P/1 – Afonso, boa tarde. Eu queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Afonso Augusto Borges Filho. Nem tanto Augusto, muito mais Borges. Nascido em Belo Horizonte em 10 de março de 1962.
P/1 – Afonso, fala o nome dos seus pais e a atividade ...Continuar leitura
P/1 – Afonso, boa tarde. Eu queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Afonso Augusto Borges Filho. Nem tanto Augusto, muito mais Borges. Nascido em Belo Horizonte em 10 de março de 1962.
P/1 – Afonso, fala o nome dos seus pais e a atividade deles.
R – Meu pai chamava Afonso Augusto Borges, naturalmente eu sou Filho. Ele tinha uma fábrica de móveis, trabalhou no comércio em geral. Minha mãe chama Maria Pereira Borges, ela era funcionária pública aposentada do funcionalismo público e era costureira.
P/1 – E você tem quantos irmãos?
R – Comigo quatro, sou o mais velho.
P/1 – E qual o nome deles?
R – Antonio Henrique Pereira Borges, abaixo de mim. Ana Teresa Borges, três anos abaixo de mim e Adriana Augusta Borges, quatro anos abaixo de mim.
P/1 – Afonso, e seus avós? Você chegou a conhecer seus avós?
R – Cheguei, conheci todos, inclusive minha bisavó. Minha bisa o nome dela era Nonna, uma italianaça. Isso aí quando eu era muito pequenininho, a parte da família da minha avó paterna era Lovaglio, Terezina Lovaglio Borges. Ela toda italiana, a família toda italiana por parte de pai e materno portugueses, Hieron Castelo Borges. Hieron, olha que coisa! Grego, né?
P/1 – E os italianos, você sabe de que região da Itália que eles são?
R – Eu não sei ao certo, mas da parte de pai é da Calábria, tutti buona gente.
P/1 – E eles vieram aqui pra época do início de Belo Horizonte?
R – É, parece que sim. Não direto pra cá. Essa família do meu avô, não os italianos, os portugueses, vieram pra Vitória. Eles se basearam ali no município da Serra do Castelo, Borges ali, meu bisavô era o médico, daqueles médicos que cuidavam de todo mundo da região. E meu avô veio pra Belo Horizonte, nascido em Lafaiete, desculpa, nascido em Vitória, meu pai que nasceu em Lafaiete, porque meu avô trabalhava nos Correios, ele era telegrafista, olha que coisa. Aí conheceu a minha avó aqui em Belo Horizonte, se casaram e essa é a vertente da família do meu pai. Da família da minha mãe, que também italiana, minha mãe é da família Ferrari, curiosamente a minha avó chamava-se Irma Ferrari, teve muitos filhos com o meu avô, um português meio mestiço, mulato, que chamava Levi. O avô Levi. Os dois se casaram, só que a vovó Irma morreu muito cedo, morreu com 20 e poucos anos, 29 anos, de câncer. Meu avô casou de novo, teve outra família, e morou a vida inteira em Periquito. Periquito você sabe que é a cidade do Bartolomeu Campos Queiroz, né? Onde o Bartolomeu nasceu, curiosamente. Morreu atropelado em Itabira por um tonto, um bêbado, que jogou o carro em cima da calçada e matou o vovô. Muitos anos atrás, 74, 75.
P/1 – E o seu pai, Afonso, como é que era o temperamento dele?
R – Meu pai era um artista que não se viabilizou. Fazia quadros, tinha uma habilidade tremenda, manual, fazia esculturas em qualquer palito de fósforo ele fazia uma escultura. É incrível, ele fazia esculturas em madeira, por isso dedicou-se até grande parte da vida em uma fábrica de móveis na Rua Rio de Janeiro, mil e 300, onde veio a ser depois a TV Globo. Durante muitos anos eu brincava com o Lauro Diniz que era diretor da TV Globo que a sala dele era no meu quarto (risos). A casa existia. Hoje não, é um prédio ali na Rio de Janeiro. E acontece que o meu pai lá pelos idos de 70, 71, ele era da geração do Hélio Garcia, do Ieié, aquela geração de pessoal que gostava muito da bebida e ele teve uma cirrose. E dessa cirrose não morreu, mas praticamente inutilizou pelo resto da vida. Ficou alternando trabalhos por ali e nunca se fixou em nada.
P/1 – E ele tinha esse trabalho principal da fábrica de móveis.
R – Isso. Isso em 70, 71. Depois variou, trabalhou muito com pedra preciosa, eu mesmo cheguei a trabalhar com ele, rodei norte de Minas inteira, rodamos com pedra preciosa pra ele, ia no Rio, ele sempre teve lapidação de pedra preciosa, foi aí que eu rodei bastante Minas Gerais nessa época, com 17, 16, 15 anos.
P/1 – Depois nós vamos voltar a isso. E a sua mãe?
R – Minha mãe sempre foi funcionária pública da Secretaria de Segurança Pública e aposentou-se até muito cedo por uma questão de saúde e sempre foi costureira. Depois de um certo tempo ela dava marmita pra fora e a gente, os filhos, iam entregar as marmitas nos lugares. Assim que a gente sobreviveu muito tempo no período que o meu pai estava covalescendo.
P/1 – E onde é que você passou a infância? Que bairro?
R – A gente mudou muito. Mas eu nasci no Lourdes, na Praça Marília de Dirceu, em um apartamento que tem lá até hoje. Depois fui pra Rua Rio de Janeiro, depois fui pra Serra, depois morei muito tempo na Praça Raul Soares. Muito tempo no centro da cidade também, no edifício Uberaba, no mesmo quarteirão do prédio do Murilo Rubião, o Maleta, no quarteirão do Maleta, dali que inclusive eu conheci muita gente que frequentava o Suplemento Literário durante o período que eu morei ali. Depois eu fui pra vida, com 15, 17 anos eu já estava morando no JK, no 22-14; o prédio JK só tem 24 andares, você imagina o quanto é alto aquilo, né? E segui minha vida.
P/1 – E na sua primeira infância você estava então em que bairro?
R – Até seis anos na Praça Marília de Dirceu. Aos sete mudei pra Rua Rio de Janeiro, ali no centro.
P/1 – Então até os seis você morou nesse apartamento?
R – Sim.
P/1 – Você lembra dele, você consegue descrever?
R – Muito pouco, muito pouco. Muito, muito, muito. Pouquíssimas coisas. Eu lembro de eu brincando na Marília de Dirceu, isso eu lembro. Lembro da minha tia, de algumas coisas, o andar de cima era o apartamento dela, eu me lembro subindo escada, indo pro apartamento da minha tia.
P/1 – Quer dizer, a sua memória de infância é mais forte depois dos sete anos?
R – Muito. Eu tenho uma memória pra infância quase nula, curiosamente.
P/1 – Mas então depois da praça você muda pra rua?
R – Da Praça pra Rio de Janeiro.
P/1 – Pra Rio de Janeiro.
R – Depois da Rio de Janeiro morei na Serra.
P/1 – Na Rio de Janeiro você fica quanto tempo?
R – Eu lembro da Rio de Janeiro porque foi quando o Brasil ganhou a Copa em 70, eu lembro muito da gente comemorando em cima de uma Rural Willys, andando por Belo Horizonte afora, cantando. Lembro da gente descendo de, como é que chama? Aquelas caixas, desmontava a caixa, descia quando criança.
P/1 – Ah, escorregando?
R – Escorregando. E foi isso.
P/1 – E quais são suas brincadeiras de infância com seus irmãos, com seus amigos?
R – Muita porrada, né?
P/1 – Ah, é?
R – É. Criança naquela época trocava muita porrada. Mas era uma coisa muito livre, era na rua. Na Guajajaras, ali na Praça Raul Soares onde a gente morava, a gente jogava bola todo santo dia na Guajajaras. Você imagina, eu dava drible de vaca em ônibus! Sabe o que é isso? É o seguinte, você está de um lado da rua, vem vindo um ônibus, quando o ônibus vem você joga, bate – tinha que acertar direitinho – a bola por baixo do ônibus pra pegar do outro lado. Era a nossa diversão. Matava os motoristas de ônibus de tensão. Ao mesmo tempo tinha só uma faixa ali do quarteirão onde uns 20 meninos jogavam bola todo santo dia, pro desespero dos motoristas de ônibus e dos caras. Nunca aconteceu nada, fora os dribles de vaca, os motoristas que ficaram cardíacos. Época do Scotelaro, época do Hi Fi, época daqueles restaurantes ali da Praça Raul Soares eram muito frequentados pela boemia daquela época.
