Projeto Conte Sua História - SESC
Depoimento de Márcia Loduca Fernandes
Entrevistada por Cecilia Machado e Priscila Leonel
São Paulo, 12/02/2019
Realização Museu da Pessoa
PSC_HV029_Márcia Loduca Fernandes
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
P/1 – Márcia, fala pra gente o ...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História - SESC
Depoimento de Márcia Loduca Fernandes
Entrevistada por Cecilia Machado e Priscila Leonel
São Paulo, 12/02/2019
Realização Museu da Pessoa
PSC_HV029_Márcia Loduca Fernandes
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
P/1 – Márcia, fala pra gente o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R –
Márcia Loduca Fernandes, nasci em São Paulo, Estado de São Paulo e lá nos idos de 1954, dia 28 de setembro. Uma libriana.
P/1 – Márcia, conta um pouco como foi a sua infância, um pouco dos seus pais.
R – Uma infância bastante comum, filha única de duas pessoas muito fortes, a mãe particularmente forte. Ambos com pendores artísticos, o meu pai era cantor lírico, minha mãe pianista e a filha para desespero de pai e mãe, não enveredou para nenhum instrumento, não sabe tocar nada. Eles buscavam, sim, que até o piano que lá estava em casa, acho que eu aprendi uma ou duas musiquinhas, mas eu não tinha nenhum pendor ou pelo menos, eu não tive nenhuma persistência para isso. A filha única que aprendeu com o pai e com a mãe muita autonomia, menina que brincou na rua o tempo todo, que naquela época era muito comum, tinha lá os coleguinhas, os amiguinhos, parentes em diferentes ruas e a gente brincava aí até às nove horas da noite, oito, nove horas da noite, na rua, com carrinho de rolimã, aquelas brincadeiras em grupo, enfim, uma infância bastante feliz, que hoje, a gente não consegue ter essa interação, tem essa dificuldade, as crianças não mais participam disso, da brincadeira mesmo, enfim… muito comum. Uma coisa importante que eu acho que vale fazer um elogio dos muitos que os meus pais merecem, mas um elogio muito, muito grande é que eles sempre me permitiram experimentar, sempre me permitiram usar a minha infância da forma mais feliz possível. Claro, tinha a coisa da escola, óbvio, estudava numa escola próxima, uma escola religiosa, mas sem nenhuma rigidez, os meus pais sempre foram… exigiam, mas compreendiam quando eu não alcançava aí, as metas que eu mesma me colocava. Nunca fui uma criança que pai e mãe pudessem ou que eu tivesse tido algum tipo de punição ou uma mão mais conservadora, dura. Eram pais muito bacanas. A gente só vai dando valor quando a gente os perde, né? Perdi minha mãe em 99 e o meu pai em 2007. Hoje, reconheço neles as pessoas fundamentais que me fizeram.
P/1 – E como você percebeu, assim, os primeiros indícios da carreira que você gostaria de seguir?
R – Então, eu falo com o meu marido que começar uma frase com “Então”, é meio caminho para não estar falando muito a coisa correta. Sinceridade? Eu nunca quis enveredar para a escola. Quando na infância e tinha muito isso, vamos brincar de escolinha e tal, eu era aquela que fugia. Eu detestava esse tipo de brincadeira, eu ia brincar com os meninos, era muito mais divertido jogar bola, andar de carrinho de rolimã e aquelas meninas ficavam lá brincando de professora e tal. Eu achava aquilo muito chato. E aí, perguntavam: “E aí? O que você vai ser quando crescer?”, a fatídica pergunta e eu dizia: “Bom, eu não sei. Mas uma coisa eu sei, eu jamais vou trabalhar numa escola, porque eu não gosto de escola”, paguei com a língua (risos). Mas assim, depois da minha primeira faculdade e eu já namorava o meu marido, eu queria ganhar o meu dinheiro, eu queria essa independência econômica até para me casar. E naquela oportunidade, isso foi nos idos de 76, o Brasil passava por uma situação caótica, não é, difícil. E enveredar por aquilo que eu desejava, aquilo que a minha formação me permitiria foi difícil, porque eu tinha um desejo de trabalhar em indústria, em empresa como uma planejadora, mesmo, com uma parte de administração. E uma primeira oportunidade que foi me dada foi através de um estágio que eu fiz na Cosipa e de lá, uma recomendação para Volkswagen. E quando eu fui verificar essa possibilidade na Volkswagen, eu me deparei com uma situação de discriminação feminina, porque as pessoas disseram: “Olha, as qualificações até você tem, só que a pessoa que a recomendou não atentou para o fato que nós queríamos um homem. A área de Sociologia é masculina e não feminina”, o que contradizia bastante de uma voz comum do nosso curso, bastante depreciativo, que as pessoas que cursavam, as meninas que cursavam Ciências Sociais, elas estavam lá para esperar marido. Era uma fala que se tinha recorrente, absolutamente discriminatória, mas que eu fiquei chocada quando eu recebi o não lá do pessoal, não da Volkswagen, óbvio, da empresa. Das pessoas que lá trabalhavam. Era um homem até porque eu teria que trabalhar junto à linha de montagem, e tal, e na cabeça e naquela oportunidade, fazia todo o sentido do mundo. Bom, eu não ia conseguir mesmo. Nisso, eu me volto à universidade e falo essa experiência e aí, a orientação é: “Olha, vamos terminar…”, porque a gente fazia antes, “… a graduação e depois, a licenciatura. Faça a licenciatura e você vai ter mais uma possibilidade”. Nesse curso de licenciatura, uma das professoras, uma pessoa bastante interessante, o nome dela era Rosa, não sei se ainda está viva, professora de licenciatura e ela sabendo
do que eu deseja, que era trabalhar, ela disse: “Olha, verifico que você tem essa proatividade, eu além de ser professora aqui na universidade, eu também tenho um cargo no Estado e nessa escola, lá em São Caetano do Sul, eles precisam de uma professora de Geografia” “Mas eu não fiz Geografia” “Estuda um pouquinho, quem sabe você se encontra, não é? É uma oportunidade”. E lá fui eu. Fui com os meus textos de primeiro ano de faculdade, eu não sabia nem o que fazia, eu me deparei com os meus 21 anos, né, eu me deparei com classes onde a idade média era de 30, 40, metalúrgicos. E eu estava começando a verificar as pessoas que mais tarde montariam o Partido dos Trabalhadores. Eu começo a enveredar aí, com esses jovens que tiveram todo o respeito e entenderam perfeitamente que eu não sabia nada, foram extremamente respeitosos, extremamente compreensivos e aí, eu comecei a entender que talvez eu tinha a possibilidade no Magistério, talvez ou por falta de outras oportunidades, seria um caminho, mas eu também percebi que o caminho dentro de Sociologia, nessa minha primeira investida, eu percebi que com Sociologia, eu tive que raciocinar e racionalizar a coisa. Com Sociologia não seria possível, até porque ainda que eu tivesse tido isso no colégio, essa disciplina, ela foi extinta no colégio como Filosofia, como Psicologia, dando entrada ao SPB, a Educação Moral e Cívica, enfim… ainda que bem nessa época já começa uma transição, mas eu não teria possibilidades. A disciplina Sociologia deixou de existir, ela foi resgatada há muito pouco tempo, mas não poderia mais. Mas naquela época, havia uma divisão onde aquelas pessoas formadas por Ciências Sociais, elas poderiam dar, por força da carga horária, alguns componentes de Geografia, Geografia Humana, Geografia Econômica, porque nós tínhamos tido isso na faculdade. E a escola tinha essa divisão e eu comecei por aí. E comecei a perceber que eu até que dava certo, até que eu não era tão ruinzinha assim, como professora, era aceitável. Procurei também aliar a uma facilidade que eu percebia ter desde o ensino fundamental, naquela época, chamado de ginásio, né? No ginásio do colégio que eu era uma boa aluna de Geografia. E a, eu enveredei e fui para a graduação de Geografia, porque num primeiro momento em que eu pude prestar um concurso no Estado e eu passei bem classificada, mas eu não pude assumir, porque eu não tinha a graduação específica. Enfim… eu achei aquilo um afronta, foi uma afronta para mim, um acinte,
eu falei: “Caramba…”, isso não podia falar, né, mas tudo bem. “Puxa vida, eu passei tão bem, eu poderia ser contratada”, mas eu entendi depois porque eu não poderia, tinha falhas grandes que a Sociologia não podia me dar, principalmente na parte Física. E a, eu fui fazer a graduação em Geografia, aí era uma questão de honra para mim. Tinha porque tinha que passar no concurso do Estado, naquela época era muito importante. E eu consegui!
Entre os primeiros colocados, eu consegui passar e entrei no Estado e comecei a dar aula.
P/1 – Márcia, qual é a sua primeira formação e onde ocorreu?
R – Ciências Sociais na Universidade Católica De São Paulo e digo que foi essa formação que me deu possibilidades com todas as outras. É fantástico, se eu pudesse retomar, eu faria novamente Ciências Sociais, ainda que eu ache que as pessoas que fazem Ciências Sociais, elas precisariam fazer com mais idade, até para você ter noção, pelo menos eu falo na minha própria experiência, você teria condições de discutir, se aprofundar muito mais, com mais idade, você começa a compreender com mais propriedade aquilo que é discutido.
P/1 – Esse período é o da Ditadura Militar, né, Márcia?
R – Exatamente.
P/1 – Como é que foi a sua infância dentro dessa perspectiva política, assim?
