P/1 – Boa tarde, Amílcar, tudo bem?
R – Boa tarde, tudo bem.
P/1 – Meu nome é Genivaldo. Vamos começar perguntando para você qual é o seu nome completo, a cidade e a data de nascimento.
R – Eu me chamo Amilcar Guidolim Vitor. Sou natural de Santo Ângelo, moro em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, e nasci em doze de dezembro de 1984.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – O nome da minha mãe é Enir Fátima Batista Guidolim e do meu pai, Amauri do Prado Vitor.
P/1 – Quais eram as atividades dos seus pais?
R – A minha mãe sempre trabalhou como comerciante, foi comerciante aqui em Santo Ângelo a maior parte da vida dela. Ela sempre viveu aqui. E meu pai era agricultor no Tocantins.
P/1 – Os seus pais são naturais de Santo Ângelo também ou vieram para Santo Ângelo?
R – A minha mãe é natural aqui de Santo Ângelo. Na verdade, de Entre-Ijuís, que é uma cidade vizinha de Santo Ângelo. E meu pai é de Giruá, que é também uma cidade vizinha de Santo Ângelo.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Não, sou filho único.
P/1 – Quais eram os principais costumes da sua família quando você era criança, a rotina da sua família?
R – A minha família é uma família de origem italiana. Os meus bisavós se estabeleceram aqui no Rio Grande do Sul no início do século XX.
É uma família, em termos de costumes culturais, muito próxima daquilo que é a cultura italiana. É uma família que gosta de se reunir muito, estar junto aos fins de semana, conversar e falar muito alto, hábitos tipicamente italianos. E também muito ligada à cultura do campo, do interior. Apesar da minha mãe não ter tido muito essa vivência, outros irmãos e irmãs dela tiveram.
A minha infância teve muito desses costumes também da vida no campo, que são muito comuns aqui no Rio Grande do Sul, especialmente no interior.
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Continuar leituraP/1 – Boa tarde, Amílcar, tudo bem?
R – Boa tarde, tudo bem.
P/1 – Meu nome é Genivaldo. Vamos começar perguntando para você qual é o seu nome completo, a cidade e a data de nascimento.
R – Eu me chamo Amilcar Guidolim Vitor. Sou natural de Santo Ângelo, moro em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, e nasci em doze de dezembro de 1984.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – O nome da minha mãe é Enir Fátima Batista Guidolim e do meu pai, Amauri do Prado Vitor.
P/1 – Quais eram as atividades dos seus pais?
R – A minha mãe sempre trabalhou como comerciante, foi comerciante aqui em Santo Ângelo a maior parte da vida dela. Ela sempre viveu aqui. E meu pai era agricultor no Tocantins.
P/1 – Os seus pais são naturais de Santo Ângelo também ou vieram para Santo Ângelo?
R – A minha mãe é natural aqui de Santo Ângelo. Na verdade, de Entre-Ijuís, que é uma cidade vizinha de Santo Ângelo. E meu pai é de Giruá, que é também uma cidade vizinha de Santo Ângelo.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Não, sou filho único.
P/1 – Quais eram os principais costumes da sua família quando você era criança, a rotina da sua família?
R – A minha família é uma família de origem italiana. Os meus bisavós se estabeleceram aqui no Rio Grande do Sul no início do século XX.
É uma família, em termos de costumes culturais, muito próxima daquilo que é a cultura italiana. É uma família que gosta de se reunir muito, estar junto aos fins de semana, conversar e falar muito alto, hábitos tipicamente italianos. E também muito ligada à cultura do campo, do interior. Apesar da minha mãe não ter tido muito essa vivência, outros irmãos e irmãs dela tiveram.
A minha infância teve muito desses costumes também da vida no campo, que são muito comuns aqui no Rio Grande do Sul, especialmente no interior.
P/1 – Na sua infância, quais eram as brincadeiras, como era a sua infância nesse aspecto?
R – A minha infância se passou no final dos anos 80, início dos anos 90, então eram brincadeiras típicas, tradicionais daquele período: futebol, soltar pipa, jogar videogame. O videogame no início dos anos 90 era uma febre entre as crianças e os adolescentes, então não fugiu muito disso. Uma criança muito alegre e muito ativa, mas nessas brincadeiras mais tradicionais entre o final dos anos 80 e o início dos anos 90.
P/1 – Você já tinha quando criança o sonho de ser alguma coisa quando crescesse?
R – Na verdade, nesse perfil de criança do início dos anos 90, que estava sempre muito envolvida com futebol e jogando futebol, era aquele velho sonho tradicional de garoto de jogar bola, mas rapidamente a realidade sempre acaba superando os sonhos.
Em termos de profissões, eu nunca… Não lembro de na minha infância estar estabelecendo uma meta, um projeto. Na verdade, a profissão que eu escolhi, que é de professor e historiador, começou a se delinear mais na adolescência mesmo. Na infância, eram aqueles sonhos profissionais mais utópicos.
P/1 – Você se lembra da casa onde você cresceu?
R – Lembro, lembro. Eu não vivi em muitas casas ao longo da minha vida. Eu morei uma época por pouco tempo em uma casa específica, de onde tenho vagas lembranças, porque era na primeira infância. A partir dos oito anos de idade, eu fui viver na casa em que vivi a maior parte da minha vida. Eu não fui muito nômade neste sentido. Morei quase sempre, desde os meus oito anos de idade na mesma casa, que é a casa da minha família. Depois, por ironia do destino, eu acabei ficando nessa casa, onde moro até hoje. Minha mãe acabou se mudando e foi morar em um apartamento.
P/1 – E o bairro, a cidade, como era o entorno dessa casa quando você era criança? Mudou muito de lá para cá?
R – Mudou bastante, porque a região em que eu fui morar era uma região que começou a se desenvolver mais a partir dos anos 90. Foi um bairro que cresceu muito rápido. Eu sempre tive uma convivência muito boa com amigos ali. Hoje, o bairro onde moro está situado em uma região aqui de Santo Ângelo que foi uma das que mais se desenvolveram no município, então o entorno daquela região ali cresceu muito. Foi um período assim… Como eu cresci e vivo até hoje nesse mesmo lugar, eu sempre tive uma interação muito boa com aquele local, sempre interagi muito bem. Eu tive a oportunidade de sair dali e morar em outras regiões da cidade, mas sempre optei por continuar vivendo ali, pelo fato do meu ciclo de amizades e pessoas conhecidas ser muito forte até hoje.
P/1 – Certo. Vamos entrar então um pouquinho no seu histórico escolar. Qual o nome da primeira escola onde você estudou e quais lembranças você tem desse período?
R – Eu estudei em uma escola que hoje se chama Instituto Estadual de Educação Odão Felippe Pippi. A minha primeira lembrança daquela escola é no jardim de infância. Eu lembro muito bem da minha mãe me deixando na escola e eu com muito medo. A criança tem esse rompimento do vínculo com a mãe, essa ideia de começar a ir para a escola, de frequentar um outro espaço, um outro mundo na primeira infância. Geralmente isso deixa algumas marcas, então lembro disso, daquele meu contato com aquele novo mundo, outros colegas, professores, e eu não querendo romper muito o vínculo com a minha mãe.
Depois que eu comecei na escola, no jardim de infância, que era antes da pré-escola ainda, tive um período que morei em Giruá, com a minha avó. A minha mãe permaneceu morando em Santo Ângelo e eu morei nessa outra cidade com a minha avó. Foi um período curto de tempo, um ano. Lá eu frequentei outra escola, que se chamava Escola Concórdia. Depois, eu retornei para Santo Ângelo, estudei também por um ano em uma outra escola, chamada Margarida Pardelhas, que é próxima ao local onde moro ainda hoje. Depois, fui para o Instituto Odão Felippe Pippi, que foi onde estudei desde a segunda série do ensino fundamental, até terminar o ensino médio, então praticamente toda a minha vida escolar foi feita nesse instituto.
P/1 – Houve algum professor que te serviu de inspiração e despertou algum interesse em alguma matéria nesse período?
R – Sim. Desde o início do ensino fundamental, eu sempre fui muito estimulado na leitura. Eu tenho lembranças desde a minha primeira infância sendo muito estimulado na leitura.
