cantar a minha aldeia, eu preciso dançar as minhas raízes. E isso pra mim é literalmente importante. Foi e é. Eu posso estar numa condição, num estado mais difícil, eu faço uma dança e muda diretamente o meu estado de espírito, né? Agora eu lembrei até de umas histórias de umas lavadeiras lá de Almeirim. Nessa vivência em Saracura, tinha um senhor que contava daquelas lavadeiras. Elas iam para a beira do rio bater a roupa, alvejar a roupa. Então bater a roupa, chegar no branco é na alma lavada, na alma livre de tensão, de pressão. E quando elas estavam no estado de plenitude, elas costumavam caiar a casa, passar o cal. Elas poderiam caiar, cada uma podia caiar de uma cor e elas cantavam essas cores que elas caiavam. Só não o amarelo, que o amarelo é a cor do desespero, da agonia, então não pintavam. Elas cantavam assim (entrevistado canta): "Eu mandei caia a minha casa/ Caiei, caiei, caiei/ Eu caiei ela de rosa/ Eu caiei, caiei, caiei, caiei". E cada uma ia dando uma cor, a sua cor porque naquele momento era a cor da alma dela. E nós vemos que tudo tem um simbolismo, um estado de espírito. Então hoje eu vesti rosa. A gente costuma dizer: "Tá tudo azul", né? Então vermelho, essa cor da terra, da força, da raiz. Esse pra mim é o grande aprendizado, quando eu vou para a floresta, quando eu vou para as comunidades quilombolas para mim é um momento de cura. Então eu vou para lá, eu me fortaleço em todos os níveis. A comida, o peixe que é pescado na hora porque ali não tem luz, você não tempera, você não come coisa de um dia para o outro. Então o peixe, você pescou, salgou e comeu. A fruta é a que tiver na época; você vai e come. Então essa coisa de café é quando tem grana. E eu como gosto muito de verdura, eu lembro que ia dizer: "Tem que comprar", porque o que não tinha na cidade, tinha que comprar. Eu dizia: "Tem que trazer a comida da lagarta". Então, tudo que era folha eu andava catando: "Tem jambu por aí? Tem caruru, tem alfavaca, tem couve?" E a minha comida era essa. Então, assim, tu vem limpa porque tu tomas banho no rio ou tu toma banho na água que é tirada do poço, o banheiro não tem teto, é aquele banheiro de madeira e tu tens que tomar banho ali, olhando o céu. O banheiro é aquela casinha que tem um buraquinho, então tu tens que te agachar, um exercício maravilhoso para nós mulheres e para os homens. Porque a gente agora está sentada nesse sifão? Quanto mais conforto, menos movimento. E quanto menos movimento, menos saúde, menos vida. Então, tudo para você fazer, você tem que se movimentar: você tem que pescar, para ir ao banheiro, você tem que se agachar né? A rede, esse espaço é o grande espaço de relaxamento. Essa coisa que nos acolhe, nos envolve, nos abraça, uma coisa meio útero, né? Então eu acho que essa convivência para mim é tudo muito orgânico. Eu desci um pouco daqui para trazer para cá e fazer essa ponte entre essas partes todas que me compõe. Essa comunicação é o que eu busco estar o tempo todo ativando.
P/1 – Dea, você sabe que com esse trabalho a idéia é a gente ver um pouco da Amazônia, que você nos trouxe aqui também. Você trouxe para nós as danças, está registrado. Esse trabalho é também para contar um pouco da história do Banco do Brasil, é por isso que a gente está aqui. Eu queria saber o que você acha do Banco de realizar esse trabalho de memória através das pessoas que contam essas histórias. Aqui a gente está contando um pedacinho da história do próprio país. O que você acha disso?
R – Pois então. Eu lembro que, acho que de quando eu morava em São Paulo. Eu não sei quantos anos tem o Museu. Quantos anos tem o Museu?
P/1 – Quinze anos.
