Ponto de Cultura
Depoimento de Zilda Noronha Miné
Entrevistado por Márcia Trezza e Caroline Pitta
São Paulo, 19 de novembro de 2009
Realização Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV209
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
P/1 – Qual o seu nome, o local de nascimento e quando a senhora nasceu?
R – Eu nasci na Rua Albuquerque Lins, dia 18 de dezembro de 1917, né? Foi na, eu trabalho... Porque a minha mãe, antigamente, as mães é que achavam o homem pra casar com os filhos, né? E a minha mãe era muito mocinha, uma menina de 14 anos, bonitinha, tudo, né? Então a minha vó falou assim: “Olha...” Ela se chamava Zelina”, mas tratavam de Nina, “Olha Nina, você vai casar aí com o vizinho lá.” Até eu conheci ele, né? “Porque ele, ele tem uma casa e tem até essa mobília, essas coisas, tem guarda-roupa, tem tudo, você vai casar com ele”. Ela disse: “Ah mãe, eu não quero casar com ele, não” “Você tem que casar, como não? Ele tem essas coisas aí, tem casa.” E ela começou a chorar, chorar... Nós tínhamos uma tia mais velha, né? Disse que quando foi de manhã cedinho, diz que ela pegou uma trouxinha, escondido e saiu longe, né? E chegou lá chorando, chorando: “Ai Maria José!” “O que você tá fazendo aí, Nina? É você mesmo?” “Abre a porta pra mim!” Daí ela falou assim: “A mãe queria que eu casasse lá com o...” Esqueci o nome dele, “Aí eu não quero casar, não!” “Que que é isso? A mãe queria... Não, não! Você fique aqui, eu vou arranjar um lugar pra você trabalhar, né? E daí, eu conheço uma família muito boa, que eu conheço, e você vai ficar com eles”. Aí então arranjou o Irineu Rangel Pestana, que era presidente, aquele tempo, né? Daí ela foi lá, né? Aí ela era menina trabalhadeira, então, ela falou que aquele tempo ela não tinha máquina de lavar roupa, né? Então, tem ainda a casa, eu conheço, aquela casa depois desce e, depois, é ali o quartinho da empregada e depois é aquele tanque, dois tanques: um, ensaboava em um, abria e despejava aquela lama, né? E eu já tinha, acho que era uns 3 anos, porque eu engatinhava, né? E eu, aquele tempo toda mulher cantava, tudo tinha voz. E a mãe cantava, cantava e eu diz que já ficava assim escutando, e a mãe me via eu sempre engatinhando, engatinhando, né? E ela ficou contente, cantando, cantando. Daí diz que quando foi um dia a mãe viu que eu mexia com aqueles vasos de planta que ela tinha, né? Isso foi há muito tempo. Diz que quando foi um dia ela ficou prestando: “Ué, o que a será que a Zilda mexe com esse vaso?” Disse que ela viu que eu mexi o vaso, daí diz que aqueles tatu-bola, sabe aqueles bolinha? Disse que eu batia com o dedinho assim de fazer bolinha e eu ó! Ai diz que ela começou a gritar: “Dona Lucia, Dona Lucia! A Zilda comeu tatu-bola! Ai dona!” Da dona, “Que que é isso, Nina?” Abriram a minha boca, disse que era uma massa e disse que eu fiquei com raiva ainda, né? Daí disse que lavaram minha boca, tudo, me deram um purgantinho de sene rosa. Tudo isso, de tanto eles falarem parece que eu tô vendo, né? E disse que a Dona falava: “Olha, se ela tiver com uma diarréia, nós vamos pro médico, né? Vamos ficar tudo em observação.” Diz que até hoje ficou muito bom. Nunca tive nada, né? Então qualquer coisa que assim... Você tem uma cabeça, eu comi tatu-bola (risos).
P/1 – Dona Zilda, você tinha irmãos? Quantos irmãos?
R – Eu sou a mais velha, a primeira. Zilda, um chama Cornélio, que é um tio que tinha morrido e puseram de Cornélio, né? Depois aí o Floriano, não, a Ilda, Zilda, Ilda, depois o Floriano que é o caçula. Agora tô só eu aqui.
P/1 – Fala o nome da sua mãe todo, completo.
R – A mãe é Zelina. Zelina Pereira de Noronha Miné, né?
P/1 – E seu pai?
R – O pai era Amâncio Noronha Miné.
P/1 – E vocês, ela veio morar nessa casa e você passou a infância nessa casa?
R – Nessa casa. É, depois, depois o pai era chofer do Doutor Nereu, né? Então daí se olharam, se gostaram, né, e fizeram o casamento lá na Igreja de Pinheiros direitinho, tudo, né? Agora, minha Vó tinha raiva do pai, né, porque ela queria que casasse, né? Daí a gente morava na Consolação, lá um lugarzinho lá, né? Mas a Mãe chorava, chorava. Então ela chegava e dizia assim: “Zilda, olha, aquela lá é a sua avó.” E quando eu corri eu: “Bença Vó!” (risos) e ela ficou olhando, chorando porque é mãe, mãe é mãe, né?
P/1 – Claro!
R – Então, mas ela conheceu o Pai, que ele é a pessoa inteligente, né? Então diz que um dia ela falou assim: “Eu vou fazer um almoço, vou convidar a mãe, porque eu não agüento mais ficar sem ela. Eu tenho certeza que o Amâncio não vai fazer desaforo pra ela”, né? E ela fez um almoço que também de tanto falar eu me lembro, um almoço especial: era chuchu recheado. Cozinhava o chuchu, tirava aquela, né, punha carne moída, punha, depois fritava. Ela fez aquela mesa e convidou ele, né? Ele foi, chegou lá e tratou bem dela, né? Eu tenho certeza que ele não ia... Tratou bem dela e, depois, foi lá, que ela já ia saindo “Dona Maria, espere um pouquinho que eu levo a Senhora até lá.” Pôs ela no carro e, olha, ela ficou amiga, sabe, aquela coisa toda, né? E essa foi a história, né? E o pai depois, quando a Vó ficou doente, ele foi na casa da mãe, né, e o pai tratou ela, foi o genro melhor que ela teve no mundo. (risos)
P/1 – Olha só (risos). Qual é o nome da sua avó?
R – Do pai é, pera aí, é Luisa Maranhão.
P/1 – Luisa Maranhão. E ela também era de São Paulo, a Luisa Maranhão? Ela veio de algum outro lugar ou ela também era de São Paulo?
R – Não, ela era da África.
P/1 – Ah, conta essa história?
R – Então foi ela, foi eles que vieram naquele navio negreiro, né? Então tem um filme que foi a realidade, que eu não me lembro o filme. Então lá na África ela era feliz, tinha ela, o marido, os filhos, né? E quando chegou aquele navio, pegava a força, né? E diz que ela tinha uma das meninas que falava: “Olha Luisa, você...” Porque na África tinha muito ouro, tudo, né? Diz que deu um saquinho de ouro pra ela “Se você precisar de alguma coisa, você vende”, né? Diz que ela chorando, porque os outros irmãozinhos dela ficaram, né? Ela chorando.
P/1 – Só veio ela, da família só ela.
R – É, que saiu, outros saíram pra outros lugares, né? Daí então de raiva, quando ela chegou assim em alto mar diz que ela pegou o saquinho e jogou no mar não quis saber de nada. Ela era uma pessoa muito revoltada, né? Por causa dessa vida que ela teve, né? Luisa Maranhão.
P/1 – A Senhora lembra dela, de algumas coisas que ela contava?