R – Então, o meu pai era uma pessoa extremamente politizada. Eu aprendi a ler e a escrever, mas mais particularmente a ler com a leitura dos editoriais do “Estado de São Paulo”. Então, o meu pai me colocava no colo e lia para mim os editoriais. Ele discutia muito e comigo, as discussões, ele me explicava, né? É claro, uma criança de cinco anos fica assim, achando lindo e maravilhoso o pai que falava muito difícil e tal, eu achava o máximo, o meu pai, um ídolo, super culto. Mas ele estava lendo e eu aprendi a ler através do editorial. Mas eu não posso esquecer que eu era filha única. E o medo que se mostrava a todas as pessoas era bastante grande, isso não foi diferente na minha família com o meu pai e com a minha mãe. Sim, o medo era uma constante, particularmente, isso mais tarde, por volta de 68, 69 em particular, onde conhecidos nossos, filhos de conhecidos começaram a ser perseguidos, eles tiveram que fugir do país. Então, o meu pai sempre foi muito atento àquilo que ele imaginava que ele poderia me colocar ou a família dele em perigo, ele acabava dando um freio e imaginem o que foi quando a filha dele, a filha única que até 1971 tinha como meta fazer Medicina, já que eu não queria, imagina, escola, eu queria ir para Medicina, era um sonho de minha mãe, como aliás, de todas as mães: “Vou ter um filho médico, uma filha médica”. Eu fiquei muito encantada com uma professora de Sociologia no colégio e eu chego em casa toda feliz e digo: “Pai, mãe, descobri o que eu quero fazer”, o meu pai assim torcendo: bom, ela vai fazer Medicina, se não fizer, sei lá, vai para outra… quem sabe Arquitetura, ela tem jeito para desenho… “Vou fazer Sociologia” (risos), foi uma coisa assim, o meu pai alto, ele desmoronou: “Como? O quê que você tá dizendo? Por que você quer isso?” “Pai, porque eu gosto muito de politica, porque eu sempre te ouvi falar”, você imagina o meu pai nessa altura do campeonato, né? O quê que eu fiz com a minha filha? Por força dessa professora e por força também da fala de meu pai, fui, entrei para fazer Sociologia. Foi difícil? Bastante, até porque eu comecei a escola, lá na PUC da Marquês de Paranaguá, depois que nós fomos transferidos para Perdizes. E uma das coisas que eram ditas, até pelos próprios professores ou pelos funcionários, enfim: “Atenção com o que vocês falam em sala de aula, atenção com o que vocês discutem nas ruas, nas calçadas. Lembrem-se…”, e tinha mesmo, uma delegacia muito próxima “… tenham muito cuidado com tudo”, então, eu tinha 17 anos e eu ficava apavorada também. Foi difícil até porque se tinha uma voz corrente que nós seriamos todos fichados pelo DOPS, não sei exatamente se nós fomos, mas isso era voz corrente e na dúvida, era bom a
gente ficar atento. Isso acabou, esse pesadelo acabou se concretizando mais tarde na invasão da PUC pelo Coronel Erasmo Dias, onde eu vi padecer muitos colegas de sala, uma delas, inclusive, extremamente judiada, que ela quase foi a óbito, da surra que ela levou com um… eu não sei exatamente o nome do cinturão que vão as balas, ela perde um rim, inclusive, com isso. Foi uma época difícil. Muito, muito difícil. Devo dizer também e eu não sei se isso é bom ou mau, pra mim foi bom, não da época, quando eu prestei a universidade, eu também entrei na USP e muitos colegas do mesmo colégio acabaram indo para a USP, só que pelas perseguições políticas que haviam, praticamente, Ciências Sociais foi fechada na USP, ela persistia, mas os professores já não mais existiam, quer dizer, eles precisaram ir para outros lugares, eles foram, entre aspas, convidados a deixar o país. E muitos deles foram acolhidos pela Universidade Católica. Então, nesse sentido, ter optado pela Católica foi um ganho em minha formação. Eu tive pessoas ícones, de fato, da Educação, da História da Sociologia nesse país, falávamos anteriormente sobre um deles, não é, Maurício Tragtenberg que eu tive a honra de ser aluna, fantástico. Carmen Silveira que foi durante muito tempo a presidente da Associação dos Sociólogos, que nos ensinou a fazer uma leitura sempre critica, a ir beber exatamente dos clássicos. Galvão, professor de Política, muito interessante; Jordão que foi o meu primeiro professor de Sociologia, tantos outros que passaram e que deixaram suas marcas e que a eles eu agradeço muito a minha formação intelectual. E a partir disso, vamos estudar, vamos ler com outros olhos. E no momento muito, muito difícil, eles nos ensinaram a ir além, a pensar fora da caixa, a buscar alternativas e nunca se curvar. Eu acho que isso é o maior legado que esses professores me proporcionaram e eu acabei incorporando isso e também passando isso para os meus outros futuros alunos. Eu venho com isso até hoje. Aquilo que os meus pais me ensinaram, a questão da autonomia e que foi ratificado ao longo da vida, hoje também, no meu trabalho diário, eu sempre exalto muito a busca da autonomia pelos alunos que eu tenho, pelos professores que eu também tenho uma honra imensa de dirigir, pela escola que hoje estou, essa busca constante da autonomia, porque ela se faz e se dá no dia a dia e em cada ato da gente, né?
P/1 – Como foi que você conheceu o Gil?
R – (risos) Ah! O meu marido… sabe que eu sempre penso, eu casei em 77, vai dai que são 43 anos… não…
P/1 – Quarenta e dois.
R – Quarenta e dois… eu já não sei mais, faz muito tempo. Parece que eu sempre vivi com ele e mais cinco, porque nós ficamos juntos, né? Então, foi uma coisa maluca, né? Meu pai tinha um sobrado na praia de esquina. E nós fomos para a praia, eu e mais duas coleguinhas e no sobrado de frente ao nosso, também de esquina, tinha uma família. E a gente ficou olhando, eu era um pouco… mandona, sempre fui muito mandona, né: “Você faz isso, aquilo”, enfim… filha única, olha aí o estigma. O estereotipo, né? Aí, eu falei assim: “Verinha…”, uma querida que já deixou este mundo, era muito doce para ficar. “Verinha, você vai ficar com aquele lá”, ficar é modo de falar, tá? “Você vai ficar paquerando…”, olha o termo daquela época: “Você vai ficar paquerando aquele lá. Rô, você tem aquele outro vizinho, aquele acho que foi com a sua carinha” “E você, Má, o que vai fazer?” “Sei lá, não tem nenhum. Vixi, olha o que sobrou pra mim, aquele lá, mas aquele lá parece um cabrito, ele fica pulando do muro”, que os murinhos eram todos baixinhos e ele ficava pulando. “Então tá”, brincadeira, todo mundo com 16 anos, aquela brincadeira, bem diferente de hoje, mas molecagem. E a mãe de Verinha olhou para o Gil, aquele que eu chamava de cabritinho que ficava pulando pra cá e para lá, ela disse: “Olha, você tá chamando ele de cabrito, mas posso falar uma coisa? Você vai casar com ele”, aí eu fiquei olhando: “A senhora tá louca, Dona Irene, imagina que eu…” “É, você vai ver”, e não é que ela tinha razão? Casei, a gente começou a namorar em 72 e aí, nos casamos em 77, mas digo para vocês que parece que foi sempre, que nós nascemos juntos, um completava o outro.
P/2 – Como é que foi o começo do namoro com o Gil que você chamava de cabritinho?
R – Foi muito legal. Assim, hoje é dia 12?
P/1 – É.
R – Amanhã então… façam as contas, quanto de 72 até agora…
P/1 – Quarenta e sete.
R – Quarenta e sete anos que nos vimos… foi assim, nos mudamos e antes da gente… de eu ficar fazendo a divisão, né, meu pai tinha um carro muito velho, um Chevrolet 54. Nossa, era terrível. Hoje, se tivesse guardado, até teria um dinheiro bastante interessante, né? Aquilo era uma loucura. E ele assim, parava, andava, parava, andava e eu já tinha visto aquele guri e ele também tinha me visto e ao voltarmos para São Paulo, o meu pai foi fazer um contorno e aquele carro tão danado, parou. Ele mais do que rapidamente, foi empurrar o carro, eu estava no banco de trás e aí, eu me viro, eu olhei pra ele… ele sempre foi muito bonito, muito bonito, mesmo. Aí, eu olhei para ele, esbugalhei os olhos, ele também e eu disse pra minha mãe: “Mãe, ele tem olho azul”, na verdade, verde, mas aquele verde azulado, “Mãe, era tudo que eu queria”, era dia 13 de fevereiro. E até hoje, nós comemoramos como o primeiro grande olhar, aquele olhar que seria fatal pra nós. Um mês depois, tornamos a nos encontrar e começamos a namorar. E assim, numa situação muito engraçadinha, porque o pai o empurrou, eu não sabia o que fazer, enfim, e começamos do nada, na praia, ficamos lá, meu sogro era bem conservador, então eu lembro que um dia antes do dia 12, eu e uns primos tínhamos ido ao mar, fazia um tempo horroroso, mas para o paulistano, tinha que ir para o mar, não importa de que jeito. Era um tempo horroroso. E aí, ele foi nos seguindo. Entramos no mar, todo mundo, só que fazia muito frio, também e ele ficou abaixadinho, acredito que por frio. E naquela época, a gente não tinha o politicamente incorreto. Quando eu me dei conta, eu falei para os meus primos: “Gente, pelo amor de Deus, ele é um anão, ah não, anão não dá não”, porque ele tava abaixadinho. Aí, o meu primo falou: “Não, não é anão, nada. Você é louca, imagina”, deu um cutucão nele e ele levanta. Aí, conversa vai… não tinha jeito, tava de um lado, do outro, um primo meu veio: “Vem cá, vou apresentar vocês dois”, ele também não conhecia “Olha, minha prima Márcia, como né o seu nome?” “Gilberto” “Então tá Gilberto, essa é a Márcia, conversem”, e foi desse jeito, não teve nada de excepcional e a gente começou a sair, voltamos para São Paulo, ainda demorou um tempinho, mas a gente se encontrava, era naquela coisa, tinham os dias determinados de namoro e começamos. Nossa vida de adolescentes, junto às faculdades, enfim, na verdade, era tudo tão engatilhado, que era muito normal casarmos. Era a pessoa que eu tinha escolhido. Idas e vindas, acabamos nos separando um pouquinho, aí um outro pedido de casamento e mandona do jeito que eu sempre fui, agora melhorei, naquela separação, em setembro, ele me pediu que eu o ajudasse para comemorar os 25 anos de casamento dos pais, eu ajudei e nessa ajuda, no meio dos preparativos, ele disse: “Olha, você tá me ajudando a fazer os 25 anos de casamento dos meus pais…”, vale dizer que ele também é filho único, eu sou filha única, ele é filho único. “Então, que tal se a gente se casasse?”, aí eu olhei pra ele e falei: “Bom, estamos em setembro, se você conseguir fazer tudo até dezembro, eu caso”, conseguimos (risos). E aí, casamos em dois dias… hoje, pensando, eu dou muita risada o que nós tínhamos… eu, particularmente, o quê que eu tinha na cabeça pra escolher duas datas, porque nós iriamos viajar em seguida, então precisávamos da documentação. E eu escolhi 24 de dezembro para casar no civil (risos) e 31 de dezembro no religioso. Casamos, o dia 31 de dezembro foi muito engraçado, porque a São Silvestre, a corrida de São Silvestre se dava na Consolação e Paulista, como até hoje, né, tem alguns trechos, mas naquela época era à noite e ela ficava fechada, as duas vias ficavam fechadas. E aí, com o conhecimento de um e de outro, o meu pai conseguiu isso, houve a liberação para o nossos casamento. Então, imagina que bonitinho, né? Dezenove horas do dia 31 de dezembro, tudo fechado para o casamento da bonitinha aqui, né? Foi engraçado. Hoje, olhando na retrospectiva, o que eu tinha na cabeça? Porque na verdade é assim, eu achei, achei que os meus pais tinham casado no dia 31 de dezembro e era uma homenagem a eles. Faz muito pouco tempo que ao observar a certidão de casamento deles, eu reparei que não foi no dia 31 de dezembro, isso só passou na minha cabeça, era outro dia. E eu falei: “Gente, depois de tanto tempo! Agora, não tem mais jeito”. O fato é que tanto faz uma data ou outra, sempre haverá muita gente festejando, então o meu casamento foi assim, tem sido uma festa, com muitas dificuldades, obviamente, mas na certeza que eu encontrei a pessoa ideal: bondosa, generosa, inteligente, educadíssima, um gentleman. É uma pessoa que eu sinceramente, nem sei se mereceria, porque a gente precisa merecer, não sei, é uma pessoa muito iluminada. Para quem acredita em reencarnações, provavelmente, será a ultima dele, porque é uma pessoa que atingiu um estágio de luz imensa, uma pessoa boníssima. E é assim, isso que aconteceu.
