Entrevista de Berenice D'arc Jacinto
Entrevistada por Luiz Egypto
05/04/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número SINPRO_HV020
Transcrito por Aponte
Revisado por Luiz Egypto
0:00
P/1 - Boa tarde, professora Berenice! Muito obrigado por ter aceito nosso convite. Eu queria que a senhora c...Continuar leitura
Entrevista de Berenice D'arc Jacinto
Entrevistada por Luiz Egypto
05/04/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número SINPRO_HV020
Transcrito por Aponte
Revisado por Luiz Egypto
0:00
P/1 - Boa tarde, professora Berenice! Muito obrigado por ter aceito nosso convite. Eu queria que a senhora começasse, por favor, dizendo o seu nome completo, local e a data do seu nascimento?
R - Boa tarde Luiz! Então, eu sou a Berenice, Berenice Darc Jacinto, eu nasci em Unaí, Minas Gerais, em 23 de novembro de 1970, mas eu estou em Brasília desde os dois anos de idade.
00:32
P/1 - O nome dos seus pais, por favor?
R – Meu pai é Osmar Jacinto da Silva e minha mãe Maria Madalena Monteiro.
00:45
P/1 - Qual era a atividade do seu pai?
R - Meu pai era agricultor, ele a vida inteira esteve em fazenda, produzindo, principalmente sementes.
01:06
P/1 - E a sua mãe?
R - A minha mãe, ela trabalhou em serviços gerais em hospital, mas ela foi mais dona de casa, ficou um tempo fazendo trabalhos domésticos, mas em casa.
01:31
P/1 - A senhora tem irmãos?
R - Tenho seis irmãos. Tem uma irmã mais velha que é a filha do primeiro casamento do meu pai, e tem os outros cinco com a minha mãe, do mesmo pai e da mesma mãe, são três homens e quatro mulheres.
01:52
P/1 - Qual é a sua posição nessa escadinha aí?
R - Olha, é uma escada longa. Eu sou a penúltima mais nova, depois de mim tem um outro irmão, mais novo, eu tenho irmãos mais velhos, são cinco mais velhos e o mais novo.
02:19
P/1 - A senhora conheceu os seus avós?
R - Olha, eu não tive o prazer de conhecer todos os meus avós, eu conheci e convivi com a minha avó materna, que morou conosco até que faleceu, e ela era um pouco, nessa época minha mãe trabalhava, então era uma avó que era muito mãe, tanto que a gente não a chamava de avó a gente já chamava de Mãezinha, que era meio que o apêndice da nossa mãe em casa quando a mamãe não estava.
02:55
P/1 - A senhora se recorda do nome dos seus avós, tanto maternos quanto paternos? Vou repetir a pergunta. A senhora se recorda do nome dos seus avós tanto maternos quanto os paternos?
R - Sim, meu avô materno era Emídio dos Santos, meu avô paterno era José e a minha avó paterna era Ana, e minha avó materna, essa com quem nós convivemos muito tempo, o nome dela era Salmita, e ela, por isso, por ter o nome, também, tão difícil de falar, então a gente o tempo todo a chamava de Vózinha ou de Mãezinha, que era segunda mãe lá de casa.
03:57
P/1 - A senhora poderia repetir o nome dela, por favor?
R - Salmita.
04:07
P/1 - Rolava na sua família histórias dos seus avós, de onde eles teriam vindo, o que eles faziam? A senhora ouviu histórias sobre os seus avós, ou não?
R – Assim, muito, meu pai é um contador de histórias, meu pai conta histórias até hoje, assim, da nossa família, dos nossos antepassados. A minha avó paterna, ela era filha de índios, o meu avô paterno negro, filho, claro, de escravos, a minha avó materna também com certeza neta de escravos, e meu avô materno era português, então assim, descendente de português, o pai dele era português, então era uma mistura muito boa da minha família, negros, índios e portugueses bem a cara do povo brasileiro. Então, por isso eu sou essa mistura que gosta de colares, sempre, eu nunca saio sem brinco, sem colar, sem um batom, essa coisa alegre da composição, bem diversa, que é uma população brasileira que é em sua maioria né, então eu tenho na minha família, negros, índios e portugueses, tudo misturado.
05:29
P/1 - Muito bom, muito bom! A senhora falou que foi para Brasília com 2 anos de idade, o que que motivou, a família foi toda para Brasília?
R – O meu pai era, eu disse que meu pai era um contador de causo, mas ele também é um cara que viajou muito, assim, ele viajava a cavalo, em eras muito antigas, ele viajava a cavalo, e meu avô também era muito de viajar, meu avô esteve em Brasília no início da sua construção, e ele se assustou um pouco, ele contava para a gente que ele ganhou lotes em Brasília, pra você né, e ele rejeitou porque ele viu como era na construção, com trabalhadores na construção, não sendo cuidados quando adoeciam né, então ele disse que ficou impressionado com aquilo foi-se embora de volta para Minas. Meu pai era um pouco como o pai dele, ele montava a cavalo e saia pelo Brasil afora, ele conhece uma boa região de Minas, quase que inteira, e conhece uma parte do Brasil viajando de caminhão, viajando a cavalo e ele mexia com roças, com fazendas, então quando ele percebeu a dificuldade em Minas ele procurou um outro lugar, que fosse para ele mais adequado. E aí como ele já tinha histórias em Brasília e sabia né, histórias do pai, ele resolveu vir para Brasília. Então veio para Brasília também, trabalhar com roça, com plantação no Estado de Goiás, então tudo muito próximo, e aí ele optou por ficar em Brasília, nós ficamos aqui e ele na fazenda, então a gente se adaptou a uma vida nova, com ele ainda trabalhando fora. Na verdade, no início ele ainda foi trabalhar com construção em Brasília, ele quando chegou aqui, até arrumar uma fazenda para comprar, ele ficou trabalhando com obra, ele foi trabalhar na Santa Bárbara, teve oferta daquelas coisas de Brasília, você vai trabalhar no Senado, ele também recusou. Porque era um homem que gostava de terra, e aí não quis aproveitar, porque hoje poderia ser uma grande oportunidade, mas ele preferiu ficar trabalhando com o que ele gostava bastante que era plantação, e minha mãe criou basicamente todos os filhos, enquanto ele estava na roça trabalhando. Mas fez assim, muito sucesso, foi um homem que ganhou prêmio por maior produtividade rural e ele é muito encantado com plantação, então sempre esteve mais distante da gente por isso, porque a roça é muito longe para gente deixar de estudar, e minha mãe tinha uma convicção, os filhos dela todo estudariam, e aí ficamos nós na cidade ele na roça.
08:27
P/1 - E onde vocês foram morar? Qual a primeira imagem que a senhora guarda do lugar onde foram morar?