R – Lembro, eu lembro da Vó, da Vó Luisa, eu que sou a mais velhinha, né? Depois eles vieram pra São Paulo e eles foram morar numa esquina da Avenida Paulista, lá. Mas num lugar onde tinha, era uma cocheira, e depois vinha um quartinho lá, eles alugavam e o fogãozinho era pra fora. E eu me lembro, eu tenho em casa ainda guardado, era um daqueles tachos de cobre, né? Ela limpava ele com aquele limão e sal e, depois, deixava assim sabe lá pra enxugar. E aqueles tachos eu tenho ainda em casa. Uma vez uma das primas falou: “Ah, eu quero esses tachos mim pra fazer” “Esse é meu! Na hora que eu sair vocês façam festa, porque isso me traz uma lembrança muito grande”, né?
P/1 – E do avô, a Senhora lembrava?
R – Avô? Olha, do avô...
P/1 – Do marido da Dona Luisa?
R – Não. Do avô eu só me lembro, como ela era escrava e sabe como era aquele tempo, também era assim: eles faziam as meninas casar pra procriar logo, né? Daí tudo ela ficou sabendo a filha. Daí um dia a vizinha, estava a cozinheira falou: “Luisa, você vai casar com o Paulo Orozimba”. Ela sabia já o porque e tudo, ela já tava com 14, 15 anos, né? E falava assim “Ah, ainda se fosse com o filho dele”, né, que ele tinha já filho forro, se bem que ele era uma pessoa boa. Depois que ele teve que economizar. Ele falou assim – forro já era livre, né? Eu pego essa menina e ela fica livre, né? Mas ela ficou com ódio, ainda se fosse com o filho dele, mas não tinha isso. Então saíram casar uma mulher um o homem, chegava o padre e fazia o casamento, né? De quando chega na hora lá é assim: “É de espontânea vontade do Senhor Paulo Orozimbo casar com a Luísa?” Diz que ele falava: “Sim Senhor!” Aí ele falou assim “E é de espontânea vontade da Luísa casar Paulo Orozimbo?” Diz que ela (pausa) Daí estavam casados, saíram casados. Daí, quando chega na porta ele pra agradar ela, pegou uma tigelinha que ele levou e disse que deu pra ela. Ela pegou a tigelinha e jogou no chão. Assim foi a núpcias dela, uma menina com 14 anos, né? Olha aqui, né, mas ela era uma pessoa revoltada por causa disso, isso que eu me lembro da avó Luisa.
P/1 – E do seu pai, qual lembrança que a Senhora tem?
R – Do pai? O pai era uma pessoa civilizada, já ele veio pra Pindamonhangaba, ele primeiro foi trabalhar nas Docas de Santos, mas era um serviço muito pesado, então ele saiu de lá e tirou a carta, né? E daí ele ficou chofer de praça.
P/1 – E sua mãe contava como ela conheceu seu pai?
R – Ah quando ela conheceu, daí foi, daí foi, foi...
P/1 – Como foi?
R – Foi lá que eles se olharam e se gostaram, né? Daí então, daí ela fez, sabia da mãe, fez aquela... Sabia que ele ia lá. Daí ele chegou lá e ela fez aquele jantar que foi o chuchu recheado, convidou ele e convidou ela também. Aí quando eles saíram de lá ela tava toda ressabiada, mas olhando com ele, ele falava assim: “Então eu já vou indo embora!” Ele fala: “Não Dona, eu levo a Senhora!” Daí quando ele pôs ela dentro do carro ela saiu, ela falou: “Olha, ele tem carro”, né? Daí ficaram. Aí quando ela ficou doente, ela morreu em casa, lá em casa. Isso é o que eu me lembro da história que eu vivi.
P/1 – E outras lembranças dessa casa, que você estava contando. Porque essa casa que tinha o tanquinho, era essa a casa que vocês moravam?
R – Era do Irineu Rangel Pestana, que era presidente naquele tempo, né? Então, é lá que a mãe conheceu, ele era chofer deles, e ela tava lá, que eles se conheceram. Daí se conheceram e, né, casaram direitinho na Igreja de Pinheiros, né? Aquela Igreja lá, casamento direitinho e tudo, né? E assim foi a vida.
P/1 – E depois vocês moravam numa outra casa? A família, você, seus irmãos?
R – Depois fomos morar em vários lugares, Papai era chofer, não é? Moramos no Brás, lá na Avenida Celso Garcia, por uma travessa, tinha a estação dos bondes era naquela rua, nós morávamos ali. E ali que a gente cresceu e foi trabalhando.
P/1 – Dos lugares que a Senhora morou qual que a Senhora lembra mais ou a casa que a Senhora lembra mais, essa do Brás ou?
R – Sim, do Brás. Depois, a minha madrinha morava já aqui em Pinheiros, né? E então ela era Filha de Maria, aquelas Filhas de Maria antiga, então ela fazia assim: todo o dia ela tinha um altarzinho de caixão, daqueles caixão de sabão, né? E ela tinha uma Nossa Senhora da Aparecida, que até eu tenho ela lá, né? Então acendia uma vela e convidava a criançada pra ir rezar Ave Maria, Santa Maria, né? Mas as criançadas iam lá por causa da bala, porque depois ela dava umas balinhas, então era assim de criança lá pra chupar as balinhas. Aí tinha aquela, o caixão. Daí um carmelita falou assim: “Escuta, Dona Durvalina”, Durvalina ela se chamava “Dona Durvalina, por que a Senhora não faz uma capelinha?” Ela falou assim: “Como eu vou fazer a capelinha? Precisa de dinheiro pra fazer” “Não, a Senhora faz aí uma qualquer coisinha aí, né?” E ela começou fazer a quermesse, né, uma quermesse não tinha nem luz, fazia tudo no escuro com aquelas velas, né, a quermessinha. Então todo mundo dava: uma dava as coisas assado, sabe, o frango assado, e ela fazia aquela quermesse e foi juntando dinheirinho, dinheirinho, daí fizeram uma capelinha, né? Agora tem a capelinha agora lá. Então, e depois quando nós ficou mais grande, eu doei, sabe, um dinheiro pra melhorar a capela e tudo, né? E essa é a nossa história (risos).
P/1 – A Senhora lembra do dia em que inaugurou, o dia que essa capela ficou pronta, a Senhora lembra desse dia?
R – Teve, lembro. Teve procissão, então de lá até Pinheiros era aquela, que eu morei lá de lado daquela estradinha, né? A gente fazia a procissão até chegar na Ponte Pinheiros, lá a gente voltava.
P/1 – Cantavam, aquelas músicas.
R – É, cantava. E, meu Deus do Céu! A gente cantando, isso foi um terço bom da vida da gente. Então daí a tia falou assim: “Zilda, você...” Tinha uma família que a tia ia lá, posava lá porque era longe, né, Dona Edilina e Seu Oscar Luz, né? Então a tia posava lá, mas ela, depois quando ela saía um dia ela atravessou assim e ela viu uma mina de água, falou assim: “Ah, eu vou comprar esse terreninho aqui, porque assim eu não preciso fazer poço, né? Daí tem até hoje, sabe a... E ela comprou, depois ela comprou o terreninho. Daí ficou assim um no meio, depois tinha um outro e ele comprou aí, depois o outro desistiu, daí falou: “Zilda, vamos, compra esse terreninho aqui pra não ficar outras pessoas” Daí eu comprei, né? E daí ficou unido aqueles, né? Daí eu fui trabalhar na fábrica, eu e a Ilda, né, a Ilda era muito esperta, mais espertinha do que eu (risos), né? E ela as vezes... A gente trabalhava com dois teares, ela as vezes se faltava um ela tava lá com os três e dava conta.
P/1 – E essa fábrica a Senhora começou a trabalhar lá bem novinha?