P/1 – Quando você entrou na escola, quando você fez o concurso e entrou no Estado, onde você foi dar aula?
R – Eu desejava mudar para a praia, desde sempre, porque naquela época, ainda não era muito claro para nós, que não desejaríamos filhos, porque foi uma opção politica nossa não termos, mas isso ainda não estava muito claro e eu entrei em 1981, 82, já não me recordo muito bem, então eu… como eu tinha conseguido uma classificação muito boa, entrei entre os cinco primeiros de todo Estado, aqui na capital, eu fui a primeira colocada, eu optei para uma escola na praia, que no final das contas, não acabou se realizando porque havia… acho que até hoje, existe essa possibilidade, você acaba ingressando numa escola, mas se houver uma oportunidade… não é que você faz uma transferência, você permanece com a sede num canto, mas passa para outra escola dando aula por um motivo ou de vacância ou de uma licença, enfim. E eu acabei ficando, a bem da verdade, na capital, deixando algumas outras escolas e eu já dava aula nessa escola, mas eu acabei ampliando também uma escola que naquela oportunidade era uma referencia para São Paulo. O colégio chama-se, até hoje ele existe, MMDC. Ele foi organizado por profissionais da antiga Escola Vocacional, pessoal da USP, era uma escola de vanguarda. E eu lá, tive a oportunidade de experimentar projetos incríveis, era uma escola, hoje eu realmente não sei como ela está, mas era uma escola de referência, uma escola com laboratórios de Física, de Biologia, de Química, salas de desenho excelentes. Eu tive a sorte, também, de estudar em escolas… eu vim de escola pública, só no inicio que foi escola particular religiosa, depois em escola pública, o colégio que eu frequentei também era um excelente colégio e pra onde eu acabei trabalhando, também tinha essa característica de um ensino de qualidade muito grande. Aliás, as escolas estaduais eram referência. A bem da verdade, extremamente disputadas, as pessoas que iam para as escolas estaduais, fossem professores, ou os alunos, eram… os alunos muitíssimo bem formados e os professores supergabaritados, então eu tive essa chance também de experimentar, enquanto aluna e enquanto profissional escolas extremamente exigentes, profissionais e de vanguarda. Eu começo exatamente no MMDC. Fiquei nessa escola 16 anos, porque antes dessa minha efetivação, eu já dava aula substituindo alguns professores bastante importantes. E prossegui. Em 1900 e… acho que foi 84, eu ingressei na Prefeitura, que naquela oportunidade, também tinham bom diferencial, então eu aprendi muito, muito mesmo. Fui dar aula na periferia, outro elemento que para mim foi divisor de águas, porque você vai ter que aprender numa escassez de materiais, você tem que trabalhar os jovens, então isso foi muito importante. Fiquei, então, no Estado e na Prefeitura até 1990. Em 1990, eu estou em casa e recebo um telefonema de um querido amigo, Carlos, que trabalhava… estudou e trabalhou no MMDC, ele disse: “Márcia, você não quer vir até a escola onde eu estou trabalhando, que o professor de Geografia está indo embora para a Universidade de Mato Grosso, ele passou num concurso e as aulas estão vagas, você não quer conhecer?” “Eu vou, sem problemas” “Então, venha”, aí ele me deu o endereço, mas eu não conhecia, Centro Paula Souza, sei lá, mas eu sabia que era uma escola técnica. Beleza. Peguei metro, ônibus, sei lá eu, enfim, e fui parar na Federal, Instituto Federal e procurava por Carlos, as pessoas diziam: “Não tem ninguém com esse nome” ‘Mas ele me telefonou e tal” ‘Não, não tem” “Mas aqui não é escola técnica?” “É” “Eu não tô entendendo”, me reportei a ele novamente e ele: “Poxa Márcia, por que você ainda não chegou?” ”Eu estou aqui” “Onde você está?”, aí eu pedi: “Qual é a rua aqui?”, bom, eu não sei qual é o nome da rua, enfim, não é Marquês de São Vicente, é alguma coisa Vicente, não importa, ele disse: “Não Márcia, você tá no Instituto Federal, é uma outra escola, ela tá começando agora”, aí aquela cara: “Então tá, desculpa”, e me dirigi para o campus da FATEC São Paulo, era lá que estava iniciando uma escola pequenininha, a gente estava em galpão, era muito pequenininha e ela tinha menos de um ano e meio, ela ocupava as salas ociosas e os espaços ociosos da FATEC e lá, começava uma escola que foi… que eu tenho muito orgulho de ter participado, não exatamente do seu inicio, mas de um longo período, que é a Escola Técnica de São Paulo, a Etesp, começou muito pequenininha e eu fiz o concurso, eu passei. Aliás, uma experiência superbacana, porque era uma prova prática e eu tinha que dar aula. E quem que era a minha plateia? Os próprios alunos. Eles já numa atitude de muita vanguarda, né, um vanguardismo muito grande, eram os alunos que decidiam: “Esse professor fica, este não”. Em 1990, eu consegui aprovação daqueles alunos, dei aula durante uns 60 minutos, eles me aprovaram. E comecei, eram 12 aulas e eu já era uma professora com 40 horas no Estado mais 20 na Prefeitura e tal, e eu disse: ‘Pois é, mas eu acho que eu não tenho mais nada a oferecer ao Estado”, não que o estado não tivesse a mim, me oferecer, mas eu não tinha mais nada, acho que a minha missão tinha sido cumprida. E eu larguei, me exonerei de Estado e Prefeitura e embarquei no sonho da Etesp, no Centro Paula Souza, fui muito criticada na época, porque todo mundo dizia assim: “Você vai ser celetista, vão te mandar embora” “Mas eu não tô procurando essa estabilidade”, claro, todo mundo quer uma estabilidade, mas não é isso, eu quero novos projetos. E comecei em 1990 na Etesp, pessoas extremamente generosas me acolheram, Professora Laura, que era a diretora naquela oportunidade, Professor Homero também, como coordenador, ele já era coordenador nessa época. E eu fui aprendendo com muitas pessoas incríveis, assumi a direção da Etesp no final de 95, metade de 95, quando a Professora Laura vai compor a equipe de mudança curricular e eu assumi, eu já era assistente dela. Em 96, eu me qualifico para a direção da Etesp, disputo as eleições, ganho e lá fico até 2004. Aprendi muito, muito e muito. Agradeço a todos. Em 2004, eu deixo a direção, volto para a minha sala de aula. Em 2005, me é dada a oportunidade de ter uma experiência única que foi também dirigir uma escola técnica na antiga FEBEM, aprendi muito a sensibilização é algo incomparável com aqueles jovens, e lá, eu tive a certeza absoluta que não há outro caminho que não a Educação para a ressocialização, para a
integração de qualquer pessoa e em particular, do jovem, que tá começando a sua vida. O Centro Paula Souza até hoje, ele mantém um extenso currículo de cursos para pessoas em situação de reclusão, mas eu pude vivenciar isso no antigo campus do Tatuapé que era a maior área que se tinha, não é? Participei no sentido de ver, de assistir a última grande revolta, terrível, posteriormente, eu fui agraciada com esse projeto no local onde nós estamos, que eu acho que é sina, eu sai da FEBEM e vim para o Carandiru, para implantação… era uma classe descentralizada que viria ocupar o antigo Carandiru, isso em meados de 2006 e em 2007, a gente começa nesta área e em 2008, eu tive também a oportunidade de implantar a ETEC de Artes. Em 2010, eu permaneço com esta escola, nessa direção, participo de vários processos de qualificação, tive dois mandatos, né, um período de designação previsto em lei, dois mandatos que neste ano de 2019, na metade, eu completo. E estou deixando este projeto, mas com a certeza de que aquilo que foi formado aqui, aquilo que foi plantado, semeado e cultivado com tanto amor, com tanto carinho por tantas pessoas importantíssimas na história dessa cidade e desse país, elas permanecem e tenho certeza, nós vamos seguir com uma escola incrível, com essa escola maravilhosa, que ela tem uma situação muito diferenciada, ela surge num cenário de total opressão e hoje, o que nós temos é uma escola em outros moldes, com outras características, uma escola libertária, de uma situação tão difícil para uma ação tão positiva e tão proativa.