R - Nós viemos morar em Planaltina - DF, e eu lembro que nós chegamos, eu moro, inclusive hoje, nessa região. Nós chegamos e na entrada da cidade tinha um museu da cidade, que hoje na verdade que é museu, mas na época era residência e essa casa, era uma casa grande, de janelas azuis e hoje ainda é assim. Planaltina tem muita tradição, esse setor que eu moro que é o setor tradicional, tem muito essas coisas de guardar as tradições, para você ter uma ideia, eu moro na região onde foi a primeira igrejinha do Distrito Federal, a igrejinha católica, primeira e mais antiga igreja do DF, e quando eu cheguei aqui, nós chegamos exatamente nessa região da igrejinha. Eu me lembro muito das casas, brancas de janelas azuis e tinha uma região bem povoada, para nós que viemos de uma cidade menor ainda que Planaltina, isso era possível, a gente ficou assim encantado com a organização da cidade, exatamente isso. Mas eu era muito menina também, me lembro de terem negado água para gente, quando nós chegamos meu pai pediu água em uma das casas e as pessoas negavam a água, porque assim, família inteira num caminhão de mudança, mas depois nós conhecemos bem as famílias, inclusive desta região.
10:13
P/1 - A senhora se lembra da casa onde foi morar, como é que ela era, como é que ela se distribuía?
R – Me lembro, olha que agora eu estou vizinha dessa casa. Eu mudei em vários lugares em Brasília, e voltei agora para mesma rua que eu morei quando eu cheguei em Planaltina. Eu moro a duas casas da casa que eu vivi pela primeira vez em Brasília, e era uma casa grande, uma casa de adobe ainda, assim, aquelas casas de roça, aquelas casas enormes. Para você ter uma ideia, a gente tinha quarto de brinquedos, eu e minha irmã, tão grande que a casa era. A gente tinha fogão à lenha também, e era uma casa que tinha vários quartos e tinha um quintal enorme, que a gente corria o dia inteiro pelo quintal, minha mãe e minha avó plantavam horta, e a gente se divertia muito pelos espaços do quintal da casa, era muito grande, era assim, quase um sítio, de tão grande que era.
11:12
P/1 - Sua mãe distribuía tarefas domésticas para a filharada?
R – Sim, mais adiante, quando nós ficamos adolescentes, aí minha mãe distribuía as tarefas domésticas, a organização da casa ficava por conta das filhas, nossa irmã mais velha morava fora, porque quando a gente morava na roça ela foi muito nova para cidade para estudar, então ela continuou morando fora e os meus irmãos estudavam quando a gente chegou. Então quando a gente começou a estudar mais adiante, quando a gente começou a fazer o ensino médio, minha mãe determinava as tarefas, então a gente cuidava da casa, e aos finais de semana a gente cuidava da casa e da roupa. Minha mãe era danada, botou os filhos para cuidarem da vida já logo cedo.
12:18
P/1 - Eu lhe perguntava professora, como é que essa menininha, a menina Berenice se divertia, nessa casa, nesse quintal, quais eram as brincadeiras da sua infância?
R – Nossa, eu e minha irmã a gente brincava muito de boneca, eu acho que eu brinquei de boneca até uns 12, 13 anos, mas a gente brincava, a gente tinha casinha de árvore, a gente tinha campo de futebol, a gente tinha um campo de futebol que a gente dividia com os meninos da rua, mas assim, na escola a gente chantageava os meninos, “se contar que eu brinco de futebol lá em casa, ninguém mais entra no meu campinho”, a gente era doida pelo campinho, então a gente chantageava os meninos, “se contar que eu jogo bola, eu não deixo mais você entrar no meu campinho”, então era dona da bola e dona do campinho, então respeitava. E a gente brincava de tudo, pique pega, pique esconde, a gente tinha muita árvore em casa, muita fruta, a gente subia nas arvores, fazia casinha da arvore e brincava de boneca também, a gente brincou de boneca até muito grande, eu e minha irmã, e como a gente era muito próxima uma da outra, diferença de idade muito pouca, muito pequena, a gente brincava o tempo todo, a gente estava sempre uma companheira da outra e meus irmãos tão bem assim, mas meus irmãos eram muito soltos, a tal da velha história, “as meninas a gente cria em casa e os meninos a gente cria para o mundo”. Os meninos estavam sempre brincando na rua, de futebol com os amigos, e faziam uma série de coisas, e vendiam pipa, faziam pipa e vendiam, essas coisas, e a gente estava sempre em casa, a gente tinha um quintal enorme, então a gente se divertia. E a gente brincava de brincadeiras de aventura, sempre em cima da arvore, a gente fazia balanço, a gente se diverte muito quando criança, eu não posso reclamar da minha infância não, foi de muita brincadeira, muita invenção, muita criatividade também.
14:20
P/1 - E a sua primeira escola, qual foi?
R – A minha primeira escola foi uma escola tradicional, porque era uma escola de padres e freiras e que passou a ser escola pública, hoje ela tem uma letra, um símbolo como as escolas de Brasília, é o Centro de Ensino Fundamental 02 Planaltina, mas que na verdade ninguém conhece assim, todo mundo conhece como Escola Paroquial. Por que Paroquial? Porque ela era da igreja, e aí ela se tornou uma escola pública e eu estudei nessa escola, foi a minha primeira escola, quando eu cheguei na escola ela parecia enorme, hoje eu vou lá e falo: meu Deus, que escola pequena. E ela era uma escola extremamente tradicional, a região que eu morava é muito tradicional. Minha cidade teve uma coisa interessante, começaram vir pessoas de fora, tiveram loteamentos, tinha sempre um estranhamento, porque esse setor tradicional muito pequeno, das famílias, dos nomes tradicionais de Planaltina e chegava gente de fora, e as pessoas que chegavam de fora, tinha sempre um conflito. Então a gente estudava nessa escola que era muito tradicional e é basicamente toda de filhos de pessoas da parte tradicional da cidade, até hoje assim, ficou essa coisa, de que a Escola Paroquial é da parte tradicional. E as pessoas que vinham depois dos bairros novos, quase não entravam nessa escola. Porque tinha essa coisa do tradicionalismo, que tem até hoje na cidade, que nem parece Brasília, de tão tradicional que é. Eu vivi um bom tempo fora de Planaltina e quando eu voltei para cá eu fiquei relembrando essa coisa, de como é tradicional a minha cidade, de como é cheio de questões ligadas aos nomes das pessoas, às ruas com nome de pessoas, muito interessante.
16:18
P/1 - Nesse período houve alguma professora, algum professor que tivesse marcado a sua lembrança?