R – Ah, eu tinha 17, 18 anos mais ou menos, quando eu fui, comecei a trabalhar lá.
P/1 – E como foi que a Senhora entrou nessa fábrica?
R – Então, porque lá tinha discriminação. Fábrica de seda preto não trabalhava. Não trabalhava mesmo, era só eles. E o seu Antônio, como queria, meu pai era pessoa muito simpática, né, então ele disse assim: “Olha, Preto Amâncio, eu vou por as suas filhas pra trabalhar na minha fábrica”. E pôs, então daí eu comecei a trabalhar na fábrica de seda.
P/1 – E como era essa fábrica? Como era feita assim a tecelagem?
R – Tinhas os teares, naquele tempo não era nada automático, é tudo manual, né, que a gente, né, tocava lá, baixava um lá e tetetete. Daí era lançadeira para lá e para cá, né? Nossa senhora, e foi assim.
P/1 – E os fios de seda?
R – Depois tinha já tudo em cima que ia descendo, né, e depois já tinha onde passava o tear. Se a gente errava fazia defeito, a gente amolecia e tirava aqueles fiozinhos, depois acertava tudo, né? Foi um trabalho, pra gente era fácil, porque trabalhava há muito tempo, né? E depois ele vendeu a fábrica e uns outros compraram, mas como era dentro, então tinha que ir lá senão perdia. Se fosse longe ele ia indenizar, mas como era perto, né? Daí eu fiquei trabalhando nessa outra fábrica, né, até que depois eles, eu não sei o que aconteceu com eles, né? Tavam, tinham muitos teares parados e daí eu como era assim a mais velha eu procurei um advogado, daí apareceu um advogado e eu falei pra ele assim: “Oh Doutor, o Senhor segura esses materiais aí, porque se ele fizer qualquer coisa, depois não tem nada pra...” Ele falou assim: “Não, não tem perigo não Dona, tá tudo”. E foi o contrário, quando veio, teve que acabou fui procurar cadê, eles já tinham vendido tudo. Mas eu gritei: “Eu não falei pro Senhor?” Daí eu fiquei mais fortinha, né? “Eu falei pro Senhor que tinha” “Ah, mas a família dele deu uma desculpa, né, e daí nós ganhamos indenização”. Foi pra Brasília, ainda foi aquela em parcela, não ganhei nada, né?
P/1 – E como era o dia a dia na fábrica? Porque a Senhora falou que tinha discriminação e aí vocês foram trabalhar na fábrica.
R – Ah não, se chegava uma preta lá, não tem. Mas uma coisa tão que quando eu saí de lá eu fui procurar outro serviço. Cheguei lá encontrei com uma amiga minha, ela que tava tomando conta: “Ai Zilda, eles não pegam pessoa de cor”, naquele tempo era de cor (risos) “Não pegam!” Daí eu sai de lá. Enquanto ela tava lá, eu vi, abriu uma porta aí eu vi os tear e fez um defeito lá, eu pulei lá e fechei, parei, né? Daí uma que estava falando assim: “Nossa, ela sabe trabalhar mesmo!” Mas lá preto não entrava.
P/1 – O que eles diziam que na fábrica de seda não podia? Eles falavam alguma coisa?
R – Falava, falava que não, que lá era só os estrangeiros que vinham de lá não sei da onde, era só eles.
P/1 – Você quer perguntar, Carol?
R – Tinha, mas assim a olho nu.
P/2 – Mas nessa época era só em fábrica de tecelagem ou na sociedade em geral?
R – Não, só tecelagem, qualquer tecelagem de seda... Porque ganhava mais também, o serviço era mais delicado.
P/1 – Tem alguma história, algum caso dessa época da fábrica da tecelagem, que a Senhora lembra, assim, algum caso que ficou marcado na sua memória? Uma história, algum acontecimento, assim?
R – Não, foi esse que foi muito marcante, né?
P/1 – Era só mulheres trabalhando?
R – Não, tinha homens também.
P/1 – E o trabalho era igual dos homens e das mulheres, ou diferente?
R – Só que tinha um lugar que fazia mais os tecidos mais fortes, então aí os homens trabalhavam, subiam para. Mas depois, quando eu passei pra essa fábrica, então eles todos respeitavam. Eu trabalhei com uma, era só homem e só eu de mulher. Então, um dia, um dos tecelão falou assim: “Escuta Zilda, você não tem medo de trabalhar aqui no meio dos homens?” Eu falei assim: “Quem anda com Jesus Cristo não tem medo de assombração! Eu ando com Jesus Cristo no meu coração!” Ele falou assim: “Você pode ficar sossegado, porque aqui nunca ninguém vai mexer com você.” E me respeitaram tudo tempo. Isso aí ficou bem marcado.
P/1 – Na época da sua juventude, porque você entrou na fábrica com 16 anos, né? E antes de 16 anos, antes de entrar na fábrica, quais são suas lembranças, de antes de antes de entrar na fábrica?
R – Fomos sempre de igreja, né, sempre de igreja então...
P/1 – Desde criança?
R – Nascemos... Eu nasci no dia 18 de dezembro e fui batizada no dia de Santa Cecília, já tem até... E sempre muito de igreja então, nunca houve, não tinha outra coisa, era Deus no Céu e pronto, né? (risos)
P/1 – E os irmãos também?
R – É, era tudo, né?
P/1 – A senhora lembra de algumas brincadeiras com seus irmão ou de alguns passeios? Além da igreja, porque a igreja é sempre, mas tinha alguns outros passeios?
R – Então, mas se fosse de igreja a gente ia, né?
P/1 – Tinha algum passeio que vocês faziam?
R – Tinha, quando tinha passeio a gente ia, né?
P/1 – Algum lugar, assim, que era bonito...
R – Então, e outra coisa: depois, quando a mãe ficou doente, Nossa Senhora! Sabe, daquele tempo que eu nasci ela ficou com... Ela teve os meus irmãos, no último parto ela sofreu muito, ela ficou com uma hemorragia muito grande com problema. Mas naquele tempo mulher não ia no médico mas nem morta, pra fazer um trabalho genérico, né, não ia, não ia. Nem os maridos deixavam, mas nem ela não iam não. Morriam, e ela ficou com uma seqüela, ela tinha aquelas hemorragia. O dia que ela amanhecia assim era o dia inteiro... Foi indo, foi indo que ela ficou tuberculosa, naquele tempo de ficar sem comer e tudo, né? E daí ela ficou isolada, né, porque também o pai arranjou um cantinho lá. Ela ficava triste, mas eu sozinha aqui. E assim foi, foi indo, foi indo e ela lá naquela coisa. E outra coisa que marcou muito a nossa vida era um cachorrinho que se chamava Menino, sabe? E o cachorrinho ficava assim, sabe, olhando pra dona dele, né? Porque ela tratava dele e tudo, né, e isso marcou muita gente, o Menino. Não Menino, Moleque, Moleque era o cachorrinho, né? E a mãe ficou, ficou, ficou até que ela ficou ruim, ficou ruim pra morrer, né? E o Moleque então, ela tinha o chinelo e ele punha o chinelo ali e ficava ali olhando pra dona dele, né, ficava ali. Então a mãe foi indo, foi indo, quando ela entrou na agonia, ai meu Deus, que sofrimento! A mãe teve agonia muito longa, né, e daí quando chegou assim, entramos lá, estavam lá: “Fica um pouco lá fora!” E ela naquela, não gosto nem de... Meu Deus do céu! E a gente naquela tristeza, chorando e entrava e saía, né, até falar assim: “Olha Zilda, agora você pode entrar que a mãe já descansou!” Descansou que eu tinha um irmão muito levado da breca, quando falava “Fulano descansou!” Ele falava: “Eu prefiro ficar cansado!” (risos). O Floriano, ele sempre, tudo ele... Porque eu sempre fui muito expansiva, né, e ele também então “Descansou, eu prefiro ficar cansada!” (risos).