Os professores que mais me marcaram na minha trajetória escolar foram professores que tiveram esse papel sobre a minha formação, que foi o de estimular a leitura desde muito cedo. Eu sempre me identifiquei, desde muito cedo, com professores de História, de Geografia… Teve um professor da Biologia, que hoje é muito conhecido aqui em Santo Ângelo, que é o professor Jesus Moura, que foi meu professor naquele período e a gente é amigo até hoje. Foi um cara que me marcou bastante.
No ensino médio eu também tive professoras bem marcantes; na maior parte da minha trajetória, eu tive mais professoras do que professores. Aquelas professoras que me provocavam nessa minha necessidade da leitura são aquelas de quem tenho uma lembrança mais marcante, desde o ensino fundamental e especialmente no ensino médio. As professoras de História, naturalmente, porque sempre gostei muito, sempre fui muito curioso para a História desde muito cedo, então eu sempre acabava me identificando com as minhas professoras de História.
P/1 – Passando já para a sua adolescência, já que você passou o ensino médio também na mesma instituição, quais atividades de lazer e sociais que você teve nesse período da adolescência? Explorando a cidade com amigos ou enfim…
R – Nesse período em que eu estive na escola, eu sempre me envolvia em muitas atividades paralelas. Eu fiz teatro por um tempo. Na época, o meu professor de teatro também foi uma pessoa que me marcou bastante na minha formação. Ele tem um grupo de teatro até hoje aqui em Santo Ângelo. Também fazia muitas atividades ligadas ao esporte, eu praticava muito esporte na escola. Time de futebol, basquete…
A gente viajava bastante. As minhas atividades paralelas às atividades curriculares da escola estavam sempre envolvidas nessas situações. No período do teatro, a gente viajou muito pelo Rio Grande do Sul. Participamos de um festival em Canela, na época, e foi uma coisa que me marcou muito, porque a peça que a gente interpretava na época falava sobre o índio Galdino dos Santos, que em 1997 foi assassinado em Brasília, ele foi queimado vivo lá. A gente viajou muito pelo estado naquela época, interpretando a história com essa peça. E também as atividades relacionadas ao futebol e ao basquete, que eram as atividades que mais me envolviam.
Essas viagens me marcaram muito na adolescência, do início ao final da adolescência. Eu comecei no teatro aos doze anos, e também estive nessas atividades ligadas ao esporte dos doze aos dezessete anos. Boa parte da minha vida era ocupada por isso.
P/1 – Como foi a sua entrada na faculdade? Você já tinha essa ideia determinada no ensino médio de que você faria faculdade de História ou você pensou em alguma outra opção antes? Como foi essa transição do ensino médio para o ensino superior?
R – Sim. Na época, quando eu entrei no ensino médio, ainda não era História a minha opção inicial. Como falei anteriormente, eu sempre gostei muito da leitura, da literatura, desse universo das letras e das linguagens, então a minha primeira opção era o curso de Letras, para trabalhar mais nessa área da literatura e das linguagens. Só que quando eu terminei o ensino médio, aqui em Santo Ângelo não havia e não há até hoje uma universidade federal, e as condições socioeconômicas da minha família não me permitiam frequentar uma universidade privada. Nós não tínhamos condições financeiras de pagar uma universidade privada.
Acabou que eu terminei o ensino médio e não fui direto para a graduação, para o ensino superior, como alguns jovens acabam fazendo. Eu cumpri o serviço militar obrigatório no Exército. Na época eu estava meio desiludido, porque não podia ir para o ensino superior, não sabia muito o que iria fazer, tentava emprego e não conseguia.
Acabei indo para o Exército cumprir o serviço militar e não gostei muito. Gostei da experiência, mas não para seguir uma carreira. Depois disso, eu trabalhei um ano em uma empresa.
Na época, o Enem estava se tornando algo muito popular no Brasil. Eu fiz o Enem e acabei conseguindo ganhar uma bolsa em uma universidade privada. Acabou que essa bolsa que consegui não foi para a minha primeira opção, que era o curso de Letras; acabou sendo para o curso de História, que era minha segunda opção. Se não desse Letras, eu gostaria de fazer História e foi o que aconteceu. Ali comecei a minha trajetória na área da História, na área da educação.
P/1 – E essa universidade fica em Santo Ângelo mesmo?
R – Sim, ela fica em Santo Ângelo, é uma universidade comunitária. Ela existe desde o final da década de 60. Na década de 1960 houve um movimento muito grande aqui em Santo Ângelo, porque a região de Santo Ângelo, que é a região Noroeste do Rio Grande do Sul, também conhecida como Região das Missões, ainda não tinha sofrido esse processo de interiorização do ensino superior. Houve essa movimentação, e essa instituição, que na época se chamava Fundames [Fundação Missioneira de Ensino Superior], foi criada no final da década de 1960. No início dos anos 1990 ganhou essa nova denominação, que é Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai das Missões, que tem campis aqui em Santo Ângelo, mas também em algumas outras cidades aqui do Rio Grande do Sul. Foi ali que fui estudar, porque a universidade federal mais próxima ficava em Santa Maria, a Universidade Federal de Santa Maria, e na época eu não tinha condições de ir morar em Santa Maria e ir estudar lá.
P/1 – O que mudou na sua vida nesse momento durante o seu curso superior, a faculdade de História? Quais foram as mudanças que aconteceram na sua vida nesse período?
R – Acho que esse período marca uma grande mudança na minha vida. Como eu te falei, quando eu terminei o ensino médio… As perspectivas, quando você termina o ensino médio... Há uma série de cobranças sociais e da família sobre o que você vai fazer da vida, no que você vai trabalhar, o que você vai estudar. Como inicialmente eu não tinha muito essa perspectiva em relação ao estudo, principalmente pela questão financeira, tinha essa questão do que fazer.
Quando eu consegui acessar o ensino superior através de uma política pública… O que me possibilitou acessar a faculdade foi uma política pública, como o Enem, que deu origem também ao ProUni, porque eu fui bolsista através do ProUni. Ali houve um grande giro, se não de 360, de 180 graus na minha vida, que me abriu um leque de possibilidades e de oportunidades relacionadas à profissão.
Logo que comecei o curso de História, eu já consegui um estágio na área - é aí que começa a minha relação com a ferrovia e com a história da ferrovia - no Memorial, que é o Memorial da Coluna Prestes, juntamente com o Museu Ferroviário de Santo Ângelo. No primeiro ano que ingressei no ensino superior, eu consegui um estágio nesse lugar de memória e comecei ali a trabalhar e me envolver com outros projetos também. De lá em diante, nunca mais parei, estive sempre envolvido com projetos de pesquisa e projetos de extensão relacionados à História.
Depois que me formei, logo já ingressei no mestrado e comecei a dar aula. Esse ano eu completei dez anos de carreira como professor. Então as coisas foram acontecendo de uma maneira muito rápida do ponto de vista profissional, a partir do momento em que eu ingressei em uma universidade.
P/1 – Conta um pouco para nós como foi essa questão do estágio no Memorial da Coluna Prestes.
R – Essa foi uma questão bem importante e bem relevante, porque quando eu comecei o curso de História… Como falei anteriormente, a minha prioridade, a minha primeira opção era o curso de Letras. Eu queria fazer Letras, mas o que se ofereceu para mim foi a oportunidade do curso de História.
No início, eu ainda estava um pouco receoso se era realmente o que eu queria. O que me convenceu de que era realmente o que eu queria e podia fazer tão bem quanto trabalhando na área das Letras foi justamente o estágio no Memorial da Coluna Prestes.
O Memorial, naquele momento, estava completando dez anos de existência. Ele foi criado em 1996 e eu iniciei o estágio em 2006. Ali modificou completamente as minhas perspectivas, porque a partir dali eu comecei a pesquisar sobre o assunto que até hoje pesquiso, que é a história e a memória da Coluna Prestes no Rio Grande do Sul. E paralelo a isso, também há a história da ferrovia, porque o memorial em Santo Ângelo está instalado em um prédio que pertenceu à antiga estação ferroviária de Santo Ângelo. Hoje esse prédio da antiga estação ferroviária abriga tanto o Memorial da Coluna Prestes quanto o Museu Ferroviário.