P/2 – A gente vai conversar bastante sobre tudo isso, mas só voltando um pouco, você falou de momentos tanto no Centro Paula Souza, depois, a experiência na antiga FEBEM, tem momentos ou alguns episódios que você podia contar pra gente que foram marcantes? Por exemplo, a sua primeira experiência na direção de uma escola, teve uma situação assim, que foi desafiadora?
R – Acho que muitas.
P/2 – Então, escolhe algumas só pra gente ter esses episódios, assim. Para ilustrar bastante essa passagem.
R – É, eu…
P/2 – E depois na Fundação, também, na FEBEM, se teve alguma…
R – Bom, na FEBEM… eu tô tentando filtrar qual aquela que poderia ser não a mais significativa, mas assim, que teve um impacto maior, acho que comigo, mesmo, um impacto maior.
P/2 – É, para você mesma.
R – O desafio de uma direção, quer dizer, quando eu comecei a direção lá na Etesp, eu já vinha de uma experiência exitosa como assistente de uma pessoa muito emblemática dentro da nossa instituição. Então, claro, os desafios, toda pessoa tem um jeito de ser, mas elas não foram tão contundentes. Os desafios existiram, talvez, assim, em termos pedagógicos, a mudança de um curso integral que nós tínhamos para um novo modelo de ensino tenha sido bastante complicado porque as pessoas ainda estavam muito apegadas a um modelo anterior. Então, um convencimento a professores, a alunos foi difícil. E imediatamente a essa ruptura, porque a reforma se deu em 96, e essa implantação vai se dando através de 97, 98, 99, a gente já tem uma situação de mudança, mesmo. Nós vamos ter a volta do ensino médio e o modular, mas até a, os desconfortos foram sendo superados. Nesse momento também havia um embate e a gente entende o motivo, o campus FATEC para abrigar tanto o ensino superior, quanto o técnico e o médio, acabava-se por se tornar pequeno. Então, houve um primeiro movimento de trazer a Etesp, por exemplo, para este local que começava a ser desativado. Então, a ideia era trazer a Etesp para o Carandiru. Mas o Carandiru, altamente estigmatizado não havia nenhuma família que assim o desejasse. Foi uma grande comoção: “Não, professora, nossos filhos não irão. Não irão. Eles não irão numa cadeia…”, ainda que a gente tenha mostrado muito como seria o projeto, o projeto magnifico, mas não. Eu chamei um plebiscito, por assim dizer, e a resposta foi contundente: “Não! Nós vamos ficar aqui, não importa de que jeito, ou em outro local. Carandiru nunca. Nossos filhos não entrarão naquele local”. Tive que dar essa noticia a superintendência que entendeu, eu disse: “Olha, nós não nos fechamos, mas nesse momento, a população, a nossa comunidade não deseja”, imagine qual foi a risada quando em 2006, eu sou designada para vir para cá. Então, a piada no centro Paula Souza: “Viu? Você não quis”, não adianta dizer que não era eu que não queria, a comunidade. “Você não quis, mas agora você vai à força, vai ter que entrar de qualquer maneira”. Entramos e é claro também que aqui, os primeiros momentos foram difíceis, porque o que eu recebi, com todo respeito, o que eu recebi de telefonemas, cartas, telegramas, e-mails se eu desejava exorcizar o local. Então, tinha até um programa de televisão muito engraçado que era como se fosse caça a fantasmas, então eles queriam fazer aqui uma filmagem, porque aqui tinham coisas, aqui os espíritos povoavam, então eu recebi muito sal grosso, eu recebi muito crucifixo, eu recebi de tudo, pai de santo, padres, todos possíveis e imagináveis. Eu falei: “A meu Deus do céu, fica complicado. Não senhores, eu agradeço, mas não tem nada aqui”, então eu percebia que também se eu fizesse esse movimento do não, não, não, tava começando a ficar difícil, aí eu comecei a aceitar. Nós começamos a aceitar e aí, três por quatro, tinham entidades vindas da África fazendo os seus rituais aqui, maravilha, budistas, protestantes, de todas as seitas, todas as religiões, aí eles perceberam que realmente, ou tinha dado muito certo a reza ou de repente, não existia nada. Eu acredito nas duas coisas: não tinha nada e deu muito certo a reza. Pronto! O resultado foi assim, bacana. Todo mundo muito feliz, que na verdade, eu acredito exatamente nisso, nessa energia boa de todo mundo querendo construir, mas eu digo para vocês que até hoje, tem gente que tem medo de cruzar o portão. Tem medo. O Espaço Memória Carandiru, eles entram e alguns, se repararem, eles fazem o sinal da cruz, então… é uma situação, enfim, que eu acho que tá no imaginário, respeito, mas não, eu sempre digo que a gente tem mais é que ter medo dos vivos, os mortos realmente… agora, um momento difícil pra nossa escola foi o momento da invasão que aconteceu em 2015, foi isso. Foi difícil, até porque havia um movimento e isso todo mundo sabe, quando você está imerso num movimento, você não consegue avaliar a amplitude, as possibilidades, a capacidade e as consequências, isso é natural, todo historiador sabe, não dá para avaliar, analisar aquele momento, a gente tem… pode se ter considerações, mas a analise sempre é feita posteriormente. E esta escola que sempre foi aberta, que sempre buscou no diálogo toda a sua… o seu fazer, e sempre teve confiança total nas pessoas, um dia se vê…
P/1 – Apunhalada…
R – Eu não vou usar o termo apunhalada, mas surpreendida por algo que nunca nós pensávamos. E hoje, eu entendo perfeitamente, acho que se tivesse no papel do adolescente, eu teria feito, era um momento deles se apresentarem, deles demonstrarem aquilo que eles mais queriam para a sociedade: “Nós estamos aqui, nós faremos a diferença, estamos fazendo e faremos”, como de fato, fez. Fizeram, perdão. Mas foi muito difícil pra gente aceitar porque sempre nos perguntávamos: “Onde erramos? Por que eles não conversaram conosco? Por que nos sentíamos meio traídos?”, e não era nada disso.
P/2 – Fala um pouco dessa invasão, como se a
gente não soubesse que invasão e em que contexto, só para deixar gravado.
R – Bom, em 2015… eu tô certa nessa data, né, gente?
P/1 – Tá.
R – Tô certa, em 2015?
P/1 – 2015.
P/2 – Só para contextualizar rapidamente.
R – Não, eu sei. Mas é que às vezes, como a coisa foi tão impressionante… então, nós tínhamos tido 2013 e 2014 todo um movimento da rua, das pessoas indo à rua, enfim, e esse movimento ganha força e esse movimento vem para as escolas como um protesto que eu lembro, era coisa assim: “Não é pelos 30 centavos…”, uma coisa assim que começava, algo lá atrás, enfim, mas havia uma necessidade de presença e fala dos adolescentes, dos jovens. É claro que para nós, nessa escola que sempre tivemos essa convivência mais aberta, nos parecia algo inusitado porque, mas essa ideia dessa escola não era a ideia e nem a prática das outras escolas. E é evidente que eles tiveram essa facilidade, justamente, por ser tudo aberto e aqui, eles puderam demonstrar aquilo que eles desejavam, que era maior liberdade e aí, a gente se perguntava: “Mas maior liberdade exatamente do quê?”. O que nós não fazíamos na grande maioria era fazermos esse movimento para fora, havia um contestar, eles contestavam, aqui, mas não era exatamente daqui, era do todo. Enfim, então eles ficaram… lembro bem, foi no dia primeiro de dezembro e lembro dessa data por quê? Porque no dia 30 de novembro, parceiros nossos tinham vindo à escola porque haveria durante o mês de dezembro e nós já estávamos programando para janeiro também apresentações do Brasil todo aqui sobre robótica, enfim, uma série de atividades envolvendo os alunos. E saímos. São pessoas de longo tempo, saímos para jantar e eu vi os garotos fora em roda, mas uma coisa muito comum pra mim. Eu olhei e falei: “Não sei porque mas tem algo meio equivocado aqui”, mas eu não sabia o que e larguei mão. Fomos, saímos, eram umas 20 horas e como eles sempre… essa escola é assim, ela foi sempre invadida e não evadida, eu não tenho problemas de evasão, eu tenho problema de invasão no bom sentido como sempre. E às seis e pouco da manhã do dia seguinte, eu recebo um telefonema de alguém, de uma pessoa muito querida que está conosco desde sempre, Dona Maria, ela desesperada, soluçava no telefone e ela dizia: “Professora, o que mais temíamos aconteceu. A escola foi invadida”. Os meninos no rompante do adolescente, plenamente entendível, eles pegaram as chaves dos seguranças e chavearam a parte de fora, o portão e foram abrindo todas as salas. Eles se fecharam dentro da escola e não admitiam uma conversa, nós estabelecemos aí junto a professores, a gente entende que momentos como esse, às vezes, a direção, a figura da diretora ou do diretor é uma figura muito forte que eles rechaçam, plenamente compreensível, então existia aí um grupo de professores que intermediavam essa conversa, mas eles também não queriam muito. Na verdade era assim: “Estamos acolhendo todos os nossos colegas que se sentem oprimidos e tal…”, então isso daqui ficou do dia primeiro de dezembro até o dia 19 de dezembro, um Woodstock, foi ótimo! Eles cantaram muito, eles discursaram muito, só que assim como os movimentos têm o seu tempo, eles acontecem e aí, ganham força e depois, vão perdendo, naturalíssimo também, não deixou de ser diferente, até porque começavam-se as perguntas, as pessoas começavam a perguntar: “Por que vocês exatamente estão fazendo?” “Nós somos solidários aos nossos colegas de não sei onde” “Mas o que vocês reivindicam?” “Maior liberdade” “Do quê?” “De fala” “Aqui não tem?” “Tem. A gente não quer a questão das aulas…” “Como é que elas são aqui?” “São abertas” “Vocês são obrigados a entrar na