P/2 – Que artes que ele fazia? Que artes que ele fazia? Que brincadeiras que ele fazia, o Floriano?
R – O Floriano... Porque eu sempre fui muito alegre, eu sempre gostava de cantar, né, e ele também era bagunceiro, né? Agora se ele falava assim: “Ô Nega Veia, o que você tá fazendo?” Eu falava: “Nega Veia é a tua avó!” E ele ficava assim: “É a tua também!” (risos) Era assim, sabe? Tinha uma vida normal, mas séria, né? Aquele tempo era diferente as coisas pra tudo, né?
P/2 – Como diferente, assim?
R – Porque não tinham maldade... Muita maldade sempre houve, é lógico, né, uma coisa do mundo, mas naquele tempo não, era tudo mais simples.
P/1 – E os outros irmãos, o outro irmão e a outra irmã?
R – Agora a Ilda já sempre foi mais trabalhadeira, ela era uma pessoa tudo dela era perfeito, perfeccionista. Tudo ela fazia perfeitinho, tudo, tudo, tudo. Essa aqui: eu Zilda e ela Ilda, né?
P/1 – Vocês eram muito unidas?
R – Muito. E a gente queria ir pro convento. Queria, mas como que a gente ia pro convento? Se ia pro convento o pai nunca pôs mulher nenhuma em casa. Ele ficou: o pai e a mãe, né? Como é que a gente ia deixar o Floriano pequenininho, o Neném pequenininho, né? Como é que a gente ia deixar eles? Daí não deu pra gente ir pro convento, daí a nossa vida foi assim.
P/1 – As duas irmãs, a Senhora e a Ilda queriam ir pra um convento?
R – Queria. Agora eu, como era sempre mais levada, naquele tempo lá era tudo, não era assim, né? Eu as vezes pensava: “Se eu for lá, qualquer graça que eu fizer, der risada, eles pedem pra mim sair” (risos), né, porque eu era levada. Naquele tempo eu era engraçada, porque as vezes eu falava qualquer coisa: “Zilda, a Augustinha deu risada!” “Escuta, mas o que que eu falo que vocês tanto dão risada?” “Eu não sei que jeito você tem que tudo que você fala é palhaçada!” Elas falavam (risos). Gênio, né, tem essas coisas que eu me lembro do tempo. E a Ilda não, era aquela menina, né, quietinha.
P/1 – Mas ela gostava de artistas, né?
R – Ah, muito! Orlando Silva, Francisco Aldo, antes dela ficar muito de igreja... Não, igreja sempre foi, mas ela ia pro Largo da Concórdia fazer, lá ver o Francisco. Tem até o autografado dele, né? Do Orlando, Francisco Aldo.
P/1 – Ela ia onde encontrar assim que ela?
R – Na Estação do Norte lá, aquela praça como é que chama?
P/1 – Tinha uma rádio lá?
R – Não, lá tinha uma praça e eles faziam aquilo ali e lá de cima eles cantavam, em frente à Estação do Norte.
P/1 – E a Senhora ia também lá?
R – Eu gostava, né, eu gostava, mas eu não ia muito lá não. Eu já precisava cantar eu mesmo em casa, né?
P/1 – Tem alguma música que a Senhora lembra?
R – Música?
P/1 – De cantar ainda assim? De vez em quando começa a cantar assim?
R – Não, eu cantava muito nas procissão. Eu tinha uma voz alta, quando chegava na Semana Santa era um respeito, né? Então a gente cantava: “Ave Maria, Cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte, amém.” (risos)
P/1 – Voz afinada!
R – Ai meu Deus do Céu, era assim, foi uma vida muito normal, é lógico que tem alguma coisa, né, mas graças a Deus é um desafio.
P/1 – E vocês cuidavam dos irmãozinhos.
R – Ah cuidava! Quando a mãe morreu, nossa, eu fiquei com o Floriano, então um dia eu tava sentada assim e ele segurou assim em mim, tinha seis aninhos, né? Daí eu falei: “Larga de mim, Naninho!” Ele chamava Floriano, né, eu era Naninho, quando era pequeno, “Larga de mim, Naninho!” A minha tia falou: “Ele perdeu a mãe dele!” “Mas eu não aguento, na rua ele tá sempre olhando pra mim!” Os outros perguntavam: “É seu filhinho?” Eu falei: “Não, é meu irmãozinho!” Uma vez ele teve uma doença nos olhos, eu levei ele no... Quando ele chorava lá doía pra mim, meu Deus do céu, né? Nós crescemos, ele foi filho, eu fui mãe dele, mesmo.
P/1 – Que idade você tinha?
R – Quando a mãe morreu, eu tinha 19 anos.
P/1 – E nessa época já tinha deixado a idéia do convento?
R – Tinha, porque não podia deixar o Naninho ali, né?
P/1 – Já estava trabalhando na tecelagem?
R – E depois entramos na tecelagem. Então vamos vivendo assim. Foi uma vida normal, não houve. Então, uma vez a minha cunhada falou: “Zilda, mas não tinha ninguém que gostasse de você?” Olha, até que teve, mas eu não gosto nem de lembrar. Uma vez teve um que tava de olho em mim, né? Daí um dia ele quis marcar um lugar, porque era assim, as coisas eram muito, não era assim, né? Então eu falei pra ele assim: “Muito obrigada, mas eu sou comprometida!”
P/1 – Mas não queria mesmo saber de namorar, Dona Zilda?
R – Não. Então, agora ele já pensava, “Mas namorado eu nunca vi ela com ninguém, sempre sozinha!” (risos) Eu falei: “Se eu fosse falar que eu tinha uma consagração, qualquer coisa, ele não ia acreditar, né, nem saber, né? Então eu fiquei quieta, aí eu falei pra minha cunhada (risos).
P/1 – E quando foi a sua consagração?
R – Então, porque eu não podia ir no convento e aquele tempo tinha uma consagração, uma coisa assim: eu não me caso, pode aparecer um homem de ouro, eu não quero nada pro casamento, né? Essa é uma forma mais ou menos assim e pra mim foi muito bem (risos).
P/1 – O que a Senhora pensava, assim, que a Senhora resolveu mesmo seguir esse caminho? Como era na época escolher assim, como que era?
R – Foi assim, a mãe naquela vida assim, a gente sempre foi de igreja, eu fui Filha de Maria toda a minha vida, tanto é que a minha irmã agora ainda tem um retrato lá que é dia da Consagração, da união... A gente sempre foi de igreja, é por isso que...
P/1 – E na igreja eles ensinavam?
R – Ah, tinha tudo, tinha catecismo, tinha as Filhas de Maria.
P/1 – Como era ser Filha de Maria?
R – Filha de Maria, a gente fazia um voto, né?
P/1 – Menina ainda?
R – É, fazia um voto. Então naquele tempo não tinha casada. Então a gente andava com aqueles vestidos brancos na metade da perna, uma faixa azul e uma fita azul. Eu até tenho a azul, né? E a gente saía da Penha, morava na Penha, saía da igreja, dava a volta, tinha um colégio de irmãs cantando. Aquele frio, São Paulo da garoa, tudo, a gente tudo deixava os paletó tudo no meio, depois que acabava a gente molhadinha pegava e botava. E era assim a vida, tinha essa simplicidade, umas coisas que pra gente nunca fez mal.