P/1 – E fora a bola, o que mais rolava?
R – Olha, sempre fui, desde já, muito ligado a estudo. Já estamos falando no período que eu estudei no Grupo Escolar Afonso Pena, o mesmo do Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, eles se formaram ali na Avenida João Pinheiro, desde que iniciei até me formar no primário. Do primário eu recebi uma bolsa do Ari Faria Tavares, que era secretário de educação na época, e fui estudar no Dom Silvério. Aí nós já estamos nesse período que morava na Guajajaras eu já estava fazendo quinta série no Dom Silvério. E aí a minha vida foi muito focada no estudo, desde essa época.
P/1 – Antes da escola me conta uma coisa, a sua mãe, o seu pai, tinham costume de contar história pra vocês?
R – Não, não tinham, não. Minha mãe sempre gostou muito de escrever, ela sempre teve uma letra muito bonita, sempre lia. Inclusive hoje ela tem um livro de poemas pronto, maravilhoso, está com 83 anos. Um livro lindo que a gente vai editar. Mas não me lembro de nenhuma, não.
P/1 – E em casa, o que você começou a ler, gibi ou...
R – Monteiro Lobato. Eu tinha coleção de Monteiro Lobato, tinha muito livro infantil, contos de Anderson. Minha primeira leitura, minha primeira referência de leitura sempre foi a literatura infantil daquela época disponível.
P/1 – Que legal! Eu sei que coleção de Monteiro Lobato.
R – Sabe aquela verde? Eu tenho até hoje.
P/1 – Ah, você tem? É uma preciosidade!
R – Até hoje a verde com todos. Foi meu primeiro encantamento.
P/1 – Que livros do Monteiro te chamava mais a atenção na época?
R – Praticamente todos, mas basicamente a história de Narizinho, aquela coisa toda, relacionada com a coisa mais infantil do Lobato. Porque o Lobato sempre variava, alternava, entre coisas sérias e temas até polêmicos que hoje repercutem de forma negativa, inacreditavelmente.
P/1 – Fora do contexto, né?
R – Proibir o Monteiro Lobato por chamar a Dona Benta de negra é inacreditável, né? Mas enfim, isso é uma outra discussão. Mas meu encantamento com leitura veio dali, surgiu desse momento. Mas não foi uma coisa que determinou a minha vocação não, sabe? Não posso dizer que desta experiência nasceu o meu amor pelos livros de hoje, não, eu não vejo muita vinculação. Ali eu estudava muito, eu estava em um colégio muito difícil que é o Dom Silvério, pra mim muito difícil, então os primeiros anos ali até, eu diria até 17 anos, 18, até entrar na faculdade, foram muito focados em estudo, muito concentrado em estudo. Eu não diria pra você que eu li muito nessa idade, não.
P/1 – Mas você tinha que ler o pedido pela escola, né?
R – Sempre, sempre.
P/1 – E o que o professor de Português pedia pra ler?
R – Me recordo com mais lembrança Alienista de Machado de Assis, aqueles livros. José de Alencar, Helena, e companhia limitada, que me marcou muito nesse período. Mas eram livros que você lia por obrigação. Então se você perguntar: “Foram livros que te marcaram?”, acredito que não. Eu não acredito que os livros que eu li por obrigação foram livros marcantes, não. No período após isso é que a leitura me contaminou.
P/1 – E teve algum professor ou professora que te marcou?
R – Sim, os professores de português sempre foram muito marcantes na minha vida.
P/1 – É?
R – Sempre. Desde Dom Silvério, Onofre, por exemplo, um professor baixinho. Intrépido, mal educado que doi, sempre me deu muito estímulo, porque eu sempre fui bom em português. Sempre. Desde o início, a minha vocação foi voltada para a escrita, sempre foi marcada por essa linha de texto. Tanto que meu primeiro texto, eu publiquei num jornal, a família da minha mãe é toda de Muriaé, na zona da mata, publiquei com 14 anos no jornal de Muriaé. Sobre o Ano Internacional da Criança. Já foi desde o início texto jornalístico, olha que curioso. Primeiro texto tinha 14 pra 15 anos. Eu falei do contraste, era um texto polêmico falando que era o ano da criança pela ONU, mas o tanto que as crianças no Brasil sofriam. Nesse momento já era polêmico. Estava em plena ditadura, nós estamos falando de 75. Então eu já nessa época já participava, não de movimentos, mas como morava no centro eu acompanhei toda a movimentação contra a ditadura militar presente. Com 14, 15 anos estava lá na passeata xingando os policiais. Tomei uma cacetada uma vez na cabeça de um policial, mas o policial pediu tanta desculpa, tadinho, eu quase fiquei com pena do policial.
P/1 – Ele pediu desculpa?
R – Pois é. Porque eu estava xingando os policiais, estava lá xingando, xingando na Face, naquela esquina ali da Tamoios com a Amazonas. Vi coisas horrorosas ali nessa época, policiais jogando moto em cima de multidão, bombas, enfim, foi um período que todo mundo conhece, não preciso ficar dizendo. Mas uma hora que a gente correu eu escondi atrás de uma banca. E o policial veio correndo e começou a bater na banca, bater na banca e eu estava escondido atrás da banca. Quando acabou a banca ele encontrou minha cabeça (risos). Tá tá tá tá, com aquele pedação de pau, sabe? Naquela época não era aquela coisinha não, era desse tamanho. Na hora que ele viu que ele bateu aquilo na minha testa ele assustou porque viu que eu era uma criança, eu era criança de 14 anos, quase me socorreu, pediu desculpas (risos). Mal sabia ele que eu estava lá jogando pedra nele minutos atrás. E eu participei disso tudo, vi coisas horrorosas na avenida na frente do Palácio das Artes uma vez, os policiais soltaram os cachorros em cima dos manifestantes, eu vi o cachorro morder a perna de uma pessoa, arrancar um pedaço. Eu já corri de policial naquela época também no edifício Uberaba quando eu morava lá, e o porteiro não queria abrir a porta. E vinham os cachorros!
P/1 – O porteiro do seu prédio?
R – Do meu prédio! Trancou porque ele viu que era uma multidão correndo, aquela coisa de passeata, de briga, né? Aí eu ameacei matar ele, ele viu que eu ia morrer, viu: “Eu vou matar você”. Abriu a porta, entrou uns 20 junto comigo e se salvaram dos cachorros. Mas foi um momento muito movimento ali, porque eu errei de geração em certa medida, porque eu estava com 15 em 75, se eu estivesse com 15 em 68 hoje eu não estaria aqui conversando com vocês, eu estaria numa outra circunstância, né? Uns quatro anos, cinco anos ali de gap que eu perdi aquele momento da ditadura. O que foi bom, né, pelo menos estou vivo. Senão certamente estaria metido em movimento estudantil.
P/1 – E Belo Horizonte é uma cidade que teve uma oposição muito forte.
R – Muito forte. E pouco documentada. Primeiro a universidade ia ser invadida, a UFMG, quando o Professor Aluísio Pimenta era reitor, a movimentação contra a ditadura foi muito forte, muito muito muito forte. Os meus avós moravam na frente da Faculdade de Direito, Afonso Arinos, onde grande parte das manifestações ocorreram. Eu subia lá pra cima e escolhia, via onde é que os policiais estavam e jogava tudo em cima deles. Tudo, tudo o que tinha dentro da casa que podia ser descartado eu jogava neles. Uma vez eu joguei duas dúzias de ovos, mas o que eu fazia? Pra eles não perceberem de onde vinham, que era só olhar pra cima, eu joguei as dúzias em intervalos de segundos. Então pegava os ovos e fazia zu zu zu zu zu, aí caíam os ovos todos em cima deles como se fosse um bombarbeio (imita som de bombardeio) e eles não sabiam de onde vinham. Foi minha vingança particular.
P/1 – E algum irmão seu te acompanhava nisso?
R – Nada. Eu tinha uma espécie de mentor, uma pessoa que me levou tudo isso, que é meu primo lá de Muriaé que chamava Maurício Carvalho. O Maurício foi o cara que fez o primeiro cineclube de Belo Horizonte. O primeiro cineclube da Face foi ali dentro da Face, naquele auditório da Face, e onde Belo Horizonte viu Godard, Buñuel, Akira Kurosawa, os primeiros Kurosawa. E todo Cinema Novo só passava ali, foi o primeiro cineclube. Como o Maurício dirigia aquele cineclube, ele fazia todo o repertório eu ajudava ele desde carregar lata de filme até assistir dez vezes Dodes´ka-den, os filmes do início do Cinema Novo, do Cacá Diegues, de todos eles, aqueles filmes até da ditadura. Então eu tenho uma iniciação cultural focada muito no cinema.
