Memória da Literatura Infanto Juvenil 2008
Entrevistada por Thiago Majolo, Thiago Belotto, Licia e José Santos
Depoimento de Nelly Novaes Coelho
São Paulo 06/08/2008
Realização Museu da Pessoa
Depoimento MLIJ_HV018
Transcrito por Denise Yonamine
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – Para começar, Nelly, queria primeiro que você dissesse o nome completo, local e data de nascimento.
R – Nelly Novaes Coelho, nasci em São Paulo, 17 de Maio de 1922; o ano da Semana de Arte Moderna, veja só (risos), o que mais?
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Meus pais: papai era Gastão Novaes e a mamãe Silvina Novaes, duas pessoas maravilhosas, foram grandes pais, grande mãe, grande pai. Eu nasci... eu sou paulistana, nasci no Largo da Concórdia, que hoje é um cimentado cheio de ambulantes vendendo coisas. O Largo da Concórdia era pertinho da estação do Norte, era um Largo lindíssimo como hoje ainda é. Um pouco lá Praça da República, ele tinha um teatro onde se apresentavam as grandes companhias de ópera, era o teatro Colombo, era um teatro lindíssimo que foi derrubado. Tinha um bebedouro, porque na ocasião, nos anos 1920, as mudanças eram feitas por carroça, então puxadas por cavalos, e havia, portanto, no Largo da Concórdia um bebedouro enorme, lindíssimo com desenhos em Art Nouveau a volta toda, sabe? Não sei que metal seria aquele porque era meio esverdeado, eram flores, eram assim tipo barroco. Um bebedouro enorme onde os cavalos iam beber, compreende? Então está ligada a esse problema dos cavalos. Um menino, nós estávamos brincando perto, né, e um menino disse um palavrão e a vovó que estava perto ficou brava e disse “só quem lida com cavalo pode dizer palavrão”. É curioso que isso ficou marcado, sabe, eu tenho horror de palavrão, eu acho que é uma coisa que atinge fundo, você lida com... é uma coisa muito feia, guardei isso muito, sabe? Minha avó era uma mulher sábia, tinha mil histórias sempre....
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Entrevistada por Thiago Majolo, Thiago Belotto, Licia e José Santos
Depoimento de Nelly Novaes Coelho
São Paulo 06/08/2008
Realização Museu da Pessoa
Depoimento MLIJ_HV018
Transcrito por Denise Yonamine
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – Para começar, Nelly, queria primeiro que você dissesse o nome completo, local e data de nascimento.
R – Nelly Novaes Coelho, nasci em São Paulo, 17 de Maio de 1922; o ano da Semana de Arte Moderna, veja só (risos), o que mais?
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Meus pais: papai era Gastão Novaes e a mamãe Silvina Novaes, duas pessoas maravilhosas, foram grandes pais, grande mãe, grande pai. Eu nasci... eu sou paulistana, nasci no Largo da Concórdia, que hoje é um cimentado cheio de ambulantes vendendo coisas. O Largo da Concórdia era pertinho da estação do Norte, era um Largo lindíssimo como hoje ainda é. Um pouco lá Praça da República, ele tinha um teatro onde se apresentavam as grandes companhias de ópera, era o teatro Colombo, era um teatro lindíssimo que foi derrubado. Tinha um bebedouro, porque na ocasião, nos anos 1920, as mudanças eram feitas por carroça, então puxadas por cavalos, e havia, portanto, no Largo da Concórdia um bebedouro enorme, lindíssimo com desenhos em Art Nouveau a volta toda, sabe? Não sei que metal seria aquele porque era meio esverdeado, eram flores, eram assim tipo barroco. Um bebedouro enorme onde os cavalos iam beber, compreende? Então está ligada a esse problema dos cavalos. Um menino, nós estávamos brincando perto, né, e um menino disse um palavrão e a vovó que estava perto ficou brava e disse “só quem lida com cavalo pode dizer palavrão”. É curioso que isso ficou marcado, sabe, eu tenho horror de palavrão, eu acho que é uma coisa que atinge fundo, você lida com... é uma coisa muito feia, guardei isso muito, sabe? Minha avó era uma mulher sábia, tinha mil histórias sempre. Então veja, eu nasci no Largo da Concórdia, portanto em pleno Brás, num momento em que as indústrias começavam, né, um grande movimento de indústrias, onde de vez em quando aparecia um carro, você diz “olha, lá vai um!”. Para ter um carro precisava ser milionário, né? A gente andava de bonde, e em geral eu preferia o cara dura que ficava atrás e balançava muito, porque o bonde era dois réis e o cara dura era um real, não lembro exatamente qual era a moeda, mas havia essa diferença e pertinho da estação do Norte, né, tanto que eu estava... acho que foram dez anos quando eu vi a Revolução Paulista... perdeu a Revolução e eu me lembro daquela multidão esperando Getúlio Vargas chegar. Eu estava no ombro de papai deitada e vi o Getúlio, pensei: “Meu Deus, que homenzinho feio, gordo, (risos) e ele ganhou!”, eu pensando. Não esqueço que a minha primeira visão do Getúlio Vargas não foi boa, eu achei ele feio, gordo e baixo, né? Então eu vi essa São Paulo depois de nós termos perdido a Revolução. Bom, a minha infância foi uma infância privilegiada, porque nós morávamos todos no casarão da vovó, eram casarões enormes no Largo da Concórdia, tinha coreto nos domingos, ficava a banda tocando e a gente brincando. E eram tias e tios que estavam solteiros, duas filhas casadas, uma mamãe e outra que foi a minha segunda mãe, que era a tia Elvira. E eu cheguei numa hora muito triste para a família, porque duas crianças em dois anos tinham morrido, porque não havia antibiótico e a mortalidade infantil era muito grande. Então esse eu acho que foi um fator muito importante na minha infância, porque eu nasci numa família muito alegre, com muitas tias, elas cantavam no coro da igreja, uma fazia flor, outra bordava as toalhas da igreja e tocava violão, cantavam, uma delas tocava o órgão. Então foi assim, uma infância muito feliz, com muita alegria e muita gente cuidando de mim, mais tarde só que eu cheguei... Pensando nisso, que eu vi o que significou o meu nascimento, o medo que a família toda tinha de que eu também fosse embora, compreendeu? Então essa circunstância dolorosa fez com que no fim eu tivesse duas mães e dois pais, porque a tia Elvira e o tio José que tinham perdido os dois filhos ficaram assim, então havia, até o fim da vida (risos), entre a mamãe e a tia Elvira, uma certa disputa em relação a mim, sabe, isso foi privilégio, né, porque foram as circunstâncias. Então, logo desde cedo... bom, livros não se fala, né, eu ouvi histórias, era comum ler em voz alta enquanto as tias bordavam, a outra fazia e tal, tal, tal… Alguém, ou era a vovó, ou alguém sempre lia os folhetins, eram aqueles folhetins do rocambole que o Lobato fala, “eu to fazendo um rocambole”. E eu vi, curioso que daí quando saiu há pouco tempo uma edição do Lobato então eles desenharam na capa um Rocambole, porque já não conheciam que o Rocambole era o grande personagem, era um bandido bom, eram as aventuras de Rocambole. Então quando o Lobato disse que ele achou que ele estava escrevendo um rocambole, era porque ele estava pensando naquela personagem cujas as aventuras não acabavam, não é? E eu lembro bem desses folhetins que chegaram impressos em azul ou em rosa e cada semana vinha um menino que entregava de porta em porta para assinar etc etc. Então é evidente que eu não lembro absolutamente nada do que liam na ocasião, muito mais tarde eu fui ler, mas eu ouvia, né, e brincava com boneca de pano que faziam para mim. Então o que aconteceu eu... muito cedo eu aprendi a ler porque eu achava muito curioso que aqueles desenhos, eles liam uma história, e claro, que daí liam histórias para mim, os contos clássicos: João e Maria, enfim Chapeuzinho Vermelho. Então eu lembro que foi muito cedo que eu aprendi a ler porque eu queria saber como é que era, como é que aqueles desenhos que tinham dentro deles uma história, compreende? E daí as minhas tias por brincadeira, eu tinha os meus cinco anos, elas cortaram em papel de embrulho, cortaram os quadrados e eu lembro então elas punham todo o abecedário, daí iam fazendo, “ba, bala”, um método que depois, agora recentemente não pode, mudou tudo dos anos 1970 para cá. Agora a criança que tem que descobrir o abecedário é como se o fulano fosse estudar música e depois ele descobrisse que assim um teclado, que tinha branco e preto, substantivo, adjetivo, não é? Eu ainda não entendi bem, mas (risos) há toda uma teoria maravilhosa para alfabetização e o resultado hoje é que o menino chega na 5° série e não sabe lê, né? Não dá! Esqueceram de ensinar o abecedário para ele. Então eu comecei com o abecedário (risos), resultado: com seis, sete anos eu já lia, eu não me vejo sem um livro na mão, não me vejo até hoje eu tô sempre lendo, tô sempre lendo, tô sempre lendo, sabe? É uma segunda, é um segundo mundo, eu não sei, eu não saberia como viver sem leitura. Agora o primeiro ideal então foi eu ser pianista, porque uma prima do papai era a grande pianista, era a maior pianista do mundo, então eu achava uma coisa maravilhosa eu aprender aquele instrumento, eu ouvia a professora de piano tocar etc e foi assim que eu comecei a estudar piano. Então o primeiro projeto, realmente, que eu me lembro na minha vida foi ser professora, foi ser como pianista, né, não só pianista, quando eu entrei pro conservatório eu decidi, eu vou ser concertista. Fiz também o curso de concertista, foram anos maravilhosos, sabe, de descobrir a música. Eu não fazia outra coisa de manhã à noite, eu só tocava ou estudava e fui aluna de Mário de Andrade, ele era professor de História da Música no conservatório dramático musical de São Paulo, que ficava na avenida São João, eu acredito que ainda está, não sei se derrubaram, acho que não, não sei. Mas só que não era Mário de Andrade, eu não sabia quem era Mário de Andrade, eu adorava as aulas dele, só muito mais tarde é que eu fui saber que eu era… Que eu fui aluna do Mário de Andrade (risos), porque na ocasião ele era um professor muito severo e muito respeitado por todos e eu tava muito feliz “Olha, você é aluna do Mário de Andrade!”, mas eu não sabia que ele era poeta não! Não sabia não, você está vendo como custam as notícias para correr, para saber, na verdade demorou um pouco, então a hora que eu ouvia falar, quando se referiam à Semana de Arte Moderna diziam assim “Ah, aqueles loucos que fizeram, você lembra aqueles loucos que fizeram uma semana de arte lá no teatro municipal, tudo doido!”. Esses eram os comentários de gente da família. E todos alfabetizados, não era... trabalhando em publicidade, não era trabalhando em mil coisas, não eram analfabetos, pelo contrário, todos liam muito, mas esta era a idéia que eu vi. Também mais tarde só que eu fui lembrar disso, né, como é que eles se referiam a Semana de Arte Moderna, que realmente foi um choque para uma cidade provinciana como São Paulo, né, vinha aquela avalanche de talento, né, uma coisa fantástica e tal (risos). Então, eu na verdade fui isso. Primeiro projeto foi ser pianista, entrei pro conservatório, terminei o conservatório e no primeiro semestre em 1939 eu fiz concurso, era um concurso para um estágio na Itália, para fazer carreira você tinha que sair do Brasil como até hoje! Para ser pianista, concertista ou... eu tenho uma neta que mora em Londres há dezoito anos, ela queria ser bailarina, mas quase que eu fiquei doida, Deus me livre, uma coisa dificílima. Ela foi estudar em Londres, acabou então se tornando coreógrafa, ela é coreógrafa e mora em Londres porque... Viaja muito para todo lado, porque não tem condição de fazer carreira de alto nível aqui, nós estamos ainda engatinhando, mas um dia chegamos lá. Eu tenho certeza que o Brasil vai ser um país do futuro, tenho certeza, temos tudo, tudo para ser, daqui há cem anos eu acredito que nós estaremos… Temos tudo, tudo, tudo, tudo. Bom, voltando à história, eu fiz o concurso, ganhei e acontece que eu ia mais pro fim do ano, né? Daí eu ia para a Itália, o pessoal com muito medo etc, mas a Segunda Guerra estourou, foi em 1939. Com a guerra já não era mais possível ir, então magina! Nem eu queria, eu tinha medo. Então eu fiquei esperando acabar a guerra, enquanto esperava eu precisava trabalhar, então eu fui ser professora de piano. Eu odiei ser professora de piano, porque era só criançada que ia aprender, e não queriam, minha mãe queria que aprendessem… Enfim, eu achei horrível ser professora de piano, e continuava estudando seis, oito horas por dia eu continuava estudando para não perder a arte, né, eu gostava demais do piano, demais, demais! Daí eu resolvi, disse “não, preciso trabalhar”. E abriu um banco, o Banco Paulista do Comércio que abriu na rua XV de Novembro e eram dois banqueiros amigos de um tio meu, ele disse “não, eu vou mandar uma carta e tal, e você vai ver”, porque eu já tinha procurado muito, eu não conseguia emprego, era Colgate, Electrolux, todo mundo queria uma pessoa com prática e diziam assim: “Ah, não, nós queremos uma pessoa com prática”. E eu desesperada, eu digo “meu Deus do céu!”. Daí eu fui, levei o cartão e o Doutor Fleury, me lembro de colete, aquele colarinho duro, corrente, lembro muito bem dele, aquela corrente de ouro com relógio, o homem parecia do século XIX, né, muito sério Doutor Fleury e tal. Então me mandou para um outro para eu fazer exame: datilografia, taquigrafia, eu tinha estudado taquigrafia, tinha estudado datilografia, então passei tal. Daí me levaram outra vez pro Doutor Fleury, o Doutor Fleury viu e tal e disse “ah, mas é uma pena, porque nós precisamos de gente com prática, nós estamos abrindo e a senhora nunca trabalhou”, aí me deu um desespero, sabe, eu digo “olha, em todos os empregos que eu fui ver todos disseram a mesma coisa que o senhor. Então se ninguém me der a oportunidade para eu ter o primeiro emprego, eu não vou nunca ter o primeiro emprego!”, tive a coragem e foi isso mesmo. Como eu vou?... Por mim eu estava fazendo tudo que era possível, agora eu precisava do outro, né? E eu me lembro que daí ele ficou olhando pro papel uns segundos assim, depois virou e disse “Seu Ernani [que era o chefe da pensão] dê uma oportunidade de três meses para essa moça e vamos ver como é que dá resultado”. Pronto, então aí fui bancária, eu fiquei como secretária da secretaria, porque como eu era taquígrafa, eles ditavam as cartas, depois de algum tempo eu vi que era sempre a mesma coisa, a resposta, daí eu disse “O senhor não quer que eu redija?”. Depois eu trago era o Doutor Sampaio e o Doutor Fleury, é engraçado que certas coisas você não esquece, imagina, tantos anos, tantos anos. Bem diferente os dois, um muito cabeludo, o outro careca (risos). E daí eu passei a fazer a correspondência do banco. Eles só escreviam o que era para responder e eu redigia, né, eu sempre redigi muito bem, eu gostava de escrever, até hoje, né? (risos) Não faço outra coisa senão escrever, eu escrevo de dez a doze horas por dia. Pronto.
