Minha família se mudou da Praça da Bandeira quando eu era ainda pequenina e fomos morar na Avenida 16 de Novembro. Da nossa casa dava para contemplar o pátio interno do prédio dos bombeiros e sua movimentação. Era a nossa chegada no bairro da Cidade Velha, o mais antigo de Belém. Isso em 1950...Continuar leitura
Minha família se mudou da Praça da Bandeira quando eu era ainda pequenina e fomos morar na Avenida 16 de Novembro. Da nossa casa dava para contemplar o pátio interno do prédio dos bombeiros e sua movimentação. Era a nossa chegada no bairro da Cidade Velha, o mais antigo de Belém. Isso em 1950, mais ou menos.
Era um "sobrado" a nossa nova casa e tinha um enorme balcão de pedra trabalhada que mantinha sob ele os segredos de um sapateiro dedicado ao seu ofício e uma movimentada oficina de soldagem cujas faíscas eu observava curiosa. Internamente, o sobrado possuía uma escada linda, de pau amarelo e acapu, que me lembrava os filmes americanos da época (não sei por quê). Hoje, um Ministério Público ocupou o local, modificando-o totalmente.
Defronte dessa nossa casa e ao lado do prédio dos bombeiros tinha uma casa baixa, com duas janelas e uma porta, arquitetura típica da época e que eu observava do balcão de casa. Ela foi demolida para ceder espaço ao estacionamento dos caminhões-pipas e a construção de um alojamento para a tropa de bombeiros.
Lembro de quando tinha seis anos e brincava de tarde na Praça Felipe Patroni; das quedas da bicicleta e das mangas que recolhíamos depois da chuva, lá na Praça dos Leões. As levávamos para casa dentro da sombrinha (juntamente com os sapatos, para não estragá-los) e ainda acabávamos apanhando por ter pegado chuva. Daí minha avó passava álcool nas nossas costas (éramos umas cinco crianças) para evitar resfriados ou quem sabe o quê. Quando merecíamos, nos davam ovo batido com Martini (ou conhaque; uma delícia.).
E quando íamos para a aula de acordeom e balé, lá na Rui Barbosa, também queríamos trazer as mangas na sombrinha, mas a nossa ama não deixava. O toque dos sinos da Sé ou de S. Joãozinho avisava, às 6 horas da tarde, que era hora de parar de brincar na praça e voltar para casa. Lembro que, cursando o primário, com irmãos e primas, saíamos de casa correndo sob o sol do meio dia para assistir aulas na casa da professora Teresinha, a última da rua Joaquim Távora (conhecida como “Beco do Cardoso”), aliás, um casarão, bem na beira do Rio Guamá.
Para chegar até lá, passávamos pelo Grupo Rui Barbosa, onde também estudamos, pelas casas das professoras Lamarão - com seu "saguão" - e Nazaré - com sua alcova fechada e misteriosa -, outras nossas professoras do primário. Também passávamos pela casa do Seu Xavier (pai da nossa deputada Elcione), que era bastante conhecido; pois tinha a habilidade de consertar as clavículas de toda a criançada da Cidade Velha, que se machucava nas traquinices da infância. Quando chegava à Praça do Carmo, já estava próxima do meu destino. Chegava arfando à porta da casa, que servia de escola e se localizava à beira do rio.
Hoje, um portão fecha a rua Joaquim Távora, retirando, assim, a possibilidade de uma visão deslumbrante do rio (e passou a se chamar “Beco do Cardoso”). Passávamos por muitas casas que ainda tinham porão, saguão e eram compostas de sala, alcova, varanda, corredor com dois ou três quartos, despensa, cozinha, banheiro, muitas com quintal e todas com assoalho de madeira - acapu e pau-amarelo – e tetos trabalhados. A criançada – hoje, gente importante – quando saía da casa da Prof. Rebordão, aproveitava para apitar em todas as campainhas dessas casas. Íamos a pé e desacompanhadas. Outros tempos, mesmo.
A avenida 16 de Novembro, onde morávamos, era mão dupla e ainda era margeada de palmeiras imperiais, que aumentavam ainda mais a grandiosidade da estrada. Vejo-me pequenina, quase a cair de costas para poder olhar o topo daquelas palmeiras, controlando, para me certificar se tinham urubus, antes de começar a brincar embaixo delas. Hoje, essas palmeiras não existem mais naquela avenida.
Lembro os domingos à tarde, quando nossas amas nos levavam para o Bosque Rodrigues Alves, para elas poderem dançar “carimbó’ (que ainda não era dança de salão). Pegávamos o ônibus que ia para S. Brás e, lá, mudávamos pra outro. Lembro o quanto chorei quando a Laura (uma de nossas amas) fugiu de casa atrás do amor-da-sua-vida... e que o foi para sempre (o meu não durou, nem três anos).