P/1 – E qual a diferença de idade sua e do Maurício?
R – Maurício tinha uns oito, dez anos a mais que eu.
P/1 – E ele estudava o quê?
R – Maurício estudava Economia na Face.
P/1 – E Afonso, como é que foi essa relação, como você falou: “Ele foi meu mentor”.
R – Foi. Por isso, pela proximidade dele com o cinema e com a cultura. E ele morava na nossa casa. Porque a minha casa, depois que meu pai adoeceu, virou pensão. Então eu dividia quartos com pensionistas pra pagar aluguel. E o Maurício veio de Muriaé e morou muitos anos na nossa casa como pensionista, mas pra pagar aluguel. E eu seguia o Maurício. Maurício era amigo do Toninho do Galpão, do Grupo Galpão que estava começando. Eu acho que era antes do Galpão, o Galpão tem 31 anos, é antes do Galpão essa história. Então onde o Maurício ia eu ia atrás, seguindo. Então vi filmes que não deveria assistir com 14 anos, naquela época dos franceses, os russos, todos aqueles filmes que formaram a Nouvelle Vague. Então isso um pouco me formou. O Maurício morreu de AVC há uns cinco anos, na casa dele, teve um infarto.
P/1 – E Afonso, conta mais. Como era viver numa casa com pensionistas? Como era esse
ambiente da pensão?
R – Olha, era a minha vida, não tinha muito segredo. Agora, e era curioso porque durante seis anos. Seis? Cinco. Da minha juventude morarem dois japoneses lá em casa. Que é o seguinte, o Fuji Bank mandava economistas recém-formados para o Brasil pra aprender a língua e voltar para o Japão pra trabalhar em negócios. Então vinham economistas, vieram dois japoneses que moraram cada um dois anos lá em casa, foram quatro anos. Um chamava Kioshi Iagui e o outro Noi. O Kioshi antes de vir pra casa era hippie, rodou os Estados Unidos inteirinho de carona. Então até hoje eu sei, tocava muita música dos Beatles porque ele me ensinou, entendeu? O Stomi já não, ele era muito fechado e tudo, mas fazia uma sopa muito gostosa. Ele só comia dentro do quarto dele mesmo, fazia a comida dele porque ele não tolerava comida brasileira e fazia uma sopa japonesa que eu comia com ele de noite lá, era muito gostosa.
P/1 – E eles aprenderam português?
R – Acho que sim. O Stomi não, que ele era revoltado, mas o Kioshi sim. Eu não sei o que aconteceu, o que foi feito com Kioshi, um dia tenho curiosidade de saber. Mas aí também nesse curso tem a história do violão, né? Nesse período eu aprendi a tocar violão e o violão foi muito importante pra mim porque eu vivi disso.
P/1 – Ah, é?
R – É, eu dava aula de dia e tocava à noite em boteco. Durante muitos anos. Muitos que eu digo, cinco, seis anos.
P/1 – Mas você era super empreendedor, né?
R – Minha experiência empreendedora, de ganhar dinheiro, vem de, entre 15 e 18, 19 anos, dar aula de violão de dia e tocar à noite nos botecos. Eu tocava de oito às quatro com 18, 19 anos, então não era muito saudável pro fígado e lá pelos 20 anos, 22 eu decidi parar. Tanto que tem uma ligação direta do Sempre um Papo com o violão, né? Porque eu tocava num boteco e ali o França Júnior um dia numa conversa comigo, porque nessa época ao lado do violão eu já tinha publicado meus livros e saía vendendo pela rua afora, também uma coisa que eu comecei a ganhar dinheiro com isso. Eu publicava meu livro de poemas, saía vendendo pra pagar a edição, normalmente a gente não conseguia pagar a gráfica, ficava devendo a gráfica porque não dava pra pagar, mas tinha um dinheirinho da noite ali que a gente vendia pela madrugada e conseguia não só pagar a gráfica como também sobreviver um pouquinho.
P/1 – E qual foi o primeiro livro seu independente?
R – O primeiro chamava-se Retratos de Época. Ele foi publicado com um amigo que eu conhecia, a gente dividiu o livro meio a meio, meio dele e meio meu. Fizemos um lançamento maravilhoso na Distribuidora Benji que o diretor era pai de um amigo meu. Um lançamento imenso com coquetel.
P/1 – Ah, é?
R – Teve mais de 200 pessoas, vendeu muito livro, 900 e sei lá quantos.
P/1 – É mesmo? Isso na época do violão?
R – É, a gente fazia tudo junto um pouco. Violão. E fazia o que a gente chamou de Movimento Independente, que de independente não tinha nada. É o mesmo movimento que o Carlinhos Herculano Lopes começou, Zé Alexandre Marino, João Batista Jorge, Thaís Guimarães. Uma geração de gente começou. O Carlinhos vendeu muito livro na rua, o Carlinhos chegou a sobreviver de livro na rua. Sol nas Paredes, aqueles primeiros livros de contos dele, ele saiu vendendo nos botecos. Os casos mais engraçados que eu sei do Zé Alexandre Marino, que está hoje em Brasília, jornalista do Correio Braziliense. Um dia o José chegou lá no Maleta vendendo um livro de poemas dele, o cara: “Não quero esse livro não, eu não compro essa bosta, não”. Aí o Zé Alexandre, não deu outra: “Bosta não é meu livro, bosta é o que você tem na cabeça”, e no dia seguinte amanheceu com o olho roxo. “Zé, o que aconteceu, Zé?” “Ah”, contou esse caso. O cara encheu ele de porrada (risos). Primeiro caso literário de porrada por causa de venda de livro lá em Belo Horizonte. Mas era a efervescência do Maleta, eu vivia aquela efervescência com Henry Corrêa de Araújo, tanta gente ali naquele Lucas. E eu menino. O seu Olímpio contando aqueles casos malucos da vida dele. Tostão gritando de madrugada. As manchetes que contavam pra ele porque ele não sabia ler. Você sabe a história do Tostão? Não? O Tostão é aquele anão que vendia o Estado de Minas pela noite e pela madrugada, tinha o vespertinho. E o povo, como não sabia ler, ele era meio deformado e as pessoas cantavam as manchetes, às vezes eram certas, às vezes não. Às vezes ele saía cantando: “A ditadura acabou! Governo não sei o quê” “Tostão, para. Vai ser preso, Tostão. Manchete não é essa, não”. Macários. Toda uma geração de poetas de gente da noite ali eu conheci, participei muito novo. Muito, muito, muito novo.
P/1 – Nessa época você já começou a despertar para uma leitura mais apaixonada?
R – Já. Nessa época sim. Essa coisa que aconteceu toda num período, 75 a 86, 11 anos que começou Sempre um Papo em 86.
P/1 – Ainda vamos chegar no Sempre um Papo, tem muita coisa aí. Você fez então esse
primeiro livro em parceira.
R – Esse foi o primeiro, Retratos de Época, chamava Francisco, esse é o que eu vendi mesmo na rua. Mas depois eu fiz um outro que já refletiu um pouco essa minha inquietude. É o seguinte. Eu fiz o Festival de Inverno de 79 em Ouro Preto, que foi o último festival de inverno que aconteceu lá porque a ditadura não deixou mais acontecer lá porque em 79 Antunes Filho foi com Macunaíma, direto de Nova Iorque pra lá e todo mundo pelado, aquela coisa de todo mundo pelado. Então já houve uma repressão grande, a UFMG parou de fazer lá porque se transformou em um bunker cultural contra a ditadura. Então em 80 não aconteceu o festival por força da repressão, mas 81, 82, 83, 84 aconteceu em Diamantina. E eu já tinha trabalhado um pouquinho na comunicação em 79. Em 79 eu saí do Dom Silvério, eu estava com 17 anos. Eu entrei na Católica em 80. Então já estava junto com a UFMG e aí eu fui contratado em 80, 81, 82, 83, 84 pra trabalhar assessoria de comunicação do festival de inverno em Diamantina. Então ali começou a minha injeção fortíssima de cultura onde eu convivi com núcleos do festival de inverno com todas as artes. O festival, a proposta era essa, Artes Plásticas, Literatura, Dança, Música, tudo junto ali em Diamantina. E eu fiz o segundo livro, chamava Bandeiras no Varal que é uma ode à Diamantina, meio apaixonada, um poema meio apaixonado, mas que contou com Caio Graco, um músico que até hoje é importante na Sinfônica de Minas Gerais fez a música, uma música instrumental dodecafônica. Em 81. O Bernardo Mata Machado falou o texto. E o Eder Santos fez um visual, fez o vídeo. Então você imagina, em 80, eu já tinha feito esse livro e lancei não só em Diamantina, mas depois fiz uma sessão na sala Humberto Mauro, Palácio das Artes, do que jeito que estava. E ali já até começou a minha experiência com leis de incentivo. Porque não existia Secretaria de Cultura, existia Superintendência de Cultura ligada à Secretaria de Educação e eu consegui uma verba pra fazer esse evento. Você imagina, começou ali, um pouquinho as coisas da minha relação com financiamento público de cultura.