P/1 – Nelly, depois a gente volta a essa história, mas só para voltar um pouquinho sobre escrever, você lembra dos primeiros livros que você leu e como era o seu desempenho na escola na hora de escrever?
R – Olha, os livros não tem nenhum assim que eu diga aquele foi decisivo, na minha infância não, não é? Eram livros, eram histórias de conto de fada que eu gostava muito e aprendia a ler rápido, adorei a escola, fui... gostava muito da escola, sentava na primeira fila, eu sempre fui caxias, né? Sempre estudei muito, prestava muita atenção em tudo...
P/1 – Qual que era a escola Nelly?
R – Foi o Grupo Escolar Padre Anchieta, na avenida Rangel Pestana, eu e mais duas primas. Então a minha primeira professora foi Dona Zuleica, era uma gracinha, sabe, solteira e muito séria e tal… Então nunca tive nenhuma dificuldade na escola, eu sempre fui muito estudiosa, muito comportada, aliás todo mundo era, né? Menina ou menino que se comportava mal ninguém queria como amigo, sabe, não Deus me livre! Mal criado então, aí terrível, né? Era algo impensável! Você não ficar quieta, você ser travessa na escola, escola senta, né, tinha que entrar, sentar, pedir licença para falar, licença para sair, enfim eu sempre adorei a escola, né? Foi depois a segunda professora, eu só guardei essas duas, era a Dona Gertrudes. Eu não gostei da Dona Gertrudes, ela era muito feia, sabe, ela era muito gorda, muito feia e falava duro para impor a autoridade. Eu fiquei então com uma impressão muito negativa, eu tinha um medo da Dona Gertrudes… Porque pelo tom com que ela falava, ela reclamava as coisas ou o que você fez de errado, ela falava bem alto para todo mundo, então guardei uma lembrança triste. Depois eu não lembro mais, depois eu fui pro Externato São José, que eu não lembro, eu saí e fui, pro terceiro ano já fui, mudei, porque nós mudamos do Largo da Concórdia, mudamos para o Cambuci, rua Estéfano. E daí eu passei a ser aluna do Externato São José, adorei. Para mim a ida para a escola era o paraíso, as irmãs ótimas, a irmã Marta, a irmã Etelvina, irmã Faustina era brava, ela dava português, por isso eu fiquei afiadíssima na língua portuguesa (risos). A Etelvina dava francês, então eu comecei a aprender francês muito cedo, né, porque no terceiro primário já tinha francês. Foi um tempo muito, muito, muito bom, muito bom mesmo o tempo da escola, né? E essa minha inclinação para a literatura, não para escrever, mas para ler se manifestou logo, por exemplo, nós tínhamos aula de bordado, então dia sim, dia não, tinha a aula de bordado. Ficava uma meia hora, quarenta minutos, não lembro bem e alguém ficava lendo, sabe, pegava o livro era... não lembro exatamente, mas o livro que eu lembro que o pessoal gostava muito e ria muito, era um livro que havia uma personagem inglesa e era um inglês, então eu imitava o fulano, não sei como imitava porque o inglês eu ainda não sabia naquela ocasião, mas eu imitava. E daí as meninas pediam, “deixa a Nelly ler, deixa a Nelly ler”... E a irmã Marta dizia assim: “Não, ela tem que fazer o seu dever de bordado também, não pode todo dia ficar a Nelly lendo”. Então o que que eu fazia? Eu fazia a tarefa de bordado em casa, porque eu queria ler e eu adorava ler, então eu fazia e “Então pode irmã Marta? Eu já fiz a minha tarefa de bordado”. E ela falava assim “então tá bom, então pode ler”, e eu passei a ser a leitora. Isso foi uma coisa realmente que sempre me deu muito prazer, ler. Então é assim, terminei o Externato São José, foi quando nessa ocasião foi que eu fiz o concurso para, porque eu fiz ao mesmo tempo, né, para continuar a carreira de pianista, fracassando, me tornei bancária. Depois papai abriu, papai trabalhava em publicidade, mas depois abriu uma agência de publicidade na Praça Patriarca era PuBrasil ele e meu tio. Então eu saí do banco depois de uns dois anos e fui trabalhar em publicidade, né, e ali fiquei até quando a guerra terminou, eu estava noiva e pronto, daí virei dona de casa (risos).
P/1 – Conta um pouquinho dessa experiência com publicidade, como que era isso?
R – Olha, nós tínhamos grandes agentes, sabe, o Seu Murli que era um italiano, um belo italiano, alto, era o Seu Murli e tinha um outro, não lembro, não era Balzac, era um nome parecido. Entre os nossos agentes esses dois ficaram muito meus amigos e eles tinham grandes clientes, né? Então traziam, eu não trabalhava direto para pedir anúncio não, eu trabalhava na agência, nos serviços interno da agência de escolher cores, fazer correspondência, escrever, fazer, enfim serviço de escritório, né? Mas também foi um tempo assim muito agradável, porque a convivência era muito boa, então era Electrolux, que eu me lembro, sabonete Lever, era o que mais que tinha que ainda tem… Não lembro, não lembro, mas não tinha não, não tinha correria, não tinha briga, sabe, não sei na minha vida tudo correu (risos) parece Alice no País das Maravilhas, só que é (risos), não me lembro de nada assim ruim. Claro, no banco tinha um namorado, me apaixonei pela primeira vez, foi uma maravilha e tal, depois acabou, acabei casando com outro, mas sei lá...
P/1 – Conta um pouco a história de como você conhece o seu marido?
R – Ah, eu conheci o meu marido na Sociedade Cultura Inglesa, porque daí como eu sabia já o francês bem, já tinha feito Aliança Francesa também, eu sempre fui apaixonada por língua, né, é nesse ínterim de eu esperar isso, esperar aquilo… Eu fui trabalhar em banco, eu fiz Aliança Francesa toda, né, os seis anos. Depois resolvi estudar inglês, que era na José Bonifácio, a Sociedade Cultura Inglesa. E foi lá que eu conheci então o meu marido, ele estava também, ele trabalhava na livraria Saraiva que ficava pertinho ali do Largo São Francisco, ficava numa esquina José Bonifácio, Faculdade de Direito para baixo e a livraria Saraiva é a que fornecia mais para o estudante de Direito, né? Ficava bem ali no miolo da cidade, que hoje está completamente degradado, eu tenho medo de ir ao centro hoje, tenho medo, mas era… Imagina que Mappin Store era uma loja de luxo na rua Direita, a Casa Alemã, você comprar alguma coisa na Mappin Store você precisava ter dinheiro, comprou no Mappin Store? Nossa, que maravilha! Você olha com respeito. A Casa Alemã também era finíssima. E depois começaram a abrir as lojas, as Lojas Americanas, a primeira loja Americana que conheci foi na rua Direita, quase em frente ao Mappin. Depois o Mappin mudou, eu não me lembro bem como é que ele mudou para a Praça Patriarca. Eu sabia que o chá do Mappin era assim a maravilha das maravilhas, você ir e tomar o chá no Mappin, era um ponto de encontro de escritores, etc, né? Era ali ou era nas livrarias. Não lembro agora o nome da livraria na Barão de Itapetininga onde todo mundo reunia, onde eu vi pela primeira vez a Lygia Fagundes Telles, onde eu vi a Hilda Hilst, não lembro exatamente, não era Brasiliense não, talvez eu lembre daqui a pouco. Mas era uma livraria muito boa. Depois tinha uma confeitaria também muito boa, ali o centro era algo muito bem cuidado, de muito nível, parece incrível como as coisas mudaram, o centro se degradou muito. Eles estão tentando agora, mas é muito difícil, então havia uma concentração assim da elite que ia tomar chá, os encontros dos escritores, enfim frequentar as livrarias, congressos na livraria, se conhecia o dono da livraria, ele conhecia tudo, compreendeu, era... Havia assim um cultivo da cultura que hoje não dá, né, os meios de comunicação de massa abafaram a letra, hoje é muito difícil alguém ler, vai para lá, vem para cá, chega cansado em casa vai ler? Vai ler, vai ver televisão, então é uma outra, sabe, é um outro tempo, é outro ritmo, tudo era bem mais lento, era o tempo humano. Hoje nós vivemos com o tempo da máquina, tudo acelerado e se demora um pouco… O sinal abriu, por exemplo, e eu não sou de ir devagarinho não, eu gosto muito de dirigir, dirijo muito bem e nunca tive problema, mais de quarenta anos dirigindo, mas é assim, pintou o verde, se você não sai, tem alguém buzinando já atrás de você, quer dizer, há uma... Um perigo o trânsito hoje, estão todos parece muito nervosos, isso não tinha, a gente ia na calma, compreendeu? Então foi aí, eu conheci o meu marido na Cultura Inglesa, num momento que eu tinha rompido com o outro e daí eu coloquei logo outro no lugar porque eu tava sofrendo muito e deu certo. (risos) E deu certo, ele foi um grande marido, sabe porque deixou depois que eu fosse estudar. Claro que eu fui ser dona de casa, levei anos, tive um filho, costurava, adorava costurar, daí eu passei a costurar, lia a noite, sempre antes de dormir eu lia, senão não conseguia dormir. E gostava muito de costurar, então comecei a costurar para família. Eu fiz os vestidos de noiva pras primas, três primas que casaram foram com vestidos de noiva que eu fiz, hoje: “Meu Deus do céu, quando eu me lembro que você costurava”, pois é, minha vida passou assim por fases muito diferentes umas das outras, né? E foi... Não sei bem, meu filho estava aí com cinco, seis anos e eu achei que faltava alguma coisa, sabe, que faltava por dentro. Eu gostava de ler, por quê que eu não volto a estudar? Daí eu fui fazer o colégio Bandeirantes, porque eu morava num apartamento bem próximo a um quarteirão do colégio Bandeirantes, então fui fazer o colegial no colégio Bandeirantes, porque como eu tinha feito Secretariado, faltava o colegial. Aí também tinha feito há catorze, quinze anos, tal, e fiz o colégio então, três anos do colegial Bandeirante. E, por isso que eu digo que eu tive um marido maravilhoso que, além de ele ter deixado, ele achou ótimo. E depois entrei para faculdade, né?
P/1 – Qual o nome dele, Nelly?