R – Ah, sim, a minha primeira professora, a professora Neusa, que eu tive o prazer esses dias de encontrá-la, até tenho fotos com ela, posso depois passar para vocês. A minha primeira professora, eu cheguei na escola, na verdade eu estava alfabetizada, porque quando os meus irmãos começaram ir para escola eu era mais nova, meu irmão mais novo que eu, ele nasceu bem depois de mim, então eu já estava no início da adolescência com 10 para 11 anos, quando o meu irmão nasceu, tinha 10 anos. Então os meus irmãos iam para escola e eu ficava sozinha, e nós tínhamos uma vizinha, que ela gostava de brincar de escolinha, de ensinar os meninos da rua. E aí ela me ensinou a ler e escrever, então quando eu entrei na escola, a minha primeira professora foi difícil de saber quem seria minha professora, porque eu fiquei de sala em sala, porque como eu já estava alfabetizada, elas não conseguiam me colocar numa sala, e como eu tinha 6 anos, eles tinham mais dificuldade ainda, de colocar uma criança de seis anos com uma criança de oito. E naquela época pedagogia não tinha essa fundamentação do ciclo, de vocês estar num ciclo de idade, de aprendizagem. Minha primeira professora, o nome dela era Neusa, interessante que ela estava grávida, então quando ela saiu para ter o neném veio outra professora, a professora Lila que também é minha vizinha, ela está na mesma rua que eu, aqui há duas, três casas da minha casa, a professora Lila, eu a vejo sempre, e ela é muito querida, toda vez que a gente se encontra, “nossa, você não mudou nada”, eu falo: hummm professora, alguns anos. Eu tive duas primeiras professoras, vamos dizer assim, na primeira série, que foram professoras que estão hoje ainda na minha vida e que são muito queridas.
18:22
P/1 – E como que seu deu daí por diante a sua trajetória educacional?
R – Eu só estudei em duas escolas: a Escola Paroquial até o final do que hoje seria o 9ºano e depois fui para Escola Normal, escola extremamente tradicional, tudo muito tradicional aqui, a Escola Normal também assim de uma tradição. À época tinha prova para entrar na escola normal, e eu tinha dúvida se eu queria fazer Escola Normal, mas daí, as minhas amigas todas foram fazer a Escola Normal. Minhas amigas todas indo e minha irmã foi fazer, então falei: bom, acho que eu vou ser professora também, vou para essa Escola Normal. E a gente fez o exame de admissão, na época tinha para o curso normal, exame de admissão, nós passamos, fomos super bem classificadas, tanto eu como minha irmã. E a gente foi para Escola Normal, e assim, a gente se encontrou, era uma escola de dia inteiro, a gente estudava muito, era escola de aplicação com as didáticas, então a gente tinha que estudar mais que quase todo mundo, para ser professora a formação era em dobro, era o que parecia assim para a gente, quando a gente começou. Então a ideia de formar professor na Escola Normal, era extremamente levada a sério, não era com a gente tem, e eu não estou desfazendo dos cursos de pedagogia, mas uma professora normalista, ela tinha uma formação extremamente cuidadosa, paradidática, principalmente de séries iniciais, então era muito cuidadoso, a gente estudava quase que o dia inteiro, fazia o estágio junto com a formação, então era uma escola realmente de aplicação, a gente estudava as disciplinas, e a gente também já fazia aplicação do aprendizado, então muito interessante a escola normal. Eu me lembro do fim das escolas normais, quando a gente discutiu isso, tinha muita gente saudosista da escola normal, dessa coisa da formação diferenciada para professores, principalmente de séries iniciais, que era esse cuidado de ter aplicação e o trabalho ao mesmo tempo.
20:38
P/1 – Quer dizer que a sua vocação para o magistério foi construída na prática?
R – Foi construída na prática. Na verdade eu queria fazer o Jornalismo, logo de início, eu gostava de escrever, gostava muito de ler e escrever, então eu queria ser jornalista, eu não queria ser professora. Quando eu fui para o curso normal eu me identifiquei muito, “eu gosto disso”. E aí fui gostando mesmo, eu fui fazer estágio, muito nova também, e já gostava muito de lidar com as crianças, de ensinar, e aprendia muito com a meninada, então eu gostava muito disso, e foi uma decisão bem acertada eu acho. Depois eu fiz Jornalismo no CEUB e fiz Pedagogia na UnB, e na verdade no final eu acabei ficando na escola, acabei ficando com a Pedagogia.
21:35
P/1 – E qual foi o seu primeiro trabalho profissional como professora?
R – Terminando o curso normal, acho que eu não tinha nem 18 anos, um amigo me falou: vamos fazer contrato temporário. Numa cidade aqui do estado de Goiás, do lado, eu falei: vamos! Aí ele me levou para esse contrato temporário e a gente nem sabia direito. Eu fui para lá e fui trabalhar numa escola do estado, substituindo uma professora que estava grávida, eu achei muito bacana, que eu me apaixonei, mas eu trabalhava com adolescente, nem podia né, meio que professor leigo assim. E eu fui trabalhar com adolescentes, e fiquei muito apaixonada com o trabalho que eu fazia lá, fui trabalhar à noite lá e logo em seguida eu me encontrei com uma professora minha de Geografia, que abriu uma escola particular, também em Planaltina de Goiás, ela falou assim: vamos trabalhar comigo, eu me lembro de você, você sempre foi excelente aluna, vai ser uma excelente professora, vamos trabalhar comigo. Aí eu fui trabalhar na escola com ela, e aí eu fui trabalhar com as crianças, aí fiquei durante o dia trabalhando com as crianças. Só que eu tive um problema, a escola particular, salários baixos né, e na época eu me lembro que a gente vivia muito na escola, a gente passava o dia na escola, e um dia a gente mexendo nas correspondências dentro dos livros, nos encontrarmos um documento, que era um documento do sindicato do patronal, que mostrava que tinha dado um reajuste para gente, que nós não tínhamos recebido. Aí eu resolvi questionar esse reajuste: “Como assim, a gente teve um reajuste, o setor privado teve um reajuste e nós não tivemos?”. Aí eu fui questionar, eu estava com dois anos já de trabalho na escola, de carteira assinada e tudo. Eu falei: “Que absurdo, está errado! Vamos fazer uma reunião”. Aí reuniu os professores no final de semana, conversei com eles e expliquei do reajuste, aí chamamos a direção para conversar, ela ficou muito chateada comigo, eu me lembro a época, e ela me chamou para conversar, falou: “Olha, nós vamos dar o reajuste, mas para dar o reajuste nós precisamos cortar, e para cortar nós vamos cortar pessoas que não têm filhos, que sejam novos, então você vai ser cortada, porque você não tem um vínculo familiar, a sua família não depende de você”. Na verdade, essas palavras queriam dizer: “Você vai ser cortado porque instigou a luta”. Então foi um pouco isso, aí eu fui demitida; ela pediu: “Não precisa nem cumprir o aviso prévio”. Também a gente tinha uma relação muito boa. Então acho que ela ficou muito assustada, quando a gente reivindicou os valores, que nem era muito, acho que era menos de 3%, 4%, me demitiu assim, pediu até para eu não cumprir o aviso prévio. Que eu acho que eu estando na escola fortalecia o movimento, que estava sendo consolidado na escola, e também eu tinha que encontrá-la, porque ela dirigia a escola, estava lá todos os dias, e ela ia precisar me encontrar. Eu achei que para ela também era dolorido me ver todos os dias lá, porque eu sei que ela gostava muito de mim. Mas foi um pouco essa minha primeira história do movimento sindical, inclusive. Foi essa coisa de descobrir o reajuste dos professores que não tinha sido dado pela escola, minha primeira luta sindical.