P/1 – Isso você tinha 18, 19 anos?
R – Em 80, 18.
P/1 – É, começou cedo.
R – Isso já era o segundo livro, 18, 19 anos.
P/1 – E o que você estava lendo nesse período?
R – Pois é, aí sim com 17 começou a minha experiência que eu considero verdadeira com a literatura. Porque eu li tudo, eu lia tudo o que aparecia na vida. Eu tenho vista cansada de tanto ler em ponto de ônibus, esperando o ônibus de madrugada, de noite. Em ônibus, andando na rua, quase fui atropelado várias vezes. Eu comecei assim. E como eu não tinha dinheiro pra comprar livro eu atacava as bibliotecas. A biblioteca da PUC, por exemplo, que eu entrei em 80 eu lia por prateleira. Eu pegava assim: “Vou ler os latino americanos”, aí pegava. Cortázar, Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marquez, todos eles por prateleira, um por um, até acabar a prateleira. Depois fui pros russos, Gogol, Gorki, Dostoievski que eu li tudo, todos os russos. Depois os brasileiros, Rubem Fonseca. Eu lia por prateleira. Enquanto não terminava tudo não parava de ler. Então minha formação forte com leitura foi no período da faculdade, um pouco antes, mas a faculdade.
P/1 – Você foi fazer Comunicação?
R – Fui. Fui fazer Comunicação, fiquei uns dez anos e não me formei.
P/1 – Porque você estava fazendo outras coisas.
R – Outras coisas e não tinha dinheiro pra pagar a faculdade, essa que é a verdade, não conseguia pagar a Católica direito, então ia e vinha, voltava, remarcava, parcelava a dívida, aquela coisa louca de Católica, fazia financiamento, não pagava e fui, fui fazendo. É curioso que inclusive meus amigos de Católica, é muito engraçado, porque eu tenho umas quatro gerações de amigos, desde a geração do Ascânio, Selênio, do Globo, Vilazio, Chico Mendonça que é anterior a minha. Esses meninos entraram em 77 na faculdade, 78. Eu entrei eles estavam saindo, peguei dois anos com eles. Até a geração que saiu depois de dez anos, geração de gente que está dando aula agora em outras universidades. Peguei dez anos de Católica, como todo profissional de movimento estudantil, né? Eu entrei no movimento estudantil, fui um dos fundadores do PT, aí aquela coisa toda de movimento. Você imagina, como é que começou essa minha onda de eventos culturais? Eu não sei quando, mas podia olhar, quando Medici morreu ali por 80, 81, eu fiz um debate na Católica, foi o primeiro evento que eu realizei mesmo, chamava “Os Anos Medici”, com Heloisa Starling, eu não lembro mais quem, mas o... Rivotril atrapalha a memória (risos).
P/1 – Não, mas depois a gente vê os nomes.
R – Aquele que escreveu, René Dreyfuss. René, Heloisa Starling e mais uns três ou quatro. Angela Carrato, Domingos Giroletti. Gente comprometida com as transformações.
P/1 – E você que organizou?
R – Cheio de gente do Dops na plateia. Eu lá na mesa com aquele, era um menino,
né? O auditório entupido lá na Católica, na sala 13 da Católica, e um monte de gente do Dops. Os Dops me perseguiram durante muitos anos, me seguiam onde eu ia fazendo as maluquices naquela época. Mas acabou, claro, mas durante muito tempo eu tinha sempre uns olheiros nas plateias.
P/1 – E qual foi o resultado desse ciclo de debates?
R – Foi só um evento, foi só esse.
P/1 – Você falou que deu público...
R – Deu.
P/1 – Foi bom.
R – Entupido na Católica. Você imagina, eu recém entrado na Católica, a primeira coisa que eu faço foi um debate desse jeito, que eu organizei. Uma semana depois que Medici morreu. Então não era pouco, era muito. A universidade toda vigiada na época, 78, 79, 80 ainda tinha muita, muita censura nessa época ainda. Mas eu já estava metido no movimento estudantil, no DA, participava do DA, participava. Em 79, você imagina, a maior greve que Minas Gerais já enfrentou dos professores foi em 79, 78-79. Até hoje foi o movimento que parou Belo Horizonte historicamente. E o Dom Silvério não entrou na greve por ser colégio particular. Eu fiz a greve dentro do Dom Silvério.
P/1 – Ah, é?
R – Eu convoquei todos os alunos pra parar nos recreios, fui de sala em sala chamando os alunos, e aí no recreio todos os alunos sentaram no pátio do Dom Silvério em apoio ao movimento grevista os professores. Foi histórico porque os professores não tiveram coragem de entrar na greve porque iam ser demitidos, que era colégio particular. Eu frequentava as assembleias, colégio tal, colégio, colégio tal, aí chegava eu: “Colégio Dom Silvério”, estava eu e o Mario Tolim, filho do Genival Tolim.
P/1 – E você foi punido por fazer isso?
R – Nada. Nada. Fui punido nada. Claro que o colégio me perseguiu, em certa medida, mas tudo certo. Eu enfrentei todos, enfrentei tudo. Passei no Dom Silvério, era um bom aluno, não tinha muito o que passar. Passar na Medicina no primeiro vestibular.
P/1 – Como assim?
R – Porque antigamente, não sei se é hoje, o vestibular acontecia no final do ano e você tinha que se matricular em janeiro, você lembra disso? Era um ano antes que se matriculava. Só que quando deu julho eu já estava arrependido que doi de ter matriculado pra UFMG em Medicina. Mas eu não tive jeito, no final do ano eu tive que fazer, então passei na primeira fase, bem e a ia fazer a segunda fase e certamente ia passar. Aí eu fui pra Nova Almeida, onde a gente ia, na volta um dia antes da segunda fase nós fomos em um fusca, o fusca fundiu no meio do caminho, cinco marmanjos dentro de uma fusca. E eu desisti de pegar o ônibus, decidi voltar pra Nova Almeida, não fiz a segunda fase. E aí imediatamente fiz pra Psicologia e depois acabei passando pra Católica. E aí continuei.
P/1 – Perdemos um médico, então?
R – Graças a Deus. Mas até hoje eu sou hipocondríaco e receito. Se vocês tiverem alguma doença pode falar que eu te receito qualquer coisa.
P/1 – Depois então você vai me receitar.
R – Receito. Só não escrevo bula, já fiz essa loucura de receitar.
P/1 – E Afonso, nesse período aí, 79, 80, Belo Horizonte estava muito cheia de escritores, né? Quem estava lá nessa época?
R – Veja bem, tem uma geração ali localizada que sucedeu à famosa Geração Suplemento. A Geração Suplemento do início da década de 70 foi feita por Humberto Werneck, Sérgio Santana, Luís Vilela, Wander Piroli e aí tem uma geração que se formou em plena ditadura. Plena. Um pouco de Belo Horizonte. Mas da nossa geração, a gente teve muito presente Oswaldo França Júnior, Roberto Drummond ao nosso lado, e tantos outros escritores que compuseram quem está agora na geração atual. Mas a geração que ficou foi realmente a Geração Suplemento. Nós fomos uma geração que ficou no meio do caminho, digamos assim, que é a Geração 80, Geração 75 em diante, Geração 80 não frutificou, tem um gap de formação na cultura brasileira, geração 80, 90 que ficou no meio do caminho.
P/1 – É, mas você tem um Roberto Drummond e Oswaldo já tem...
R – São anteriores, né?
P/1 – O Oswaldo fazia o quê em Belo Horizonte?