R – Era Carlos Mário Coelho. E o Carlos é curioso, que quando eu entrei para faculdade, que eu encontrava amigos ou que não via há algum tempo e tal, eu to estudando, entrei para faculdade, “você se separou do Carlos?” eu dizia “não, não separei”, “e ele deixou você estudar?”. Estão percebendo a diferença de mentalidade? Na minha geração mulher não ia trabalhar, a não ser que tivesse necessidade de dinheiro, não ia, ou tinha que ser alguma coisa assim muito boa, ligada à cultura, fora disso só quem precisava de dinheiro. E era uma vergonha pro marido se a mulher tivesse que ir trabalhar e estudar. Nem pensar! Compreende, era muito raro saber de tal moça que foi fazer faculdade. Felizmente nesse ponto a coisa mudou, eu vejo inclusive quando eu vou para a USP a tarde que tem aula de pós graduação, tá cheio de cabelos grisalhos, pessoal indo estudar depois de aposentar, vai fazer outra coisa, não pode parar, não é? Não pode parar e o estudo é uma maravilha, porque enriquece a vida da pessoa. Então foi isso, daí eu voltei a estudar, isso em 1956, eu entrei para a faculdade. Ainda tinha exame oral, os professores eram severíssimos, eu me lembro do Silveira Bueno, eu detestava Silveira Bueno, era assim, voz dura, sabe, arrogante, mandão, ninguém entrava depois que ele entrasse, chegou tarde fica fora e ninguém saía antes dele sair… Então de todos, o único que eu guardei assim uma imagem negativa foi o Silveira Bueno que era um grande dramático, dominador, mas devia ser um homem muito infeliz, porque (risos) ele falava, ele era muito duro, sabe, nunca vi o Silveira Bueno sorrir, né? Tive grandes professores e entre eles eu tive o privilégio de ser aluna em francês de quatro grandes mestres franceses, foi o final dos professores estrangeiros que vieram montar a faculdade de Letras, Filosofia, Ciências Humanas e Letras, né? Desde os anos 1930 que foi fundada eram sempre professores estrangeiros. Eu peguei o fim, sabe, foi o final depois, daí já tinham brasileiros preparados, era só um ou outro estrangeiro que vinha lecionar. E hoje eu vejo que foi realmente fundamental na minha vida, na minha vida intelectual, que eu descobri o mundo mesmo da cultura, foi com esses, principalmente com os mestres franceses. Não é a toa que a França sempre foi o foco, é através dela que os autores todos foram conhecidos, né, Dostoievski, Goethe, todos os grandes escritores sempre foi através da tradução francesa que eles eram conhecidos por todo lado. O francês na ocasião era como o latim no império romano, como é o inglês hoje, não é? O francês entrou em, está em um plano bem secundário, e agora a língua que manda é a língua inglesa, mas nessa ocasião ainda era o francês e cada ano era um professor sabe, então eu guardei assim os caminhos que eles abriram...
P/1 – Quem eram no caso?
R – Professor Bonzon, era o professor Fresh, professora Veilka, professor Remon eram quatro grandes, não conhecidos, não eram nomes como Lévi Strauss que foi… Não fui aluna do Lévi Strauss, Antônio Cândido foi aluno do Levi Strauss. E aí foi, daí começou a minha vida acadêmica, eu acabei a faculdade e, imediatamente, eu fui convidada pelo professor de espanhol, que era um grande professor, também tive isso, Luiz Amador Sanchez era muito, muito, muito bom, as aulas dele eram riquíssimas, a literatura espanhola, muito rica e a hispana americana. E ele me convidou então para ser assistente dele, então eu acabei a faculdade em 1960 e em 1961 eu já comecei a lecionar, morrendo de medo, porque eu tinha que dar aula em espanhol, então a aula era às nove horas da manhã, eu levantava às cinco horas para treinar, sabe, falar espanhol o tempo inteiro. Mas eu acho que deu muito certo, eu gostei e eu sei que os alunos gostaram, porque há pouco tempo fizeram uma homenagem para mim e foram muitos alunos dessa época. E tinha um que foi meu aluno de espanhol e disse: “Professora, até hoje eu lembro das suas aulas de espanhol”, maravilha! E aí ele começou a comentar, eu fiquei tão feliz (risos).
Troca de Fita
P/1 – Nelly, então a senhora estava falando quando começou a lecionar espanhol.
R - Então... eu terminei a faculdade, fui convidada pelo professor Luiz Amador Sanchez, comecei a dar aulas de espanhol, muito aflita porque eu tinha que dar aula em espanhol, então levantava cinco horas da manhã para treinar a aula às nove horas, porque... Eu estava, como eu acabei de dizer há pouco, eu gostei depois das aulas, então eu vi falar de Jorge Luis Borges, porque eu dava espanhol e hispana americana e alguém, não sei quem, um espanhol que eu não me lembro bem quem foi que falou que tinha um grande escritor argentino. E eu procurei daí nas livrarias não tinha, mas um amigo meu ia a Buenos Aires e eu pedi: “vê se você me traz um livro do Jorge Luis Borges, né, porque aqui eu não encontro realmente”, não se conhecia ainda em 1960, ninguém conhecia. E daí ele me trouxe a obra completa, tenho lá a obra completa que foi comprada em 1961, sabe, livros pequeninos assim cor cinza. E trouxe então a obra completa, então mergulhei naquilo, metade eu não entendia, né, foi muito difícil o Borges, foi assim um desafio entender a problemática dele e daí tentei dar também um conto dele, foi muito bom, foi muito bom. A aula portanto, foi para mim um desafio muito grande, eu dominar o espanhol e depois encarar o Borges também que eu achei que era um desafio… Puxa, eu era uma leitora desde pequena e como é que ele me desafiava assim? Tinha coisas que eu não sabia onde é que ele ia chegar, né? Bom, passou, no fim do ano o professor Sanches morreu, o professor Sanches é pai do Luís Gustavo da televisão, que já tá velho...
P/2 – Ah, o Luis Gustavo que já fez Os Penetras?
R – Era um grande professor que veio fugido de Franco, sabe, e foi dar aula na USP, então tive a honra de ser convidada por ele, mas no fim do ano ele morreu e quem o substituiu foi o professor Júlio Garcia Morejón, bonitão, era um belo homem… Era não, é, né? Não o tenho visto, mas não deve ter mudado (risos), mas ele, evidente que tinha já na mira uma equipe dele, e eu comecei a sentir que eu estava sobrando, sabe quando você sente que não tá bom você tá ali, você tá incomodando? Tinha um amigo dele que, naturalmente, queria, estava ali na bica e quando eu senti isso, porque como eu disse eu sou caxias, eu estudo, né, então eu lia, passava a tarde pesquisando lá no gabinete, enfim, preparando as aulas etc. E quando eu senti isso, eu digo bom, eu fui falar com o professor Antônio Soares Amora que era da literatura portuguesa e eu tinha ficado muito amiga dele, compreendeu, as aulas de literatura portuguesa foram muito boas, eu tive aulas todos eles bons. Eu destaquei os franceses porque eles abriram os caminhos que sem eles eu não teria atinado, ou teria levado muito tempo para descobrir. Então eu falei com o professor Amora, eu fui franca e disse: “Olha, tô me sentindo assim à esquerda do negócio, entrou agora fulano, fulano”, ele disse assim: “Então pede a demissão de lá e eu contrato você para cá, você vem para literatura portuguesa”. Isso foi uma coisa fantástica na minha vida, compreendeu, nunca eu ia imaginar que essa mudança, eu adorava literatura espanhola e hispana americana, né, mas não me sentia bem, então essa mudança para literatura portuguesa foi chave, sabe, foi realmente um acontecimento que dirigiu o meu futuro. Então isso foi em 1962. O professor uma certa ocasião você vê que são as circunstâncias que vão se arrumando. O Décio Almeida Prado que dirigia o suplemento literário do Estadão, aquela maravilha de suplemento que você mandava a página inteira e eles publicavam, o Wilson Martins, era uma equipe de críticos muito boa, era um suplemento realmente muito bom, e isso é coisa que desapareceu, não é? O Décio Almeida Prado telefonou pro professor Amora e pediu com urgência alguém que escrevesse um artigo sobre Jorge Luis Borges e ninguém conhecia Jorge Luis Borges. Aí o professor Amora lembrou que eu tinha lido, olha ele escreve que até tinha comentado com ele antes que eu tinha descoberto, você veja são as circunstâncias! Sabe? Eu disse “não, pelo amor de Deus”, eu fiquei morrendo de medo… E ó escrever um artigo pro Estadão sobre Borges, eu não sei nada de Borges, eu brinquei com Borges nas aulas, imagina eu vou escrever? “Não, Nelly, você vai escrever, você vai escrever, vai escrever”. E daí eu tinha que obedecer ordem, né? Então morrendo de medo eu acabei escrevendo, escrevi e tal e saiu. O Décio gostou muito então volta e meia daí ele me telefonava direto, sabe, ele: “Olha tem um livro que eu quero que você faça a resenha”, e eu comecei fazendo resenha, né? Daí eu não tinha problema nenhum porque eu gostava de ler e ele me mandava o livro, então eu lia e fazia a resenha, porque nós tínhamos treinado muito monografias durante o curso inteiro, escrevia-se muito durante o curso, então eu já estava tranquila quanto ao domínio de uma resenha, não é? E foi assim que depois eu passei a fazer artigo, compreende? Comecei a escrever sobre os escritores portugueses e de repente eu percebi, eu era crítica literária, nunca me passou pela cabeça de ser crítica literária, realmente: “Ah, então você agora é crítica literária do Estadão?”...
P/3 – Veio naturalmente, né?
R – É, e como, e era, não é? Pois eu estava escrevendo, analisando, tava fazendo crítica literária. E daí em 1964 veio o professor Amora, pediu uma bolsa para mim na Fundação (Volbenk?), na ocasião que a fundação dava bolsas maravilhosas, você ficava três, quatro meses em Portugal, muito bem pago, você não desembolsava um níquel e ainda guardava dinheiro, porque foi no tempo do dólar e depois você vinha com dólar, dólar e o dólar valia muito e nosso dinheiro não valia nada. Eu sei que das bolsas eu acabei comprando um apartamento, sabe? E foi daí realmente, que a minha carreira se firmou, em Portugal o costume, eu acredito que até hoje, não sei, já faz, eu estive lá a última vez em 2001, mas fui para congresso no Porto, a muito tempo que eu não volto a Lisboa e eu fui, então, cada dois, três anos eu passava uns três meses em Portugal e quem diz Portugal, diz França, e daí pronto, daí eu conheci tudo aquilo que eu via nos livros e eu fui ver, compreende? Fui em Roma, eu fui pisar, eu pisei no Coliseu, compreendeu, eu subia as escadas por onde o povo subiu para pegar a Maria Antonieta, enfim foi uma maravilha, compreendeu? Essa oportunidade que a (Volbenk?) dava de você ter e, depois, Portugal é muito pequeno, ali o meio cultural todo mundo se conhece e foi no meio cultural que eu entrei, na universidade e fiquei amiga dos escritores, né?
P/2 – Que escritores a senhora conhecia nessa época?