25:31
P/1 – Também forjada na prática né. E como é que seu deu a sua aproximação com o SINPRO?
R – Eu sai da escola e fui trabalhar, trabalhei com contrato temporário numa escola pública do Distrito Federal, teve a primeira contratação temporária assim que eu me lembre, já que eu estou sem trabalho, eu vou entrar de contrato temporário na escola. Então eu fiz o processo seletivo de contrato temporário, fui trabalhar em contrato temporário na escola CAIC [Centro de Assistência Integral da Criança e do Adolescente], uma escola que estava começando, os CAICs, em 1993. A escola estava começando, então era assim um projeto muito parecido com os projetos do Brizola no Rio, que eram os CAIC no DF e era assim, tinha alimentação para as crianças, as crianças ficavam o dia inteiro, era integral. A minha primeira experiência com a escola pública e com muitas crianças, porque a escola privada era pequenininha, que é onde eu trabalhava. E quando eu cheguei lá era um negócio muito interessante, porque os alunos ficavam o dia inteiro, mas quando abriu os CAICs as escolas fizeram assim: bom, vamos fazer assim, vamos pegar todos alunos que dão trabalho e vamos botar no CAIC, foi um pouco isso que aconteceu assim, então tinha muita criança com todas as dificuldades. Aí eu pensei, a gente tem que organizar algumas coisas aqui nessa escola, tinha a autoridade do diretor que era demais, a gente começou a se organizar um pouco na escola assim, e eu sempre falava em nome do grupo, e aí eu tinha uma professora, tinha sido professora da minha irmã na verdade, a professora Olgamir. E ela era a diretora do SINPRO e visitava a minha escola, eu era apaixonada com ela, e a mãe dela era minha vizinha de perto, e eu era apaixonada, conforme o que ela falava com as pessoas, como ela se comunicava. E ela foi visitar a minha escola, aí a primeira visita dela a minha escola, do Sindicato dos Professores, eu achei o máximo: “Poxa é por aí, acho que a gente precisa organizar o povo, então vamos organizar aqui na minha escola”. Aí os professores [sugeriram]: “Mas a Bere pode ser delegada sindical? Porque ela é contrato temporário”. Ela falou: “Poder não pode. Ela pode ajudar, mas ela não pode representar a escola”. Mas quando ela saiu, o pessoal [disse]; “Você está eleita”. Porque toda reivindicação da escola, que tinha, era eu que ia conversar com o diretor, e eu era meio que temida demais, eu ia conversar com o diretor. Mas eu tinha uma coisa boa, que era assim: sempre nas minhas aventuras de brigar com o diretor, antes eu reunia o grupo; eu sempre tive essa coisa do partilhar com o grupo, de coletivizar primeiro. Quando eu ia falar com o diretor, eu já tinha ido conversar com o grupo primeiro. Então eu comecei a fazer um pouco porque essa coisa do delegado sindical, na verdade eu tinha sido aprovada já no concurso, estava esperando ser chamada, então, quando eu fui chamada, eu fiquei na mesma escola, no CAIC que era um monstro, e era um monstro assim de dimensões políticas, pedagógicas muito forte. Quando eu passei no concurso já fiquei lá no CAIC, virei delegada sindical de fato, depois vieram as eleições diretas para diretor, gestão democrática, uma luta do sindicato, uma luta que eu já estava envolvida nela, e a gente fez a eleição da direção da minha escola. Nós tivemos um problema de mudança de gestores. O governo tentando colocar uma direção a qualquer custo na escola, usando direitos de governador, a gente resistiu, não deixou. A gente fez eleição na escola, mandaram três interventores a gente barrou os três interventores, a gente manteve a pessoa que a gente queria. Então a gente fez umas lutas interessantes no movimento e muito organizada e muito orientada pelo Sindicato dos Professores. Nós tivemos vários problemas, inclusive com direção eleita que tinha uma posição muito rígida, muito antidemocrática, a gente chamava o sindicato e quebrava o pau na escola. Porque tinha uma coisa que a gente achava que era muito importante, que era, o debate coletivo, a construção coletiva, e quando a direção era muito autoritária a gente sempre fazia enfrentamento, de forma muito honesta, muito honesta, a gente fazia enfrentamentos e sempre politicamente a gente resolvia a situação. E muitas vezes, foram politicamente inclusive barrando a posse de diretores, a gente chegou a barrar posse de diretor da escola, porque era autoritário, chegou com o autoritarismo, sem dialogar com o grupo, e o CAIC tinha muita coisa, era muito pulsante esse aspecto político e pedagógico, tanto que era uma escola que os pais faziam fila para ter os filhos lá. Porque pedagogicamente também era muito bom, era um grupo muito forte pedagogicamente e politicamente também, de formação, de organização, de estrutura. Foi um processo bem educativo para mim, eu acho que contribui muito, tanto que depois nesse processo de eleição, a nossa vice-diretora teve um problema de saúde e teve que sair, e a gente tinha que indicar uma outra pessoa. Aí o grupo acabou que me indicando, e aí quando eu vi, não era nunca minha ideia ser direção da escola, e aí nessa coisa de mudança de gestão, mas tinha que indicar uma vice-diretora e tinha que ser indicação, o governo tinha dado autonomia para indicação, mas pelo grupo. Aí o grupo me indicou, eu fiquei sem ter outra resposta que não a que aceitava, porque é muito fácil também a gente barrar posse de diretor, a gente brigar, e na hora que o nome da gente é colocado, a gente vira vidraça, a gente tem dificuldade. Mas aí eu fui para a vice-direção da escola, fiquei no governo democrático popular [gestão Cristovam Buarque], eu fiquei na direção, quando o governo democrático popular perdeu a eleição no DF, eu entreguei meu cargo, e os pais fizeram fila na escola dizendo para eu ficar, os professores, mas eu tinha uma convicção comigo, eu só podia abraçar o projeto pedagógico político daquele que eu acreditava. Então o governo que ganhou do governo democrático popular, era um governo de um campo de direita, muito tradicional no DF e não tinha nada a ver com a minha prática pedagógica, nem política. Aí eu abri mão da direção, entreguei meu cargo e eles ainda me deixaram na escola uns três meses ainda, com o novo governo, e eu pedindo para sair. E aí entreguei a minha exoneração e fui para minha sala de aula, com a mesma naturalidade que eu fui para a direção, eu voltei para minha sala de aula. Fui coordenadora da escola durante um tempo, mas muito nesse aspecto. Até que eu fui para o SINPRO, até que eu fui eleita, primeiro fui eleita para o Conselho de Delegados Sindicais do SINPRO, depois participei de um processo de eleição do SINPRO, numa chapa, que nós perdemos a eleição na época e depois fui para o processo de eleição de novo, na chapa desse campo político que está no SINPRO, e aí fui leita diretora do SINPRO, trajetória de luta.