Lembro das bonecas e brinquedos que ganhei, e guardei tanto, para os outros brincarem. E no carnaval, nosso tio preparava um dos seus caminhões, para as batalhas de confetes. Íamos todos, adultos e crianças, pulando e cantando no caminhão, pelas ruas da cidade. Tinham caixas e caixas de confete, serpentina e lança-perfume, seja de vidro, seja de metal (que, na época, servia para espirar nos "cangotes" dos outros, não para cheirar), além de guaraná, para tomar. Uma glória. Era o tempo em que a Tamandaré não podia nem ser chamada de Avenida, pois era um enorme pântano, um lamaçal. Começavam a construir as primeiras casas de alvenaria - de dois andares e com pátios - que depois penderam para um lado, à causa do terreno alagadiço.
Hoje, essa avenida tem até edifícios. Lembro do exame de admissão ao CEPC.
Que conquista e aquela saia azul de pregas, que, no fim de cada ano era desfeita e revirada do avesso, para usá-la de novo, no ano seguinte. E os ensaios para o desfile no dia 7 de setembro? Eu desmaiava e, no fim, nem sempre desfilava. Que raiva. E as férias no Mosqueiro? E aquelas viagens de navio onde controlávamos quem estava indo para lá também? Os rapazes, sem lugar para dormir, aproveitavam para se aproximar. A nossa casa, além de ser grande, era cheia de moças e de fronte da praia do Chapéu Virado. Íamos ao fim de junho, assim ainda dava para ver, em casa, os “boi-bumbás’ e os “pássaros”. E lá, naquela praia, onde tinham dois coqueiros (e hoje não tem mais), nós víamos os meninos correrem atrás de “papagaios” e de “curicas”, e nós invejando-os.
De longe, olhávamos os hóspedes do Hotel do Russo brincar no trampolim de ferro que instalaram dentro d’água. Que vontade de pular também, mas ninguém nem ousava. Achávamos que era propriedade privada. As varinhas-de-cipó, com suas cascas trabalhadas, eram compras obrigatórias, quando não as ganhávamos (às vezes, até, com declarações de amor).
E as bolas de futebol, coloridas, feitas de látex pelo pessoal da fábrica Bitar. Aliás, quando chegava o navio de Belém, o último a descer levava uma estrondosa vaia: pois bem, era, quase sempre, o Seu Bitar, esse aí. E no tempo do Círio, quando íamos brincar nos brinquedos do Arraial de Nazaré ou ver os espetáculos nos teatros do meu pai?
Maior divertimento era ver o "rola-rola" e o Jararaca e Ratinho, no teatro "Poeira". Para os adultos tinham os seus outros teatros: o Coliseu, o Iracema, o Odeon, o Moderno e o Variedades,
onde se apresentaram, também: Vicente Celestino, Gilda de Abreu, Moreira da Silva, João de Barros, Carlos Galhardo, Aurora Miranda, Osni Silva, Emilinha Borba, Derci Gonçalves, Wilza Carla, Hebe Camargo,
Ângela Maria,
e tantos outros nomes, hoje totalmente esquecidos, como ele (Félix Rocque).
Naquele tempo, para a Quadra Nazarena, o belenense fazia “enxoval” para poder ir todas as noites para as barraquinhas das famílias “bem de Belém” comer nossas iguarias, lá, aos pés da Igreja de Nazaré. Fui crescendo, e o peito não aparecia. Daí chegaram os “soutiens” com enchimento. Ao dançar apertado, o soutien amassava e o peito “perdia o bico”, achatava...Comecei a enchê-lo de papel higiênico. Mudamos para a Praça Amazonas, canto com a 16 de Novembro; e nossa casa se enchia de jovens, quando fazíamos festas. Comecei a frequentar os clubes. Começaram os namoricos. E as paixões? Já na faculdade, carregava maletas cheias de livro, na Semana Santa, para estudar trepada na mangueira que ficava de fronte de casa, na praia do Chapéu Virado. E todos os anos tinha o boneco de trapo, simbolizando o “judeu” para ser malhado na porta daquela nossa casa, que era do meu tio judeu. E as brincadeiras dos Farazinhos no Mosqueiro? Lembro de uma, contada pelo Baiano: uns
caranguejos com
velas acessas na costa, correndo na noite escura.
Dai chegou o tempo da ditadura e das reuniões clandestinas. E tivemos que emprestar a nossa Kombi para levar alguém escondido para o Mosqueiro. E depois emprestamos a nossa casa de Ananindeua para reuniões, também clandestinas.
Em 1967, eu me formei. Em 1968, veio o AI5. Em 1969, fui estudar em Moscou. Em 1971, fui casar, na Itália. Daí começou uma longa história de saudades e outros tipos de experiência. É, eu também vivi, sim.Recolher