R- Bibi Ferreira, Zé Cardoso Pires, Fernando Namora ficou um amigão, Rubem A, Augusto Abelaira, os grandes nomes eu acabei de publicar em Portugal, saiu em outubro ensaio sobre eles, são quase trinta autores, né, quase todos morreram já, esse pessoal tá morrendo demais… Sabe, eu ontem mesmo tava dizendo: “Meu Deus do Céu, com setenta anos, com sessenta e pouco, quer dizer, foram cedo embora, né?”. Mas eu tive o privilégio de ser amiga desse pessoal, ouvir as polêmicas, então eu ia dizer que havia o costume de reunir nos cafés, né? Então tinha o café onde ficava Fernando Pessoa, que até puseram lá uma estátua dele ali, era Brasileira, era o Acadêmicos, então cada hora eu sabia que se eu fosse cinco e pouco, seis horas eu já teria, eu já encontraria grupo de x, y, e tal, não é? E eu ia e ficava tomando café, sabe, é uma coisa hoje que eu lembro bem, não era bebida, né, uísque, uísque era só em festas, em festas, daí que eu lembro de ter tomado uísque, bebida alcoólica… Era café mesmo que eles chamavam de pingado e comiam as bolachinhas que punham lá e serviam café, bebia café, e discutiam, brigavam demais, brigavam demais, sabe? E eu me divertia muito, mas desencontro de idéias, eles tinham que brigar e eu consultei, fui aos jornais, então eu fiz o levantamento de publicações pro meu trabalho o que eu tinha publicado, fiz coleções de jornais e eu notei as polêmicas, sabe, meu Deus do Céu, o Brasil já não tem mais polêmica em jornal nenhum como tinha no tempo de Rui Barbosa, né, havia ainda os debates, escreviam no jornal contra. Esse costume entre nós já tinha desaparecido e lá continuava, e gente boa de nome e tal, criticando o outro e daí o outro respondia em artigos grandes. Então eu lembro que em uma noite nós estávamos no café na Brasileira e numa roda grande, né, eu disse pro Abelaira, comentei com ele porque eu tinha ido em vários jornais: “Você sabe que eu não entendo como é que você com estando uma ditadura Salazar”, foi uma coisa terrível, né? Uma coisa fantástica que ele... “você tem tanta polêmica! Em vez de se unirem (risos)” e ele Augusto Abelaira fumava cachimbo, então tirou o cachimbo e disse “ó paz, se não fizéssemos isso estávamos todos mortos, temos que brigar uns com os outros”, porque o silêncio realmente era imposto, né? É curioso que depois, por exemplo, na casa do Abelaira, na casa do Rubem A que eu fui, o primeiro que me mostrou foi o Abelaira, um grande escritor, morreu faz uns três anos ou dois por aí. Ele mostrou um saco plástico onde tinha um pijama, troca de roupa, escova de dente, pasta, enfim os primeiros elementos de higiene, né, ele disse: “Olha, isso aqui está pronto”. Quando falou-se, comentamos o problema da censura, né, isso porque a PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado] eles são tão burros que qualquer arruaça que haja em Lisboa, primeira coisa que vem, vem prende a mim, prendem ao Cardoso, prendem ao _______ e a gente vai pro castelo de São Jorge, fica pelo menos três dias lá, até eles descobrirem que nós não tínhamos nada a ver com a tal arruaça que tinha, mas então você discutir isso não adianta, então tomamos essa precaução, já está pronto. A hora que o fulano bater na porta o que houve, vai preso? Vamos lá, já pega, não se discute, compreende, é assim. Você não pode oferecer resistência, a resistência se daria nos livros, então realmente eles criaram um estilo, uma coisa formidável para falar e não parecia que fala. Então eu lembro que eu comentei um dia com o Cardoso Pires, eu disse: “Olha Cardoso, você tinha é que erguer um busto, uma estátua pro Salazar, porque ele obrigou vocês a criarem esse estilo, essa literatura tão rica sem ir para cadeia, não é?” e ele disse assim “não”, realmente é uma defesa, não sei se você acha, quer dizer, o Homem, a criação ela arranja uma fresta qualquer para escapar do que está impedindo, então essa demonstração foi feita bem lá em Portugal, foram muitos anos de ditadura, dura! Mas tudo tranquilo, sabe, tudo tranquilo, você não percebia absolutamente, porque todos se acomodaram com a coisa, assim não adianta você dar murro em ponta de faca. E o povo não percebia nada também. Tava bem a economia de Portugal, Salazar levantou a economia, isso foi muito importante, ele estava num período muito difícil, então final dos anos 1920 o Salazar foi eleito primeiro ministro, depois acabou ficando como ditador, quer dizer, a entrada do Salazar foi saudada por eles todos, Gaspar Simões, o Zé Régio, o pessoal da presença, né? Com alegria, porque ele veio tirar Portugal de uma crise muito grande, o problema é que durou, ele falou, se ele tivesse saído em dez, vinte anos tudo bem, mas o homem ficou para sempre, quer dizer, quando eu estive lá em 1964 era a primeira vez, era o Marcelo Caetano que estava. Porque o Salazar já tinha caído da cadeira e, literalmente caiu da cadeira (risos), quebrou mesmo o quadril, então foi substituído pelo Marcelo Caetano, mas não mudou nada, mudou a figura, mas o Salazar continuou com a força que tinha e PIDE, que era a polícia, quer dizer, não houve nenhuma mudança até o final da guerra, da Revolução de Abril de 1974 daí aqui em Portugal. Mas essa minha experiência, portanto, com as bolsas da fundação (Volbenk?) foi decisivo. E depois os congressos, vinha congresso aqui no Brasil, congresso de professores de literatura portuguesa, cada dois anos nós tínhamos congresso aqui no Brasil, ou lá em Portugal, então essa troca de conhecimento, de idéias foi para mim extremamente rica a influência, porque eu pude cada vez ampliar mais a minha percepção do que era cultura, do que era a grande literatura. Então foi muito bom, porque eu fui leitora comum até 1956, né, desde os seis anos de idade que eu aprendi a ler até 1956. Hoje eu vejo, por isso que eu digo que eu estou com oitenta e seis e eu olho assim como se eu tivesse em cima de uma montanha e eu vejo tudo que aconteceu, sabe, tô achando maravilhoso porque eu tô com saúde, né…
P/2 – Como é essa sensação de tá aí no alto da montanha vendo a vida?
R – É muito gostosa, sabe, e como eu tô com saúde, eu to achando ótimo ser octogenária, sabe, não tem mais compromisso de data com ninguém, eu trabalho dez, doze, catorze horas por dia porque eu quero, não é? Por exemplo, esse livro que eu escrevi juntando todos os que eu conheci, grandes escritores, então escrevia os ensaios e saía publicando, no final de 2007 saiu publicado pela imprensa oficial de Lisboa, a Casa da Moeda. Eu escolhi a imprensa oficial devido a distribuição, sabe, eles distribuem por todos os órgãos de Portugal no mundo, então o que me interessava era realmente divulgar e como eram os grandes nomes, todos eles: Bibi Ferreira, desde alguns que eu não conheci como Aquilino Ribeiro, quando eu cheguei ele tinha morrido fazia muito pouco. Minha tese de doutoramento foi sobre Aquilino Ribeiro e ele morreu em 1963 e eu cheguei em 1964, quer dizer, que eu não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, mas conheci muita coisa dele porque eles contavam as façanhas naquele… Que era muito malcriado, sabe, era muito malcriado. Então realmente este, essa maneira de ver, eu vejo assim o conjunto o que foi bom, o que foi mal não tem a dizer não esse eu errei, eu não deveria ter feito isso, isso não foi bom para minha vida, isso não teve, sabe? Então eu acho que eu tenho assim um anjo da guarda muito esperto, ah é muito esperto! Eu rezo sempre para ele, mas ele é muito esperto, porque ele arma umas coisas para mim quando eu vejo já aconteceu, não é? Então fiz este livro que está em todas as livrarias, né, conheci... Curioso quando me lembro de ver Vergílio Ferreira eu me lembro também já da Clarice Lispector porque quando eu conheci os dois, foi nos anos 1970… Não, o Vergílio Ferreira eu conheci antes da Clarice, conheci em 1964, eu disse assim: “não como é o telefone do Virgílio Ferreira, que eu queria falar com ele”, enfim, não lembro o que era, mas eu queria conversar com ele, era alguma coisa que eu já não lembro o que era, “ihh ele não gosta, ele é neurastênico, ele é muito chato, pá, pá, pá, pá”, eu disse “não”, telefonei, tal, marcou. Eu cheguei às três horas da tarde e ele muito assim formal, né, o português é muito formal, eu até me habituei com isso, comigo depois aos poucos eles iam abrindo um pouco. Começamos a conversar e tal e eu lembro que o estopim da nossa conversa foi porque eu tinha acabado de ler Les fruits d’or da Nathalie Sarraute, do Nouveau Roman e eu não tinha entendido absolutamente nada, sendo eu uma leitora tarimbada, eu digo como é que eu não sei, porque que isso é bom, não é? Eu tinha lido, então uma hora e tal, nós falamos da França eu digo por sinal que eu li e falei, nossa senhora! Daí ele começou a me explicar, daí pá, pá, pá, pá e olha, a aula que ele me deu sobre literatura, sobre estilos, olha, foi... sobre existencialismo e tal, foi uma coisa fantástica, eram cinco horas assim, a senhora dele veio, ela ia dar aula, ela então se despediu de mim e tal e eu disse: “não eu já vou e tal” e ela foi dar aula, então já eram cinco para seis, quase seis horas ela foi embora. E continuamos e ele falando, falando, e contando, e contando isso e eu perguntando, eram onze horas da noite quando a mulher dele chegou (risos) e eu ainda estava lá. Foi daí que ele desceu e foi me levar no hotel. E a mesma coisa aconteceu com a Clarice Lispector e não por acaso os dois são os dois existencialistas, ela no Brasil e ele lá em Portugal, diferentes estilos, mas os dois foram os primeiros que escreveram sobre, na linha da filosofia existencialista e a fenomenologia, tal, tal. Eu tinha uma pequena editora, caiu no colo também Edições Quíron, era um amigo do meu marido, meu marido era português, né, mas detestava Portugal. Eu descobri Portugal sozinha, porque ele não gostava de Portugal, tanto que ele veio pro Brasil. Um amigo dele, Seu Floriano Durão veio pro Brasil e resolveu montar uma editora pequena e daí me convidou para dar uns palpites, ver nome da editora e tal, enfim tudo de graça. Aliás é a minha especialidade trabalhar de graça (risos), eu penso assim não é possível. Mas o que eu faço não tem preço, isso é verdade. Bom, para encurtar a história eu dei o nome da editora, criei quatro coleções, o jogral, as séries de ficção, as séries de ensaio, de poesia, etc etc etc. Bom, então eu estava num momento eu ia publicar um ensaio do Benedito Nunes sobre Clarice Lispector, só que eu precisava de uma fotografia da Clarice e eu ia ao Rio, e eu ia sempre ao Rio, fui José Olímpio, né, porque tinham os almoços sempre, era costume, sabia que todo dia tinha almoço lá pros escritores, então eu fui e conversando com ele e tal eu disse “olha, eu queria o endereço gente, vocês me dão o endereço e o telefone da Clarice Lispector porque eu preciso falar com ela”, “ih, não a Clarice não gosta de receber ninguém...” mas eu disse “mas eu preciso, eu quero pedir uma foto dela, só vou entrar, pedir a foto, explicar que Benedito Nunes escreveu um ensaio, eu vou publicar, é evidente” e foi. Daí telefonei e ela muito seca marcou as três horas da tarde, né, eu cheguei no apartamento e ela muito distante, muito composta e tal, com o cachorrinho, o Ulisses ali conversando, bom dali a pouco sabe? E a conversa foi e o que ela me conta e bibi, pá, pá, pá e da vida de diplomata e acabou sentando no chão, eu acabei tomando lanche com ela, depois veio sopa e tal. Moral da história saí de lá eram onze horas da noite, quando eu lembrei eu disse não é possível! Um dia me caiu, eu disse assim: “Engraçado, foi a mesma hora que eu fui falar com Virgílio Ferreira e a mesma hora que terminou e terminou porque pelo amor de Deus! Nós íamos varar a noite conversando”. E daí eu percebi, ela odiava entrevista, porque o pessoal começa a perguntar o que que é, como é que é, eu vou saber como é que eu escrevi? Não sei, quem sou eu, eu não sei quem eu sou! E tal, sabe? Foi uma delícia, foi uma coisa, foi um privilégio mesmo, sabe ter tido essas horas todas e por coincidência os dois existencialistas, isso me ocorreu muito depois. Então é isso, daí eu comecei a ser crítica literária e daí comecei... bom e a certa altura resolveram, veio o boom da literatura infantil, eu nunca liguei para ver literatura infantil depois que... pro meu filho dava tal os livros etc....
P/2 – Então Nelly, deixa eu pergunta para senhora, só para gente separar os momentos, antes do boom, antes do seu interesse, que literatura infantil que existia que chamava a atenção ou nenhuma chamava atenção para senhora nesse sentido?
R - Infantil?
P/2 – É.
R – Não. Não, eu não lembro, a não ser, por exemplo, Alice nos país das maravilhas. E havia, por exemplo, uma produção da Odette Barros Mott, depois do Monteiro. Claro que o Monteiro Lobato foi, eu sou filha de Lobato, isso eu não falei, mas era o óbvio, ele entrou nas escolas, então a “Menina do narizinho arrebitado”, e veio muito depois “Reinações de Narizinho”, então era Lobato, mas eu não lembro se a voga de Lobato, por exemplo, pegou o meu filho? Não, não lembro disso.
P/2 – Seu filho nasceu em que ano?
R – Em 1946.
P/2 – Em 1946, ta, em 1953 ele tava na escola?
R – É. Não, não, sabe ele lia, aliás meu filho gostava muito, até hoje, né? Mas era mais filosofia, a minha irmã era assim alucinada com filosofia, ela era médica e ele era muito ligado. Eu não sei dizer não, realmente, literatura infantil nunca me chamou a atenção especialmente, eu não sei dizer o quê que havia, havia os livros da Odette Barros Mott que eu lembro que era regional, e fora Lobato tinha o Vicente Guimarães que eu achava chatérrimo aquilo, eu acho que nunca dei pro meu filho o Vicente Guimarães, ele era um dos que se publicava e tal. Nunca me interessou especialmente não, sabe, o que as crianças liam, não. Essa idéia, porque ler fazia parte, era como se eu respirasse, não podia imaginar a vida sem ler, agora, bom meu filho já tinha começado história em quadrinhos, ele gostava, já tinha os livrinhos de história em quadrinhos e isso é que eu lembro começou os detetives, depois o Flash Gordon, esse foi bem antes, né, até aí eu fui, tinha uma de detetive... eu tenho a impressão de que o que aparecia mesmo eram os quadrinhos, que era a grande novidade, eu não lembro de assim algum autor, não é? A não ser o que já era muito conhecido que era Alice no País das Maravilhas e não sei se a criançada, eu no meu tempo eu li, eu realmente não lembro, tanto que quando foi em 1970 por aí, 1974, 1975 foi meados dos anos 1970, que me telefonaram um dia convidando para uma reunião que ia ser fundado um centro de estudos de literatura infantil juvenil e eu fiquei meio chateada: “ih, meu Deus do Céu, o quê que eu vou fazer com literatura infantil!”, compreende? Eu digo, não sei se eu vou poder, não porque eu não sei, eu não lembro.
P/2 – Quem convidou a senhora?
R – O quê?
P/2 – Quem que convidou?