R – O França era aposentado da Aeronáutica, aquele famoso caso que queriam bombardear Porto Alegre, não quis bombardear, enfim. Mas o França era um dos poucos escritores dessa geração que vivia de literatura, vivia exclusivamente de direito autoral, literatura e livros. Em certa medida França lançava um livro por ano, chegou a lançar um livro por ano antes de morrer. E o Roberto complementava a renda dele com o jornalismo, sempre foi colunista do Cidade de Minas e depois do Hoje em Dia. E sempre também teve um sucesso relativo e grande dos seus livros. Mas o Roberto e o França eram de uma geração bem anterior à nossa. A nossa geração é a geração do Carlinhos Herculano Lopes, do Luís Giffoni, uma geração um pouco mais...
P/1 – Porque você falou Alexandre Marinho, João Batista Jorge morreu muito cedo.
R – Muito cedo. Nós vendemos muito livro na rua, eu e o João Batista.
P/1 – Que era Tíbias e Lautas, Flagrante Joia.
R – Muito livro vendemos na rua juntos.
P/1 – Thaís que era...
R – Mulher dele.
P/1 – Tinha o que? Rita Espeschit.
R – Rita. Nossa, Sérgio Fantini, Adão Ventura.
P/1 – Ah é, Adão Ventura!
R – Apesar de ser mais velho, Adão também estava com a gente na madrugada. Uma geração que acreditou que isso podia ser real. Durou esse tempo, depois ficou completamente inviável pela força, crescimento da cidade, violência, etc etc, isso acabou.
P/1 – Afonso, você sempre foi empreendedor e nessa juventude você fazia um monte de coisa ao mesmo tempo. O que você fazia?
R – Na Guajajaras eu tinha meus 15 anos e do lado da minha casa tinha um moço que tinha uma loja elétrica, esse foi o meu primeiro emprego mesmo. Aí fui lá e pedi pra ele pra trabalhar. Eu trabalhei de balconista na loja elétrica, às vezes consertando alguma coisa, mas vendendo coisa lá. Imagina assim. E aí depois é que foi surgindo o violão, nessa época mais, eu tocava violão na noite, vendia livro na rua, pela rua afora com a literatura, fazia lançamento dos livros pelas cidade, fui em Muriaé, fiz lançamento do meu livro lá. Juntava, depois mais à frente quando eu estava já escrevendo pra jornais mesmo, quando eu fiquei um grande período, fiquei muito tempo escrevendo pra jornal depois, eu fazia as entrevistas e oferecia pros jornais. Escrevi pro Correio Braziliense, Jornal do Brasil, pro Globo. Naquela época fazia uma entrevista com escritor e oferecia. E ia vendendo, ganhava cem, 200 reais, sei lá quanto, por entrevista, até... não isso já é mais à frente, depois do Sempre um Papo, mas fazia tudo pra sobreviver mesmo, essa que era a proposta.
P/1 – E você falou que você teve um episódio que você trabalhou com seu pai com pedras preciosas.
R – É, meu pai tinha durante muito tempo da vida dele, ele mexeu com lapidação. Muito tempo. E eu ia pelo interior de norte de Minas buscar e levar pedra. Eu fui muito ao Rio de Janeiro levar pedra pra ele. Pegava o ônibus Cometa, ia levar pedra sexta-feira, voltava segunda-feira, levava pra entregar as pedras pros fornecedores, entregava a pedra bruta ou a pedra lapidada, voltava com lapidada, com bruta, era esse trajeto. Dormia na casa de amigos lá. E conheci bastante o interior, norte de Minas por causa disso também.
P/1 – É mesmo? Porque lá que é a terra das pedras, né?
R – Meu pai era muito amigo do prefeito de Marilac. Marilac, norte de Minas profundo. E passei um tempo grande lá, muita coisa engraçada. Presenciei uma emboscada uma vez. Nós estávamos saindo de noite, aí a pessoa que estava comigo, o prefeito, viu que tinha dois pistoleiros pra matar ele e mais dois, ele me jogou no mato.
P/1 – É mesmo?
R – É. Isso já estava um lusco-fusco, de noite, à tardinha. Ele viu de longe os caras armados na encruzilhada pra matar ele, me jogou no mato, eu estava em cima do cavalo e se esconderam, mataram os caras. Eu fiquei no chão, não vi porra nenhuma, fiquei morrendo de medo no chão, escondido. E mataram e por aí enterraram em cova rasa mesmo. Onde matou jogou terra em cima e deixou os corpos lá. Até fiz um conto longo sobre isso. Um dos poemas que eu tenho, do meu outro livro, depois daquele, que se chamava Profecia ao Invés de Ditado, que é um poema meio tenebroso que fala no fim do mundo, aquele momento em que existia a possibiliade do mundo real ser destruído por bomba atômica, houve o momento ali da década de 80 que isso foi real e eu fiz um poema longo sobre isso. E eu falo, os corpos foram enterrados ali mesmo, tanto faz. Os pistoleiros foram mortos pelo prefeito e pelas pessoas que estavam com ele, eram mais duas pessoas que viram que os pistoleiros estavam ali. Estavam em cima de uma árvore, esperando pra matar. E ele me ensinou a atirar, o primeiro tiro que eu dei de arma foi com ele. Como eu era menino da cidade eu fui o primeiro menino que tinha Coca-Cola na hora do almoço, ele mandou comprar uma garrafa de Coca-Cola que só eu podia beber Coca-Cola (risos), sabe? Fiquei lá um tempo, lá em Marilac. Mas enfim, rodei interior. E logo depois, 82, 83, tive o primeiro e único emprego da minha vida. Não, antes com 17 anos eu trabalhei no Banco Real, trabalhei 11 meses no Banco Real. E o engraçado, hoje eu faço essa correlação, é que eu fui o precursor do MSN. Que é o seguinte, o cargo mais fudido que tem dentro do banco é operador de telex. Você lembra de telex?
P/1 – Eu fui operador de telex.
R – Você foi? Aquele troço grande que você apertava. E eu era muito rápido na datilografia porque eu fiz curso de datilografia no Edifício Acaiaca, asdfg asdfg asdfg, eu fiz curso, então eu era muito bom de datilografia. Eu lia, pegava o texto inteiro e escrevia sem errar, até hoje eu faço isso. E aí me jogaram no telex. Mal sabiam que estava ali começando a minha vida de jornalista. Bem ou mal, ali eu estava com 16 pra 17 anos, quando eu trabalhei no Banco Real. E aí se você fica cinco, seis meses no telex depois vai pra Contabilidade, pro Escriturário. E como eu fui pro Escriturário e não me dei muito bem, me voltaram pro telex, eu já saquei que eles iam me demitir. É um código, né, do banco. Só que aí eu passava uma OP, Ordem de Pagamento, pra Montes Claros, por exemplo. O que é? Você pega um papelzinho e copia os números, favorecido, né? E passava. Te dava uma cópia, que era uma fitinha toda marcada, você pegava aquela cópia, grampeava junto e estava comprovado que passou. Só que eu inventei de escrever depois, terminada a OP eu escrevia: “Tudo bem? Recebeu bem?”, para a pessoa lá em Montes Claros. A pessoa respondia: “Sim, recebi”. Eu falei: “Genial, tem uma pessoa do lado de lá!”. Eu não sabia que tinha uma pessoa do lado de lá. Pra quê? Ficava até tarde passando OP, Cobrança e tudo, mas de repente eu montei uma rede de gente que conversava comigo por Minas Gerais, Rio de Janeiro, Recife afora que você não acredita! Que eles também sacaram que também tinha uma pessoa do lado de lá. Pra quê? Era como é que estava o tempo, sua família, o seu filho, tudo por telex, que era o troço clé clé clé, lentíssimo, pesado, duro de bater aquela máquina de telex. Aí é claro que eles descobriram e me mandaram embora, óbvio, né, boa saúde deles.
P/1 – Uma experiência bacana, trabalho em rede.
R – Imagina, 79, 8, 80. O sujeito conversando por telex? Era muito, né? E minha experiência tecnológica de negócio. E aí eu fiquei lembrando do meu avô que era telegrafista. Porque o telex foi o próximo passo, né?
P/1 – É, a sucessão do telégrafo. Afonso, você falou que você começou a fazer entrevistas com escritores. Você lembra dos primeiros escritores que você entrevistou?
R – Eu não lembro direito não, é muita estrada passando. Eu lembro a referência que eu tenho de fazer o que eu faço hoje foi o programa do Araken Távora, lembra do Encontro Marcados?
P/1 – Encontro Marcado!