R – Então, é isso mesmo. Eu morei em São Paulo em 1998, tem 10 anos. E quando eu vi, eu li alguma coisa do Museu da Pessoa, eu disse: "Gente, que maravilhoso, essa coisa da pessoa, do ser". Então eu achei maravilhoso um museu que pudesse trazer isso. Hoje, dez anos, o Museu chega aqui. É engraçado a sincronicidade. Eu acho fundamental porque tudo parte do nosso ser. Tudo que é manifesto, qualquer arte quando ela chega aqui, ela passou pelo pensamento, pela alma de alguém e se tornou realidade. As coisas não existem por si só, por mais que a tecnologia esteja avançando no nosso cotidiano de forma avassaladora, jamais o homem será substituído. Valorizar a pessoa, o ser, eu acho que esse é o grande registro que se pode deixar para a humanidade. O que as pessoas fazem e o que elas fazem para o mundo ser melhor! Por isso que eu digo assim, a minha fase de comunicadora na redação foi uma fase muito importante para o meu amadurecimento como pessoa, para o meu aprendizado. A minha relação com comunicação dessa forma científica, mas a minha alma me dizia que não era só aquilo e eu não me conformava só com aquilo. Eu fui buscar a comunicação por outros caminhos, por outros meios. O que eu faço hoje é o que eu acredito no âmago do meu ser. Então eu não tenho emprego, eu dou cursos, eu vivo da consultoria, dessas coisas que eu falo e que têm sentido onde quer que seja. Esse espaço foi criado a partir disso; muitas coisas aqui eu fiz junto com as pessoas que estavam aqui. Essa pintura todinha eu fiz à mão, aquelas pedras que estão ali eu trouxe da praia, então coisas que eu fui... Sementes, se vocês abrirem aquele armário ali vocês vão ver sementes, coisas que pra mim são o meu tesouro. Eu não pensei em fazer esse trabalho como alguma coisa... Não, foi sendo construído como um processo da minha busca como pessoa. Então o Museu da Pessoa, acho que o importante é que se conheça esse Museu e quem pode estar lá nesse Museu falando da sua história, da sua vida, da sua contribuição, que se dá... A gente precisa dar um passo e se a gente está de mãos dadas, a gente está no círculo, participando muito mais forte, muito mais bonito, a roda gira. Eu posso fazer, eu danço sozinha diariamente. Quando eu vou fazer um trabalho, aquele dia eu tiro para mim, então aquele dia eu fico dançando, eu fico respirando e fico buscando aquilo que as pessoas vêm buscar. Eu fico trabalhando o ritmo lunar, esse ritmo que influencia as marés, a natureza, a época do plantio, da colheita, a época de nascer e de morrer. É o ritmo lunar que os antigos viviam e ainda vivem. Nos plantios da mandioca, para plantar tem que saber o tempo, para colher tem que ter o tempo. Por exemplo, aqui a gente não tem as estações definidas, mas a gente tem os tempos. Então, em março nós temos o tempo das águas. E aqui é diferente do resto do Brasil. O nosso clima aqui tem mais a ver com o Hemisfério norte do que com o Hemisfério Sul. Então lá, quando vocês estão vivenciando agora a primavera, o que para nós seria o outono, o tempo das frutas, da colheita. O açaí __________, você vai encontrar um açaí maravilhoso, o litro à R$ 3, R$ 4, baratíssimo. Um açaí maravilhoso. Muitas frutas, manga, uma variedade imensa. Quando chega em janeiro, seria o nosso tempo do inverno, que vai coincidir com março, o ápice das chuvas, das águas. Quando chega em junho é o verão, época de São João, uma alegria. Festas de São João, tudo. Então são os tempos. Tem os tempos das águas, o tempo do calor... O do calor é mais, viu? Porque vocês podem estar achando que aqui tá quente, mas se vocês vierem em julho, aqui é mais quente do que agora, embora o clima esteja mudando em todo lugar. É tudo cíclico, então se a gente começa voltar o nosso ritmo a esse ciclo, ao que é circular... Nós somos cíclicos, nós mulheres, então, somos absolutamente cíclicas. E a gente se perdeu completamente disso, não é? Hoje existe até injeção para não menstruar, então veja só onde nós chegamos, perdemos. Então trabalhar no ritmo lunar nos ajuda a nos conectar com o que é natural em nós. Para que a gente possa ser mais inteiros, verdadeiros, para nos comunicar criativamente.