Ali eu me aproximei de um grande amigo que tive, o seu Juvenil Menezes, que era telegrafista da ferrovia. Ele me ensinou muito do que sei hoje sobre a história da ferrovia, ouvindo as histórias dele. Ele foi telegrafista por mais de cinquenta anos da rede ferroviária do Rio Grande do Sul.
Tudo ali foi fazendo mais sentido para mim na minha trajetória profissional, especialmente no que se refere à pesquisa acadêmica. Eu desenvolvo a minha veia de pesquisador e de historiador, em um primeiro momento até muito mais do que como professor de História, a partir desse contato com esse lugar de memória, com esse lugar de história e com uma pessoa que vivenciou a trajetória da ferrovia no Rio Grande do Sul, que era o seu Juvenil Menezes.
P/1 – Quais foram os momentos mais marcantes nesse período em que você estava fazendo o curso de História? Você se lembra de alguma coisa que aconteceu ou de algum momento que te marcou e acabou te influenciando profissionalmente posteriormente, além dessa questão do estágio?
R – Como eu te falei, eu acabei desenvolvendo desde o início do curso de História essa veia mais de pesquisa, então eu sempre me envolvi nos projetos desenvolvidos dentro do curso de História, na universidade. Isso me possibilitou uma série de experiências. Eu viajei e conheci vários lugares do Brasil, países vizinhos relacionados à essa pesquisa, porque a cidade de Santo Ângelo está inserida em uma região histórica relacionada às missões jesuítico-indígenas do período colonial, especialmente do final do século XVII e início do século XVIII. Então, eu visitei essas outras reduções.
No período colonial, se criaram trinta reduções entre regiões que abrangem o Rio Grande do Sul, a Argentina e o Paraguai. Foi através do curso de História que eu visitei essas outras reduções, em países vizinhos, sempre relacionado a projetos de pesquisa.
Essas foram experiências que me marcaram muito nesse período, fora a convivência com colegas no dia a dia. A trajetória na universidade é algo que marca na vida de uma pessoa. São novas sociabilidades, novos amigos, novos olhares, pessoas diferentes do ponto de vista político e ideológico, então são coisas que lembro que me enriqueceram muito, e experiências muito positivas que tive, para além dessas experiências que o próprio Memorial me proporcionou.
Desde o início do estágio, eu era o responsável por receber visitantes, estudantes, turistas que vinham para cá conhecer um pouco mais dessa história, tanto das missões jesuítico-indígenas, quanto da história da Coluna Prestes.
P/1 – Então você está envolvido na verdade com uma série de questões em relação a Santo Ângelo: a questão das Missões, a questão da Coluna Prestes… Você teve uma relação pessoal com esses três eixos de pesquisa em relação a Santo Ângelo. Eu gostaria que você comentasse primeiramente a respeito dessa questão das missões. Como você acha que isso se relaciona com a cidade de Santo Ângelo em um nível mais social? Além de ser um ponto turístico, o que você acredita que isso representa no dia a dia da cidade?
R – Bom, aqui… Santo Ângelo foi a cidade que encontrou o maior desenvolvimento socioeconômico nessa região Noroeste, conhecida como Região das Missões por causa do passado, das missões jesuítico-indígenas. Ao longo do século XX, Santo Ângelo foi uma cidade que cresceu muito e se desenvolveu em cima disso.
Houve um fator muito importante nesse processo, que é que o sítio arqueológico de São Miguel das Missões, as ruínas de São Miguel das Missões, pertencia ao território de Santo Ângelo. Do ponto de vista social, ao longo do século XX, houve uma grande construção de uma identidade cultural aqui na região, baseada no passado das missões jesuítico-guaranis.
Os líderes políticos de Santo Ângelo desenvolveram políticas de memória e políticas de patrimônio. Houve uma patrimonialização do passado jesuítico-indigena, traduzida especialmente nas ruínas de São Miguel das Missões, que articulou o desenvolvimento de Santo Ângelo e a relação da população de Santo Ângelo com esse passado. Aqui muito se fala em uma identidade missioneira, os habitantes de Santo Ângelo e de algumas outras cidades que têm também esse passado das missões muito presente, construíram essa identidade.
Do ponto de vista social, boa parte da população daqui se identifica como missioneira, faz um uso político disso; faz um uso social, cultural e principalmente econômico, em função do turismo. Santo Ângelo e São Miguel das Missões meio que canalizam e potencializam o turismo nessa região do Rio Grande do Sul. Tudo isso é muito baseado nesse passado das missões, que na relação com o passado da Coluna Prestes, por exemplo, é um passado mais privilegiado.
Eu sempre digo que Santo Ângelo optou por ativar, acionar e negociar com o passado das missões [mais] do que com o passado da Coluna Prestes, porque o passado das missões sempre foi muito utilizado nos discursos de uma maneira muito utópica, de uma maneira heroicizada, idílica. As missões seriam a terra sem males, o lugar onde os padres viviam com os povos indígenas de maneira natural, de maneira muito próxima. Os jesuítas com aquela ideia de conversão dos povos indígenas, então Sepé Tiaraju se tornou… Sepé Tiaraju era um indígena muito importante naquele contexto e acabou assumindo a figura de um herói aqui na região.
Santo Ângelo sempre optou por negociar mais com esse passado do que com o da Coluna Prestes, que é um passado mais recente, um passado de pouco mais de 90 anos e que envolve muito mais questões políticas, especialmente a partir da adesão do Luís Carlos Prestes ao Partido Comunista, na época de 1930.
P/1 – Antes de começarmos a falar sobre a linha férrea, eu justamente iria entrar nessa questão. A gente perguntou isso também para a Nadir, que foi a outra historiadora que entrevistamos, a questão da relação da comunidade de Santo Ângelo com o Memorial da Coluna Prestes. Você disse que culturalmente e politicamente é priorizada a questão das missões. Você, que trabalhou lá, como sentia a relação da cidade com esse Memorial e com a memória da Coluna Prestes?
R – É uma relação que oscila muito. Ela oscila entre reconhecer a Coluna Prestes como um movimento legítimo e um movimento até certo ponto heróico, que contestava a estrutura política da primeira república, na década de 1920, e com outro ponto, outra interpretação, que entende a Coluna Prestes como um movimento não tão legítimo assim, um movimento que teria deixado muitos traumas aqui na região, especialmente em relação à apropriação que o movimento revolucionário teria feito de alguns bens das pessoas por aqui.
A Coluna Prestes acabou se tornando uma marcha revolucionária que precisava se abastecer em relação à alimentação, animais para desenvolver a marcha, cavalos, muares etc. Isso gerou a ideia de que esse movimento, que ao mesmo tempo era heróico, queria a moralização política e uma nova estrutura política naquele período, também acabou prejudicando a população daqui, em função da retirada desses bens: cavalos, gado etc.
Mas o principal fator que também gera uma espécie de estremecimento da relação da população de Santo Ângelo com a história da Coluna Prestes é o fato de que o Luís Carlos Prestes, depois da Coluna, adere ao Partido Comunista Brasileiro e se torna uma das principais figuras do partido. A gente sabe que na história do Brasil há sempre esse temor em relação à ideologia e ao Partido Comunista. O Brasil passou por vários momentos em que se negociou muito esse perigo comunista, na década de 30, na década de 60, mais recentemente agora também há esse espectro do perigo comunista rondando o imaginário das pessoas, então um pouco dessa rejeição que há… Talvez não tanto pela população de Santo Ângelo, mas mais pelos agentes que produzem os discursos e as representações - lideranças políticas, especialmente - que acabam construindo essa visão da Coluna Prestes, e até do Memorial da Coluna Prestes, que ele não seria um espaço assim tão legítimo. Como eu já falei, também há, por outro lado, uma grande parcela da população e de lideranças políticas que reconhecem a história da Coluna como legítima, a história do Luís Carlos Prestes e a biografia dele como legítima e o próprio Memorial da Coluna Prestes como um espaço de memória legítimo também.