hora que vocês querem?” “Não”, então as próprias reinvindicações começam a não ter muita consistência, mas é plenamente entendível e eles estavam corretos em fazer isso. No dia 19, eles têm que entregar o prédio, porque havia um acordo, mas entregar para quem e o quê? Então, foi um chororô porque eles tentavam estabelecer uma negociação, eu acho que era parte da mídia, eles percebem as negociações de longa duração e não se teria uma longa duração para isso. E eu lembro que eu vim para cá porque nós continuamos trabalhando em outras unidades, a gente não podia entrar na escola, mas a gente continuou trabalhando em outras unidades até em respeito àqueles outros alunos que desejavam também continuar. Perfeito. Nenhuma critica nem a um lado e nem a outro. E aí, a devolução do prédio estava prevista para às nove horas, oito, nove horas e aqui estávamos. E aí começa: “Não, temos essas exigências” “Quais são as exigências?”, eu disse: “Eu preciso entrar no prédio para saber se está tudo legal, tá tudo em ordem, mas eu tenho que entrar com duas outras pessoas” “Tá bom” “Então vamos entrar com outras duas pessoas da instituição e vocês vão com os seus colegas” “Não, não, não é mais desse jeito que a gente quer, agora a gente quer de outro jeito”, então acabamos ficando pelo menos… um sol terrível, era sei lá, 13 horas, 14 horas e a coisa não ia, eu já: “Olha, vamos fazer o seguinte, vocês entregam o prédio para quem vocês desejarem, a gente vai sair. A hora que vocês entrarem num acordo, tudo bem”, aí eles ficaram assim… jovens, né, normal. Bom, no dia seguinte, estava tudo em ordem, tava tudo bem, vale dizer que eles tomaram conta bonitinho do prédio, não teve nada. O que nós tivemos em termos de vandalismo foi na frente do prédio que hoje não mais, mas naquela época, era aberto completamente, então, ninguém pode dizer que foram eles, ou coisa que o vale, não sabemos quem, mas de qualquer maneira, aqui estava tudo em ordem, mas é claro que foi um momento de muita tensão. E aí, você me perguntou a questão para mim, foi uma grande… um grande momento porque você é colocado à prova: “O que você vai fazer? O que você, gestora vai fazer? Vai chamar a policia?”, porque muitas escolas chamaram e eu disse: “Eu não quero a policia aqui”, porque eu recebi a policia aqui. A primeira coisa: “o que a senhora quer que a gente faça? Que a gente entre aqui para tirá-los?”, eu falei: “Mas nem um dedo. Por favor, nós não precisamos, eles vão compreender a situação, eles terão o tempo, mas eu não quero a policia aqui. Eles são jovens, eles são adolescentes, eles estão experimentando a vida, o movimento politico e não pode”, então várias
vezes foi solicitado isso, nós vamos entrar, outras pessoas também exigiam isso, pais exigiam, eu disse: “Não pode, tem o tempo necessário, os professores vão conversando, a gente vai observando”, o nosso medo era se tivesse alguma coisa aqui dentro, né? No sentido de excessos e que pudessem redundar em alguma pessoa sendo agredida e tal, porque outras pessoas de fora, alheios à escola entraram nesse momento. Então, foi, eu acredito, um dos momentos cruciais para a minha gestão, que é quando você se defronta com o inusitado, o imprevisto, nenhum diretor de escola tem como possibilidade, no seu plano de trabalho, uma invasão, principalmente de alunos. Você pode até ter de outras pessoas que aí, os encadeamentos serão completamente diferentes. Na Etesp, na época da Etesp, houve uma invasão de alunos da faculdade onde nós tivemos que ser evacuados às pressas, porque a tropa de choque entrou, mas outra situação, outro contexto e aí, foi a minha… foi aquele momento mais marcante, o que fazer com essa situação que durou bastante e quais as providências futuras, como é que você se reorganizaria. Depois de uma situação dessa, seria ingenuidade imaginar que o dia posterior ou os meses posteriores fossem iguais, você passa uma borrachinha, esqueceu tudo. Não, outras reorganizações tivemos que fazer. Outras formas de agir tivemos que enfrentar, né? Mas nessa perspectiva de não perdermos o espirito da escola, outras demandas surgiram, as coisas foram se encaminhando e hoje, a gente tem, de novo a, uma situação que eu já tô esperando, também, porque é de altos e baixos, né, que eu acho ótimo também, não dá para ser numa linha continua, a vida da gente não é isso. A gente entra dentro de uma normalidade, dali a pouco, dá uma ruptura e a gente vai aprendendo com esses momentos.
P/1 – Conta um pouco como foi pra você receber, tendo em vista esse histórico de você já ter trabalhado com a FEBEM, receber a proposta de administrar o Espaço Memória Carandiru, porque faz parte desse contexto de mudança que a gente estava passando.
PAUSA
R – O Espaço Memória Carandiru, ele só vem pra gente, me dá a data correta…
P/1 – 2008, antes a gente tinha aquela situação, né?
R – Então, porque na verdade, não existia isso.
P/1 – Sim. A característica da escola de ser Torre de Babel da secretaria…
R – Algumas pessoas sabem, mas esse espaço, ele esteve muito perto a ser destruído e pavimentado completamente, mas ele ficou mais ou menos no limbo porque ninguém sabia com quem ficaria esse espaço.
P/2 – Que espaço?
R –
O Espaço Memória Carandiru. Esse espaço que teve o projeto interno da Maureen, da fotografa Maureen Bisilliat, ele foi – posso até dizer – reconstruído porque na verdade, existem algumas paredes de antigos locais, a enfermaria, a bem da verdade, são três celas, vamos dizer, que foram parcialmente ou em boa parte, reconstruídas. Mas a ideia primeira era ter sido derrubado tudo. Foi uma… e aí, eu não posso precisar de onde veio a ordem superior: “Parem o que estiverem fazendo”, porque as máquinas já estavam aí. Durante muito tempo, ficou um espaço fechado, mofado, mal cheiroso, cheio de ratos, até que a ideia era a organização desse espaço por uma secretaria criada pelo governo do Estado, Secretaria de Relações Institucionais. Essa secretaria durou quanto? Seis meses? Dois anos. Mas assim, ela durou nominalmente, porque de fato, ela nunca chegou a existir.
P/1 – E ela foi criada para?
R – Para administrar esse espaço. Findo esse tempo, havia assim, onde essa gestão ficaria? do Espaço Memória? Onde que ela ficaria? Aqui na escola, não havia um espaço para essa administração. Em outro prédio, mas aí seria muito longe. Como fazer? Dentro absolutamente insalubre. O que fazer? Qual a visibilidade? Quanto se gastaria nisso? E a, a gente foi esbarrando, a gente eu digo, o governo acabou esbarrando em impeditivos e isso realmente ficou assim: “Para quem vai?”, se a gente não tem uma verba para montar, se a gente não tem uma situação de fato, quem vai administrar, porque vale aquele ditado: “Cachorro de dois donos morre de fome”, é o Centro Paula Souza? É a Secretaria de Relações Institucionais? Então em 2008 há um Decreto passando para o Centro Paula Souza e a Secretaria de Relações Institucionais é extinta. Mas não mudou muito a situação pelo fato de ter vindo para o Centro Paula Souza, porque as dificuldades permaneceram. E digo que se a gente não tivesse uma heroína que no caso, é a Professora Cecilia Machado, que se colocou à frende desse projeto e ela bravamente, batalhou desde então para organização, sem ter nenhum tipo de projeto que a subsidiasse financeiramente, não. Foi por uma vontade mesmo e aquele olhar de historiadora de fazer com que esse espaço permanecesse vivo para contar a sua historia, né? E a Maureen também batalhou muito e ambas, junto com outras pessoas bastante importantes também, conseguiram desde então, organizar e temos i, quanto tempo Cecilia?
P/1 – Doze anos…
R – Não, não… da inauguração efetiva, um ano e meio?
P/1 – Foi abril de 2018.
R – Então, um ano, tá completando um ano a inauguração desse espaço e aquilo que era desde sempre, a abertura ao público, porque essa foi sempre a grande dificuldade. Aí, a gente encontrou a Nádia, a Professora Cecília encontrou uma mocinha tão, tão impetuosa e voluntariosa no melhor dos adjetivos, aí, como a Cecilia e ela vem levando aí a frente esse programa de acompanhar as pessoas, comunidades, alunos, enfim, que desejam conhecer o Espaço Memória Carandiru. Então, ele passou para a instituição, se tornou em principio, laboratório do curso de Museologia, não deixou de ser, mas hoje ele tem também uma função muito mais ampla que é mostrar um pouco da historia dos antigos moradores deste local, desmistificando, inclusive, aquela coisa das pessoas malvadas, ruins, né? A coisa terrível.
P/2 – Márcia, explica um pouco como é essa proposta de o espaço ser laboratório do curso e até sobre o curso mesmo de Museologia, como que ele começa, enfim…
R –
O curso de Museologia começa… primeiro, o nome não era esse, era Museu, curso Técnico de Museu. Ele foi formatado, inicialmente, lá em 2005 para os funcionários dos museus, que pessoas abnegadas a seus trabalhos, eles não tinham uma formação mais técnica e precisavam dessa formação. E aí, junto ao Centro Paula Souza que tem essa sensibilidade de ouvir sempre o mercado, aquilo que se precisa e tal, as pessoas, os gestores de museus, os técnicos, enfim, os trabalhadores buscaram ajuda do centro Paula Souza e eles formataram esse curso que teve inicio lá na Etesp. Foi um projeto piloto que se encerra no final de 2006, ele começou, se não me falha a memoria, com cerca de 30, 35 alunos para terminar com talvez, dez se tanto.
P/1 – Doze.
R – Doze. É, dois a mais, já é um número bastante…
P/1 – É muito significativo (risos).