R – Patrocinado pela IBM? Era ali. Quando eu vi o Ferreira Gullar, Gabeira. Gabeira? Não, Gabeira não participou, não. Gabeira chegou depois com a Anistia, ó eu falando uma coisa errada. Eu me inspirei naquela praia do Araken fazendo aquelas entrevistas com os autores pra fazer o Sempre um Papo. Lembro disso. Mas foram tantos, tantos. Porque ao lado do Sempre um Papo, antes do Sempre um Papo eu já fazia entrevista, porque eu trabalhava em jornal.
P/1 – Sim. Mas eram essas entrevistas que eu estava te perguntando, porque ainda não entramos no Sempre um Papo, nós só estamos rodeando.
R – Olha, eu trabalhei no Jornal de Domingo, com o Wander Piroli, Gilberto Menezes, entre outros ali. Jilu, Angelo Prazeres, grande cronista, maravilhoso cronista. Tive uma aula de vida e de jornalismo tendo como Wander Piroli o editor. Meu editor, me ensinou a escrever, me ensinou a interpretar situações desconcertantes. Só que eu trabalhava na polícia. Eu peguei um caso policial que nós pegamos um delegado que forjou um flagrante, não vou falar o nome dele não porque pode ficar registrado e esse cara está ativo aí, é meio que, até hoje ele está ativo. Nós pegamos ele forjando flagrante e perseguimos o cara, começamos a chamar ele de ‘delegado mentiroso’. E capas. Capas e capas. Delegado mentiroso, roubo 48. Meio sensacionalista naquela época, mas. Até que um dia eu invadi, imagina, quando eu penso isso, está doido. Invadi a sala do Secretário de Estado da Segurança Pública, que era aquele torturador. Invadi, peguei o gravador e falei: “Por que o senhor está protegendo esse delegado mentiroso se ele forjou o flagrante?”. Em plena ditadura.
P/1 – E aí?
R – Uai. Aí por uma força do bem ele não me mandou prender, ele: “Tira esse menino daqui”. É menino, 19, 20 anos, menino. Quando eu cheguei na redação o diretor já estava falando: “Você está fora desse caso. Nós vamos manter você aqui, mas tinha que te demitir” (risos). E eu fui seguido, comecei a ser seguido por gente. A gente saía e tinha um carro seguindo a gente. Eu tinha que sair no carro de um dos editores, nunca podia sair sozinho. Barra pesada nessa época de ditadura.
P/1 – Isso no Jornal de Domingo.
R – É. Ali eu fiz entrevistas maravilhosas. Eu lembro de uma entrevista que eu fiz com Adélia Prado e o Antonio Candido que só eu tenho essa lembrança na vida. Você imagina, Antonio Candido que não dá entrevista, que não viajava, eu consegui juntar Adélia e Antonio Candido numa mesa longa de entrevista. Também estava o Wander Piroli entrevistando, outras pessoas entrevistando, foi uma mesa de entrevista. O Antonio Candido não conseguia falar nada do tanto que ele ficou maravilhado com a Adélia, tanto que a Adélia falava lindamente e tudo. O que me ocorreu aqui agora. Mas tem muito caso engraçado, né? Nossa Senhora, lá vou eu contar isso. Uma vez, por exemplo, Wander Piroli chegou: “Beto Guedes está lançando o CD novo, Sol de Primavera. Quem vai fazer a entrevista com ele?” Eu enfiei a cara pra dentro da máquina e abaixei na mesa: “Meu Deus me ajuda, me ajuda”. Aí a menininha que estava do lado, uma mocinha nova, tinha acabado de chegar na redação: “Ê, eu vou fazer entrevista com o Beto Guedes!”, eu falei: “Graças a Deus”. Eu já conhecia Beto de (estala os dedos). Aí tudo bem, volta a moça. Aí vai, fica a tarde inteira na entrevista com o Beto Guedes. Volta a moça murcha. Senta. Põe o gravadorzinho do lado e fica. Clem clem, clem clem, clem clem, ligando e desligando o gravador pra tirar a fita, a gente fazia isso. Eu tenho uma quilometragem de tirar fita que você não acredita. Que eu que tirava as fitas das entrevistas. Eram cinco horas de entrevista, três horas de entrevista, que sejam duas. Quanto você acha que dá de lauda?
P/1 – Nossa, porque você demora pra transcrever.
R – Na máquina Remington, aquela pesada. Não é nessas maquininhas digital, não. Ficava um dia, às vezes eu virava uma noite, porque tinha que publicar no dia seguinte. Então minha vida...
P/1 – Lá no Museu é cinco horas pra cada hora de transcrição. É um tempo. Mas aí, ela foi tirar do Beto Guedes.
R – Aí volta te te clem. Aí de repente eu vejo que ela está muda e começou a chorar. Eu falei: “O que aconteceu?” “Vou te mostrar”. Aí botou a fita, estava assim. O primeiro lado da fita eu ouvi, depois morri de rir e não tive saco mais de ver. Mas o primeiro lado é assim: “No início era o Ti-tizo, o Bi-Bituca e tinha mamamais um. Era o Ti-tizo, o Bi-Bituca e no início era só a gente assim. Ah, lembrei!”. Isso depois de 20 minutos. “O mais um era eu mesmo” (risos). Coitada da menina, não fez matéria nenhuma, chorou. Eu falei: “Vai, sua boba”.
P/1 – O seu santo foi forte, você pediu pra não ir.
R – Então foi esse período que eu fiquei no Jornal de Domingo trabalhando depois eu fiquei meio independente, escrevendo pra quem eu quisesse.
P/1 – E nesse período você morava ainda com a sua família ou você já estava morando sozinho?
R – Já estava morando sozinho. E depois eu tive o primeiro emprego da minha vida de verdade que foi no funcionalismo público. Quando Genival Torim assumiu o Ipsemg, Tancredo Neves quando foi Governador, o Mário Torim, que é esse menino que dividiu comigo as confusões do Dom Silvério, meu colega de escola, chamou para eu trabalhar no gabinete. Aí fui trabalhar no gabinete dele já como jornalista, acompanhando o Tancredo, acompanhando o Genival, acompanhando tudo no interior de Minas pra fazer as coberturas jornalísticas do dia a dia do Ipsemg. Inauguração de postos públicos, de postos médicos, hospitais, aquela coisa toda do funcionalismo. Ali eu vivi uns dois anos, muito intensamente porque eu era lotado no gabinete então não tinha vida de jornalista, eu tinha vida de assessor parlamentar e jornalista. Então no meio da noite: “Plínio Walter foi chamado pra ir a Januária, amanhã seis horas da manhã tem um carro te pegando”. Beleza, pegava, ia de avião pequenininho, mas grande parte das estradas, estrada mesmo, rua, acompanhando. Viajei várias vezes com Tancredo, várias. Várias vezes, ou de avião. Um período já muito velhinho, como governador de Minas ele já era muito velho. E aí tem muito caso, não cabe contar os casos aqui, depois eu conto. Aí um dia o governador mudou, Genival saiu, entrou um novo e eu fui para a área da qual era lotado que era Relações Públicas. Naquela época meu chefe era Mario Fontana. Ele acumulava seis secretarias. Wilson Frade diz que tinha 12 cargos públicos, o dobro dele. Mas enfim, de qualquer forma ele foi meu chefe, me ajudava, ia lá. E aí eu estava no segundo dia lá na Relações Públicas no oitavo andar do Ipsemg, na Praça da Liberdade, estou lá batendo a minha máquina, fazendo meu releasinho, continuando meu trabalho só que na Relações Públicas. Quando passam duas velhinhas pelo corredor, olham pra mim e passam. Eu falei: “Gente, o que essas mulheres querem?” Eu apurei o ouvido assim. “O que é esse aí?” “Esse aí é aquele povo do Genival que não fazia nada e que agora está vindo aqui pra fazer nada e receber o salário”. Sabe o que eu fiz? Eu saí do Ipsemg naquele minuto, levantei da cadeira, nunca mais voltei.
P/1 – Ah, é?