32:12
P/1 – Esses embates aos quais a senhora se referiu foi no processo de transição de Cristovam Buarque para Joaquim Roriz, confere?
R – Exato!
33:23
P/1 – Eu queria uma reflexão sua sobre o papel e o desempenho da luta sindical quando temos no governo, um governo aliado, do mesmo lado, como é que se dá essa contradição da luta sindical com outro “status quo” governado por um aliado?
R – Não é fácil, porque assim, se espera que quando a gente tem o governo do campo aliado, democrático popular, que as coisas fiquem muito fáceis, e na verdade não é bem assim. A gente tem que saber separar bem o papel do Estado e o papel do sindicato, e assim, não é tranquilo, porque umas pessoas acham que como o governo democrático, então é mais fácil você fazer a luta, mais fácil você fazer a greve, por exemplo, é mais fácil você fazer o movimento. E não é. É governo que tem as responsabilidades com o Estado, tem as responsabilidades, os recursos e nem sempre os recursos financeiros são possíveis de facilitar o trabalho sindical. Então assim, a gente tem às vezes, que até nos governos democrático-populares, até que a gente tem que ser mais duro com o governo muitas vezes, porque se você pegar a história do SINPRO, por exemplo, nós fizemos greves muito maiores nos governos democrático-populares do que nos governos à direita, mais à direita. Acho que é maior greve que nós fizemos, que eu ainda me lembre, foi de 72 dias, se não me engano, já no governo Cristovam. E assim é obvio que é muito mais fácil você construir o diálogo, até porque você parte do entendimento que a educação é vista como prioridade, que a saúde é vista com prioridade, mas o recurso do Estado é o mesmo, muitas vezes a deliberação de como usar o recurso é que é diferente. Mas o movimento sindical, e a gente sabe, que a gente também é muito mais cobrado quando o governo é o governo do campo democrático popular, porque a história do sindicato ela é construída muito sobre a luta dos trabalhadores, muito na perspectiva dos partidos que estão à esquerda, muito nessa perspectiva da luta dos trabalhadores, nessa construção. Então um sindicato ele tem sempre uma linha muito mais democrático popular, os seus membros, se estão ligados a algum partido, é um partido democrático, não é um partido de direita,
é um partido de esquerda. Então se espera, se busca, que a gente consiga transportar os nossos discursos para a prática administrativa, e nem sempre isso se dá, porque é isso, o Estado ele continua sendo Estado, e num estado capitalista, não é governo democrático popular numa revolução. Então ainda tem-se que lutar com os processos administrativos em torno de financiamento, educação que não está só no Estado Nacional, inclusive. Então quando você vai para uma pauta sindical, uma pauta da categoria para um governo democrático popular, você pode ter certeza que vai ter muitos problemas, como tem no governo de direita, pela perspectiva de orçamento, pela perspectiva de tudo que se tem que fazer, mas não é tão tranquilo. E aí a gente é muito mais cobrado também, pela base da categoria, porque sabe, e o entendimento é esse, se o governo é de esquerda você tem que cumprir, você tem que fazer, responder o sindicato de forma positiva sempre, e não é bem assim. Então a luta ela é o tempo todo você tendo que fazer o equilíbrio, entre o sindicalista e o militante político, isso é fundamental, e é a responsabilidade, acho que o dirigente ele é muito responsável pela tarefa que está cumprindo, ele não está cumprindo uma tarefa individual, ele está cumprindo uma tarefa que foi dada coletivamente, de forma eleita, da gestão democrática que é o sindicato também, tem eleições, e você está representando uma categoria, uma categoria que tem desejos corporativos, de crescimento, de salário, de condições de trabalho. E esta é a luta que se tem diária com o governo, seja ele de qual campo ele seja, de direita, de esquerda, ou democrático popular, ou centro esquerda, você vai fazer uma luta com o governo sempre. É o patrão, é a gente fazendo aqui o papel do negociador com o patrão. Vai ser sempre patrão, no sentindo do capitalista, então é sempre patrão mesmo. Então tem que ter todo o cuidado, o respeito com a pauta da categoria, e ter todo o cuidado também com a questão mais geral. A pauta de um governo de esquerda, para um governo de direita é muito mais prejudicial, porque as pautas trabalhadoras, por mais que elas não sejam vencidas nos governos democrático-populares, elas são ao menos respeitadas. Hoje não se tenta fazer uma desconstrução total como a gente vê nos governos de esquerda. Eu tenho dito aos meus colegas, basta olhar a Câmara Federal: como é que votam os trabalhadores, como é que vota o patronado, como é que vota o empresariado, como é que o governo se posiciona em relação à pauta dos trabalhadores. Para você ver a diferença de um governo para outro, ou da dureza da luta sindical, num governo democrático e num governo de direita.
38:56
P/1 - Professora que lembrança a senhora tem daquele episódio no qual houve uma assembleia que votou numa expulsão de 9 dirigentes do SINPRO por conta desse embate aí, dessa contradição. Que lembranças a senhora têm desse episódio?
R – Sempre é muito duro você ver essa coisa da expulsão, não é tranquilo para gente; politicamente enfraquece não só um grupo ou outro, enfraquece o sindicato. Eu estava na base da categoria, ainda era delegada sindical da escola, estava já nas lutas das greves, delegada sindical pela cidade, então eu estava sempre muito envolvida com o sindicato. Então eu conhecia todos os membros, basicamente todos os membros que foram expulsos naquela assembleia, e para mim ficou muito o sentimento de derrota da categoria. Porque você tem ali a vitória de certa maneira, do governo, do Estado, porque quando o sindicato chega ao movimento de expulsar membros, é porque a crise é tão grande, é tamanha, que perdemos todos, ali não tem ganhadores nem perdedores. Da direção que eu estou dizendo, mas tem uma categoria inteira perdendo, enfraquecendo um instrumento de luta que é o sindicato, então eu sempre penso no episódio da expulsão, como um episódio... De claro, hoje a gente tem que fazer... O dia seguinte a gente tinha que fazer autocrítica e críticas e autocríticas, mas eu sempre acho que quando tem um negócio como aquele, uma expulsão, eu acho que perde a categoria como um todo, enfraquece o movimento sindical como um todo. E aí independentemente de quem tem razão, se não tem razão, aconteceu, então quando acontece, eu vejo como um processo de enfraquecimento da categoria, enfraquecimento do sindicato, acho que a gente tem formas e inúmeras de tentar resolver as divergências internas, penso eu que foi duro para nossa categoria, foi duro para organização política do sindicato e vai ficar na história do sindicato. Claro, hoje tem gente que nem lembra mais, parte da categoria que não se lembra, mas eu fui para casa naquela assembleia, com sentimento de derrota, derrota do sindicato, porque a gente não conseguiu se diluir um problema interno e foi levado para categoria de forma que ela se posicionasse, muitas vezes nem sabendo que estava se posicionando.