P/1 – As Filhas de Maria não namoravam?
R – Não, não, não. Filhas de Maria não. Se elas podia, é claro! Agora, se eles fossem, quando casasse, casava dentro da, né? A filha, os noivos no meio, né? Essa é Filha de Maria, as coisas eram muito simples. Daquele tempo, pra nós era tudo, mas você vê agora era uma bobaginha, né? Mas tinha, era o sentido daquele tempo, tinha um sentido, né?
P/1 – E o casamento de uma Filha de Maria, como era? Fala mais um pouquinho, Dona Zilda. Quem que ficava assim do lado? A Senhora falou que ficava assim uma fila?
R – É, e eles passavam pelo meio, o casal. Depois iam no altar e casavam.
P/1 – E a sua irmã também não casou?
R – Quem?
P/1 – A Ilda.
R – Também não.
P/1 – As duas fizeram...
R – Então, porque nós duas queria ir pro convento. Ela queria ser de clausura. É, de clausura naquele tempo você entrava lá e só saía bem morta, porque tinha até, né? Agora eu, coitada de mim, eu como era levada da breca, eu falei assim: “Se eu for no convento, a hora que eu falar bobagem, a hora que eles der risada, eles me convidam pra mim ir embora.” (risos), eu tinha certeza.
Daí tinha essa Consagração e pronto, estamos aqui. (risos)
P/1 – A Senhora lembra do dia da Consagração? Como era essa cerimônia?
R – A Consagração era um voto que a gente fazia assim, mais ou menos solene, mas não é uma coisa! Eu nem que apareça um casamento, um homem de ouro eu não, né? Eu prefiro, pronto, é uma coisa mais ou menos assim simples. Ajoelhava lá, as vezes tinha um padre, se não tivesse um padre era uma das altas lá fazia aquilo e pronto. E era só isso, não tinha escritura, não tinha nada. Era uma coisa assim.
P/1 – E prometia outras coisas também?
R – É, agora também se quisesse casar tivesse, se ela dizia: “Olha, eu agora quero pegar outro caminho, quero...” Daí não tinha problema nenhum, né, que tudo era livre. Enquanto quisesse ficar solteira ficava, quando quisesse casar também (risos), ai meu Deus!
P/1 – Fala Carol.
P/2 – O que o seu pai achava disso?
R – O pai? O pai uma vez, a Dona Maria Lopes falou assim, chamava o pai de Preto Amâncio: “Ô Preto Amâncio, e se as suas filhas quiserem casar?” Pai disse “Olha, se elas quiserem casar, eu deixo. Agora, se elas não quiserem casar, eu não me incomodo”. Papai falou desse jeito: “Se elas quiserem casar, elas casam, mas se elas não quiserem casar eu não me incomodo”.
P/1 – E seus irmãos casaram?
R – Então, agora, daí o Nélio, né, o Nélio era noivo, tinha uma menina lá, né, mas depois ela era muito doente, ela tinha uma doença no coração, e era afilhada da minha tia, Joaninha, Joana D’Arc que ela chamava, então daí a tia trouxe ela e fez um médico especialista falou: “Olha, essa menina, ela pode viver muito tempo até os 13, 14 anos, mas o coração dela não vai, né?” Daí ele fez tratamento, tudo depois ela voltou. Ela era de Pindamonhangaba, voltou lá com família, tudo e daí chamaram ele, que era o namoradinho dela e falaram pra ele que ela tava muito mal. (pausa)
FIM DA PRIMEIRA FAIXA
P/1 – Conte essa história, era uma filha de Filha de Maria.
R – Rainha de Congregado. E tinha um que tava de olho em mim (risos). E eu não sei, eu achava besteira dele, né? Então ele olhava pra mim, né, e eu dava risada, e ele achava que eu tava achando (risos), dando bola pra ele e eu tava fazendo caçoada dele (risos). Ai meu Deus do Céu! Dois bobos, eu kékékéké e ele só pensando, “Vai pensando, pode pensar o que quiser seu bocó!” (risos)
P/1 – Quer dizer que a senhora teve alguns que gostaram da Senhora?
R – Não, mas quando gostava alguém eu pedia até: “Muito obrigada!” Eu agradecia, “Mas eu sou comprometida!” Mas nunca vi essa mulher com ninguém, mas eu ia falar pra ele que eu tinha voto com... Falei: “A Conceição acha graça de eu contar”.
P/1 – Quem é Conceição?
R – É a minha cunhada (risos).
P/1 – O irmão da Senhora casou com uma... Chegou a casar com essa moça que ficou doente?
R – Conceição. E o Floriano também é casado. As viúvas estão todas aí das duas, né? Mas graças a Deus elas estão muito bem.
P/1 – E sobrinhos?
R – Eu tenho sobrinhos, tenho o Ricardo, Márcia, né, e são esses dois. Agora tem o filho do Ricardo, já tem Mariana, Juliane e Luisa, né? Agora, a Márcia também não casou também, essa vocês se conhecem, né?
P/1 – E os outros sobrinhos casaram?
R – É, os outros casaram.
P/1 – Tiveram filhos.
R – E agora tem uma criançada que é uma belezinha (risos). Porque as crianças hoje são muito diferentes, né? Antigamente, quando a gente era pequena chegava uma pessoa de idade, a gente: “Bença!” “Deus te abençoe, né?” Pros velhos, mas hoje quando vê um velho, iiii, sai de perto, não tá nem aí, né?
P/2 – A senhora gosta de crianças assim?
R – Eu gosto, mas quem que não gosta de criança, meu Deus do céu!
P/1 – Convive com seus sobrinhos, com os filhos dos sobrinhos essa criançada toda?
R – Convivo. Eles vem, eu pego, dá um trabalho mas vale a pena.
P/1 – A senhora mora hoje sozinha?
R – Eu moro aqui em Pinheiros, pra lá de Pinheiros um pouco, né?
P/1 – Mas sozinha?
R – É... Não, eu tenho... Agora que a Ilda morreu era nós duas, uma casa boa, tem um quarto pra cá, outro quarto pra lá, né, e a gente ficamos as duas com muito, né? E ela ficou doente, com aquelas coisas todas, né? E eu queria que ela dormisse comigo, eu falava assim: “Não, uma espirra lá, a outra saúde aqui, fica pra lá e pra cá”. Agora, a Ilda foi era: Zilda, Cornélio e a Ilda e o Floriano, né? Agora essa que morreu agora, nossa Senhora, não gosto nem de me lembrar!
P/1 - Vocês eram muito amigas?
R – Virgem Maria, mas me balançou mesmo!
P/1 – Vocês eram muito amigas?
R – É então, uma com a outra, né?
P/1 – Sempre juntas?
R – E ela teve uma vida muito triste.
P/1 – Por quê? O que aconteceu?
R – Porque ela diz que não, mas foi verdade. Antigamente, a gente fazia um xarope de casca de abacaxi, todo mundo fazia, era normal, não é? A gente fazia, descascava, lavava, curtia. E uma vez, quando ela fez, ela fez pra ela e não fez bem, e eu falei: “Ilda, você não pode tomar isso!” “Mas todo mundo toma!” “Mas pra você não fez bem!” Você viu? Ela falou assim, e ela começou a tomar. E daí um dia quando ficava assim ela precisou operar a garganta, operou uma vez, operou outra vez. Daí quando foi um dia, quando ela foi operar o médico olhou assim: “Imediatamente para o hospital!” Porque aquilo já não dava mais para operar. Daí eles tiraram o estomago e puseram, ligaram pelo esôfago. Mas ela viveu assim, eu falei, eu chorei, Nossa Senhora! Uma amiga falou assim pra mim: “A Zilda, eu tenho uma irmã que ficou dez anos com isso aí!” Então eu estava contando, ela ainda durou 17 anos!