R – Até hoje ficou um mistério, um mistério, eu não sei quem me convidou. Houve uma ocasião em que tivemos um almoço com todos daí eu perguntei “gente, quem foi...”, a essa altura já era o centro etc, “quem foi que me telefonou para eu ir a reunião?” ninguém se manifestou, “não, não fui eu, não fui eu”, então esse foi uma interrogação que eu tenho, eu não sei...
P/2 – E foi o seu anjo da guarda então, né?
R – Foi o anjo da guarda, eu não sei quem foi e eu ia dizer, mas depois a reunião era na casa da Madame Dupret, pronto, a Madame Dupret é a culpada de eu ter ido nessa reunião e de eu ter entrado na literatura infantil. Porque quando falaram em Madame Dupret eu adorava os livros dela, já tinha lido, enfim, eu era uma leitora voraz, tudo que chegava eu lia. Eu tenho uma biblioteca de dez mil livros, né, eu vivo numa biblioteca (risos), então eu digo, ai é a ocasião de eu conhecer pessoalmente a Madame Dupret. Então foi por isso, era uma tarde assim cinzenta, feia, meio chuvosa… Na casa da Madame Dupret foi quando eu a conheci, daí eu conheci a Lenir Fracaroli, que era uma mulher fantástica, de uma atividade, sabe, era realmente um dínamo a Lenir Fracaroli, foi quem criou a biblioteca Monteiro Lobato, ela conseguia verba do governo para fazer isso, fazer aquilo; Odette Barros Mott, que foi uma das fundadoras do Centro de Estudos de Literatura Infantil Juvenil e várias outras, Heloísa; enfim era um grupo todas de escritoras, todas de escritoras e todas estão no meu dicionário, né? E daí estava lá também, é curioso que estava lá Maria Lúcia Pimentel, que hoje já publicou milhões de exemplares e ela me disse que tinha feito dois anos que ela tinha feito exame para fazer pós-graduação, que ela escrevia ali, mas ela queria fazer pós-graduação e não conseguia vaga. Ela disse: “eu acabei de fazer, com o professor Garbulhe e tal, mas eu não fui selecionada”, eu tinha vaga, eu disse assim: “olha, então você vai amanhã lá na fulana de tal e diga que eu aceitei você e você faz comigo”. Então você vê que tem as circunstâncias, têm caso que a gente chama de acaso. A Lúcia então foi no dia seguinte lá, quer dizer, me conheceu nessa reunião que eu não ia e mudou a sua vida. Ela foi e chegando lá de manhã ela me procurou. Era no tempo em que os nomes eram todos num livrão, um livro tal, ia pondo os nomes dos autores, depois terminava, fazia um risco e anulava o resto da página em branco, então ela chegou e falou assim “olha, infelizmente nós encerramos ontem”. Porque eu disse para ela, hoje encerram as matrículas, mas você vai amanhã cedo, fala com a Regina que eu aceitei e pode aceitar a sua matrícula, então ela disse assim, abriu o livro e mostrou para ela, só que o risco tinha deixado uma linha em branco. Você vê é uma coisa, como que você vai… foi um acaso fantástico! Não há acasos, né, a gente é que pensa, eu tinha que ir nessa reunião por causa da Madame Dupret, que eu não tinha nada a ver com literatura infantil, não tinha nenhum interesse em literatura infantil, estava mergulhada na crítica literária, o desafio de entender o romance novo, até hoje eu vivo às voltas com a nova literatura, que é muito difícil, então não tinha nenhum interesse, meu tempo estava lotado, estava com tudo ótimo, não ia acrescentar mais um negócio com literatura infantil. Pois eu fui e daí tinha essa linha e a Lúcia pode por o nome. Passou então, portanto, fazer a pós-graduação, acaba depois sendo a minha sucessora lá, já saiu, já aposentou, agora já tem um maravilhoso professor que está continuando! É um dos cursos mais procurados. Bom, voltando a reunião, eu conheci então várias escritoras e foi quando depois me deram os livros, eu nem me lembro se Ruth Rocha tava presente ou não, eu sei que o primeiro que eu li dos vários que tinham saído foi o “O reizinho mandão” e eu fiquei muito surpresa, porque nós estávamos, era 1976 por aí, nós estávamos ainda com a ditadura militar, compreende, e o livro “O reizinho mandão” é uma sátira tremenda contra os ditadores, e o livro não tinha sido levado em brincadeira. O livro é de uma riqueza de idéias, enfim o livro para criança é divertidíssimo, mas pro leitor que eu disse, eu era leitora comum e depois eu passei a ser a leitora culta, eu sei a diferença como é que é. Então sei hoje quando o livro vai também interessar pro leitor comum, o que é ótimo, porque a literatura age de uma maneira inconsciente, por isso que é bom, precisa ser, é ler, o negócio é ler, ler, ler e ler com interesse, né? Então eu fiquei espantada e eu comecei a ler os outros livros e daí perceber que havia realmente uma nova literatura que vinha com os valores de comportamento, uma visão de homem que eu tinha descoberto a duras penas na literatura adulta, que tinha começado já na virada de 1950 para 1960. Foi depois da Guerra Fria que realmente, sabe, surgiram os grandes nomes da literatura adulta e eu queimando os miolos para entender… Uma das coisas foi com o Virgílio, aprendi muito com o Virgílio a mergulhar na problemática e ir além da historinha, não é? Não só com ele, mas com vários outros escritores, foi muito...
P/2 – Dona Nelly, só um instante, antes ele vai trocar a fita, porque as fitas aqui acabam muito rápido.
(troca de fita)
P/2 – Após essa reunião então o quê que acontece na sua vida?
R – É, daí depois do primeiro livro que foi “O reizinho mandão”, quando eu me espantei da maneira gaiata com que ela colocou um problema sérissimo que é da liberdade humana, também a ilustração que dialogava com o texto, então daí eu fui lendo os outros livros, daí li da Fernanda Lopes de Almeida que era a fadinha, não é?
P/4 – A fada que tinha idéias.
R – É, exatamente, “A fada que tinha idéias”, então você vê era a reação contra já o estabelecido, então eu percebi que era uma nova literatura, qual foi a conclusão que eu cheguei quando eu percebi esses valores? É que os valores humanos de liberdade do ser, de consciência da palavra, enfim da relação eu e o outro, né, enfim era uma série de problemas, de valorização do fazer, que estavam, que eu digo, estão maduros o suficiente os novos valores que começaram no início do século XX. Confuso que o pessoal da minha casa quando lembravam, as vezes, aqueles loucos da Semana de Arte Moderna e tal, quer dizer, aqueles valores novos já estavam suficientemente maduros para permitir que o criador que fosse escrever para criança usasse esses valores de uma maneira leve, engraçada, fácil da criança entender, quer dizer, ela entendia a história, mas ela já estava recebendo uma influência diferente da outra que era a obediência absoluta. Era uma história… Eu me lembro de uma que tinha, quem não obedece seu papai, um dia balança e cai, eu me lembro, eu lembro da fotografia o menino caindo para trás, era um dos livros antigos, então o título era assim “Quem não obedece seu papai, um dia balança e cai”. Quer dizer, era típico, não é do tempo, enfim, o auge da civilização cristã, liberal, burguesa etc, não é? Obediência absoluta e era um indivíduo de exceção que foi o romantismo todo, era um indivíduo de exceção que conseguia se realizar e pronto, se realizava ele, o resto ficava. A literatura infantil vem trazer essa idéia de que todos têm, portanto, com uma coisa fundamental que era a realização do indivíduo independente do outro, né? Coisa que é absurdo, se você se realiza e o outro não, você tá perdido não é o que tá acontecendo hoje, né, tá uma coisa muito confusa hoje. Mas voltando então a essa reunião, em seguida houve a criação do Centro de Estudo a CELIJU – Centro de Estudos da Literatura Infantil, tínhamos palestras, discutimos sempre com os escritores, as escritoras, os ilustradores… E a ilustração então ela vem cumprir uma nova tarefa, ela dialoga, ela não só reforça o texto, não ilumina o texto como era antes, tinha cena e você via esse por exemplo, esse que eu guardei que não obedece a fotografia era o menino caindo, a cadeira balançando e ele caindo para trás e a mesa, o pai e mãe e ele caindo para trás, quer dizer, a ilustração era só para ilustrar o texto, coisa que não existia mais nessa literatura nova, ela vinha oferecer um diálogo com o texto e o valor da palavra. Eu já tinha vinte e tantos anos estudando a literatura adulta que me desafiou, porque eu não entendia muitos e muitos autores e daí conheci Fernando Pessoa, enfim entrei pela poesia, daí a mistura da Filosofia com a literatura foi normal, não é? Então eu estava preparada para descobrir a importância dessa literatura que chegava na formação de uma nova mente alerta pro mundo, se assumindo, mas sabendo que tem uma relação com a natureza toda. E daí eu comecei a ficar preocupada, porque nesse momento o ensino já estava patinando, o ensino já tinha entrado no caos que ainda está hoje, não é? Eu me lembro que foi nos anos 1960, 1950 para 1960 que veio uma nova, novos parâmetros, uma nova lei da educação que tirou, vocês devem lembrar, tirou a filosofia, latim claro, tirou latim, latim tinha se tornado uma coisa absolutamente inócua, né, tirou a Filosofia, tirou a História… Então ficou Comunicação e Expressão. Comunicação e Expressão e Ciências Humanas e tal que envolvia Sociologia, umas pinceladas de Filosofia. Bom, esse novo currículo eu vi o resultado dele anos depois com os alunos que estavam chegando, absolutamente despojado de cultura, sem nenhum interesse assim pela literatura. Bom, nesse ínterim chegou a televisão, isso foi muito importante nos anos... A partir dos anos 1950 para 1960 daí começou a nossa era mágica, maravilhosa, os meios de comunicação de massa e daí eu fiquei preocupada conversando com os professores, os professores cada vez mais despreparados, meu Deus, gente! Conversando com o pessoal da Faculdade de Educação eu disse: “Olha, vamos criar então uma área onde em vez da gente ir só fazer um estágio na educação”, porque Letras tinha um ano de estágio da educação, para Didática e Metodologia, “A gente podia fazer um curso onde fosse dada literatura e juntamente com Metodologia e Didática, para ser uma coisa rica e com História, enfim”. Então bolamos um curso, enfim maravilhoso, um curso que era dividido em módulos e tal e era um grupo da Faculdade de Educação e eu de Letras, não é? Acontece que o diretor foi apresentado lá na Educação, o diretor quando viu o projeto, não aceitou, ele não aprovou. Eu lembro, eu tinha um ex aluno que já era professor de lá, e ele disse que tinha vontade de chorar porque o fulano, quando viu o programa e tal e o que eles dispuseram essa fusão que ia dar ele disse assim “ Que poder que a Nelly tá querendo?”, então por aí você vê como as pessoas pensam miúdo, que poder? Que poder que eu podia ter trabalhando uma coisa nova, enfrentando e elas também. Agora acontece que a autora da idéia era eu, mas ía o pessoal todo. Divido, portanto essa mesquinhez do diretor da Faculdade de Educação. Eu daí eu comecei a procurar gente de Letras e tal, “gente vamos criar uma área aqui de literatura infantil, porque os nossos alunos não saem preparados para dar aula, mas não saem, eles têm literatura brasileira, literatura portuguesa, eles têm lá filosofia, tem lá nã, nã e onde é que eles vão aprender realmente para poder dar aula. Vão fazer um ano de metodologia, daí estudam só teoria, onde que eles vão fazer ligação?” O currículo já estava patinando, o currículo não ajudava… Quando eu vi que ninguém queria eu disse: “Sabe de uma coisa? Eu vou criar!” Então o projeto que eu tinha feito eu apresentei pro conselho de departamento e, na verdade, foi assim uma zombaria, sabe, “mas por que que você vai se meter com isso?”, compreendeu? Literatura para criança, eu digo “gente, mas precisa formar os professores que vão trabalhar com as crianças!”, que bobagem, cada um que se vira e tal. Quer dizer, foi assim, claro que não podiam dizer não, não é? Quem apoiou muito foi Alfredo Bosi, ele foi quem deu o parecer, e daí foi criado.
P/2 – Peraí só uma perguntinha, que a senhora falou em literatura para criança isso era visto como uma coisa menor?