41:48
P/1 – A senhora saberia precisar a data dessa assembleia?
R - Se não me engano, não sei, mas me parece meio que setembro, alguma coisa próximo disso de 95, 96, olha, eu não sou boa com as datas, mas foi nos anos ou 95, 96, alguma coisa nessa época assim, e me lembro que deve ter sido mais depois de julho, não foi antes disso, acho que agosto, setembro, não sou boa com as datas não, inclusive, boa! Vou resgatar isso nas minhas histórias para me lembrar exatamente quando foi, se bem que pode ter sido no primeiro semestre, porque no segundo semestre... Porque normalmente nossas lutas, nossa agenda de lutas de salário são no primeiro, no máximo, estourando e neste segundo semestre. Então deve ter sido por aí, nessa fase assim, se você puder me relembrar eu vou achar ótimo.
43:00
P/1 – Como é que a senhora avalia os desafios que são colocados para o SINPRO hoje?
R – Nós nunca tivemos num momento tão difícil, eu penso que assim, nós vivemos de 2015 para cá, diversos desafios, desafios muito duros. Nós temos mais de seis anos sem nenhuma conquista salarial para categoria, e estamos sempre fielmente na luta, é um sindicato que não esmorece, é um sindicato que é firme na sua condução, firme na sua luta, uma categoria que é poderosa, essa nossa de professores, professoras. O sindicato dos Professores tem uma história extremamente honrosa, de muitas batalhas, mas eu penso que nós nunca vivemos um momento tão difícil. Primeiro pela própria conjuntura, a conjuntura nacional, e que vem num crescente, desde 2016, após o golpe, eu penso que nós vivemos um golpe, e quando a gente falava de golpe, a gente achava que era um golpe numa presidenta. Não, a gente viveu um golpe na democracia, nós sofremos um golpe para a classe trabalhadora, nós sofremos um golpe como organizadores das lutas, porque quando você derruba um governo eleito democraticamente e nas condições que foi o da presidente Dilma, você desconstrói uma política. E isso [reflete] em todos os espaços democráticos e da organização dos movimentos sociais, e desde então a gente percebe que os movimentos sociais de forma geral, têm sofrido perdas enormes, e o movimento sindical muito mais. E a gente vê reforma trabalhista, reformas na educação, eu posso citar o ensino médio, como uma reforma que traz uma derrota para os estudantes e para os trabalhadores e a gente tem a perspectiva de uma reforma administrativa muito dura. Daí eu penso que a nossa luta sindical ela tem passado por momentos difíceis, de tentativa de desconstrução do movimento sindical, desconstrução dessa referência que é o movimento organizado de luta. Hoje nós temos professores, professoras, orientadores, orientadoras, novos concursados que entram sem saber a história de seu sindicato. É também um problema nosso? Também é um problema nosso. De criar essa referência de memória para os nossos trabalhadores, e está aqui de repente uma das formas de fazer a memória, a gente trazer sempre o sindicato como espaço de referência para os trabalhadores e trabalhadoras. Eu me lembro quando eu entrei na categoria, primeira coisa que a gente fazia era sindicalizar; hoje, se o sindicato não for atrás a gente não sindicaliza. A gente acha que é o sindicato que nos deve, e não a gente deve à luta do sindicato. E esse momento de desconstrução que a gente tem atravessado, tem sido muito nessa perspectiva de desconstruir tudo que fortalece os trabalhadores, de desconstruir o serviço público, desconstruir o movimento sindical. Primeiro você corta o financiamento, depois você corta formas de financiar, formas de organização. E isso tem se dado de forma muito dura desde o golpe: o governo Temer começa, o governo Bolsonaro intensifica uma grande luta contra os movimentos organizados, contra os movimentos dos trabalhadores que é quem fortalece, quem dá o caminho, quem direciona uma categoria. Então você acabar com os movimentos corporativos, você destrói o direito de luta, o direito de organização dos trabalhadores, você transforma os espaços organizados em um trabalho de mais fácil ataque, categorias com mais fácil ataque. Se vocês lembrarem bem, a categoria de professores foi atacada duramente pelo governo Bolsonaro desde o primeiro momento, quando era candidato ainda, ele fez com que essa categoria se transformasse numa grande inimiga do Estado, e assim, a retirada de recursos da educação é tentativa de desconstruir leis que nos beneficiavam, de descumprir o piso nacional. A gente ganhou agora, foi uma vitória o FUNDEB, mas foi uma vitória que o governo tenta questionar o tempo todo na hora do financiamento real. Então há uma luta na desconstrução do movimento sindical organizado, dos movimentos sociais organizados e como categoria de professores se dá uma tentativa de desconstrução da categoria de professores, de botar os profissionais da educação em evidência como inimigos da nação, aquele que ideologiza, segundo o governo Bolsonaro, é aquele que faz o tipo de educação que te interessa, não que interessa ao Estado, como se nós não fossemos legislados e orientados por leis federais e distritais, por Plano Nacional de Educação, por Plano Distrital de Educação, enfim como se nós tivéssemos indo para a sala de aula fazer o que quiséssemos, que a gente não tivesse legislação que orientasse o nosso trabalho pedagógico o tempo todo. A gente tem esperança, porque nós somos aqueles da esperança, mas tem sido tempos difíceis e que quiçá fiquem mais difíceis ainda, porque além de tudo isso, ainda tem pandemia para a gente derrotar, tem vírus para gente derrotar, não se derrota vírus sem derrotar, penso eu, o instrumento que mais nega a vacina, que mais nega a história da ciência, que não o presidente que está na República hoje.
49:22
P/1 – É duro professora, mas é o que nos oferece. Eu queria que a senhora refletisse sobre o seguinte, a senhora está diante de um jovem, de uma garota, de um rapaz que decidiu ser professor, o que a senhora diária para eles?