P/1 – Então, Dea, pro Museu da Pessoa você é valiosíssima para o nosso acervo. Esse trabalho que a gente está fazendo... Bom, o Banco do Brasil está fazendo 200 anos e qual foi a idéia? Contar as histórias a partir dos biomas brasileiros, por isso que a gente vem trabalhando na caatinga, no pampa e aqui a gente foi para a Amazônia. Foi uma iniciativa em que o Museu da Pessoa está junto com o banco fazendo isso. O que você acha dessa iniciativa do Banco do Brasil?
R – Pois então, eu acho que é fundamental falar dos biomas a partir das pessoas, eu acho que é uma sacada! O marqueteiro do Banco do Brasil é muito bom [risos]! Eu acho que o papel das empresas, agora falando como profissional de comunicação, se cada organização, se cada empresa tivesse essa sacada de estar fazendo o seu papel social, o seu papel para a comunidade a partir daquilo que é a sua missão, o seu talento, pronto. Não tem mais desigualdade, não é? Porque aí você não precisa contar historinha, inventar. Agora que eu não estou mais dando consultoria na área de projeto, de marketing cultural, eu dizia: "Olha gente, não adianta a empresa chegar...", uma empresa, por exemplo, que atua na área de TV por assinatura. Aí ela vai fazer um projeto de meio ambiente. Mas a empresa não tem a mínima prática cotidiana de meio ambiente dentro da sua própria empresa; o papel que ela usa ela não reaproveita, ela não tem sequer a iniciativa de mandar para uma organização que trabalhe com reciclagem de papel. Então são coisas que não vão, não adianta que não vai convencer. Convence aquelas pessoas que estão nesse mesmo padrão do consumo. Esse exercício do consumo é um exercício destrutivo porque a gente não tem mais para onde. Então que maravilhoso seria se as empresas percebessem qual é a sua missão. Claro que todo mundo quer ganhar dinheiro, tudo bem. Mas que seja um consumo consciente. Tem um calendário que é do Banco do Brasil, eu tenho esse calendário. Eu sempre achei muito sábio o povo da comunicação do Banco do Brasil, é um calendário que eu acho perfeito. Ele tem folhinhas, não sei se vocês conhecem, mas ele tem umas folhas soltas aqui e umas pequeninas aqui, são soltas. Cada folha dessa é uma fotografia e tem uma palavra: idealismo, amo, realizo, sonho. Aí aqui tem outras palavras: amor, alegria, paz, felicidade. Nossa, quando você trabalha com essa coisa das imagens, vocês vão ver lá no meu escritório, está lá pendurado esse calendário. Dependendo do meu estado de espírito, eu coloco lá aquela fotografia com a palavra idealismo. Aí aqui está a vida. Amanhã eu já estou com outro estado de espírito: sonho, amor. É um calendário de 2007. Mas está lá no escritório, quer dizer, não é descartável. Eu acho que as nossas ações precisam ter consequência de transformação, que é o que a gente está precisando hoje.
P/1 – Dea, tem alguma coisa que a gente não tenha abordado e que você gostaria de acrescentar?
R – Não, olha, se a gente fosse continuar a conversa,
ia passar o resto do dia. A gente ia passar ali para as fotos e ia ter mil coisas. Mas, realmente, espero que esse trabalho tenha consequências na vida das pessoas, que possa servir de estímulo, de motivação para que outros talentos, para que a criatividade das pessoas possam ser desveladas. Porque a gente tem tudo isso, a gente não é estimulado. A nossa educação não facilita o acesso a essa forma de fazer e de viver a vida. Assim, a gente deixa de fazer um trabalho para fazer um serviço. A serviço de quê? É isso, obrigada.
P/1 – A gente que agradece, obrigada.
P/2 – Obrigada!
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