P/1 – Que bom, né?
R – Mas o meu Deus!
P/1 – E na fábrica vocês eram muito unidas também?
R – Não, era em tudo lugar. E ela sempre foi mais espertinha do que eu.
P/1 – Ah é? O que ela fazia de mais esperta?
R – Quando faltava alguma companheira assim eu nunca três tear. Quando ela tocava os três tear e dava conta. Neguinha era danada!
P/1 – E lá nessa época na fábrica, na tecelagem tinha...
R – Lá de seda.
P/1 - ... tinha alguns movimentos assim de trabalhadores? Tinha alguma coisa ou sempre era igual?
R – Tinha o sindicato, tinha o sindicato.
P/1 – E tem alguma história desse sindicato? As mulheres participavam ou não?
R – A gente tinha era tudo pagava o sindicato lá pra qualquer coisinha eles defenderem a gente, né? Mas também não defendia muito, era tudo meia, né?
P/1 – E eles iam na fábrica, alguém do sindicato?
R – Quando a gente tinha uma queixa eles iam chamar o advogado lá. Tinha, conheceu o Rio Branco, era um advogado falado o Rio Branco, era baixotinho, baiano baixinho, gordinho, tudo, né? Aonde ele, a causa que ele pegava ele não perdia.
P/1 – E que causas eram? Era de que assim?
R – Quando tinha uma causa assim, né?
P/1 – Que tinha problemas assim na tecelagem?
R – Tinha, todo lugar tinha, né?
P/1 – Sim, mas assim, alguma coisa que acontecia muito na fábrica?
R - Foi uma vida como as outras, não foi diferente, né? que aquilo não era eu, todo mundo era assim, né?
P/1 – Era as tecelagens, né, tinha bastante produção, né, de... E o sindicato as vezes, as pessoas...
R – Arrumavam do outro lado.
P/1 – Como assim? Como que arrumavam?
R – Uma vez quando eles teve um lá eu pedi pra eles que eles segurassem os bens deles, né? daí quando veio, eles fizeram o acordo eu falei, porque não tinha bem, eu falei: “Mas eu não pro senhor que segurassem?” “Ah, mas que a mulher não sei o que”. Mas eu só faltei chamar ele de santo!
P/1 – E os operários ficaram sem nada?
R – Não, ganhamos, tivemos que fazer acordo...
P/1 – Mas muito devagar.
R - ... Acordo lá em Brasília, e ganhamos o mínimo. Que a gente trabalhou 40 e tantos anos.
P/1 – Na tecelagem.
R – Na tecelagem.
P/1 – E essa hora o sindicato?
R – Não, né? passou do outro lado, né? Mas toda a vida tive isso, né, não é aquele tempo, toda a vida teve isso.
P/1 – E teve alguma manifestação, algum movimento, alguma passeata alguma coisa que a senhora lembra?
R – Não, não, nada nada. Saímos com raiva só! (risos)
P/1 – E enquanto a senhora trabalhava lá teve alguma dia assim que parou a fábrica?
R – Ah tinha.
P/1 – Tinha?
R – Já é comigo mesmo!
P/1 – Ah é? Por quê? Conta um pouco.
R – Porque tinha um, de vez em quando parava a fábrica porque eles ficavam uma porção de tempo parado e a gente não ganhava, né, e eu fui analisando, daqui um pouquinho qualquer coisinha tocava a fábrica. E tinha o almoxarifado lá, né? Daí eu fui um dia lá e falei pra menina lá: “Escuta, será que nós vamos tocar agora a fábrica?” “Não!” Eu falei: “Por quê?” Mas eu também fui de morta, sabe? Eu falei: “Por quê?” Eu queria saber o porquê! Ela falou assim: “Zilda, sabe de uma coisa, quando o almoxarifado esta cheio ele fica tantos tempos aí porque ele não sai estoque, então ele não. Agora, se o almoxarife não tem nada vocês param daí ela toca, porque não tem nada”. Falei: “É assim? Então deixa comigo!” Quando por exemplo estava cheio e o pessoal parava eu batia palma: “Ninguém vai tocar os tear, sabe por quê? Porque tá cheio lá”, falava alto! Eu também fui de morte também, falava alto: “Ninguém vai tocar, fica parado aí!” Quando eles viam que ninguém parava tocava o tear. Agora se tivesse, não tivesse nada e parasse dizia: “Agora vamos tocar, vamos tocar. Eu toco aqui tchetchethce. O pão duro! Eu toc toc toc toc, daqui a pouco toc toc toc toc daqui a pouco todo mundo tá tocando!” Eu fui fogo também.
P/1 – Olha! E eles atendiam?
R – Ah, daí eles acreditaram porque eles viram com os olhos deles.
P/1 – Os outros companheiros?
R – Os outros companheiros. Daí eu falei assim, daí eu abri os olhos deles: “Quando tiver o almoxarife cheio, daí eles podem ficar um ano parado que não dá nada. Mas se tiver vazio, a gente, eles não deixam a gente”.
P/1 – E quando não trabalhava, quando a fábrica parava vocês não ganhavam?
R – Então, quando tava não ganhava nada, por isso que não era vantagem. Se tava o almoxarife cheio, né?
P/1 – Aí parava a produção e vocês não ganhavam.
R – Pra eles era bom, né, agora quando tava cheio tava bom. Agora, se faltasse eles queriam, né, vinham um pedido lá e eles. Tinha tudo essas coisas.
P/1 – Então a senhora olhava e ia controlando a produção para não parar.
R – Eu olhava, se eu via o movimento era grande, mas era uma fábrica grande, né?
P/1 – E o chefe nessa hora?
R – O chefe? Eles ficavam tudo com raiva, mas se mancavam, né?
P/1 – Porque vocês estavam...
R – Então na nossa, né, enquanto nós não sabia nós perdemos, né? Aí passou, tudo passou.
P/1 – E quando parava a fábrica vocês não iam nem pra fábrica?
R – Ah, e outra coisa, depois quando eu já tava com 47 anos, 40, que teve uma falência, parou lá. E eu naquele tempo a gente não tinha assim, eu queria trabalhar em outro lugar mas não tinha tecelagem por lá, né? Daí tinha o Centro Social Helio Treze, e a dona Edite que era chefe lá. Daí eu fui lá e fui pedir serviço lá, ela falou: “Quantos anos?” Eu: “47!” “Ah, Zilda, você tem muito tempo para trabalhar. Então venha tomar conta”. Tinha uma que tomava conta, né, e eu fiquei auxiliar daquela, né? Daí eu trabalhei, me aposentei pelo sindicato, por esse, não pelo sindicato, pela aquela Pensionato. Eu perdi muito, daí eu fiquei, ganhei pouquinho, né, deu pra mim, daí eu fiquei lá tomando conta lá.
P/1 – Era um pensionato?
R – Um pensionato.
P/1 – Como é pensionato? Como era?
R – Um pensionato era assim: das professoras, essas moças do interior...
P/1 – Pode falar do pensionato.
R – As moças do interior elas precisavam vir pra cidade ou coisa, e tinha quando elas ficavam, ficavam lá, né? E daí, mas era rigoroso, aquelas mocinhas era dez horas fechava. Se fechasse, mas nem, não abria de jeito nenhum, né? Então elas saíam, aquelas meninas, aquelas professorinhas saíam um pouquinho lá, quando chegava aquela hora se não entrasse lá ficava na rua, porque não abria!
P/1 – Não abria! E eram muitas?