R – Sempre, sempre e eu, e é compreensível isso, aliás até hoje tem, a maioria não dá a menor atenção, porque vem de muito longe, eu acabei de dar esse exemplo, “quem não obedece o seu papai um dia balança e cai.” A literatura para criança foi sempre, com exceção, por exemplo, do Lewis Carroll, que escreveu Alice no País das Maravilhas, era sempre uma literatura didática, era para obedecer, era para transmitir pras crianças os valores da sociedade cristã, liberal, burguesa, quer dizer, liberal tinha muito pouco, não é? Então era uma literatura menor, no geral o que entrava na escola o cônego Schmidt tem vários nomes que escreviam literatura para criança e isso foram muitos anos, o cônego Schmidt escrevendo, nossa, tem tudo quanto era escola. Tinha esses livros de literatura infantil, talvez tenha sido por isso que eu nem guardo o quê que tava correndo, não me chamava mesmo a atenção, era uma coisa sem nenhum interesse, não é? Então a gente entende que hoje ainda haja peso dessa visão de literatura menor porque está perto, passou o quê? Um século mais ou menos de quando ela foi instalada? Mais um pouco, foi o início do Romantismo que foi criado o sistema, um sistema maravilhoso, que era o sistema cristão, liberal, burguês, só que ele criou essa diferença, a obediência tinha que ser absoluta, compreende, essa era a marca do sistema. Então havia aquela hierarquia ter o pai, ter o povo e no fim era quase igual do outro nobre, depois o pai, o avô, enfim o sistema que foi criado. Isso eu acredito que aconteceu parecia tão perfeito de valorização do indivíduo num momento que saiam de mais de um século de Classicismo, onde não tinha como o indivíduo se realizar, entende? Não tinha como. Ele nasceu plebeu, acabou. Não tinha passagem durante toda a era clássica, século XVII que surgiu o Iluminismo, tal, não tinha como passar de uma classe para outra. Daí ter tanto padre, porque a única maneira do fulano passar, isso vinha desde a Idade Média, era ir para Igreja, daí sim ele ia ser um sacerdote, era o único jeito. Fora disso ele não sendo filho de algo, compreendeu, acabou você não tem como. É, claro que daí surgiram… Ligadas ao descobrimentos foram esses plebeus, os dos burgos, os burgueses, que foram descobrir Índia e tal, começou aí o negócio, se organizar essa sociedade que era da era romântica, né, que a base é o individualismo, é o indivíduo e a seção que tem que criar. Então os descobrimentos, todos, a gente não pode esquecer foram os burgueses, eram os que serviam, era servos do burgos, eram os trabalhadores, eram os burgueses (risos). Acontece que daí eles é que enchiam os navios e vinham e saqueavam e ficavam ricos e tal, alguns ficaram muito ricos etc, sempre com as táticas das maracutaias que cada época tem um tipo, né? E começaram a depois, no Classicismo aparecer aqueles que compravam os títulos, lembra, o fulano comprava o título, era um ex burguês que ia enriquecendo e daí ele comprava o título de visconde, marquês… E uma das vias de dinheiro da Coroa era vender título, então houve um período bastante grande, durante toda a Idade Média, a era clássica, a Idade Média não, a era clássica, a Idade Média nem se fala, da era clássica.... Quando daí vai surgindo uma reação contra essa impossibilidade do indivíduo de valor realmente ter lugar independente, dele não ser filho de algo, né? Então para gente entender bem o individualismo do romantismo que vai chegar até o nosso século, daí depois da semana de arte é que vai começar a arrebentar isso, mas nós estamos em plena, está uma confusão danada, agora para passar de um estágio pro outro demora. Então veja: sendo a base da era romântica, que foi a área de progresso, vem a indústria, vem a revolução industrial. A revolução industrial mudou a cara do mundo, veio a máquina como hoje nós estamos com a cibernética. Mudou a cara do mundo, nós estamos numa fase, uma era que já começou no início do século XX, ela já foi apresentando sinais, mas ta longe ainda de se realizar, eu costumo dizer que nós estamos no olho do furacão, né? Nós estamos no olho do furacão, porque nós estamos com um sistema que vem de longe, que era o sistema da era romântica, ainda muito do individualismo, eu tenho o meu e acabou, não é? Então ainda temos o sistema forte, ele está vigente, é só a gente abrir o jornal, ligar a televisão e ver o que se passa no planalto, ele está vigente ainda, o sistema de poder. E já estamos com uma cultura nova que começou a ser engendrada no início do século XX, então eu vejo na literatura os frutos dessa cultura e ela está se chocando com o sistema que ta firme, tá firmérrimo, né, vai demorar muito para mentalidade de quem está lá mudar. Não digo que o sistema esteja errado, é que a mentalidade vem de longe. A mentalidade vem da era romântica, do indivíduo ainda é o que está prevalecendo e, que a literatura infantil já vai trazer de uma maneira diferente, compreende, ela já está incutindo essa relação eu e o outro como algo fundamental. Então não é só aquele indivíduo de exceção que era o ideal, era o chefe de família, era a família patriarcal, era também, entra aí, a mulher se libertando, que ta perdida hoje, fora os casos particulares, cada um que cuide do seu jardim, porque solução não tem, solução para mulher hoje não tem solução pro homem hoje não tem. A não ser como nós já conversamos, ter poder e ter dinheiro, fora disso que a lei absoluta do nosso não tem igual, você faz uma faculdade, vai fazer isso e chega faz a faculdade, não tem emprego tá na… Sabe, tá tudo muito complicado. Mas a literatura mostra muito bem então essa confusão. Isso tudo porque, por causa da literatura ser considerada um gênero menor, convencionou-se portanto, que para a criança tinha que passar ipsis litteris o sistema, qual era o grande elemento do sistema para ele funcionar? Obediência absoluta, compreende, então era o indivíduo de exceção, não tinha nada e ele subia, por exemplo, daí ele pater famílias e tal e ficou então marcada essa literatura. Eu acho que, claro, eles consideravam o sistema tão perfeito que não tinha que mudar nada, ele tem que passar pros mais novos absolutamente igual, porque ele era perfeito. O capital e o trabalho foi então resolvido o negócio, capital e trabalho foi uma grande descoberta, porque o fulano tinha dinheiro daí todo mundo trabalhando, ganhava e tal, sabe, se pensar foi realmente um sistema generoso, os burgueses iniciais era assim um ideal generoso, que deu no que deu, né? Mas é fase, é fase, você não pode passar de uma postura, uma filosofia de vida para outra diametralmente oposta sem ter confusão. Por isso que eu digo que a gente está no olho do furacão. Então veja que até hoje a literatura infantil é vista como gênero menor, quando na realidade hoje ela é criativa, ela é uma arte criativa, tanto na ilustração como na trama toda. Tem os grandes escritores e tem os medíocres que copiam, isso sempre foi assim e vão multiplicando, não é? Então hoje o curso de literatura infantil na USP, veja que é consciência dos que estudam está aumentando assim no sentido que eu digo assim “eu preciso saber”. A literatura infantil era complementar, agora que ela vai passar, acho que a partir do ano que vem, ela vai passar a ser obrigatória, mas eram duas disciplinas que nesses últimos anos faziam com que os candidatos chegassem bem antes da hora, chegavam lá quase de madrugada para pegar a senha para poder matricular, porque o número de matrículas era insuficiente pro número de gente que queria. Era Língua Portuguesa, o que me deu muita alegria, quer dizer, tem gente sabendo que precisa conhecer muito bem a língua, senão ele ta mal, dominando a língua ele tem um instrumento de trabalho, de pensar, e de relacionar muito grande e a literatura infantil. Então quando eu soube disso eu fiquei muito, muito contente. Eu digo: “Está crescendo a consciência de jovens, estão querendo se preparar”, e um conta pro outro o que o curso tem. O problema é esse, o curso é de uma riqueza enorme, porque a literatura é dada em relação com a História, compreendeu, pro fulano saber se situar, então entra muita coisa, é um verdadeiro novelo de coisas que vão formando a visão de mundo de quem vai ter que viver nesse mundo confuso que nós estamos e vai ter que ensinar, não é? Então foi por isso que quando eu vi daí eu descobri o que a literatura nova estava trazendo. Aí conhecia os vários escritores e gente de cultura, compreendeu, foi daí que eu realmente criei e fiquei sete anos sem conseguir, porque eu não pedi verba, claro, como é que foi criado? Como é que você conseguiu ser aprovada? Eu não perdi verba nem pedi assistente, então todo mundo aprovou, lá em cima aprovaram, ela não tá pedindo nada! Essa boba vai trabalhar dobrado pelo mesmo preço, compreendeu? Eu sei que foi piada, eu juro que servi de piada, mas eu nem liguei, porque eu achava que precisava fazer aquilo. E as aulas eram... e dava diurno e noturno, eu vivia na Universidade de São Paulo, eu vivia dando aula (risos), porque eu fiquei com a portuguesa, continuei, evidente, tinha alunos fazendo doutorado e mestrado, dava pós-graduação, eu formei bem uns sessenta candidatos de mestrado e doutorado, agora encerrei, eu to com três e esses são os últimos, são ótimos! Muito bons.
P/2 – Dona Nelly, como é que surgiu a idéia do dicionário?
R – Exatamente para poder ajudar os professores a entender o quê que cada livro tinha de importante para a formação. Eu dava nas aulas, explicava e eles ficavam espantados, mas se entusiasmavam e foi que eu comecei então a dar os cursos com apostila, porque não havia bibliografia, simplesmente depois que eu criei o curso é que eu vi que não havia bibliografia, não havia. Havia uma história do (Jesualdo?) que era literatura, enfim bem resumida, fases da literatura infantil e tal, tinha do (Jesualdo?), tinha um livrinho da Bárbara Vasconcelos, que era cópia do (Jesualdo?) eu tinha uma história da literatura infantil francesa que era da literatura antiga, mas contando a história, era só isso e eu fui obrigada então a montar um curso e fazer apostilas, eu fiz apostilas, fazia e na aula analisava com eles e tal, sei que as aulas eram divertidíssimas, sabe, foi um período assim extremamente divertido, porque eu fui descobrindo a literatura infantil, e daí a apostila, eu acabei transformando em dois livros. Agora veja que em três anos eu publiquei a literatura infantil, teoria que está na Moderna hoje; o panorama histórico da literatura infantil que está esgotada, vai sair agora por uma editora nova eu deixei, não quis reeditar depois de estar esgotado na Ática, eu retirei que eu ia reformular eu achei que tinha que, porque é histórica, que era muito erudito, eu preciso tornar mais leve e com isso ele ficou esgotado, mas ele está na bibliografia dos cursos de literatura infantil, em todo o Brasil, porque, abriu o curso de literatura infantil meu livro está ali, porque tem muito pouca escolha, não tem, o que tem é tudo no meu livro não tem. E daí o dicionário não me pergunte como é que eu pude fazer (risos).
P/1 – A próxima pergunta era essa (risos)
R – Não sei, eu não sei, quando eu vi eu folheei aquele dicionário, folheei, eu me pergunto como é que eu pude escrever isso tudo em três anos dando aula de manhã e à noite, a literatura portuguesa que é minha paixão, adoro literatura portuguesa, contemporânea principalmente, a contemporânea, eu não sei, então foi me dado realmente eu acho que uma energia extra, o meu anjo aí andou trabalhando.
P/2 – Ô sem dúvida...
R – Sem dúvida. A esta altura quem não acreditar no anjo ta perdido viu, porque o resultado tá aí concreto, foram livros que na hora, depois de eles publicarem e tal, nunca me ocorreu como eu pude escrever isso tudo sem ter uma bibliografia para aplicar. Claro que eu tinha vinte e tantos anos já de análises de história da literatura das várias literaturas, claro que isso tudo me ajudou a enxergar que eu conhecia bem a literatura italiana, a literatura espanhola, nossa, eu fiz neo latina, a literatura francesa de trás para diante, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a filosofia que está por trás, então eu tinha já um cabedal que mais tarde que eu comecei a perceber como é que eu fiz, é que já estava ali preparado para enxergar um produto novo e eu perceber e conseguir escrever é outro mistério que ficou, tal qual a pessoa que me telefonou que eu não sei até hoje quem foi, como a escrita desses três livros que são chave hoje, eu tenho dado aula do Brasil inteiro, até no Acre o livro está sendo usado, me escrevem e tal. O último faltava eu conhecer Rondônia, então ano passado eu fui a Rondônia.
P/2 – Foi a Rondônia?
R – Fui, fui a Rondônia, dei um curso lá, foi ótimo, o que tinha de gente… Para professores, né, eu fui dar um curso de três dias e assim um curso intensivo de manhã e à tarde, mas foi muito bom. Então eu sei que eu já vi lá, tinha dois ex alunos lá, sabe, que estavam coordenando, que já estavam trabalhando lá, e por isso me convidaram, então a minha semente já estava lá, compreende, então eu acho que continuo trabalhando intensamente. Agora estou organizando os escritores brasileiros, são setenta, não sei porque escolhi, escolhi, não sei, eles foram chegando, né, que eu trabalhei durante esses anos todos que eu trabalhava com portuguesa e por minha conta a brasileira. Então estou terminando. Eu acho que todos esses privilégios que eu tive no fundo eles tinham uma finalidade, quer dizer, eu tinha uma tarefa, compreende, que é legitimar o que o escritor está escrevendo e transmitir para os outros, para enriquecer a própria vida, não é? Eu me lembro que na ocasião eu achei uma bobagem, mas hoje eu vejo que é uma verdade, nós estávamos num grupo, no café Acadêmico lá em Lisboa, então estava uma discussão assim entre o Namora, estava o Abelaira era sempre, o Assis Esperança, enfim tinha uma meia dúzia de escritores, e estava a discussão sobre o que era afinal um grande escritor? Então era aquela discussão, um falava isso, o outro falava e aquilo e o Abelaira assim bem quieto assim com aquele cachimbo, eu lembro dele sempre com um cachimbo, né, ele disse “opa, um grande escritor é aquele que tem sorte de encontrar um grande crítico”. Na hora eu achei aquilo muito engraçado eu disse “imagina Abelaira, você ta doido! Imagina se um crítico vai fazer um grande escritor!” aquilo eu levei em piada, não é? Levou muito tempo, hoje eu tô certa realmente precisa do crítico, se não tiver o crítico para explicar o quê que aquela obra tem, o quê que ela representa, compreendeu, quem é que vai saber que o fulano… Por exemplo, eu encontrei um grande escritor em Mato Grosso, quando eu fui dar um curso em 2001, é o Ricardo Guilherme Dicke.