P/1 – Agora a gente vai entrar um pouquinho nessa questão da linha férrea. Qual o contexto de criação da linha férrea no primeiro momento e como ela chegou a Santo Ângelo?
R – A criação do projeto ferroviário no Rio Grande do Sul está muito ligada ao Partido Republicano Rio-Grandense. O Partido Republicano Rio-Grandense foi um dos mais importantes no final do século XIX. Havia um projeto de matriz positivista e desenvolvimentista baseado nas ideias do Júlio de Castilhos, no primeiro momento. Júlio de Castilhos, no final do século XIX, foi o grande líder do Partido Republicano Rio-Grandense, e esse partido assumiu o poder no Rio Grande do Sul. Ele exerceu esse poder de uma maneira muito evidente e muito forte no final do século XIX, que é o contexto em que, especialmente no final da década de 1870, se começa um projeto efetivo de implantação de ramais ferroviários no Rio Grande do Sul. No primeiro momento, em Porto Alegre, na região metropolitana de Porto Alegre, e depois um processo de interiorização das linhas e dos ramais ferroviários.
Nesse período, Santo Ângelo se tornou uma cidade emancipada em 1873, porque antes disso, Santo Ângelo pertencia ao município de Cruz Alta. É nesse contexto em que Santo Ângelo se emancipa, na década de 1870, e também nesse contexto de um projeto econômico-desenvolvimentista baseado na lógica do Partido Republicano Rio-Grandense é que se começa a discutir a interiorização do ramal ferroviário.
O ramal ferroviário que foi criado em Santo Ângelo é um ramal derivado da linha de Cruz Alta - Santa Maria e Cruz Alta. Santa Maria é uma cidade que fica no centro do Rio Grande do Sul e esse ramal ferroviário foi se interiorizando de Porto Alegre em direção à Santa Maria. Santa Maria se tornou o grande polo de distribuição de ramais ferroviários do Rio Grande do Sul nesse período entre o final do século XIX e início do século XX.
O projeto de trazer esse ramal ferroviário para Santo Ângelo começa a tomar corpo e se desenvolver de uma forma mais evidente na época de 1910. Naquele período, era intendente de Santo Ângelo… O cargo que hoje seria de prefeito naquela época se chamava intendente, e era exercido por um cara chamado Bráulio de Oliveira, que era um dos caras mais fortes, tanto do ponto de vista político, como do ponto de vista econômico aqui na Região das Missões. Era um cara que trabalhava com a produção de madeira - inclusive nesse primeiro momento, em que esse ramal ferroviário chega aqui na região, ele vem para atender essa demanda do transporte de mercadorias, especialmente de madeira.
Esse Bráulio de Oliveira era um homem grande do Partido Republicano Rio-Grandense. Naquele período do início do século XX, o presidente do Estado do Rio Grande do Sul era o Borges de Medeiros - um homem forte, sucessor do projeto do Júlio de Castilhos no início do século XX. O homem de confiança dele na Região das Missões era a família do Firmino de Paula, de Cruz Alta, e a família do Bráulio de Oliveira, aqui em Santo Ângelo. É nesse período, década de 1910, e nessas relações próximas entre lideranças políticas do Partido Republicano, e dentro dessa lógica desenvolvimentista do Partido Republicano… Uma lógica baseada nos próprios ideais do positivismo; o lema de "Ordem e Progresso", essa foi a base da construção da política rio-grandense entre o final do século XIX e início do século XX, o que explica esse grande processo de interiorização dos ramais ferroviários no Rio Grande do Sul.
Esse ramal ferroviário chega à sede de Santo Ângelo em 1917 e culmina em 1921, com a inauguração da estação ferroviária. Então há todo um contexto político, que vai fazer com que esse ramal ferroviário chegue a Santo Ângelo nesse período.
P/1 – E quais eram os objetivos dessa linha férrea com essa passagem por Santo Ângelo? Isto é, além de trens de passageiros, qual era a produção que se fazia nesse período que escoava pela linha férrea?
R – Hoje Santo Ângelo é uma cidade que tem cerca de 80.000 habitantes, mas na década de 1920 Santo Ângelo já tinha uma população relativamente grande para a região. Santo Ângelo tinha naquela época aproximadamente 20.000 habitantes entre a década de 1910 e o início da década de 1920. Havia uma necessidade por parte do governo do Estado de, na medida em que aqui era uma área de influência do Partido Republicano Rio-Grandense, favorecer a população que chegava e produzia aqui nessa região. Claro que naquela época era um polo de produção muito mais agrícola, especialmente na pecuária e também na produção de madeira, que era também até o que o próprio Bráulio de Oliveira trabalhava, mas também porque é uma região que… Santo Ângelo é meio que um catalisador, é meio que uma cidade-satélite para outras cidades que estão no entorno aqui, então era preciso trazer o desenvolvimento para essa região. Não só o desenvolvimento econômico com o transporte de mercadorias, mas o próprio desenvolvimento populacional, porque a chegada do ramal ferroviário nessa região também marca a chegada de uma grande leva de imigrantes das mais variadas nacionalidades - claro que especialmente alemães e italianos, mas também poloneses, também russos, também árabes. A chegada do ramal ferroviário aqui na região marca não só um projeto de integração dessa região com outras regiões do Rio Grande do Sul; era um projeto de desenvolvimento socioeconômico e um projeto de desenvolvimento populacional, com esse grupo de imigrantes que vai começar a chegar aqui também.
P/1 – Quais foram as consequências dessa implantação? Após a chegada desses imigrantes, quais foram as transformações, tanto econômicas quanto sociais pelas quais a cidade de Santo Ângelo passou?
R – Santo Ângelo… Isso é um processo tão importante e tão forte que na década de 1940 Santo Ângelo passou a ser conhecida como a Capital das Missões.
A redução de Santo Ângelo Custódio foi a última das reduções criadas nessa região entre o final do século XVII e o início do século XVIII. Foi uma redução que teve um certo desenvolvimento socioeconômico, era uma redução de aproximadamente 8.000 habitantes. Após a Guerra Guaranítica, ela sofre um grande abalo. Os jesuítas são expulsos pelo Marquês de Pombal dessa região, os próprios povos indígenas se dispersam e Santo Ângelo passa cem anos sendo um território praticamente abandonado, circulando apenas os povos indígenas por aqui.
A partir da segunda metade do século XIX, começa esse desenvolvimento que a gente chama de "repovoamento de Santo Ângelo", que vai culminar com a emancipação em 1873. Mas o grande salto econômico, político, populacional e até cultural na medida em que os imigrantes chegam aqui, se dá a partir da década de 1920, então Santo Ângelo passa a crescer mais.
Outro processo muito importante que vai dar uma grande atenção a essa região é o processo de patrimonialização do sítio arqueológico de São Miguel das Missões, que como eu falei anteriormente, pertencia a Santo Ângelo. São Miguel das Missões foi distrito de Santo Ângelo até 1988, quando se emancipou e se tornou um município independente. Santo Ângelo usou esse passado das missões, muito em função de que na cidade de Santo Ângelo os remanescentes arquitetônicos da redução do período colonial foram completamente destruídos. Boa parte das pedras da redução de Santo Ângelo foram usadas no processo de repovoamento da cidade no final do século XIX, então não sobrou nada do ponto de vista material da redução de Santo Ângelo, mas em São Miguel sim.
Enquanto São Miguel pertenceu a Santo Ângelo, Santo Ângelo usou muito esse patrimônio, até porque na década de 1930, esse patrimônio foi reconhecido pelo Estado brasileiro, no governo Getúlio Vargas - um gaúcho da região, porque Getúlio Vargas é de um município próximo aqui de Santo Ângelo, que é São Borja. Getúlio Vargas vai desenvolver esse processo, o governo dele vai desenvolver naquele período de reconhecimento e patrimonialização do sítio arqueológico de São Miguel, mas há um processo já iniciado na década de 1820 com o próprio presidente do estado, Borges de Medeiros.