R – Era bastante, era bastante. Até houve um caso uma vez que uma fechou, e quando fechavam eu saía. Eles fecharam eu ia pra casa que era perto, né? Daí uma vinha correndo, correndo, correndo, correndo, fechou. Ela começou a chorar, eu falei: “Venha aqui!” Eu desci, dormiu lá em casa, quando foi de manhã cedinho eu falei: “Ó, não fale pras meninas, pronto!”
P/1 – Quer dizer, a senhora era bem amiga delas?
R – Graças a Deus! Graças a Deus! De vez em quando a gente tinha que falar alguma coisa que, mas quanta... Porque tinha um regulamento, nossa, horrível! Se uma chegasse na hora de não tivesse ali, lavava os pratos, aquela comida não tinha pra ela. Era uma coisa!
P/1 – Era de freiras? Eram freiras?
R – Não, não era não, não era freiras. Era uma organização lá.
P/1 – E a senhora trabalhou quanto tempo lá?
R – Bastante tempo, bastante tempo, depois eu me aposentei por lá.
P/1 – E era a senhora que cuidava das meninas lá?
R – É, era eu que cuidava.
P/1 – Quer perguntar?
P/2 – Dona Zilda, a senhora tinha falado, há um tempinho atrás, que a sua avó, a Luisa, veio num navio negreiro. Em que lugar? A senhora lembra que lugar ela morou antes de vir pra São Paulo?
R – A vó Luisa era do Maranhão, e lá no Maranhão ela tinha uma vida feliz, né, que ela tinha: os filhos, né, e viviam bem. E depois, quando entrou na vida eles foram lá e levaram.
P/1 – Do Maranhão tiraram ela de lá?
R – Vieram pra Pindamonhangaba porque daí eles já ficavam esperando quando chegava os escravos eles compravam, né? Então, e a minha avó era revoltada por causa disso, que lá ela era... Tanto é que até quando me contaram a história ela falou no nome deles, dos filhos, e tinha um de nome estrambólico, sabe? Eu falei pra Márcia: “Márcia, escreva aqui para mim não esquecer!” Mas daqui um pouco acabou (risos).
P/2 – Aí ela foi pra Lorena, que a senhora falou? Ela foi pra Lorena e ficou lá numa fazenda? Como é que foi isso?
P/1 – Quando ela veio do Maranhão, a sua avó?
P/2 – Quando ela veio do Maranhão, a dona Luísa.
R – Quando ela veio do Maranhão?
P/1 – Quando ela veio do Maranhão pra cá.
R – Veio pra Pindamonhangaba. Então, e daí de Pindamonhangaba que comprou ela, né? Então daí ela sabia o que tinha, ia acontecer, ela tinha 14 anos. Daí então tinha que casar, né? E daí uma que saiu falou: “Luisa, amanhã você vai casar com o Pedro Orozimba”, ela falou assim: “Ainda se fosse com o filho dele”, porque ele tinha um filho casado, já forro. Eles sempre dizem que esse tal de Pedro Orozimba até era bom, mas ela não entendia, nem eu não entendia quem dirá nem ela nem eu, né? Então ela falou assim, falou pra: “Ainda se fosse com o filho dele, né, ainda bem. Mas com ele?” Daqui um pouquinho vão casar e olha ela com ele ali.
P/1 – Ela teve vários filhos, como foi?
R – A minha avó Luisa, né? Daí ela qualquer ódio mas sabia, né, daí quando chegou na porta do, quando foi no casamento, né, que eu já contei que “É de espontânea vontade do seu Pedro Orozimba case com a Luisa Maranhão” ele falou: “Sim, senhor!” (risos) Daí falou assim: “E a dona Luisa Maranhão quer receber por marido o Pedro Orozimba?” Ela ficou quieta. E assim que ela saiu, daí quando chegou na porta de que ela saiu, ele levou uma tigelinha, sabe, bonitinha e deu pra ela, ela pegou a tigelinha e jogou no chão. E daí que assim que ela foi pras núpcias dela. Ela falou que os filhos ela queria bem, mas o tal de Pedro ela nunca quis saber, porque ela sabia que do ato vinha um filho, então o filho ela queria bem, mas o coitado ela odiava e nem queria saber dele.
P/1 – Ela teve muitos filhos, a dona Luisa?
R – Ela teve, ela teve que é o meu pai, né, ela teve Cornélio. Era Cornélio porque tinha morrido um parente lá que era o Cornélio, o Floriano, o Cornélio... Ai meus Deus do céu!
P/1 – Mas teve muitos filhos?
R – O Cornélio... Eu me esqueço agora quantos. É ela teve alguns filhos, os filhos ela gostava. Agora, eu não sei como acabou o Pedro Orozimba, eu não fiquei sabendo que é isso. Aí quando veio aquele dos forros, né? Então daí eles se largaram. Eu não fiquei sabendo a separação deles no meio.
P/1 – Ah, eles se separaram?
R – Ela já tinha raiva dele quando tinha que estar junto (risos). Daí eu não fiquei sabendo mais, nunca fiquei sabendo como que eles se acabaram.
P/1 – E ela contava como foi a viagem no navio, ela contava?
R – Ela contava que eles vinham lá, né, entrava lá, davam comida, qualquer coisa. O lugar lá onde estava esperando já estava esperando eles lá, né?
P/1 – Quando chegava, né?
R – Daí eles ficavam lá, né? então, daí depois a minha tia ela teve os... Depois ela teve uma menina, depois era tudo homem, aí teve uma menina que era a minha madrinha, Durvalina. Mas aí já foi um caso livre, né, que eles. Até a tia falava, sabia o nome do pai dela, que era de Pindamonhangaba. É isso que eu sei e é complicado, né? (risos) Ave Maria!
P/1 – É muita história.
R – Mas como que era, né? é essa minha falta de organização, é tudo que os animalzinhos, né? Não tinha aquela lei de gente, né? Mas tudo isso passou, né, agora pode ser que tenha em algum lugar por aí, mas agora não é mais assim.
P/1 – Ainda bem, né? E a senhora estava contando, depois, né, contou a infância, contou como vocês iam bastante na igreja. A senhora fazia trabalhos na igreja? Tinha trabalhos pra fazer na igreja?
R – Tinha, tinha, se a gente fosse Filha de Maria tinha as reuniões, não é? Era tudo muito fechado mas tinha, e a gente cumpria daquele jeito.
P/1 – E até hoje a senhora frequenta a igreja bastante?
R – Ah, eu frequento tudo, né? Frequento a igreja. Agora com esse, agora por exemplo, antigamente a gente não ficava, era um pecado mortal a gente ficar sem missa, lembra disso?
P/1 – Lembro.
R – Então, mas agora não é assim, agora tá tudo, né? Que nem a tia falava, minha madrinha: “O meu Deus do céu, quando que eu fiquei um domingo sem missa!” então eu falei: “Tia, você esta em paz e perfeita. Quando a senhora pode a senhora ia, agora a senhora não pode esta cerrado. Pior se a senhora dizesse ‘Eu quando pude ir não fui, agora quero ir não vou’” eu falava pra tia. Então a senhora esta em paz. E a tia, e a morte dela foi uma morte que todo mundo queria tá lá, ela ficou doente, então eu ficava com ela lá, ela falava a noite inteira, sabe, e chamava: “Ester, Ester!” E chamava “Edna, Edna”, né? E eu um dia caí na besteira ela falava a palavra, e ela falava: “Zilda, que horas são?” Eu falei: “Tia, é meia noite” “Ester, Estar. Zilda, que horas são?” E eu falei: “Tia, é meia noite e meia!” “Ester, Edna, que horas são Zilda?” Eu falei: “É uma hora”. Daí um tia que eu caí na besteira (risos), depois, Ê Zilda, eu fui fogo! Eu falei assim: “Tia, quando a senhora vê quando é noite, né...” Ah, outra coisa, ela quando ela deitava, a dentadura ela punha num copo d’água. Daí eu falei pra ela assim: “Tia, quando a senhora vê que a dentadura esta no copo é porque é de noite, e quando a senhora vê que a dentadura não tá é de dia”. Daí a noite ela falou: “Dentadura de noite no copo, de dia...” (risos) Mas eu ri! Eu fui endireitar a pessoa, se virei com o nariz pra traz porque ela a noite inteira: “De noite no copo, de dia não tá no copo” (risos). Mas daí eu não dormia de tanto dar risada, eu endireitei o pescoço e virei com o nariz pra traz, porque agora vinha o pior! (risos) Ai meu Deus do céu!