P/2 – Ah, o Ricardo Guilherme Dicke.
R – Guilherme, grande. Então quando eu fui dar o curso em Cuiabá, nem foi em Cuiabá primeiro, foi em Tangará da Serra, que eu nem sabia que existia, lá perto do Pantanal, mas uma belezinha de cidade, boa, bonita, ruas largas, muito dinheiro correndo, gado, sabe, um grande progresso. Em Tangará da Serra que eu fui dar esse curso, também para professor, porque para ir eu quero antes saber quem vai, qual é o número, que nível, com o que eles estão trabalhando… Porque daí eu preparo uma matéria direta para esse grupo, eu não vou lá vender o meu peixe, sei lá qual é o peixe que vai servir pro outro, compreendeu? Então uma hora, uma das professoras “ah, nós temos aqui um grande escritor da terra e tal Ricardo Guilherme Dicke!”, eu nunca tinha ouvido falar no nome dele, então eu disse “ah, tá bom”. Nem liguei porque em todo lugar que eu vou sempre tem um escritor da terra, vem me apresentar um escritor da terra, eu já to acostumada, né? E pronto, mas aí quando eu fui embora ela deu alguns livros deles, né, que eu trouxe, mas sem nenhum interesse, guardei e só há uns dois anos atrás quando eu comecei a fazer esses escritores brasileiros que eu disse “deixa eu ver esse tal de mato grossense que já escreveu tantos livros” e peguei então o primeiro que eu soube que concorreu ao prêmio Walmap em 1967 por aí e ganhou o segundo lugar, o primeiro lugar foi do Oswaldo França Júnior, com “Jorge, o brasileiro”.
P/2 – Ah, com o “Jorge, o brasileiro”.
R – E o Ricardo Guilherme Dicke concorreu com o “Deus de Caim”, mas é um grande romance, é grande, e fui lendo os livros dele, eu digo meu Deus como é que este até hoje não é conhecido? Você veja o que é a falta do tal acaso, ele poderia ter mandado o livro para mim, eu já estava escrevendo pro Estado de São Paulo, a editora poderia ter mandado o livro para mim, sem dúvida quando eu lesse aquele livro eu ia escrever alguma coisa, e pronto, lançava o Dicke no eixo Rio-São Paulo. Ele não foi lançado no eixo Rio-São Paulo, então essa devia ser uma grande tristeza dele. E quando foi logo em seguida que eu descobri isso eu pedi pro meu filho olhar na internet, porque isso eu não chego nem perto, entende (risos). Eu aprendi, mas psicologicamente não dá, é uma coisa mágica e quem está trabalhando precisa ser dono daquilo agora, eu me permito, eu tenho a funcionária, ela digita, eu escrevo a mão, depois eu datilografo, eu sou ótima datilógrafa, tenho uma IBM eletrônica a anos e...
P/2 – Ah, que bacana, cento e oitenta toques por minuto.
R – Ah, é uma maravilha, eu sou muito boa datilógrafa, o que me valeu o emprego no banco, o primeiro emprego que eu tinha no banco Paulista do Comércio, né, porque eu era, eu era já boa datilógrafa naquela ocasião. Então o meu filho achou e tal e por acaso ele tinha recebido recentemente o tal de Dicke né, que ele encontrou na notícia, ele tinha recebido um prêmio de doutorandos e que quem fez o discurso foi a filha dele, porque ele tinha tido um infarto e estava impossibilitado de falar. Quando eu vi aquilo eu disse “ah, eu vou escrever sobre este homem, já teve derrame? Ele precisa saber que eu descobri a obra dele, compreende?”. Daí eu escrevi uma carta para ele, sabe, eu escrevi uma carta bem longa, comentando os livros e dizendo qual eu tinha escolhido, uma maravilha de livro que é o “Salário dos poetas”. Vai ser centro do ensaio sobre ele que vai estar nesse livro, escritores brasileiros. Então eu escrevi para ele contando o que eu tinha lançado, enfim, analisando e dando os parabéns que eu fiquei muito feliz em ter descoberto um grande escritor realmente e tal e daí eu recebi depois um bilhete dele, batido a máquina, disse que tinha recebido a minha carta, então ele fez: “eu só posso dizer que eu estou muito feliz, feliz, feliz, feliz, feliz”, ele encheu a folha com a palavra feliz e assinou. Sabe, eu digo olha tem momentos na vida que as palavras morrem, o quê que ele podia dizer? Então eu vi como ele ficou feliz, eu sabia, eu digo eu preciso dar uma alegria para esse homem, como é possível ter essa garra e ninguém conhecer? Então deve acontecer, deve ter gente muito boa que escreveu por aí e a gente não sabe, compreende? Esses todos que somos quase, pelo menos eu vou deixar registrado, eu acho que a minha tarefa é essa, como eu fiz com a literatura infantil, estou fazendo... fiz com os escritores portugueses, os grandes nomes do século XX, né, tem outros mais, mas foram aqueles que caíram também, eu não sei dizer, tem mais uma meia dúzia, ou uns dez que poderiam estar no livro e talvez um dia eu faça, não sei, se Deus me der vida, engenho e arte eu vou fazer, para uma edição brasileira, compreendeu, porque a edição lá é pequena...
P/2 – Preciso só trocar a fita.
Troca de fita
P/2 – E algumas fases que a senhora considera realmente bem distintas... Nelly vamos fazer um passeio por essa nova literatura juvenil, a senhora acha que ela começa quando? Quando que ela é fundada?
R – Olha, ela começa eu acho no início ou na passagem ou de 1960 para 1970, ou, principalmente, na década de 1970, não é? Na verdade foi quando eu descobri e depois nos estudos eu verifiquei que todos seguiam, apareceram meados, não é bem no início de 1970 não, eu não sei o quê que é, mas vai descobrir. Mas, por exemplo, eu vi a ilustração, por exemplo, a Eva Furnari, que é, isso eu posso falar, a Eva Furnari é uma extraordinária, ela abriu um caminho, ela criou um gênero que não era só a história em quadrinhos, não, mas era muito inteligente, porque ela fixou cenas da vida da criança na coleção Peixe, na Ática. Então veja, era o dia a dia da criança com as coisas mais importantes, a comida, o amor, a avó, o brincar, enfim coisas essenciais que são do dia a dia, mas ela conseguiu pela imagem, quer dizer, isso para criança que ainda não sabia ler, isso era ótimo. Professor e falando o quê que é isso, vamos nomeando, nomeia, com isto a nomeação era importantíssima, porque uma das coisas que eu chamo sempre a atenção dos alunos não esquece disso, o mundo existe coberto pelo mundo da linguagem, o Lacan que é um complicado fulano disse uma frase ótima que dá para entender: “o que não é nomeado, não existe”. Depois para ele explicar isso a gente se perde no labirinto do pensamento dele. Mas isso é importante, a palavra, o domínio da palavra, então um dos elementos que marca essa nova literatura é uma consciência da palavra, compreende, é uma consciência nova, quer dizer, é preciso nomear as coisas, não é? Depois, aí continuando com o exemplo da Eva Furnari uma artista que realmente foi pioneira nisso, né, ela abriu esse caminho, ela daí inventa aquela série da bruxinha, então entra ali a imaginação, o fantástico fazer e trabalhar a imaginação da criança, a surpresa, o inesperado e sempre, às vezes uma palavrinha só, quer dizer, fazendo isso, o que eu digo, lembro sempre o quê que fazem com as crianças? Ah, é o papai, é a vovó, é o au au, é o miau e a criança vai reconhecendo o mundo pelo nome… É um dos elementos que eu chamo muita atenção pro professor que tá se preparando para professor ou pro professor, que ele está lidando com o elemento que cria o mundo, a coisa é como você diz que ela é. Daí a importância que eu passei a dar para a literatura infantil, porque é o momento em que a criança vai entrar em contato com a linguagem, compreendeu, a partir das figuras, a partir das imagens. E esta consciência da palavra eu descobri lendo a literatura contemporânea, né, na linha do existencialismo, do novo romeau, enfim todas as rupturas da primeira metade do século XX, que começa com o Modernismo e que eu chamo de pós modernos, nós estamos em pleno pós-moderno, compreendeu, não estamos mais guiados pela razão cartesiana, que era a base do mundo antes de nós, era a razão que explicava tudo. E, a partir das descobertas do Einstein, enfim de outras coisas, a gente sabe realmente que a realidade não é exatamente aquilo que você pode chegar a um conhecimento lógico e total, porque muita coisa escapa. Então há muitas interpretações do pós moderno, mas para mim o que define o pós-moderno e que eu vejo na literatura infantil e na literatura adulta, é exatamente a falência da razão tradicional, compreende? Claro que ela vai ser recuperada de uma outra forma, porque tem que ter uma lógica no mundo, mas o sentido último da vida ela não dá, né, e não dá desde que o Darwin resolveu escrever o livro sobre a origem das espécies pela evolução da matéria. Então veja o Darwin escreve lá em 1859 e em inglês, a França imediatamente publica em francês e nós tivemos uma explosão, a partir dessa explosão começa o pós moderno, compreendeu? Essa explosão pegou Dostoievski, pegou Machado de Assis, pegou Eça de Queirós, mas ainda o sistema era, compreendeu, daí se monta o sistema foi o finalzinho do sistema cristão, liberal burguês, começou o declínio, pegou os grandes poetas. Então veja, voltando, senão eu vou me perder aí, voltando ao problema da literatura infantil, nós temos grandes, grandes, esses que estão sendo citados sempre, eu posso citar a Ruth Rocha, grande, né, trouxe grandes inovações, no sentido do conhecimento do ser, das relações do ser com o mundo, o conhecimento da palavra. Inclusive no “Reizinho mandão”, quando a menina fala “quem manda na minha boca sou eu”, ela põe bem grande, o ilustrador é fundamental aí, compreende, o ilustrador é fundamental. Outro livro chave da Ruth Rocha que me despertou na ocasião era “O Nicolau teve uma idéia”, e aí a ilustração foi do Valter Moreno, então o que ele põe? Aquele menino, não sei se vocês conhecem, a primeira edição ilustrado pelo Valter Moreno, porque ele decodificou aquela história de contar a idéia, um homem que chega com uma cabeleira azul, roupa vermelha e começa e encontra numa aldeia um monte de gente com idéias, então usa o balãozinho, ele usou balãozinho, cada um pensando uma coisa, então o Nicolau veio com uma idéia e ele contou a ideia dele para um fulano, a idéia do Nicolau era um pássaro azul, sabe, e o fulano contou a ideia dele para… Era um peixe, alguma coisa assim, e assim vai indo o livro todo, um contando idéia pro outro, sempre balãozinho e os balõezinhos se cruzando e no final o Nicolau passa a ensinar as idéias dele para criançada, os pais levaram as crianças para ouvir o Nicolau, quer dizer, estava criada a história. E no final do livro, então tem um espaço em branco que diz assim “escreva aqui a sua idéia”, com as crianças isso dava um resultado extraordinário, elas desenhavam e tal coisas tolas, mas diziam o que era. Percebam o que esse livro trás, quer dizer, esse foi um dos livros que me abriu os olhos com o problema da palavra e da idéia, uma coisa absolutamente abstrata como uma idéia, como é que você vai ensinar a uma criança o que é a idéia, o que é um pensamento? Ali foi simples, então ela sabe que ela fala, ela sabe que tem aquele balãozinho, ela sabe que vai falar, o outro vem com o balãozinho, então a brincadeira que se pode estabelecer jogando com a idéia, pois a criançada toda desenhava as idéias e é isso, é isso, é aquilo e tal, compreende? Então veja o livro, qual era a problemática dela, você tem que trabalhar com as ideias, porque se a sua mente não funcionar, não funciona nada. Agora, eu não sei o quê que aconteceu que as novas edições, sinceramente, é uma calamidade, porque o ilustrador interpretou que se passa na pré-história, assim são homens da caverna, são muito bonitas as ilustrações, muito bonitas e tal, mas o problema é que foi interpretado, sabe qual é a idéia que ele teve? Ele criou a roda, então a roda era quadrada e depois ele acaba criando a roda, meu Deus do Céu, como é possível você empobrecer um texto desse jeito? Criar roda, entendeu? Mudou completamente o sentido, então veja a ilustração como é importante, eu não entendo porque, até hoje eu não conversei com a Ruth a esse respeito, ela foi homenageada, entrou para a Academia, que eu tive com ela, mas também não era lugar, não houve assim uma ocasião que pudesse dizer “escuta porque cargas d’água tiraram a ilustração do Valter Moreno” que era a chave, está percebendo?
P/2 – Mas o interessante nós vamos entrevistar Valter Moreno na semana que vem, nós vamos conversar sobre isso, nós vamos na casa dele.