O desenvolvimento de Santo Ângelo se dá também de uma maneira muito alicerçada na ativação desse passado, na negociação com esse passados das missões. Consequentemente, na medida em que os próprios imigrantes vão chegar e trabalhar para o desenvolvimento da região, que nesse período é um desenvolvimento muito baseado na agricultura, na pecuária e na agricultura familiar, é a partir daí que Santo Ângelo vai passar a ter um crescimento e vai ser reconhecida como a capital das Missões, a partir da década de 1940.
P/1 – Certo. E em relação à chegada de outras atividades, como por exemplo, as fábricas, em que ponto essa chegada da estação traz esse tipo de concentração ou cria novos bairros e novas dinâmicas sociais em volta da estação?
R – Quando a estação é inaugurada em 1921… A região onde a estação foi criada hoje é uma região central da cidade, faz parte de uma região central, mas não na época. A região central de Santo Ângelo nesse período, na década de 1920, era mais próxima de onde foi o sítio histórico da redução de Santo Ângelo. Como te falei, no processo de repovoamento foram retiradas as pedras da redução para construir as novas casas no entorno daquela região, que é mais em direção à região Sul da cidade, e a estação está localizada na região Norte. O desenvolvimento inicial de Santo Ângelo desde o repovoamento, na década de 1850 até a década de 1920, fica muito localizado nessa região, então as casas… Não só as casas de habitação, de moradia, como as casas comerciais também, vão se desenvolver naquela região. Com a chegada da estação em 1921 e consequentemente a chegada dessas levas de imigrantes que vêm para cá, a região Norte, que é a região mais próxima da estação, começa a se desenvolver, então podemos dizer que a chegada da estação também promove um desenvolvimento urbano de uma outra região de Santo Ângelo, que é a região Norte. Santo Ângelo passa a crescer mais para o outro lado a partir da estação ferroviária.
Inclusive nesse período, essa região mais ao Norte fica conhecida como a região dos alemães, da colônia alemã, porque esses alemães que passam a morar aqui passam a construir suas moradias e estabelecimentos comerciais nessa região, próxima à estação ferroviária.
P/1 – Isso cria então uma certa divisão na cidade, sobre a região mais antiga que ficava mais ao Sul e a região mais ao Norte, que tem essa colonização alemã? Então pode se falar desses dois lados da cidade nesse período?
R – Sim, porque inicialmente esse processo de repovoamento da região foi conduzido por uma população de origem lusa, de origem portuguesa. Essa chegada desses novos grupos… Os alemães chegam no Rio Grande do Sul na década de 1820, então cem anos antes deles começarem a chegar na região de Santo Ângelo eles já estão no Rio Grande do Sul.
Os italianos chegaram um pouco mais tarde, na década de 1870, mas também começaram a chegar com muita força aqui, especialmente porque as outras regiões de colonização e povoamento já davam sinais de esgotamento. A região de Caxias do Sul, a região da Serra Gaúcha, e depois a região chamada de Quarta Colônia, que é próxima de Santa Maria. Boa parte dos italianos que vêm para essa Região das Missões, em Santo Ângelo, são dessa região da Quarta Colônia, próxima à Santa Maria.
Inicialmente, até a década de 1920, a origem étnica da população de Santo Ângelo tem esse marcador de origem lusa, origem indígena e de origem afrobrasileira, porque a escravidão era uma marca dessa região aqui também. Durante muito tempo se disse que a escravidão foi mais amena no Rio Grande do Sul em comparação a outras regiões do Brasil e hoje existem uma série de pesquisas que estão demonstrando que não. Inclusive aqui, em Santo Ângelo mesmo, existem documentos do final do século XIX, antes da abolição, com registros de uma população de aproximadamente mil pessoas escravizadas, o que era muita coisa para uma cidade incipiente, que estava recém dando seus primeiros passos. Mas a partir da chegada desses imigrantes há sim esses marcadores culturais, que vão de certa forma dividir a cidade entre a população de origem lusa e a população de origem alemã, polonesa e italiana.
P/1 – Certo. Existe também… A gente já colheu em outros depoimentos, essa questão não só das fábricas e do comércio que passam a circundar a linha férrea, mas também das pessoas que trabalhavam na ferrovia morarem à beira da ferrovia. Você tem algum comentário, algo que você possa falar sobre isso para nós, sobre a dinâmica desses bairros, digamos assim, ferroviários, ao longo da linha?
R – Sim. Quando Santo Ângelo passa a vivenciar esse desenvolvimento, que é paralelo à chegada da ferrovia, da estação, do ramal ferroviário, boa parte das casas comerciais que existiam aqui em Santo Ângelo ficavam próximas à ferrovia, em função do próprio transporte dessas mercadorias, do transporte de cargas. Mas há o desenvolvimento também de uma população que vai dar origem a bairros operários, e não só operários da ferrovia, mas de outras áreas, como da própria indústria. Santo Ângelo tinha um curtume muito grande aqui e durante décadas esse curtume empregou muitos operários - isso já é mais da década de 1940 em diante. Inclusive o bairro São Pedro, que é um bairro onde há uma outra estação ferroviária aqui em Santo Ângelo, é um bairro que se desenvolve baseado nessa estação. A estação principal ficava na área urbana de Santo Ângelo, na região Norte, que vai começar a se desenvolver, mas em direção ao extremo Norte, mais fora dos limites urbanos da cidade, havia uma outra estação ferroviária. Foi no entorno daquela estação que se desenvolveu uma bairro de certa forma ligado a esses operários. De maneira mais específica, operários da ferrovia.
P/1 – Estamos comentando aqui sobre o desenvolvimento da cidade a partir da chegada da linha férrea. Ao longo do tempo, obviamente isso foi se esgotando, até a desativação dos trens de passageiros. Eu queria que você comentasse um pouco sobre o impacto dos trens de passageiros, enquanto houve esse tipo de trem, sobre a desativação e as consequências, os efeitos dessa desativação.
R – A gente pode dizer que há um primeiro impacto, que é esse impacto da década de 1920, 1930: a chegada desses novos habitantes, desses imigrantes que chegam na região, o desenvolvimento das casas comerciais, o desenvolvimento de outros setores da economia que vai usar o ramal ferroviário para escoar a sua produção… Mas esse fenômeno que vai levar a um processo de desativação da ferrovia é um fenômeno meio que geral no Brasil inteiro, não é só um fenômeno daqui da nossa região ou do Rio Grande do Sul.
A partir da década de 1950, os governos brasileiros vão optar pelo transporte ferroviário. O governo JK, na segunda metade da década de 1950, é o maior exemplo disso. O Brasil, a partir daquele momento, começa a atrair investimentos internacionais relacionados ao setor automobilístico e passa a adotar o chamado paradigma rodoviário. Claro que antes disso, entre a década de 1920 e 1960, que é quando esse desgaste vai aparecer de maneira mais evidente na ferrovia, essa região aqui foi completamente integrada não só ao cenário do Rio Grande do Sul enquanto região política, região econômica, região turística. Porque um dos maiores símbolos do turismo no Rio Grande do Sul é o sítio arqueológico de São Miguel das Missões, que é Patrimônio da Humanidade declarado pela Unesco. A circulação de pessoas entre a década de 1920 e a década de 1960 aqui é muito marcada pela influência da ferrovia, do trem de passageiros que integrava diferentes cidades e diferentes grupos sociais, mas na década de 1950 e 1960, o Estado brasileiro… Esse processo de desativação e abandono das ferrovias no Brasil foi uma opção do Estado Brasieliro.
A estação aqui de Santo Ângelo vai dar esses sinais de desgastes mais efetivos na década de 1960. É no final da década de 1960 que essa estação principal, que era a estação ferroviária central, que hoje abriga o Memorial da Coluna Prestes e o Museu Ferroviário, vai ser desativada para o trem de passageiros. Os trens de carga vão continuar e continuam até hoje. Santo Ângelo tem uma base de recolhimento de grãos, onde o trem de carga recolhe esses grãos e leva para um porto de Rio Grande. Mas é realmente a década de 1960 que marca esse processo de desativação, esse processo de abandono e até de sucateamento da linha ferroviária, que depois vai dar origem a um processo de privatização, que é quando os ramos ferroviários são privatizados.
P/1 – Esse escoamento de produção passa a ser feito na outra estação, na de São Pedro, não é isso?