R – Nunca mais voltei. Depois de ouvir aquilo. A ponto de dez anos depois eu encontrar com um amigo meu que chama Álvaro Marcílio Júnior, filho do deputado Álvaro Marcílio, que era colega, ele trabalha no Jurídico e eu lá embaixo, a gente estava sempre junto. Colega de bebedeira, de sair e tudo. “Afonsinho, você ficou louco!” “O que houve, Álvaro?”, dez anos depois. “Ocorre um processo contra você no Ipsemg”. Eu falei: “Você ficou louco! Jura?” “Você acha, abandono de emprego!” Eu falei: “Uai, eu abandonei mesmo, e daí?” “Não, você pode ser processado” “O que pode acontecer?” “Você pode ficar dez anos sem exercer cargo público”. Eu falei: “Pode deixar correr. Pode deixar, não vou lá, não, está tudo bem”. Claro que no dia seguinte eu fui lá, assinei um pedaço de papel, a minha demissão, acabou o processo. Mas até depois, anos depois, eu fui no posto do Bemge pra ver se tinha um dinheiro lá porque nem salário eu fui pegar. Você acredita nisso? Eu fico pensando, parece que é outra pessoa. E isso, curiosamente, no ano seguinte à minha saída todos os funcionários estatutários entre os quais eu, porque eu fui contratado em regime de contratação ampla, não fiz concurso, eles foram, pela Assembleia, transformado em estáveis. Então eu virei, mesmo longe, funcionário estável. Eu poderia ser funcionário até hoje da previdência, do governo, se eu quisesse, porque a minha situação foi regularizada, mas mesmo assim eu não quis.
P/1 – E depois que você sai de lá, que você começa a ter ideia de fazer o Sempre um Papo? Como é que foi?
R – Foi um pouco simultâneo. Se você pensar que isso foi 82, 83, 84 eu já estava nessa roda viva de jornalismo, de livro, morar sozinho, de me virar. Já tocava em boteco durante a noite e um dia o Oswaldo França Júnior e o André Carvalho me ouvindo tocar me sugeriram: “Afonso, por que você não faz aqui um bate papo com escritor no meio da sua conversa? Como acontecia com Vinícius de Moraes no tempo das garrafas, na década de 60”. Falei: “Legal”, daí fiz durante o primeiro semestre de 86, num bar que chamava Tom Carlos. Eu não fiz o meu projeto, fiz o projeto dele que chamava Bate Papo no Tom, era o Tom Carlos e seus feijões maravilhosos e eu tocava lá. Toda segunda-feira. Opção de lazer cultural às segundas-feiras, era o título assim. Eu fiz o primeiro com o França, depois o segundo com o Otávio Elísio, fui chamando as pessoas, não só escritores, a ideia não era voltada pra literatura, era qualquer um. Reinaldo, pessoas que tinham um certo relevo.
P/1 – Reinaldo atleta?
R – Jogador, é. Gente de todas as áreas, Publicidade, era um bate papo com gente da sociedade. E fiz semanal o primeiro semestre inteiro. O troço fez tanto sucesso, foi tanta gente, que o dono do bar, chamava Tom Carlos, se candidatou a deputado federal (risos), pelo PDT. E eu era PT total na época, falei: “Vai te catar. Dê sequência ao seu bate papo no Tom”. E eu naquela época já falava muito com o Frei Betto, que foi a grande pessoa que me deu uma intuição, uma inspiração pra fazer o Sempre um Papo. Nós dividimos inclusive o nome do Sempre um Papo, é um pouco criação minha e dele. E eu fui pra outro bar, o La Taberna e aí sim eu comecei o Sempre um Papo. Chamado Sempre um Papo, no La Taberna na Sergipe com Gonçalves Dias, uma descidinha. E ali eu comecei o Sempre um Papo fazendo um debate sobre a situação no Chile. Pinochet tinha morrido, foi logo depois quando a ditadura do Pinochet caiu, eu fiz um debate com várias pessoas falando sobre isso. Mas aí já o segundo debate depois desse foi o que eu considero que começou o Sempre um Papo, que foi com Frei Betto, setembro de 86 quando eu lancei o Aquário Negro, que é o livro de contos do Frei Betto. Aí sim, o foco do meu projeto, do trabalho desde setembro de 86 foi literatura. Depois trouxe Decio Pignatari várias vezes, Haroldo de Campos e aí começou a sequência de eventos voltada para literatura.
P/1 – Mas vamos falar desse dia do Betto, você lembra como era?
R – Muito. Lembro como se fosse hoje. O Frei Betto, curiosidades à parte, a gente saiu do carro, foi andando assim e já tinha uma multidão lá a ponto de já estar cheio do lado de fora, muita gente do lado de fora. Porque era um bar, não era um auditório, depois te mostro umas fotos, era um bar com dois andares assim, o La Taberna. E aí eu lembro que uma mulher estava de saída, destacada um pouquinho da turma. Ela estava tremendo. Tremia, tremia, tremia. Eu falava: “Caramba, essa mulher vai pular no Betto” (risos) “Ela vai falar no Betto”. E estava com uma bata, uma roupa toda branca, uma bata branca e aí na hora que eu passei por ela, eu meio entrei entre ele e a moça pra, se pular pelo menos eu tenho condição de atrapalhar alguma coisa, e ela estava: “Ele está todo de branco, ele está todo de branco, ele está todo de branco”. Fui embora e ela continuou falando: “Ele está todo de branco, ele está todo de branco” (risos). Não esqueço disso. E o debate foi legal, foi multidão de gente e depois disso começou uma sequência de eventos. Depois a gente foi pro La Taberna, fiz um ano intenso de 87 no La Taberna. Ah, desculpe.
P/1 – O La Taberna começou.
R – Começou, só seis meses. Depois eu fui pro Cabaré Mineiro.
P/1 – Ah.
R – Sempre um Papo foi muito forte no Cabaré, fiz eventos memoráveis. Fiz um encontro marcado com Fernando Sabino e Hélio Pellegrino.
P/1 – Só um minuto. Pra quem não é de Belo Horizonte e vai assistir essa entrevista conta o que é o Cabaré Mineiro.
R – Pois é, Cabaré Mineiro foi a primeira casa de shows de Belo Horizonte no sentido moderno da palavra. Claro que já teve outras casas, a coisa mais... Mas é uma casa fundada pelo Milton, pelo Wagner Tiso e pelo Cláudio Duarte que é amigo deles, realmente com esse intuito, de fazer os grandes shows de Belo Horizonte lá. Era um grande bar com uma casa noturna. Ali se apresentaram Stanley Jordan na primeira vez, várias vezes o Milton e toda essa geração, Lô, se apresentou ali, é uma proposta até internacional.
P/1 – Mas então pra gente fazer esse apanhado, então você começou bem, começou com Frei Betto, as coisas começaram a fazer sucesso e você foi pro Cabaré Mineiro. Você ficou quantos anos no Cabaré?
R – Um só. Só 87 que o Cabaré depois fechou.
P/1 – Mas você fez um bom barulho lá.
R – Nossa. E lá, foram anos até talvez 90, 87 durou até 90, onde o convidado era chamado pelo livro, sim, mas era chamado pelo tema. Era um momento do final da ditadura, anistia, início dos governos “democráticos”, onde as pessoas queriam muito conversar sobre temas, assuntos. E eu como sou jornalista me pautava pelos assuntos. Por exemplo, eu era agente literário do Gabeira, logo depois que ele voltou. E aí eu falava muito com o Gabeira e quando deu aquela ocasião do Césio 137 em Goiânia, o Gabeira fez a matéria pra Folha de São Paulo na quinta-feira, a matéria saiu no sábado, eu falei: “Gabeira, dá uma passadinha aqui” “Tá bom”. Segunda-feira ele estava no Cabaré Mineiro, lotado, falando sobre a questão do Césio 137. E por aí sempre foi. Eu pegando os ganchos jornalísticos e os assuntos que as pessoas queriam falar naquele momento com os convidados, sabe? Claro que também fiz Adélia Prado lançando Filandras, um livro lindo dela. Também fiz Darcy Ribeiro no dia que ele assumiu a Secretaria de Desenvolvimento Social no Governo Newton Cardoso, no dia seguinte ele estava lá no Sempre um Papo. Angela Gutierrez assumiu a Secretaria de Cultura, uma semana depois foi ao Sempre um Papo. Ficou como se fosse um grande ambiente de debate porque naquela época isso era necessário.
P/1 – Sim, uma necessidade.
R – Necessidade.
P/1 – Quando que surge o Cemig Sempre um Papo?
R – Um pouco depois. Curiosamente eu fui por necessidade de patrocínio. No Cemig eu fiz eventos memoráveis com Dráuzio Varela, Amyr Klink a primeira vez, Jô Soares, Fernanda Montenegro. Foram eventos memoráveis. E curiosamente Cemig Sempre um Papo durou só um ano e dois meses.
P/1 – Só?