R – Não desista! Primeiro o país precisa de grandes professores, de grandes profissionais da educação, a educação, eu ainda acredito que a educação é aquela que transforma a realidade, transformar a realidade de um estudante, de um menino, de uma menina e transforma a realidade da sua comunidade, e depois transforma a realidade da sua cidade, e transforma a realidade do seu país. É a partir da educação que nós podemos transformar tudo, então se você tomou decisão de ser professor, professora, não desista, o seu papel pode ser tão ou mais importante do que qualquer outro profissional, porque a partir da educação a gente transforma muito a realidade de onde nós vivemos, às vezes do nosso bairro, pequenininho ali, às vezes do nosso país inteiro. Então é ainda a partir da educação que nós podemos transformar, e se é a partir dela, tentar adiante dela, fazendo papel de professor, professora, realizando essa tarefa árdua, tem uma tarefa fundamental, então não desista ser professor nesse país ainda vale a pena. Quando você pega o seu pequeninho lá, que não conseguia ler, ele lembra as primeiras palavras, quando ele disser as primeiras palavras e quando ele passa num vestibular, se torna um grande médico, um grande enfermeiro, como nós temos hoje nessa batalha contra covid, você vê um aluno seu lá na medicina, lá na saúde, vencendo essa pandemia, quando você vê um profissional, enfim, uma outra pessoa que você formou, uma pessoa que está dando um show em sala de aula. Quando você vê qualquer profissional, porque todos passam pela escola, e ele foi resultado da sua luta, é muito gratificante, você vê que pode transformar, que apesar de todas as dificuldades, vale a pena ser professor, vale a pena ser professora nesse país.
51:35
P/1 – Professora, sem lhe pedir nenhuma bola de cristal, mas como é que a senhora enxerga o futuro da educação no Brasil?
R – Pergunta difícil! Bom, eu penso que nós vamos ter a partir da pandemia, que mexeu muito com a nossa realidade, nós vamos ter desafios, desafios grandes, para vencer. E entre eles está a nossa forma de organização, a nossa visão da nossa sala de aula, do nosso espaço pedagógico, porque para nós é muito confortável nosso espaço da sala de aula, nosso quadro branco, o nosso pincel ou as nossas tecnologias sendo usadas paulatinamente. Outra coisa a gente ter que atravessar um momento como esse, em que a gente tem que pegar um instrumento tecnológico e transformar em excelentes aulas, sem a presença física do professor diretamente com nossos estudantes, na sala, naquele nosso espaço diário, do conforto da nossa sala de aula, e a gente tem que utilizar desses vários mecanismos para chegar até os nossos estudantes. É claro que nós vamos voltar, e vamos voltar e tomara que seja muito rápido, apesar de eu achar também que a gente ainda tem um bom ano aí pela frente para vencer essas dificuldades, mas a gente mesmo depois da pandemia, a gente vai ter que reinventar muita coisa na roda da escola, no nosso conforto pedagógico. A gente vai ter que reinventar formas de trabalho, de organização pedagógica, de organização sindical, das nossas lutas, elas vão passar por grandes movimentos. E este movimento, sem dúvida nenhuma, ele precisa ser construído coletivamente, ele precisa ser construído democraticamente, com a escuta das famílias, com a escuta dos estudantes, com a escuta dos profissionais, os de fora também, e com a escuta de todos nós, cada um de nós que fazemos a educação. Então a educação, a tendência é que permaneça com um papel importante, apesar de que a gente sabe que nem sempre é tão valorizado, mas ela permanece como um processo importante para as nossas crianças e adolescentes. Ela vai precisar ser reconstruída, reinventada de várias formas. E eu acho que uma forma de fazer e a gente enquanto profissional de educação, que está nas escolas já, repensar a nossa prática, repensar as nossas formas de fazer e transformá-las em algo chegue rápido para os nossos estudantes, mas também que chegue de forma construída, dialogada. Eu confio muito que o diálogo ele possa construir um processo de uma escola que possa dar conta dos desafios que nós vamos ter pela frente. Pode ser esta a primeira grande pandemia que eu, na minha história de vida me lembre, mas pode ser uma entre várias outras, que a gente vai se lembrar nesses tempos. Então a gente tem que se preparar para isso, e a escola precisa se reinventar para isso também. A escola deu uma chacoalhada, e a gente vai precisar fazer deste de limão, uma grande limonada, para a gente fazer da escola o melhor espaço de acolhimento, de dar conta dos objetivos centrais da escola, sem esquecer que a escola tem um papel social importantíssimo, e a gente não pode abrir mão dele, que é o conhecimento.
55:16
P/1 – Perfeito professora! Que voltar um pouco para o lado pessoal, qual é a sua atividade hoje?
R – Hoje eu estou diretora do SINPRO, 40 horas da minha vida, que na verdade se estende para 60, 70 e estou coordenadora da Escola Classe 16 em Planaltina. Então eu estou fazendo coisas que são interessantes, estou na direção do SINPRO, mas eu não sei da escola, então eu estou na escola, nesse papel de coordenadora, onde eu posso também botar em prática isso que eu gosto tanto, que é de estar na escola, de me sentir parte dela e muitas vezes isso me ajuda muito. Quando eu ouço uma reclamação de um professor no SINPRO, eu estou vivendo essa situação na escola, então isso me ajuda muito a pensar, a refletir sobre a situação de quem está na escola, e eu fico muito feliz também. Então vários problemas que a gente enfrenta o dia inteiro no Sindicato dos Professores, de professoras e professores, muitos problemas didáticos pedagógicos, mas também de problemas administrativos e eu chego na minha escola e eu me sinto muita à vontade, é um espaço que eu gosto muito também. Então hoje eu estou na direção do SINPRO e estou na escola à noite como coordenadora.
56:36
P/1 – A senhora é casada? Tem filhos?
R – Não! Eu sou solteira, não tenho filhos, foi uma opção minha de não ter filhos, claro que quando você passa dos 40, opa! É uma pressão muito do trabalho também, as mulheres no movimento sindical, e eu fui muito nova para o movimento sindical, movimento político e sindical, eu me senti muitas vezes, entre ter filhos e continuar um trabalho e ter mais uma etapa de trabalho, enfim, eu pensei muito em não ter filhos, eu achei que era uma decisão muito acertada, mas de vez em quando eu também acho que o trabalho, e a minha tarefa sindical, e minha tarefa política, também pesou muito na minha decisão, hoje eu tenho isso com muita clareza, mas não tenho arrependimento, não tive filhos e foi uma decisão de não ter mesmo. Estou solteira, no mundo de pandemia isso é difícil também.
57:45
P/1 – Estou razoavelmente satisfeito. Alguma coisa que a senhora gostaria de ter dito e eu não estimulei a senhora a dizer?