R – Na outra, exato. Exatamente.
P/1 – Em relação ao impacto dessa mobilidade que existia com a linha férrea entre Santo Ângelo e as outras cidades, como ele se reinventa a partir do momento… Foi em 1969 que fechou...
R – 1969.
P/1 – Com a desativação dos trens de passageiros, como se reconfigura a mobilidade da região de Santo Ângelo para cidades em volta, que já estavam acostumadas com a linha férrea para a locomoção da população?
R – Se observarmos, esse ramal ferroviário que chegou em Santo Ângelo e depois foi estendido até Santa Rosa não dava conta de toda essa região. Ele dava conta das cidades mais importantes do ponto de vista econômico, com maior número de habitantes, mas existiam e existem ainda hoje diversas outras cidades. Claro que essa diversidade de cidades nessa região é algo que vai ocorrer a partir da década de 1980, no intenso processo de emancipação de uma série de cidades pequenas aqui na região, que até esse período ou pertenciam a Santo Ângelo, ou pertenciam a Santa Rosa, ou pertenciam a São Luiz Gonzaga.
Em São Luiz Gonzaga, por exemplo, na década de 1920, não havia ramal ferroviário até lá, tanto que na Coluna Prestes, quando [se] inicia aqui em Santo Ângelo como um movimento revolucionário, o Luís Carlos Prestes opta por concentrar as tropas deles em São Luís Gonzaga, pelo fato de não haver ramal ferroviário que chegasse até lá. Isso dificultaria as tropas do Governo do Estado de se deslocarem para sufocar o movimento aqui, então mesmo depois da desativação da linha ferroviária, esse transporte, essa locomoção da população pela região não era muito simples. Porque por mais que o automóvel fosse se tornando algo mais recorrente na região, não era um fenômeno popular, então a acessibilidade aqui na nossa região com ou sem ferrovia sempre foi muito difícil.
São mais de quatrocentos quilômetros de distância entre a nossa região e Porto Alegre, inclusive isso até hoje dificulta o próprio crescimento do turismo aqui na região, essa grande distância. Agora existe um aeroporto aqui que acaba amenizando um pouco isso, mas esse transporte de pessoas pela região como um todo, mesmo com a estação ferroviária, o ramal ferroviário, sempre foi muito difícil, não foi nada muito acessível.
Até a década de 1970, 1980, a maior parte da população se deslocava com cavalos, com animais, com muares, com carroças. Do ponto de vista do tráfego, o ramal ferroviário contribuía para o escoamento da produção e para a chegada da população aqui, fazendo de Santo Ângelo uma cidade-satélite, porque ao mesmo tempo que esses passageiros chegavam aqui pelo ramal ferroviário, eles tinham que se deslocar para outras cidades próximas utilizando outros meios de transporte.
P/1 – Voltando um pouco para a sua questão como historiador e profissional, a partir do momento que você finalizou a faculdade, você já começou a dar aulas? Como foi esse processo?
R – Sim. Logo no ano que me formei… No início do ano seguinte… Eu me formei no final do ano e no início do ano seguinte já comecei a dar aulas, a trabalhar como professor. Ao mesmo tempo, eu entrei no mestrado também, na Universidade de Santa Maria, e fui conciliando essas duas coisas, entre dar aulas como professor e também continuar as minhas pesquisas relacionadas à história de Santo Ângelo e, mais especificamente, à história da Coluna Prestes. Então desde o início da minha trajetória profissional eu sempre conciliei, como concílio até hoje.
Estou terminando meu doutorado em História e também atuando em sala de aula como professor. Essas duas coisas, ser professor e pesquisador/historiador, desde o momento em que me formei até hoje, são duas coisas concomitantes e que eu procuro conciliar.
P/1 – Em que medida o pesquisador entra na sala de aula e o professor entra na sua atuação como pesquisador? Como você cruza essas questões?
R – O professor sempre acaba influenciando o historiador na questão didática, porque nós sabemos que a pesquisa acadêmica e a escrita acadêmica nem sempre são acessíveis do ponto de vista da linguagem. Nesse sentido, eu procuro pegar a didática do professor, especialmente a didática da escrita e da oralidade para colocar nos textos acadêmicos, não tirando a carga teórica do texto acadêmico e nem a necessidade da complexidade de um texto acadêmico. Mas também tentando fazer desse texto algo compreensível para outras pessoas que não necessariamente frequentam a academia.
A influência do historiador para o professor está muito relacionada ao trabalho com os documentos. Eu sou um professor que procura aproximar os meus alunos dos documentos históricos. Eu trabalho muito com cartas, com jornais, com processos judiciais. A gente sabe que tradicionalmente essa documentação é vista pelos estudantes como algo muito complexo e nem sempre é. Isso pode ser utilizado em uma aula de História, para que fujamos um pouco da lógica tradicional do livro didático. Nem sempre um livro didático dá conta da complexidade que foi um período histórico e dos fenômenos que aconteceram naquele período histórico, então ao trabalhar com documentos com os alunos eu procuro estimulá-los a uma atitude historiadora, e o professor bebe um pouquinho na veia do historiador.
P/1 – Eu gostaria que você falasse um pouco da sua relação pessoal com a ferrovia. Como você nasceu em Santo Ângelo, quais são as memórias que você tem ao longo da sua vida, desde a infância em relação à ferrovia? Você morava próximo? Qual era a importância da ferrovia no dia a dia?
R – A minha relação de memória com a ferrovia nem se dá aqui em Santo Ângelo, se dá em Giruá. Foi nesse período da minha infância em que morei lá por um ano, e a casa dos meus tios, onde eu morava, ficavam de frente para os trilhos. Todos os dias, no período em que passava o trem por ali, eu tinha um compromisso quase certo de ver o trem passar. Essa é a minha primeira memória. Eu lembro que queria muito andar de trem, por todo aquele imaginário que me despertava, mas aquele já não era um período em que se faziam viagens com passageiros. A minha memória afetiva com a ferrovia está mais ligada à primeira infância.
Depois, em Santo Ângelo, eu nunca morei próximo ao ramal onde o trem de carga costumava e costuma passar, então eu fui desenvolver novamente uma relação mais próxima com a ferrovia e com a história da ferrovia a partir do trabalho no Memorial da Coluna Prestes e do meu contato com o seu Juvenil. O seu Juvenil era uma pessoa que os olhos brilhavam ao falar da ferrovia, e ele me relatava as memórias dele do trabalho na ferrovia.
Quando a gente recepcionava os estudantes e visitantes no memorial, era quase uma competição. (risos) Às vezes o pessoal vinha visitar o memorial e se sentia mais curioso em relação à história da Coluna, e eu lembro que ele ficava bastante enciumado. "Eles só estão te dando atenção, eles nem vêm aqui me ver fazer o telégrafo", porque ele dava demonstrações do telégrafo, de como funcionava. As pessoas sempre ficaram muito impressionadas, porque o telégrafo durante muito tempo foi um dos principais meios de comunicação. Até hoje brinco com meus alunos que o telégrafo representa os primórdios do Whatsapp e eles acham muito engraçado.
Eu lembro do seu Juvenil, dessa relação próxima que eu tive com ele. A gente conviveu durante três anos, no período em que trabalhei. Mesmo depois que saí, foi um longo tempo de amizade que tivemos. Então as minhas memórias afetivas da ferrovia têm esse primeiro momento lá da infância e depois, no trabalho já como historiador.
P/1 – Em relação às suas atividades na cidade, além de professor e pesquisador... A sua interação com a cidade, com o lazer e com os espaços, como funciona?
R – Eu não sou uma pessoa assim, tão ativa, circulando pelos espaços. A minha vida acaba ficando, e especialmente agora, em relação ao doutorado, mais restrita à pesquisa, à escrita, mas gosto muito de circular pelos espaços de memória aqui de Santo Ângelo. Volta e meia venho caminhar próximo da estação e vou caminhar na Praça da Catedral, que é o lugar onde ficava o antigo sítio histórico de Santo Ângelo, a redução de Santo Ângelo. É um grande espaço de sociabilidade hoje aqui na cidade.