R – Bastante, para quem termina com tão pouco. E a gente acabou tendo aí uma situação de o quê é que esse curso pretende? Porque manter um curso com uma saída tão pequena de profissionais seria bastante complicado. O espirito dele sempre foi esse: formar profissionais que possam atuar de forma técnica nos diferentes ambientes onde se organiza uma coletânea de objetos em museus públicos, ou particulares, não importa. Pra isso, foram chamadas pessoas com relevância nesse mundo, mundo bastante pequeno, bastante exclusivo e a, algumas pessoas começaram a atuar nesse projeto e a Professora Cecilia foi uma dessas pessoas, que ela é reconhecida como uma excelente museóloga, uma profissional muito reconhecida nesse mundo. E ela, que participou desse projeto inicial, vem para cá em 2007 e a gente começa uma nova etapa. A gente já sabia, ela em particular, já sabia o que não era possível trazermos para esse novo curso, que ainda continuou sendo chamado de Museu, porque se continuássemos na mesma experiência, seria fadado ao fracasso. Ele começou como um projeto pedagógico, todo projeto pedagógico tem cinco anos, entre quatro e cinco anos para ser aprovado, foi muito difícil, ela batalhou muito, muita briga em Brasília para que ele fosse aprovado enquanto curso técnico, porque ele tinha que ter uma outra formatação e depois dessa briga, em 2012, conseguimos, então esse novo curso já com uma nova nomenclatura hoje reconhecida no Brasil todo de Museologia. Não foi a única experiência que o Centro Paula Souza teve, porque outras cidades desejosas, com todo um contexto histórico e desejosos de terem ambientes organizados, ambientes de museu organizados também solicitaram o curso, mas por dificuldades profissionais, o curso acabou não acontecendo. Eu nem digo infraestrutura porque ele pode ser desenvolvido em museus, ele pode. Mas a carência que temos de profissionais é demais, é uma coisa incrível! Até bem pouco tempo, nós tínhamos dois museólogos além da Professora Cecília, mas museólogos de formação da Bahia. Então, eles saem de lá para vir para cá, porque o Estado de São Paulo não tem a formação de Museologia. Então, existem os professores pós-graduados, mas a graduação específica não tem, inclusive, nós tivemos que fazer uma adaptação na legislação para poder fazer a contratação destas pessoas. Muito difícil. Então, esses outros locais, eles não puderam dar continuidade ao curso, apesar de uma grande demanda, tem uma grande demanda esse curso, por falta de profissionais. E hoje o que se tem é a grande batalha que a Professora Cecília tem é pelo menos, parte dele se transformar em EAD, dando chance tanto a profissionais aqui de São Paulo, quanto de outros locais do Brasil poder ter essa formação profissional. Nesse sentido, o Espaço Memória Carandiru surge como este elemento de infraestrutura que faltava, quer dizer, se nós tínhamos no caso, os profissionais, nós não tínhamos exatamente a infraestrutura. Mas com tantos museus em São Paulo?
Sim. Mas como nós queríamos atingir um público noturno, como é que a gente faz com o museu? Ele não tá aberto. Como fazer com que estes alunos pudessem trabalhar determinados… por exemplo, higienização de materiais, se a gente não tinha nada formado? Como trabalhar com estas pessoas na concepção de uma exposição ou da guarda ou embalagem de um objeto? Enfim, o que fazer? Numa cidade de interior, sempre há uma facilidade porque geralmente uma população menor, as pessoas, os gestores se conhecem e podem, muitas vezes, facilitar determinados trabalhos educacionais. Em São Paulo, isso já ganha uma outra conotação. E também, além de atender a essa exigência curricular, o Espaço Memória Carandiru passa a contar com estes profissionais ou futuros profissionais que estudavam os seus objetos dentro do espaço como também, profissionais que começavam a montar esse espaço. Então, a Professora Cecilia teve uma sacada genial: “Olha, eu não tenho espaço de laboratório, ele pode ser um espaço de laboratório. Os alunos vão aprender? Muito, eles vão pôr a mão na massa. Mas eu também não tenho dinheiro para montar isso. Mas os alunos estão aqui trabalhando”, ou seja, não há de forma nenhuma exploração, muito pelo contrário, o que a gente tem é uma adequação das necessidades de formação profissional à formação de um espaço. Então, o Espaço Memória Carandiru surge nesse sentido, como um laboratório que atendeu e até hoje, atende as necessidades de formação do profissional e também, as necessidades de colocar uma comunidade em contato com aquilo que já existia. Posteriormente, a escola vai conseguindo através da Associação de Pais e Mestres montar um outro laboratório para a Museologia. Nesse interim, o Espaço Memória Carandiru começa a evoluir para um outro cenário, aí ajudado – e foi uma sorte da gente – quando se tem uma exposição na Casa Brasileira, exatamente sobre o cotidiano no Carandiru. Então, parte da cenografia que lá foi montada, dinheiro que nós não tínhamos, essa cenografia vem pra o Espaço Memória Carandiru, muitos dos objetos que foram levados para lá, que pertenciam aqui puderam, então, ter locais para serem expostos, porque antes nós não tínhamos nada. Então, eu acredito que com sorte, ainda que eu não acredite em coincidências, nada disso, mas o universo conspirou para que a gente pudesse montar de forma muito bacana o Espaço Memória Carandiru e o curso de Museologia pode caminhar de uma forma muito mais autônoma e hoje, até porque a equipe da Professora Cecilia, encabeçada aí também pela Professora Priscila Leonel, a gente passa ater um livro aqui da escola mas tudo gira em torno do Espaço Memória Carandiru. Como é que essa célula começa a dar ares diferentes até para a escola? Mesmo porque a Professora Cecília implementa uma metodologia que consegue ultrapassar e que hoje, a gente discute muito no protagonismo dos alunos nessa elaboração, nessa prática que se tem na construção dos seus próprios conhecimentos. Então, hoje o curso de Museologia é, sem sombra de dúvidas, um exemplo de como fazer o diferente, de como um curso pode se renovar e se reinventar a cada dia. Por quê que o curso de Museologia é diferente, inusitado e singular perante outros cursos técnicos? Todo curso, independente se ele é técnico ou se é um curso superior, ele tem aquilo que a gente chama do TCC que ensandece todo mundo e muitas vezes, essa rigidez, essa obrigatoriedade de entregar um produto final faz com que o próprio curso deixe de ter graça. Então, a gente vê alunos de outros cursos estressadíssimos, alunos dizendo: “Eu não quero mais isso, que droga”, enfim, e a gente não queria… a Professora Cecilia não queria isso, ela queria uma formação integral desse profissional. Então, a gente precisaria rever práticas. Primeira coisa… e isso o Centro Paula Souza sempre fez, mas primeira coisa: “O quê que eu quero para esse profissional na saída dela daqui?” “Eu quero um profissional que saiba atuar na área de gestão, ou na área expositiva, ou na área de documentação”, se tratando de Museologia obviamente. Bom, se eu quero isso, perfeito, e o Centro Paula Souza diz isso, como é que eu tenho que começar? Então, o primeiro olhar é o que eu quero que aconteça lá no final, e aí, como é que eu tenho que trabalhar do inicio para que eu consiga atingir essa meta? Bem, Professora Cecilia então pega o TCC, que nos primeiros momentos, nas primeiras edições, magníficos, aquele do museu virtual, né? Saem coisas maravilhosas, mas trabalhos personalizados e muito individualizados. Era daquele grupo, às vezes, daquela pessoa e que também se perdia. Será que nós formamos? A grosso modo, sim. Eles entregaram o TCC, que bom, ótimo. Mas era isso que a gente desejava? Não. E aí, ela inverte o processo, ela diz: “A gente vai começar a pensar nesse TCC – porque todos pensam no final do curso, né? “Vamos aqui trabalhar, ouvir, ver as aulas, no final eu penso”, mas não, ela disse: “Primeira coisa, eu vou me apresentar e vou dizer: ‘Precisamos planejar o TCC imediatamente’” “Como?” “É, vocês já estão no terceiro modulo” “Mas nós acabamos de entrar” “Problema de vocês, mas nós estamos no terceiro modulo”, então ela inverte esse processo e ela começa a pensar… no inicio, ela começa a pensar ainda meio segmentado:
os resultados não foram muito bons, melhores do que os anteriores, mas ainda não está bom. Nós temos que formar profissionais multifacetados, pessoas que vão atuar no Museu e sabemos que hoje não há mais essa: “Minha expertise é nisso e eu esqueço todo o resto”, né? Não existe mais isso. Eu posso até ter uma habilidade maior, uma competência maior, mas eu vou ter que atuar em diferentes frentes. Então, ela pensa que um TCC comum seria uma saída muito interessante. E eles começam a trabalhar. Não pensem que foi ou é fácil, porque as pessoas se revoltam: “Não vou trabalhar, não quero isso…”, mas eles vão construindo, os professores são extremamente competentes, eles vão construindo todo esse cenário e quando menos eles esperam, todos eles estão trabalhando e desenvolvendo aí, esse projeto que segue com eles do primeiro dia, do primeiro modulo até o ultimo dia do terceiro modulo. E eles começam a perceber que eles conseguem atuar de forma muito mais intensa do que se nós tivéssemos aí, uma segmentação. E é isso que eu digo que o curso de Museologia inovou, porque é muito difícil, é muito difícil se ter uma organização de curso nesses termos. Neste ano passado, 2018, nós tivemos uma experiência com um outro curso, foi dada a possibilidade para o curso de Logística desenvolver um projeto de startup no varejo pela Fundação aqui do Center Norte. E aí, nós percebemos que aquilo que nós estávamos fazendo, que era embutir um curso dentro do curso, a Professora Cecilia já fazia desde muito tempo. Então, o que ela faz é trazer profissionais, não necessariamente, professores da casa, mas profissionais de outras instituições, correlatas ou não, mas que tenham a oferecer experiências e essas pessoas são trazidas para a sala de aula e desenvolvem oficinas, desenvolvem palestras, atividades que venham compor junto ao curso de Museologia, só que elas não são colocadas de forma assim: “Traz o Joãozinho para dar uma palestra…”, não, tudo é encadeado. Então, o que a Professora Cecília junto com os seus professores faz é trazer cursos ou mini cursos dentro do curso maior para que subsidie aquele trabalho coletivo do primeiro ao ultimo modulo. Ela inverte, portanto, essa sequencia segmentada de componentes, ela integra todos esses componentes e faz com que a gente tenha um cenário… eu vou usar um termo, mas ele não é o mais correto, ele é mais uniforme, ele e mais… as coisas estão mais ligadas, os elementos, os conceitos têm não linearmente falando, mas eles têm causa e consequência. E isso vai alimentando os trabalhos futuros. Acredito que isso faça a grande diferença para o curso de Museologia, extremamente difícil de orquestrar isso, dá muito trabalho, dá muita discussão, mas os resultados têm sido os melhores possíveis, então é uma satisfação muito grande a gente olhar para uma série de instituições e reencontra alunos, fui aluno de Museologia: ‘Olha, fui seu aluna” “Minha aluna?” “É, você foi diretora enquanto eu tava estudando…”, então hoje são pessoas felizes naquilo que estão fazendo e a gente tenta buscar essas experiências e trazer essas experiências para outros cursos. A gente tem conseguido aí com alguns outros cursos técnicos, também trazer essa experiência para o dia a dia, e tem sido muito bom. Essa marca que nos faz diferença, né?