R – Eu termino então assim dizendo, da importância que é o sindicato, acho que no sindicato passei, passamos vários de nós, eu acho que é uma experiência incrível, estar na direção do sindicato e fazer parte, não só estar na direção, mas fazer parte dessa luta sindical. É
muito importante, é estar vivo num coletivo que toma decisões na sua categoria, e eu penso que ainda nos conforta ter um espaço de resistência e de luta como um sindicato, e eu acho que principalmente fortalecer esse espaço, mesmo você estando lá na escola, se filiando, se sindicalizando, até você estar na representação do sindicato, são tarefas que são imprescindíveis para quem quer ver crescer a sua categoria, quem quer fortalecer a sua categoria, tem que fortalecer o seu sindicato. Então eu acho que é fundamental o fortalecimento dessa entidade, que hoje tem uma direção, amanhã tem outra, mas eu sou parte dela, inclusive mesmo depois de aposentada. Ela me representa desde quando eu entro nessa categoria, até quando eu saio dela aposentada, mas eu continuo na luta. E outra coisa que eu acho que é fundamental, o sindicato ele tem um papel, um papel importante na luta coorporativa, mas ele um ente fundamental também social, eu quando eu olho assim nessa pandemia, por exemplo, quando SINPRO assegura junto com a população, que não voltemos às aulas, que as crianças não voltem à aula, isso salvou muitas vidas. Eu fico pensando assim, a dimensão e o tamanho que o sindicato tem para a população do Distrito Federal, bem como tem para São Paulo, Minas, enfim, onde tem um sindicato organizado de professores e professoras, a importância que ele tem como papel social, não só como agente da transformação e do pensar da categoria, mas também da sociedade. É um sindicato que ele precisa ter esse papel tão fundamental que é parte da sociedade, é um órgão que precisa ser respeitado pela sociedade, porque a gente trabalha muito pela melhoria da educação, a gente passa muitas vezes mais tempo dialogando sobre as questões pedagógicas, do que sobre as questões financeiras, e eu digo isso, de quem está numa cadeira do sindicato que dialoga o tempo todo sobre a política educacional, então a gente interfere na política educacional diretamente, a gente interfere diretamente nos planos de educação do DF, no Conselho de Educação, este papel que o sindicato tem, para além das questões corporativas é fundamental também para a sociedade do Distrito Federal, como é para todo o Brasil, onde tem o sindicato da educação organizada, ou sindicatos de trabalhadores organizados, eles passam a ser bem mais do que brigam pela corporação, mas que briga pelas questões sociais. Então acho que o sindicato tem um papel importantíssimo para a luta das pessoas como um todo, não só dos trabalhadores.
1:01:02
P/1 – Sem dúvida é o que transcende a pauta corporativa, não é verdade. Eu queria que a senhora me dissesse como é que se sentiu dando esse depoimento para nós?
R – Muito bacana, acabou que eu fui relembrando coisas da minha história de vida, mas como essa história de vida se entrelaça com a luta política e sindical, relembrar coisas, você perguntou da minha família, dos meus avós, são coisas que a gente fala sempre, mas nem sempre para muito para lembrar, então foi muito bacana fazer essa memória da minha vida, da minha luta, mas também ligada muito, vinculada muito com a minha luta política, com a minha luta sindical. Eu sou uma pessoa de família simples, de família humilde, estudei em escola pública uma vida inteira eu sou uma daquelas pessoas que eu posso dizer, que eu posso estar em qualquer lugar. Sou mulher, negra, e é aquela bela história, “mulheres podem estar onde elas quiserem”, graças a luta politica, muito ao sindicato também, eu sou uma mulher negra e posso ser o que eu quiser e estar onde eu estiver, então eu estou, inclusive hoje, na direção do sindicato, estou na direção da confederação nacional dos trabalhadores de Educação, e muito em prol do que eu construí no SINPRO, no que eu aprendi no SINPRO, das experiências que eu tive. Então foi muito bacana fazer essa releitura da minha história pessoal, mas também da história política, isso me faz inclusive sentir que eu represento muito as meninas que jogavam futebol com os meninos, mas que escondia que jogava futebol represento muito das meninas que querem ser professoras, talvez nem quisessem, mas de repente descobrem que podem fazer muita coisa bacana sendo professora e principalmente que a política não é um espaço só de homens, ou um espaço sujo como tentam fazer parecer, mas um espaço que pode dar a gente inclusive uma representatividade, uma representação, para inclusive poder falar, falar com outras mulheres, falar para outros adolescentes, jovens da importância que tem o papel da educação o que eu acabei de fazer com vocês aqui. Então foi muito bacana, muito bacana mesmo, tomara que esse seja um trabalho que de frutos brilhantes ai pra gente, que a gente possa resgatar muita história de vida das pessoas, mas também a história de vida desse sindicato, que pra mim é um dos sindicatos mais importantes que a gente tem no Distrito Federal, é o mais importante do Distrito Federal, ele mexe com a sociedade do Distrito Federal como um todo, sem nenhum demérito a qualquer outro sindicato, mas ele é um sindicato muito importante.
1:03:45
P/1 – Para finalizar, quais são os seus sonhos professora?
R – Interessante esse negócio de dizer os seus sonhos. Mas a gente nunca deixa de sonhar com o futuro brilhante para as pessoas, quando eu digo brilhante eu digo no sentido de você ter uma sociedade mais justa, onde caibamos todos. Nos dias de hoje em que eu tenho dito que ficou muito fácil você dizer que é preconceituoso, machista, que é racista, porque você tem uma representação no maior cargo do país, de alguém que não tem vergonha de dizer que é preconceituoso, que é machista. Meu sonho é que a gente ainda tenha uma sociedade onde todos e todas se respeitem inteiramente, em que a gente não tenha homofobia, que a gente não tenha racismo, que a gente não tenha feminicídio, que a gente não tenha homens que maltratam as mulheres. No Brasil a cada 1 minuto, a gente tem uma mulher ser violentada por ser mulher, uma pobreza que está crescendo muito que tem cara, tem cor e tem gênero. Então acho que a gente precisa, é isso que eu penso para o futuro, possa ter condições de vida, de saúde e educação igualmente para todos e todas, e que a gente possa ter, a criança quando nasce já pensar que ela tem direito a educação, direito a saúde, por igual, sem diferença, então eu sonho com um Brasil mais justo, mais solidário em que caibamos todos com nossas diversidades e nossa alegria, porque é um país colorido de alegrias, um país de tamanho gigantesco, continental e com tanta diversidade, então que caiba todas as diversidades num sorriso às vezes de uma criança. Então é sonhar com um país que possa dar condições a todos brasileirinhos e brasileirinhas que nasçam. E que eu possa viver muito para ver tudo isso, que eu possa viver pelo menos 100 anos com muita saúde, e vacina para todos, para a gente primeiro vencer esse momento difícil que nós estamos vivendo.
1:06:16
P/1 – Eu só tenho a lhe agradecer a disponibilidade do seu tempo, os insights da sua memória e pelas belas histórias que a senhora contou para nós, muito obrigada viu, foi um belo depoimento.
R – Obrigada a Wini e Alisson, obrigado a vocês pela paciência. Espero Alisson que tenha dado certo, essa internet, que a gente não perca muito.Recolher