R – Trinta anos depois as pessoas lembram. Pra você vê o que é associação de marca. Eu tive que sair porque em determinado momento a Cemig me considerou seu funcionário. Então como eu tinha negociado um valor muito baixo pra produzir os eventos eu falei: “Olha, ano que vem nós temos que dar uma aumentada”. Eles falaram: “Nossos funcionários estão tendo 1,3 de aumento”. Eu falei: “Muito obrigado, vou embora”. E levei o projeto pra outros lugares. Fiz os BDMG Cultural, fiz um bom tempo, levei Paulo Coelho pro BDMG Cultural. Fiz em outros lugares, mas Cemig Sempre um Papo ficou, que curioso. Força da associação de marca, é isso que pega. Fiat Minas, por exemplo, no vôlei, até hoje tem essa força, né? Associação de marca é muito perigoso. Muito, muito, muito perigoso.
P/1 – E Afonso, você continuou esses anos todos sempre trabalhando com isso, difusão do livro, da leitura, trazendo autores pro público mineiro.
R – Com toda dificuldade que você pode imaginar no mundo. Porque eu nunca, basicamente, tive patrocínio. Eu fui ter patrocínio muito recentemente, dos 30 eu digo que tenho 15 de patrocínio via lei federal de incentivo à cultura. Antes não tinha, antes era assim: a Varig durante cinco anos me dava passagem aérea. O Hotel Del Rey e Otto davam a hospedagem. Eu telefonava pros meus amigos e perguntava: “Você não quer conhecer o Fernando Gabeira, não?” “Quero” “Então vamos buscar ele no aeroporto porque eu não tenho dinheiro pra pagar táxi?” (risos) Era. Tem testemunha, te dou telefone das testemunhas das pessoas que eu ligava. Aí quando não conseguia hotel, o que era muito frequente, eles dormiam na minha casa. Gabeira mesmo, cansou de dormir. Lya Luft cansou de dormir. Herbert Daniel, querido Herbert Daniel. Tanta gente dormiu na minha casa. Decio Pignatari. Sala da minha casa. Um apartamento fudido. Dormia lá, não tinha hospedagem. E também existia uma certa vocação do momento. Os escritores reconheciam que aquele momento era importante eles saírem e divulgarem o seu trabalho, fazerem debates, era uma coisa nacional, não era uma coisa pelos meus belos olhos. Mas eu fazia tudo muito direitinho, organizava desde aquela época. Por exemplo, como é que você imagina que eu fazia divulgação de um livro? Antes do computador. Computador facilitou. Eu tinha uma máquina, tenho até hoje, pequenininha, Olivetti – eu tenho uma máquina mais antiga, mas ela estragou, do meu tio – e eu batia o mesmo release oito, nove vezes.
P/1 – No carbono?
R – Às vezes usava carbono, mas o carbono só dava pra colocar uma folha. Porque não tinha xerox. Batia o mesmo oito, nove. Aí no dia seguinte dobrava e ia entregar nos jornais pra divulgar.
P/1- Pessoalmente (risos).
R – Pessoalmente. Um por um, pra divulgar os livros e os eventos. Era assim. Claro que logo depois teve fax, logo depois teve o... meu primeiro computador era uma máquina imensa com um gravador de fita que tinha o WS nele. Ligava o WS, aí o computador funcionava e eu escrevia naquela coisa verde. Entendeu? Isso quando funcionava. Aquele barulhão.
P/1 – E Afonso, que ano que você sai de Minas e leva o Sempre um Papo pra outras cidades?
R – Muito depois. Tem 12 anos, 15 anos que isso aconteceu. Nós estamos falando do momento em que eu tinha na minha casa quando eu morei na, aí já maior, fui fazendo eventos. Eu tinha uma impressão de silk. O primeiro cartaz do Sempre um Papo quem me deu foi o Ziralzi, querido Ziralzi, irmão do Ziraldo. E era uma cartaz grande com uma tarja no meio, Sempre um Papo, tarja. O que eu fazia? Eu comprei uma máquina de silk que era do tamanho dessa sala aqui, o vidro, sem exagero. Eu passava o silk só com o nome das pessoas, data, hora e local, e saía pregando pela rua afora nos postes.
P/1 – Você mesmo?
R – Eu e uma ou duas pessoas que eu contratava pra fazer isso. Cansei de pregar em bar, pregar cartaz em boteco. Cansei de distribuir volante em boteco, pela rua afora do Sempre um Papo. Mesmo. Entende, então era tudo feito por nós e curiosamente, é engraçado dizer isso, mas naquele momento com o que havia de mais moderno de recursos de comunicação. Curioso falar isso, né? Anos 90, 89, 91, cartaz com silk era lindo, era maravilhoso, pouca gente conseguia fazer. Fazer um volantezinho e distribuir era fantástico. Ter uma divulgação como eu tinha em todos os jornais era fantástico. Tem no meu acervo do Sempre um Papo eventos muito bem divulgados, muito, muito, muito, muito bem divulgados praquele contexto. Eu tinha spot em rádio, eu tinha o apoio do Estado de Minas com anúncios pra divulgar literatura. Durante anos, anos e anos o Estado de Minas colocava um tijolo divulgando literatura, depois que parou. Depois eu fui pro Hoje em Dia, fiquei cinco anos no Hoje em Dia, chamou até o Hoje em Dia Sempre um Papo quando eu fiz com Vargas Llosa entre outros, e também anúncios grandes. Você imagina, é curioso falar isso, mas eu fiz com o que há de mais moderno. Como hoje, que a gente se utiliza dos recursos mais modernos de comunicação, que nós temos redes sociais poderosas, utilizamos formas de divulgação requintadíssimas hoje, mas lá em 80 eu já fazia isso. Spot em rádio em 1981 divulgando escritor era cômico, da mesma forma que era cômico eu chegar num patrocinador e pedir patrocínio em 90, 81, 82.
O cara morria de rir, morria de rir. Falava: “Doido”.
P/1 – É, muito pioneirismo, né?
R – Nossa, doido. Eu encontrei com um executivo hoje aposentado em Tiradentes, uns três anos atrás. Eu lembro dele. Ele falou assim: “Você me procurou naquela empresa lá, patrocínio”. Eu falei: “É mesmo, você estava trabalhando nessa empresa, parara parara”. Não vou falar porque ela é conhecida e ele também é conhecido. “Quando você saiu você sabe que eu tive uma crise de riso?” (risos) “Muito obrigado por sua franqueza” “Aquele menino louco que veio aqui, negócio de literatura, livro, fazer evento”, teve uma crise de riso.
P/1 – Afonso, nós vamos fazer uma nova rodada, fazer algumas rodadas porque tem muita história e a literatura brasileira e você pode vivenciar de perto nesses 30 anos.
R – É, nesse curso eu acompanhei carreiras, né, desde o primeiro livro do Zuenir, o primeiro livro do Rui, o primeiro livro do Fernando Moraes, primeiro livro, todos são carreiras que a gente acompanhou, não foi uma abobrinha não.
P/1 – E como é que você faz esse balanço de quase 30 anos de Sempre um Papo?
R – Você não tem mais nenhuma pergunta pra me fazer, não? É difícil. Eu acho que foi uma vocação que eu descobri. Não pode ser negócio, só negócio, empreender. Eu também vi uma veia de empreendedorismo. Porque aquela época, só curiosamente, você pergunta: “Como é que você ganhava dinheiro pra viver naquela época? Não tinha patrocínio”. Venda de livro. Vendia livro eu tinha 20% sobre preço de capa. Só que o França Júnior no lançamento dele vendia 500 livros. Quinhentos! Não é 200, nem 300. Quinhentos. E dava um dinheirinho. Era um outro mundo, era como antigamente, o Paulo Autran cansou de me falar isso, Antônio Fagundes me disse, antigamente o teatro vivia da bilheteria, não precisava de patrocínio, era aquele momento. Você cobrava ali o que dava pra ganhar, era esse o momento. Vendia livro na porta. Então quer dizer, tinha uma fonte de renda. Mas também ninguém recebia, muitas vezes nem eu. Mas...
P/1 – Você criou longas amizades.
R – O maior patrimônio são as amizades. Se tiver alguma coisa pra deixar e dizer que ficou são as amizades. Isso é inquebrantável. De todos os escritores aí pelo mundo afora.
P/1 – E Afonso, então, nós vamos terminar essa primeira rodada aí e em breve a gente vai estar lá em Belo Horizonte continuando a conversar.
R – Tá bom. Obrigado.Recolher