P/3 – Fiquei com dúvida de como que o acervo do Espaço Memória veio pra cá, para essa ETEC, por quê?
R – Ela veio porque uma pessoa fantástica não sabia mais onde colocar. Nós só não temos as fotos, Maureen tinha muito disso, o acervo era dela, Maureen Bisiliat cruzou essas fronteiras durante anos, fotografando o cotidiano aqui, recolhendo ou porque era dado a ela ou porque de repente, ela também se interessava
e isso vinha ou porque ia ser jogado fora e ela recolhia, enfim… acervos muitas vezes são assim constituídos. Mas ela não tinha onde colocar e aí, existia já antes da construção do próprio… da reconstrução do prédio, existia esse espaço, já era algo pensado para isso, só não era o trabalhado. Vamos dizer, tinha o deposito. E aí, ela trouxe esse deposito para cá, tanto que algumas peças estão bem ruinzinhas, porque elas ficaram muito tempo expostas a essa situação.
P/1 – Alguém pensou antes de vocês, da Maureen, quando tiver a mudança do espaço, precisamos ter o espaço para essa historia. Alguém tinha pensado isso? O que veio primeiro? Só para compor o quadro.
R – A ideia, certamente, veio primeiro, mas como a comunicação aqui e como em qualquer outro lugar do mundo sempre é muito precária e a ojeriza pelo local muito grande, vamos derrubar tudo foi uma ordem, né? Se você me perguntar quem deu essa ordem, não saberia dizer. Mas essa ideia do derrubar tudo, sim, existia. E aí, foi uma gritaria geral, com toda razão, de historiadores, da própria Maureen que ia para cima e para baixo tentando preservar. Tanto que era aquilo que eu coloquei anteriormente, parte desse local foi destruído e depois, reconstruído. É engraçado ver quando as pessoas, quando elas entram nas celinhas, né, que era a enfermaria, como eu disse, eles ficam olhando para a pia, por exemplo, né, eles ficam olhando, porque a pia tá nova, bonitinha: “Não é da época” “Não?” “Não, nem o pedestal, não. Nem sei se tinha Deca naquela época” (risos). Mas foi uma corrida e eu lembro disso, em 2006, foi uma corrida pra: “Coloca tudo no lugar, coloca tudo no lugar” e eu tava assim: “O quê que tá acontecendo?” “Não, não, é que a gente estava derrubando tudo e aí, veio uma ordem para parar tudo”. E aí, eles reconstruíram, ao entregarem o prédio no final de 2006, início de 2007, já tava lá, as coisinhas, então é bem cenográfica a coisa. Então, a ideia de se ter sempre um espaço para o estudo daquilo que foi aqui, ela sempre existiu e eu acho que sempre esteve presente com a Maureen, que batalhou muito e até hoje, batalha muito. Foi atendida? Não. Teve o espaço, mas não do jeito que ela imaginava, né, que ela tinha imaginado já todo um local propício, precisaria se ter a parte, por exemplo, de ar refrigerado para que as fotos… quantas fotos ela tinha? Sa milhares!
P/1 – Ela tem mais depoimentos, né, Má? As fotos são…
R – Mas tem muitas fotos e elas foram para o MIS, né? As fotos foram para o MIS?
P/1 – As fotografias dela foram doadas para o MIS e vieram pra cá só as gravações.
R – A ideia era trazer essas fotos, esse acervo, também pra cá. E nós ficamos muito temerosos: como é que nós vamos receber, porque se todas as pecas são suscetíveis a intempéries e tal, e mesmo à falta de uma refrigeração adequada, de uma purificação adequada, mas ainda a gente consegue trabalhar m pouco, as fotos não. As fotos, se a gente deixasse nessa situação, de fato, elas estariam perdidas. Elas foram para o MIS e eu quero acreditar que lá, elas estejam… eu quero acreditar que lá estejam sendo tratadas com o devido respeito que merecem. Enfim, até hoje, a gente recebe de muitas pessoas fotos que a gente encaminha, que a gente não sabe exatamente como tratar já que são fotos. A gente percebe que é da época, mas não consegue dizer de que ano, não tem outras referencias, mas a gente encaminha para… a Professora Cecilia encaminha aí para quem é de direito. Então, sim, respondendo a pergunta muito objetivamente, existia o interesse e a ideia de se ter um local para expor o acervo, mas nunca existiu, de fato, um dinheiro que pudesse movimentar. Por isso, o curso de Museologia veio através do trabalho dos professores e de voluntários, eu também tenho que dizer que o trabalho do professor nesse sentido é voluntário, é que acabaram construindo, organizando esse espaço.
P/3 – O futuro. Daqui pra frente… porque ficou bastante entendido como que ele foi construído e foi muito importante falar do curso de Museologia, mas daqui pra frente, como que vocês estão pensando?
R – Bom, é assim, a minha preocupação sempre foi montar equipes de trabalho, lógico que se eu tiver algum talento, todo mundo tem, né, mas se eu tiver algum talento, esse talento é de construir equipes, confiar muito no trabalho das pessoas. E eu acredito ter organizado equipes de trabalho que certamente darão… entendem e por entenderem, darão continuidade aos trabalhos diferentes aqui executados. Nesse sentido, o Espaço Memória não foge a esse cenário. Continuaremos a pedir, continuaremos a solicitar verbas, continuaremos a buscar possíveis concursos, necessariamente parcerias, mas não significa que esse espaço vai ter autonomia financeira para os próximos passos, mas ele continuará existindo, tenho certeza porque as pessoas que aqui estão, continuarão e assim como eu vou montando ao longo do tempo equipes de trabalho e que abraçam a ideia, também no caso, o curso de Museologia, os seus colaboradores abraçam a ideia e ele continuará. Não dá pra gente simplesmente, porque aí também seria terrível, não é, imaginar que por mais que é um fato, das pessoas, algumas não desejarem pensar sobre o que era, existem muitas outras que dizem com propriedade: “A historia não pode ser sedimentada, a historia não pode acabar num buraco. A gente precisa dela até para entendermos para onde caminhamos. Sendo assim, o Espaço continuará vivo e forte e com muitas outras atividades e colaboradores, certamente.
P/1 – Também acho (risos)
P/2 – Márcia, ele é administrado, existe uma administração específica, um espaço?
R – Não.
P/2 – Como que se dá essa gestão, também objetivamente…
R – Claro. Então, é assim, ao pertencer ao Centro Paula Souza e do Centro Paula Souza a ETEC Parque da Juventude, a administração maior cabe, compete
ao diretor da ETEC. Mas na medida em que o diretor, a gestão… vamos chamar de gestor, o gestor da ETEC entende que os cursos necessitam de autonomia, eles caminham, não me parece que o grupo de Museologia vai se desfazer, tá? Então, objetivamente, há uma – vou usar um termo pesado, mas é esse mesmo – uma outorga de poder para que o curso de Museologia siga organizando as suas atividades, siga gerindo as atividades do Espaço Memória Carandiru. Num futuro distante, bom aí, eu já não tenho. Se for perguntar para a gestora: sem dinheiro como é que faz? É, sem dinheiro não vai dar. Então, a gente, realmente tem esse desejo que as pessoas incorporem essa ideia da necessidade de se preservar a historia. E não só com o Espaço Memória Carandiru, com a escola como um todo, com a biblioteca como um todo, com o parque como um todo, quer dizer, na verdade, a ideia é que as pessoas se conscientizem cada vez mais
que elas fazem parte de uma sociedade e a historia não é alguma coisa que a gente bota lá na estante e esquece, ela é viva, ela é continua, somos nós que a construímos. Eu sei que é triste em nosso país, em particular que a gente não valoriza, mas eu acredito também que a Educação, ela tem essa missão de mostrar o valor de cada segmento, cada pessoa, cada coisa que existe na sociedade. E também se não acreditasse nisso, não daria para mais de 40 anos, trabalhar na Educação, porque é esse o tempo que eu trabalho na Educação.
P/2 – Para quem disse que não ia ser educadora…
R – Então, eu comecei em 1976, então lá se vão mais de 40 anos trilhando aí a educação e aquilo que eu vi na FEBEM, eu posso garantir que é só através dela que a gente consegue mudar os rumos da nossa sociedade, do mundo. Não é privilegio do Brasil, é do mundo. A gente só consegue mudanças substanciais educando as pessoas.
P/2 – Vocês querem perguntar mais alguma coisa?
P/1 – Não, tá superlegal, acho que fechou bem, né?
P/2 – A gente só costuma perguntar se nós não perguntamos alguma coisa que você quisesse falar na sua historia registrada.
R – É uma pergunta sim, que eu fiz a Cecilia quando ela me falou, eu disse. Olha gente, eu tenho tempo de vida, experiência não, fui vivendo. Assim como os meus pais me ensinaram, eu fui vivendo e procurando tirar o melhor do dia a dia e principalmente, aprendendo com todas as pessoas. Eu aprendo tanto com os alunos daqui, de outros locais, aprendo tanto com os professores. Eu tenho uma menina aqui, a Priscila Leonel, olha a carinha dela, é um bijuzinho, novinho, depois você mostra, tá? Depois você foca aí. E é uma doutoranda. Olha o que essa menina me ensina cada dia! É impressionante.
A gente senta lá de sábado, que eu venho de sábado aqui e ela dá aula num curso chamado “Agentes do Brincar”, olha como a nossa escola é toda diferente, né? “Agentes do Brincar”, e aí, ela senta, fala da experiência dela, experiência de vida, do que ela aprende, do que ela aprendeu, como é a visão de mundo dela e eu fico assim, extasiada, falo: “Gente, como é que uma menininha tão nova pode ter tanta coisa importante para falar?”. Aí, eu me deparo com a Cecilia, mas aí brincadeira, porque superculta. A Cecilia tem uma cultura tão grande, tão grande, tão vasta, que é complicado falar com ela. Eu não sei se a Priscila já notou, é extremamente difícil. A gente tá falando algo com a Cecilia, de repente, ela já tá em outro mundo, ela tá respondendo outra coisa. “Cecília, mas não foi isso que eu te perguntei” “Ah não? Mas eu já te respondi” “Não Cecilia” “Então tá”, e ela tá pensando assim, em mil coisas ao mesmo tempo, ela tá falando, ela é… quando eu era pequenininha, a gente dizia que era o artista de mil instrumentos, era o musico dos mil instrumentos. A Cecilia é isso. É a artista, porque ela é também das mil coisas, das mil mídias, é inacreditável o que ela faz. Então, eu aprendo muito.