Agora, em função da pandemia, a circulação das pessoas está um pouco mais restrita. O cinema, que é algo muito presente aqui em Santo Ângelo… Santo Ângelo é uma cidade que tem cinema há cem anos, desde a década de 1920 já havia cinema aqui, então é um lugar pelo qual eu gosto muito de circular e frequentar. É basicamente isso, esses são os meus espaços de maior sociabilidade pela cidade, fora outras questões relacionadas ao dia a dia de trabalho na universidade mesmo e nas escolas em que dou aula.
P/1 – Você me disse que é casado. Durante esse período, como aconteceu o seu casamento? Como vocês se conheceram?
R – Eu sou casado há cinco anos, mas o meu relacionamento com a minha esposa vem desde a época do final do ensino médio. Nós éramos amigos de escola, depois passamos a namorar. Nós começamos a namorar um pouquinho antes de eu ingressar na faculdade e casamos em 2015.
O meu relacionamento com ela se deu praticamente desde o período em que comecei a minha trajetória com a História. Às vezes eu brinco com a minha esposa que ela é quase uma historiadora autodidata de tanto que a gente acaba conversando sobre esses aspectos relacionados à História. (risos)
P/1 – Então teve algo a ver também com a sua vida escolar? Vocês se conheceram na escola?
R – A gente se conheceu na escola, ainda no ensino médio, mas começamos a namorar depois disso, acho que uns dois anos depois de termos terminado o ensino médio. Nós éramos amigos nessa época de ensino médio, mas só viemos namorar depois que concluímos e começamos a faculdade.
P/1 – Em relação a esse período de juventude, quais eram os lugares da cidade que eram importantes para você e dos quais você guarda uma memória afetiva?
R – Os clubes sociais. Santo Ângelo também é uma cidade com muita tradição de clubes sociais. Tem pelo menos três clubes aqui que são espaços de socialização e de sociabilidade, então nesse período da juventude a convivência nesses clubes foi muito marcante para mim.
Santo Ângelo é uma cidade com poucas opções de lazer, é uma cidade pequena, de 80.000 habitantes, então nunca houve uma diversidade muito grande em relação a essas possibilidades de lazer. Nesse período de adolescência, de juventude, essa interação e socialização com amigos se dava muito nos clubes, não só durante o verão, mas também nas festas que os clubes organizavam, festas à fantasia e uma série de programações que durante o ano eram organizadas, e que a gente acabava participando. Eu lembro assim, da convivência nos clubes sociais.
P/1 – Certo. Conte alguma coisa, algum evento que te marcou nesse período. Alguma história da sua adolescência que te marcou nesses clubes, alguma coisa que você lembra, um evento pessoal que acabou sendo marcante para você…
R – Eu lembro das festas temáticas que esses clubes organizavam. Um dos clubes organizava uma festa a fantasia que era tradicionalmente realizada todo ano, e o outro clube organizava uma outra festa temática, que era uma festa em alusão à… Era "Noite das bruxas" o nome da festa. Eu lembro que movimentava a cidade, movimentava os jovens naquele período. Essas eram duas festas que geravam muita expectativa.
E também as festas do colégio. O colégio realizava festas juninas… Nos anos 90, era muito popular a realização daquelas festas de escolha da garota da escola, da princesa da escola. Essas coisas foram muito marcantes nesse período.
P/1 – Teve algum evento engraçado, digamos assim, ou curioso que você possa contar de alguma dessas festas?
R – Teve, teve. (risos) Em uma dessas festas temáticas, que era a da Noite das bruxas, eu lembro que para chegar ao local da festa havia uma espécie de trem fantasma. Para chegar ao lugar da festa, você tinha que ir passando. Eu lembro que uma vez um amigo meu se assustou, e em um movimento involuntário, acabou atingindo um dos caras que interpretava um monstro, um cara que assustava as pessoas que passavam. (risos) Eu lembro que nesse susto, ele acabou atingindo o cara e teve que se desculpar, lembro dessa história.
P/1 – Vocês têm filhos?
R – Não, ainda não.
P/1 – A questão que você tinha dito do isolamento social e da quarentena - que nem podemos mais chamar de quarentena, porque já passou bastante de quarenta dias… O que isso alterou na sua rotina, no seu dia a dia e na sua forma de viver?
R – Ah, mudou completamente, porque eu dou aula em duas instituições, em uma escola e na universidade, a URI, que é a universidade em que me formei e também dou aula. A minha rotina sempre foi muito mais fora de casa, uma rotina de estar nesses espaços durante os dias e estar em casa mais à noite, trabalhando na minha pesquisa, na minha tese.
Desde a interrupção das aulas, as escolas e a universidade foram os primeiros espaços a interromper suas atividades. De lá para cá, de março até agora completou seis meses que estou praticamente isolado, em casa, porque ambas as instituições em que trabalho não têm atividades presenciais, os professores não estão se deslocando até os espaços físicos das instituições. Na universidade, a gente optou pelo ensino remoto com aulas online, e na escola pública isso não foi possível, porque a escola está inserida em um bairro de uma condição socioeconômica um pouco mais vulnerável, nem todos os alunos têm acesso a internet estável ou aos próprios equipamentos para assistir uma aula online, então lá a gente se vira enviando atividades impressas para os alunos. E para aqueles que têm minimamente acesso a internet, tentamos explicar os conteúdos através de aplicativos, especialmente o Whatsapp, gravando áudios para tentar sanar um pouco das dúvidas que os alunos têm.
Já na universidade, que é onde tem um grupo de alunos com uma condição socioeconômica um pouco mais estável, a gente tem essa possibilidade de dar aulas online, então o meu trabalho, desde o início do distanciamento social, tem sido realizado dentro de casa, o que me causou muito desconforto, porque eu sempre fui muito acostumado com essa interação com meus alunos. A gente sente falta desse contato real e presencial do dia a dia. A minha rotina foi bastante impactada pelo distanciamento.
P/1 – A gente vai se encaminhando para o bloco final das entrevistas, com as últimas perguntas. Quais são as coisas mais importantes para você atualmente?
R – Com o próprio distanciamento social, eu tenho ressignificado muitas coisas, porque sempre, desde que me formei, me tornei professor e continuei sendo pesquisador. Esses elementos sempre ocuparam um papel primordial na minha vida.
Eu sempre fui muito ocupado com tarefas relacionadas à minha vida profissional. Isso, de certa forma, prejudicou em algumas situações as minhas relações com outras pessoas, principalmente da família. Isso foi ressignificado. O distanciamento social e a pandemia talvez tenham feito isso com muitas pessoas, de pararmos, colocarmos o pé no freio e analisarmos que aquela vida tão acelerada que temos, essa vida líquida, como diria o [Zygmunt] Bauman, é levada de uma maneira tão automática que muitas vezes não paramos para observar outras coisas do dia a dia, do cotidiano e das próprias relações que construímos. Isso é algo que tem sido muito ressignificado para mim.
P/1 – Quais são os seus sonhos para o futuro?
R – Por agora, concluir a minha tese (risos), terminar o doutorado. A pós-graduação exige muito das pessoas, especialmente no meu caso, que não pude interromper as minhas atividades profissionais, não pude tirar uma licença só para me dedicar à tese, então isso me gerou um desgaste muito grande, especialmente emocional. O meu projeto de curto prazo é terminar a minha tese e depois parar para analisar outras coisas, como pensar em um filho. Minha esposa quer ter um filho e eu também quero, então talvez agora seja o momento de focar não apenas na vida profissional.
P/1 – Tem alguma coisa que eu deixei de perguntar que você gostaria de falar? Alguma coisa que escapou do nosso roteiro, digamos assim, e de como foi se encaminhando a nossa conversa?
R – Eu acredito que não, acho que foram muito bem contemplados vários aspectos tanto da minha trajetória… Eu não imaginava que a minha trajetória pessoal fosse tão presente na entrevista, mas foi bem interessante, acho que vários elementos foram contemplados. E da própria história de Santo Ângelo também, acho que falamos sobre vários aspectos, sempre reforçando a ideia de que Santo Ângelo e a Região das Missões são regiões de muita história, não só para o Rio Grande do Sul, mas para o Brasil. O processo de repovoamento da América e de demarcação dos territórios da América tem episódios marcantes aqui no Rio Grande do Sul com as missões jesuíticas.