R – Ah, na casa do Valter Moreno, pois diga para ele...
P/2 – E ele deve ter o livro...
R – Ah, ele tem sem dúvida, diz que eu sou uma fanática dele, ele é muito bom, ele é muito inteligente, enriqueceu o texto. Então você veja o problema da palavra. Toda aquela ilustração quando foi, quando a coisa foi nomeada e foi feita, quer dizer, foi pobre, que interessa a criança saber, a roda para ela é uma coisa assim tão comum, que bobagem! Não é? Ao passo que não, tudo é simbólico, sabe, é de uma riqueza extraordinária essa primeira edição. Então, na verdade porquê que eu me entusiasmei com literatura infantil, porque eu vi nela, nesses grandes nomes todos, outra coleção fantástica nesse sentido é do
Eliardo Franca com a Meire Franca,uma delícia tudo aquilo que eles montam tem um sentido, sabe? Tem um sentido de vida, tem um sentido de pensar, sabe, é engraçado...
P/2 – A senhora tá falando do quê? Do “Gato e o rato”?
R – A coleção “Gato e o rato”, né, tem a história do bode, por exemplo, tudo é para que… Ele achou o bode que acha uma bota, enfia a bota, não serve para ele, dá a bota pro outro, então vê a noção de oportunidade, de coisa, de tamanho, não é? E sem palavras, tem que ter alguém nomeando ou fazer a criança nomear, então a chave aí é realmente a palavra, na nossa vida é a palavra. Se você não domina a palavra bem tá perdido, ou então usa uma palavra mentirosa, e daí você tá sabendo que não vai sair do lugar. É o que nós estamos ouvindo na televisão o tempo inteiro, mentiras sobre mentiras, mentira sobre mentiras, né? Mas vai chegar uma hora em que a palavra verdadeira vai ter que sair de lá do Planalto, sem dúvida nenhuma estão precisando disso. Então, veja (risos), eu continuo trabalhando, analisando literatura infantil não mais, não, não mais porque o que aconteceu? Tudo aquilo que surgiu novo, de valores estão agora se multiplicando. Eu tenho recebido os livros constantemente, as editoras me mandam etc, então eu estou a par, mas não teve nada novo, tem novidade em ilustração, em cor e tal, mas problemática não tem nada novo, não tem nada novo. O que é natural, porque se trata de uma visão de mundo diferente daquela que nós herdamos e que está ainda se fazendo, então até ela se fazê-la precisa de muita gente boa para ir multiplicando, né? Os criadores já surgiram, nós tivemos um Joyce pronto, um Joyce e foi toda uma linhagem de escritores que até hoje foram, uns rastros foram, foi um Joyce, foi um Shakespeare, foi um Cervantes. Então depois tem que multiplicar, nós estamos no momento da multiplicação, eu não acredito que possa surgir agora um gênio para mostrar, eu não acredito, sabe, porque não é a hora ainda, ainda não foi assimilado, por exemplo, nesse Ricardo Dicke, aquilo é uma maravilha, a visão de mundo dele é de uma riqueza! Vários livros dele são extraordinários, mas ta aprofundando essa nova visão de mundo que eu chamo de pós-moderna, onde a razão lógica nem sempre é a certa, quer dizer, é uma liberdade maior...
P/2 – Nelly, nós já abusamos muito do seu tempo, você tem alguma coisa Tiago para colocar, para gente terminar esse segundo tempo?
R – Olha, falar de literatura não tem fim (risos), acho que eu cheguei às três horas (risos), para falar meia hora com a Clarice Lispector, meia hora com Virgílio Ferreira e saí às onze horas da noite, porque realmente estava na hora de dormir, senão a coisa vai, não é? Então é isso, eu espero que realmente esse trabalho que vocês estão fazendo é da maior importância sabe, a divulgação então dos criadores, dos pensadores, do que eles acham. Porque nós estamos em plena construção de uma nova era, dizem os esoteristas que nós entramos na era da mente, eu acredito, eu acredito, porque está faltando isso, o homem ter o terceiro olho, que é aquele que alguns gênios têm, e que chamam de louco na hora que ele fala. Foram todos considerados loucos, hoje todo mundo aceita. Então pode ser que eu esteja errada, mas o que a literatura me ensina é que agora um gênio novo, um inventor não vai aparecer, porque toda essa visão de mundo em que o “eu” está no centro, com a palavra, em relação com o outro, compreende, não sei se é a base. E daí a construção do mundo que depende de cada um, de todos, depende de todos, de qualquer estágio social que esteja, o mundo não é feito só dos gênios, nem só dos aristocratas, nem só dos ricos, a literatura tanto adulta como a infantil que surja, infantil, juvenil e infanto juvenil mostra assim uma alegria, no fundo uma alegria muito grande na convivência, na disputa, e sempre a palavra, e sempre a palavra, não é? Então não esqueçam do Lacan, “o que não é nomeado, não existe”. Então a primeira vez que eu li eu digo, mas que exagero esse fulano, depois caiu a ficha e eu digo é verdade! Não é? E tem apenas mais uma outra frase que eu vou encerrar a minha fala que é do Kazantzákis, gênio grego, um grego genial, aquele que escreveu o filme “O Zorba”. Diante da situação que nós vivemos, de perda do sentido do mundo, ele disse: “Não é o Homem que precisa de Deus, mas é Deus que precisa do Homem”, então li essa frase há muitos anos e achei um absurdo! O quê que esse grego vai dizer que não é o Homem que não precisa de Deus, é Deus que precisa do Homem? É verdade, só mais tarde que caiu a ficha, como Deus disse faça-se a luz e a luz se fez foi pela palavra de Deus que o Homem apareceu e criou. Uma vez que disseram que Deus não existe, cabe ao Homem usar a palavra e dizer olha Deus existe. Pode ser que ele não tenha o nome de Deus, não sei, mas o fulcro da nossa civilização hoje é essa ausência de Deus, daí essa ânsia de sagrado que anda por aí, as Assembléias de Deus aí, fervilhando de gente, um grande negócio para quem manipula, realmente é um dos grandes negócios hoje, mas ela vem atender a uma necessidade profunda do ser humano, ele precisa de Deus, não é? Porque senão não tem sentido o mundo, se você não acredita num poder invisível, naquilo que você pertence a algo muito maior do que a sua vida e quando você morrer você vai para lá. Hoje meus amigos, a maioria dos amigos foram todos embora, eu sei que eles estarão me esperando lá, tenho certeza absoluta, essa frase do Kazantzákis eu acho fantástica, porque não é o Homem que precisa de Deus, mas é Deus que precisa do Homem, isso é ser nomeado outra vez, como é que ele vai se chamar? Não sei. Será que ele vai aflorar outra vez? Compreende? A ciência nega a criação do Homem, então nós estamos num momento de choque entre a ciência e a religião. Claro que isso, a humanidade não ligou a mínima do Darwin ter escrito isso, graças a Deus, senão o mundo tinha explodido. E a maioria não tá ligando a mínima para isso, ainda bem, senão todo mundo ia ficar doido. Cada um tem a sua fé, cada um resolve, mas isso precisa ser resolvido, porque Darwin, coitado, ficou sendo o símbolo, né? Não foi só ele, desde os iluministas que eles vinham estudando a coisa, e acabou Darwin o que fechou tudo, na biologia etc etc. Então a partir desse momento nós entramos realmente no vácuo, né, daí uma obra como Dostoievski, daí o fato, por exemplo, de Machado de Assis ser sentido hoje como o nosso contemporâneo e o Eça de Queirós tem envelhecido, envelheceu mesmo, mas envelheceu, por quê? E outro dia que meu veio essa idéia, porque meu Deus eu não aguento ler o Eça de Queirós, no entanto o Machado que é da mesma época, da mesma geração, você continua lendo e tal. É que o Eça de Queirós ele se fixou na ética, na moral, então ele incindiu tudo no adultério, sabe, a hipocrisia social, na ética e tal, ora a ética, sabe, a ética, quem pensa hoje em ética? Quer dizer, a ética, é menos importante do que metafísica, é preciso a metafísica e o Machado de Assis, ele foi tocado na metafísica, sabe? Então perceba onde é que a gente vê isso? Todos os livros dele romances ou contos você vai ver que ele mostra para o leitor aquilo tudo que ele está vendo, aparência é falsa, em todos os livros dele, aparência é falsa. Então ele não entrou em angústia nenhuma, até tem um certo humor, um humor machadiano que ele pegou dos ingleses, né, o humor britânico, mas e por isso ele continua nos falando de perto, sabe, de uma maneira até inconsciente. Mas nós estamos numa fase em que as aparências são falsas, e isso vindo lá de longe, compreendeu? Como disse Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”, e toda obra de Dostoievski que era um grande religioso, mas também era um homem muito culto foi um embate entre existir e não existir, foi uma geração que recebeu o primeiro impacto da morte de Deus, que a ciência veio. Einstein foi um que procurou sem dúvida, ele era judeu e religioso, tentar definir o que ele estava vendo. Eu lembro de uma entrevista, uma das últimas entrevistas dele, ele disse assim “o que eu estou intuindo e vislumbrando eu não consigo ainda pôr em equação, quer dizer, que ele já tinha sentido o que era que podia ser Deus, mas ainda não podia pôr em equação”, quer dizer, não podia transformar num pensamento lógico que todo mundo entendesse. Ele deve ter sido um dos intelectuais que sofreu muito com a verdade da ciência, sendo ele um grande cientista e sendo judeu, que é uma coisa fantástica o judeu, aquele sem terra, um povo que sobreviveu séculos e séculos e séculos, agora arrumou lá e tão brigando, né, foi em 48, eles ficaram desde Cristo sem terra! Fantástico! E continuaram povo, não é uma coisa, é assim inacreditável, porque todo o povo que perdeu a terra desapareceu!
P/2 – Desapareceu! É um caso raro na História, né, judeu.
R – É impressionante, eles atravessam tudo, todos os povos que perderam a terra, perderam a coisa desapareceram, o judeu perdeu a terra e, no entanto, ele continuou, mas baseado na religião, não é? Eles têm uma fé comum e lá os valores comum, esteja ele na Inglaterra, na França, na África, no Brasil e tal há um amparo interior, no judeu. Foi uma das coisas que me veio a idéia outro dia, é incrível isso, o fato de ter sobrevivido como povo e atuando, vai para um país com uma inteligência incrível, né, uma capacidade enorme de fazer dinheiro, de fazer progresso, expulsos, em Portugal, foram expulsos da Espanha e foram expulsos, foram expulsos de tudo quanto é país e eles continuaram, é uma coisa fantástica, não é? Então houve uma ocasião que eu pensei, quando eu voltar eu quero voltar judia, hoje, eu não sei se eu vou querer voltar judia, ou se brasileira mesmo (risos) ou judia brasileira (risos) não sei, porque eles são muito inteligentes, sabe, agora que eu vou e depois se eu puder voltar eu volto logo, eu gosto muito da vida, eu volto logo, eu vou conversar lá com o baixote, eu não sei o nome que tiver lá, mas eu sei que tem, e não é? Então às vezes eu brinco, eu digo não, se puder voltar, não, as vezes eu penso, não, eu não vou voltar logo não, vou esperar que haja essa evolução e quando todos já estiverem com o terceiro olho daí eu volto, porque dois só não dá. Então ou eu volto com o terceiro olho, ou se eu voltar antes talvez judia, eu acho que vai ser é muito bom ser judia, e prefiro vir mulher mesmo, sabe? Ah, eu prefiro vir mulher mesmo, é, eu acho que dá muito trabalho ser homem (risos).
P/1 – A gente concorda (risos)
P/2 – Nelly, gostaria te agradecer pela entrevista e a gente queria se convidar para visitar você na biblioteca para conhecer os seus tesouros lá.
R – A hora que vocês quiserem vão lá, eu tenho um apartamento duplo, né, 81 e 84 e não tem um lugar da casa que não tenha livro, nenhum, nenhum, nenhum, nenhum, os dormitórios todos foram transformados em biblioteca, né? Mas realmente eu não entendo a vida sem livro, isso desde pequenininha, eu vejo que foi muito bom eu ter nascido naquele casarão e com aquela família, e no Largo da Concórdia, não é? Levei anos sem ir pro Brás, apenas quando entrei outro dia e estava com a editora eu fui comprar papel, não sei o que eu fui comprar que depois, na Vila Formosa, e depois eu voltei, me perdi naqueles meandros, de repente eu vi que eu desemboquei no Largo da Concórdia, mas me deu uma dor tão grande, porque aquilo tudo cimentado, tinha sumido tudo, não tinha teatro, não tinha coreto, não tinha nada, aqueles ambulantes todos, aquela sujeirada, aquela gentarada, chorei, mas chorei muito mesmo, fui chorando até chegar em casa, alguém via eu dirigindo, quê que será que essa fulana ta chorando tanto? Mas foi assim uma perda, uma perda da infância que vale o que tem na memória, que a gente guarda, vamos parar, porque senão o assunto não acaba (risos).
P/2 – Que bom, então muito obrigado.
R – Eu que agradeço o convite...
Fim da entrevista
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