P/2 – E a Nádia também?
R – A Nádia é impressionante! A Nádia é uma graça de pessoa.
P/1 – É um bebê, né?
R – Pena que ela não está aqui, mas ela é uma pessoa incrível, uma voluntária inacreditável o que ela faz, a disponibilidade dela, não tem tempo ruim. Eu acho isso fantástico. Por isso que eu achei curioso, eu disse: “Eu não tenho nada para contar, eu só tenho a aprender”, eu disse que se é que eu tenho algum talento, o talento né formar equipes, eu acrescentaria uma coisa, eu acho que eu tenho um dom de facilitar as coisas para os outros. Eu acho que isso é bacana. Eu procuro facilitar. Outra coisa eu não tenho, mas se é possível fazer, eu procuro não colocar empecilhos para que as pessoas possam se desenvolver da melhor maneira possível e sempre nesse sentido. Se a pessoa tá feliz, as coisas vão correr de um jeito muito melhor.
P/2 – E você? Tem algum projeto daqui pra frente? Algum sonho?
R – A Deus pertence (risos). O futuro a Deus pertence. Comigo, toda vez que eu planejo muito, dá tudo errado. É inacreditável, quer dizer, claro que é horrível uma gestora falar isso, até porque depois de amanhã, participarei de uma entrevista do processo de qualificação. Se eu chegar e falar isso eu vou estar reprovada. “Como assim você não planeja? Planejamento é importantíssimo! Mas em vida pessoal, eu planejo, dá errado. Planejo fazer aquela viagem, não funciona, dá tudo errado, não era para ser mesmo. Planejo comprara aquela roupa, não vai ter o número, não vai ter a cor, acabou. Não dá. Então, eu estou à disposição da instituição, que tanto me ensinou, quase 30 anos aqui. Se houver uma oportunidade de um projeto bacana, eu topo. Eu não tenho medo dos desafios, isso eu nunca tive, eu aceito os desafios com cara e coragem. Quando eu vim para essa escola, eu vim sozinha e com Dona Maria, quer dizer, não tão sozinha, ela tava junto. Dona Maria, mãe de um aluno lá da Etesp, trabalhou na APM e ela estava há 21 anos fora do mercado de trabalho. E a, ela disse assim: “Professora, a senhora tá indo, eu queria tanto ir trabalhar lá com a senhora, conheço o seu trabalho”. Eu falei: “Dona Maria, a senhora me desculpa, mas a escola não tem dinheiro, nós não temos a APM que pudesse contratar, não tem dinheiro”, ela disse: “Mas eu tô pedindo trabalho, não emprego” “Tá contratadíssima”, e até hoje ela tá aqui conosco, ela trabalha na APM. Então, quando eu vim para cá, saiba que só essa pessoa quis vir. Administrativamente, ninguém queria vir pelo local, porque era muito grande, porque ninguém sabia se ia dar certo, porque eu tinha um curso, eu vim com três cursos pra cá: Informática, que sempre foi meio capenga, porque depois do primeiro, segundo modulo, tem uma evasão barbara, então… Museu que era natimorto e Enfermagem, que eu não tinha a menor noção, que é dificílimo, o curso de Enfermagem é dificílimo! E nós viemos sem nada, sem nenhum equipamento, só tinha umas mesinhas e umas cadeiras, não tinha nada. Os professores parafusaram mesas e cadeiras pra gente começar, não tinha nada aqui, gente! O primeiro dinheirinho que entrou na APM, com a Dona Maria como gestora, ela pegou… juntou papelão e vendeu papelão. Até hoje, nós temos lá, e a pessoa que comprou era um carroceiro e ela, a primeira coisa… a pessoa, ela é extremamente seria, muito responsável, ela disse: “Preciso de um recibo”, aí o carroceiro ficou olhando: “Como?” “Preciso de um recibo” “Moça, eu sou carroceiro, eu não tenho recibo” “Em qualquer papel está válido”, ele escreveu, fez lá os garranchos dele, assim, até hoje a gente tem, era o quê? Cinco reais, mas tá lá. Foi o inicio de tudo. Então, nunca tive medo de aceitar desafios. Foi assim com a FEBEM: “Você vai dirigir uma escola”, eu saía de lá 11 horas da noite, todo mundo dizia: “Você é louca de sair do Complexo Tatuapé assim, sozinha”, eu nunca tive problema nenhum.
P/2 – Eu sei que a gente já tava encerrando, mas não dá para encerrar sem perguntar se você quer contar algum episodio desse momento, dessa época, que expressa bastante isso que você falou.
R – Olha, é assim, o que eu vi acho que as pessoas precisariam ver também e execrar o que se passa. Eu vi jovens judiadíssimos. Eu vi jovens sem nenhum tipo de esperança. Eu vi olhares perdidos. Eu não entendia como é que se deixava jovens… isso para qualquer pessoa, mas em particular, para aquelas pessoas, ficarem com olhos num vazio aterrorizados e fazendo dobraduras, até hoje, eu tenho uma coisa, eu não sei se vocês já viram as dobraduras que os detentos fazem. Eles ficam de cócoras com um olhar assim, aquilo é mecânico, por horas a fio, por horas a fio. Eu vi um caso de um jovem também, tinha uma instrutora e essa pessoa ficava sozinha, junto com essa instrutora, era um cubículo e ele ficava colocando contas num fio e aquilo por horas a fio para fazer pulseirinha. E nada… não que essas artes manuais por assim dizer não sejam interessantes, mas não é para alguém passar 24 horas por dias, sete dias por semana, 30 dias por mês, 365 dias por ano. E era isso que acontecia. Quando o Centro Paula Souza começa a oferecer cursos, eles começaram a vislumbrar uma possibilidade. É evidente que existiam pessoas
complicadas e que precisavam e precisam de tratamentos rigorosos, talvez, para o resto da vida. Mas uma parcela muito significativa não poderia estar submetida àquilo, independente do que as levou até lá. O que não se podia ter era aquela situação. Eu vi sequestros dentro da própria unidade, eu dizia: “Mas como é que se sequestra alguém dentro da unidade?”, eles ficavam escondidos. Alguém sequestrava um jovem e ele… toda vez que os agentes buscavam, ele era mudado de lugar. As atrocidades que eles passavam terríveis.
P/2 – Eu perguntei nesse sentido para expressar de uma forma mais descritiva como a proposta de vocês fazia diferença. Mais nesse sentido que eu pergunte, entendeu?
R – A proposta fazia todo sentido, porque eles não podiam se locomover pelo espaço. Muito grande, aquilo era uma antiga fazenda. Eles eram levados de carro. Se o professor instrutor não ia até a unidade, os casos mais suaves por assim dizer, eles podiam vir para a escola que era lá dentro, também. Mas eles não podiam se locomover a pé, eles eram levados de carro. E durante aquele período, uma hora, duas horas, três hortas, o tanto que era o período, lá eles se libertavam. Nós dávamos cursos de Informática, particularmente de Informática, ou de Gestão, mas praticamente de Informática. E eles chegavam, eu os recebia de manhazinha, sete e meia da manhã e era impressionante, eles saiam com o rosto muito franzido. Na hora que eles saíam, claro, respiravam outro ar e quando eles entravam, o rosto mudava completamente. E lá, eles tinham as aulas de Informática, eles escreviam poemas, várias
coisas, eles trabalhavam. Eram jovens como outros quaisquer. Eu nunca vi diferença. Quando terminava o período, eles se despediam… eles têm um jeito de cumprimentar, na escola eles relaxavam muito. E aí, me impressionava muito quando eles diziam: “Professora, o nossos período de céu acabou, vamos voltar para o inferno”. Isso me marcou muito. Então, eu sabia que aqueles cursos que mantínhamos lá faziam toda a diferença Os cursos foram em número bastante grande, nós conseguimos capacitar muitos jovens num curto espaço de tempo, mas tanto a ação educativa quanto a emocional fizeram grandes diferenças, pelo menos naquele momento. E um outro momento que reconhecíamos, aqueles meninos naquela oportunidade, acredito que isso também se dê em outras unidades hoje, sempre reconheceram muito o papel do professor, eles têm muito respeito pelos professores. Quando houve então, a grande rebelião, a última grande rebelião, eu lembro de eu estar num laboratório, onde tinha panificação e tal, eu nunca vi sair tanta faca, facão, era uma coisa, eu fiquei assim… porque para quem não tá acostumado, eu paralisei. E uma das pessoas, não recordo o rosto, dizia assim: “Fique calma, nada vai acontecer com a senhora”. Eles fizeram um grande cordão ao meu redor e me levaram de onde eu estava para a rua e me colocaram em proteção, por assim dizer, fora. Foi algo extremamente marcante. Não é dizer: “Eles são todos bonzinhos ou mauzinhos”, são pessoas. São vidas. E como tais, merecem todo o respeito. E todo o trabalho da gente pra fazer com que essas pessoas voltem a integrar a sociedade, tá? É isso.
P/2 – Vários momentos tocantes de toda a sua historia. A gente também sempre pergunta o que você achou desse momento. Pra mim, eu já expressei, vários momentos, realmente…
R – É assim, eu não acho que sou merecedora de deixar qualquer testemunho aqui, até porque existem milhões de outras pessoas com historias de vida incríveis. A única coisa que eu acho assim, que todo mundo tem que reafirmar, pelo menos aqueles que entendem que isso é possível, que a Educação é a nossa grande meta, é o nosso grande caminho, é onde a gente pode conseguir a salvação. Não existem salvadores da pátria. Existem pessoas que estão dispostas a batalhar pela Educação, tá? Não vejo outra saída nisso. E eu agradeço muito, agradeço a disposição de vocês e se algo puder tocar alguém, que bom. Que bom. Obrigada.
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