Também ressaltar o fato de que um outro evento muito marcante na história do Brasil, que é a Marcha da Coluna Prestes, tem episódios marcantes aqui em Santo Ângelo. Acho que às vezes a população de Santo Ângelo e região não se dá conta disso, não tem a dimensão do que representou a Coluna Prestes na história do Brasil, especialmente na Primeira República. A Marcha da Coluna Prestes é considerada uma das maiores marchas da história da humanidade e nasceu aqui, na nossa região. Às vezes eu penso que isso escapa um pouco à memória histórica da população daqui. Essa memória acaba sendo mais ocupada em função do passado das missões. Acho que esse é um aspecto a ser ressaltado, de que essa região é uma região com uma história, em diferentes períodos e de diferentes acontecimentos.
P/1 – Vamos para a última pergunta. Como foi para você contar a sua história para nós? Como foi essa experiência?
R – Foi muito legal, porque geralmente estou do outro lado, geralmente sou o entrevistador. Na minha tese, eu trabalho com história oral, entrevisto pessoas que vivenciaram ou que têm relatos relacionados à Coluna Prestes, especialmente no período em que o Luís Carlos Prestes retornou a Santo Ângelo, depois de sessenta anos da Marcha da Coluna.
O Luís Carlos Prestes esteve aqui em 1984, que foi o ano em que nasci. Pouco mais de um mês depois do Luiz Carlos Prestes ter estado aqui, em 1984, eu nasci. Inclusive durante as minhas pesquisas eu encontrei o jornal do dia em que nasci, porque o Prestes esteve aqui em outubro de 1984 e eu nasci no dia doze de dezembro de 1984.
Para a minha tese, eu entrevistei pessoas que vivenciaram aquela época e estiveram com ele aqui em Santo Ângelo. Eu sempre me coloquei mais no lugar do entrevistador, que é o lugar que tu estás ocupando neste momento, do que propriamente no lugar do entrevistado, então acho que foi uma experiência legal essa entrevista.
P/2 – Eu queria entrar mais no seu sentimento sobre essas entrevistas, em buscar essa história política, essa convivência do Prestes com as pessoas que você entrevistou e a sua relação com essas entrevistas.
R – Quando eu construí a minha pesquisa, eu entendi que seria interessante contemplar nela essas pessoas que lá na década de 1980, participaram da recepção do Luís Carlos Prestes, aqui em Santo Ângelo. Eu entrevistei pessoas que participaram diretamente da organização desse evento.
O nome do evento foi "Coluna Prestes, 60 Anos Depois". Ele nasceu a partir do interesse de um grupo de professores e também de uma instituição, que era a Sociedade de Engenheiros e Arquitetos aqui de Santo Ângelo, que realizava um ciclo de palestras com personalidades. Naquele ano, resolveram então chamar o Luís Carlos Prestes. Era um período em que ele estava viajando o Brasil, falando sobre o cenário político e as campanhas pela redemocratização, então eu conversei com essas pessoas.
O que senti e achei interessante está relacionado ao momento que o Brasil vivia naquele período. Eu queria contemplar muito isso na minha pesquisa, que era um momento de transição, era o final da ditadura militar e o início do processo de redemocratização. Naquele período, em 1984, em que o Prestes esteve aqui, houve a campanha Diretas Já e a votação da emenda Dante de Oliveira. Uma das coisas que achei muito interessante que meus entrevistados relataram, ou que pelo menos um deles relatou, é que no início da década de 1980, o Luís Carlos Prestes já tinha estado aqui em Santo Ângelo. O senhor que me relatou isso era vereador aqui em Santo Ângelo, identificado ideologicamente com o Luís Carlos Prestes, mas ele me conta que naquele período de 1980 esse encontro teve que ocorrer de maneira clandestina, porque o Luís Carlos Prestes tinha retornado ao Brasil em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia.
Muito se fala, inclusive dentro da própria historiografia, que esse período de 1980 já é um período em que a ditadura militar não estaria tão radical ou autoritária. Estudos recentes mostram que sim, ainda era um período muito conturbado, o atentado ao Riocentro comprava isso. Chamou-me muita atenção o fato de que o Luís Carlos Prestes, antes de ter estado aqui em 1984, esteve em 1979 no encontro clandestino entre alguns correligionários, lideranças políticas daqui que se identificavam ideologicamente com ele. Inclusive esse encontro teria ocorrido na casa de um ex-membro da Coluna Prestes da década de 1920. Essa é uma das coisas que me marcaram.
Outra coisa interessante foi perceber nos meus entrevistados como eles reconheciam a legitimidade do Luís Carlos Prestes como personagem, independente do aspecto ideológico, independe dele ter sido membro do Partido Comunista ou o líder da Coluna Prestes, mas alguém, uma figura histórica que foi muito importante na história do Brasil. E como naquele período essas pessoas que entrevistei se sentiram impactadas pela presença do Luís Carlos Prestes em Santo Ângelo, que na década de 1980 já era um senhor de mais de oitenta anos de idade, mas que se mantinha com uma vitalidade muito grande, percorrendo o Brasil, levantando as bandeiras que acreditava do ponto de vista político.
Essa história dele ter vindo aqui de maneira clandestina me marcou, e também esse sentimento das pessoas que entrevistei se sentirem impactadas em relação ao personagem Luís Carlos Prestes.
P/1 – Nós tivemos que voltar mesmo no final da entrevista para esclarecer essa questão que é uma questão importante, e acabamos deixando um pouco de lado. Agradeço muito a sua entrevista novamente. Acho que esse pedacinho que ficou faltando, melhorou mais ainda a entrevista.
R – Só um ponto que eu também teria que ressaltar, é que em 1984, quando o Luís Carlos Prestes esteve aqui, houve uma tentativa de homenageá-lo na câmara de vereadores de Santo Ângelo como cidadão honorário do município. Na Câmara de vereadores essa homenagem foi rejeitada; não houve quórum, não houve o número necessário de votos entre os vereadores para dar essa honraria ao Luís Carlos Prestes.
Um dos vereadores que liderou esse processo, que entrou com o projeto para esse reconhecimento do Luís Carlos Prestes como cidadão honorário, depois veio a ser o prefeito de Santo Ângelo que, junto com a família de Luís Carlos Prestes, articulou a implantação do Memorial da Coluna Prestes. Isso também é uma coisa bem marcante, porque lá nos anos 1980 houve uma tentativa de homenagear o Prestes, que não foi aprovada muito em função do contexto ainda, de ditadura militar, de final do processo de um governo que não via o Luís Carlos Prestes com bons olhos. Esse mesmo personagem, mais de dez anos depois, entra em contato com a família do Luís Carlos Prestes, entra em contato com o Oscar Niemeyer, que era um grande amigo do Luís Carlos Prestes e também foi membro do Partido Comunista, e articulam e implantam aqui em Santo Ângelo o Memorial em homenagem à Coluna Prestes e o monumento em homenagem à Coluna Prestes, que é de autoria do Oscar Niemeyer e a primeira obra dele no Rio Grande do Sul. Também acho que é um elemento bem interessante dessa história, desse momento em que Santo Ângelo passa também a acionar essa memória do passado da Coluna Prestes e da trajetória de Luís Carlos Prestes.
P/1 – Qual era o nome desse vereador?
R – Era Adroaldo Loureiro. Ele foi vereador em Santo Ângelo nos anos 80, na década de 90 foi prefeito de Santo Ângelo e em 1996 inaugurou o Memorial da Coluna Prestes e o Museu Ferroviário. Ele também é o prefeito, foi na gestão dele que se criou o Museu Ferroviário aqui em Santo Ângelo… Depois ele veio a ser deputado estadual por muito tempo, acredito que foi deputado federal também, e ele faleceu recentemente. Adroaldo Loureiro era o nome dele.
P/1 – Certo, então encerramos por aqui. Agradeço muito, foi um depoimento fundamental nesse projeto de memórias, até porque você está envolvido com várias dimensões da memória da cidade e também da linha férrea. Bom, muito obrigado.
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