P/1 – Em que Congregação que a senhora fez os votos? Que a senhora se congregou? É que eu queria saber mais assim, como isso, entendeu? Sobre isso. Era uma congregação, uma igreja?
R – Não era congregação, era um movimento a gente ia lá. Olha, tinha os dizeres, né, que a gente se consagrava, que mesmo se aparecesse homem de ouro eu não...
P/1 – E depois, tinham alguns trabalhos que vocês faziam?
R – Não. Tinha, a gente tinha umas reuniões assim, mas não era uma coisa fechada não, não era convento, não era nada. Era uma coisa assim.
P/1 – De reuniões...
R – É. Então, daí que quando a Conceição não aguentou, mas ela deu risada. Quando ele veio que tava de olhos em mim, né, queria falar comigo e eu agradeci ele: “Olha, muito obrigada, senhor, mas eu sou comprometida” (risos). Ai, mas ele nunca me viu com ninguém (risos), eu ia falar pra ele que era voto, ele nem ia entender, né? A Conceição é minha cunhada ela dá risada, faz caçoada de mim, falo: “É, eu me saí bem!” (risos)
P/1 – Mas passeavam? Vocês passeavam?
R – Ah, uma vida normal, indo em igreja. Mas sempre fomos de igreja, sempre, né? graças a Deus! Mas tem essas coisas, mas eu sempre fui muito, meu gênio.
P/1 – Alegre!
R – A Ilda já era, né, eu que ia no... Se eu fosse pro convento eu não ficava, não ficava, porque a hora que eu falasse qualquer coisinha e desse risada, me convidavam pra mim sair, era muito bitolado, né? Agora não, até as irmãs hoje até dançam, né?
P/1 – E dançar a senhora dançou alguma vez?
R – Dancei. Dançava, eu gostava de dançar.
P/1 – E onde que vocês dançavam?
R – Eu dançava, a gente morava no Brás, né, então quando eu tinha alguma festinha eu ia lá e falava pro senhor Meireles: “Olha, senhor Meireles, eu vou numa festinha mas eu vou dançar” ela falava: “Pode, contanto que amanhã comungue, possa comungar pode, né?” Ah, eu gostava de bolero (risos), eu gostava de dançar bolero, essas coisas. Mas também, antigamente, dança não era pecaminosa, nem pro homem nem pra mulher. Eles, a gente dançava pensando na música, não é? Eu me lembro daquele: “Ó jardineira por que estás tão triste? Mas o que foi que aconteceu?” Então, mas tanto ele era a música. Agora, hoje não tem nada de sentimento, né? Era, podia dançar, agora hoje virou a coisa de pernas para ar, agora hoje eu não sei porque...
P/1 – Mas eram bailes nas casas das pessoas, ou tinha um clube?
R – Não, quando tinha um casamento ou tinha uma festinha ou um aniversário, qualquer coisa, né, era no Taboão, né, que a mãe morreu e a nossa madrinha ficou mãe de nós. Então as vezes tinha festinha, mandavam, trabalhava na fábrica, chegava sábado, chegava tomava um banho, fazia uns cachinhos tudinho na cabeça e ia pro baile (risos). Dançava, no outro dia tava tudo em paz, né, não tinha nada de. Tanto o cavalheiro, quanto a dama, era a música, né?
P/1 – E tinha quem tocava na...
R – Tinha tinha, tinha música, lá tinha viola, muito era viola.
P/1 – E serenatas?
R – Serenatas? As serenatas essas...
P/1 – Não tinha?
R – Tinha muito, mas já não é do meu tempo muito.
P/1 – E carnaval? Foi em bailes de carnaval?
R – Carnaval não. Carnaval eu fazia retiro, eu ia pintar o sete lá no retiro. Ai meu Deus do céu! Uma vez eu tinha uma prima e nós fomos num retiro, né, a irmã ficava fazendo as leituras, aquele silencio que a gente via. E daí uma delas saiu, passou assim e ela trazia uma porção de medalhas, de idade, sabe? E eu tava sentada fazendo, escutando lá. Daí quando a mulher passou, aquele tetetereterete, ai isso me deu uma vontade de dar risada, né? E daí a minha prima falou: “Zilda, pense uma coisa triste!” Ah, daí foi pior, eu fiquei sabe aquele ataque de riso pensei que eu ia morrer, ela tirou eu e me sacudiu porque eu (risos), de tanto que eu achei graça do sino dela (risos).
P/1 – E cinema, iam ao cinema?
R – Cinema eu não gostava muito muito não. Eu assisti aquele Direito de Nascer.
P/1 – Uma novela?
R – Amor para sempre.
P/1 – Novela também?
R – Cinema.
P/1 – Cinema?
R – E eu sabia aquilo de cor tudo, né? Depois eu esqueci.
P/1 – Porque ia no cinema e era sempre o mesmo...
R – Porque nós morávamos no Brás e tinha o Politião ali que era pertinho, que era na a estação dos bondes, o Politião era ali, sabe?
P/1 – O cinema?
R – Então as vezes a gente ia lá.
P/1 – Mas sabia de cor porque sempre era o mesmo filme? A senhora falou que sabia de cor o filme.
R – É, então eu assistia um filme, depois eu sabia, eu chegava e contava como é que era tudo, né? agora... Essa história!
P/1 – Mas quanta história, dona Zilda?
R – E como! Mas também, minha filha, com essa juvelhice (risos)!
P/1 – E o bonde, conta do bonde. Vocês pegavam bonde pra ir pros lugares?
R – É, mas eu ia a pé. Agora, a Ilda, ela e a Raquel, que tá no céu também, elas vinham, atravessavam lá, elas subiam no bonde, o bonde entrava lá e depois elas desciam, entravam, voltavam correndo e a reinação delas também (risos).
P/1 – Pra passear de bonde.
R – Pra andar no bonde.
P/1 – A senhora lembra da rua assim, das imagens? Mas assim a rua, como eram as ruas assim?
R – Era tudo paralelepípedo.
P/1 – Da iluminação assim, a senhora lembra como era?
R – Tem coisa que eu esqueci, mas tem muita coisa que eu me lembro, as vezes eu até acho graça da gente, né? mas tudo era mais simples as coisas também, né?
P/1 – Bonitas também, né?
R – Também. Mas aquele tempo era mais sério as coisas, né, agora esse negócio de televisão, essas coisas acabou tudo, né?
P/1 – Era mais sério como que a senhora diz?
R – As coisas, né? Deixa eu ver como é que eu digo...
P/1 – A noite assim ficavam mais em casa?
R – É, mais em casa conversando, né?
P/1 – E as ruas ficavam como a noite? Eu estou tentando imaginar como era.
R – As ruas tinha lampião de gás, né? Que tem até a música, isso aí eu me lembro bem, eles vinham, eles iam acendendo, né, os gases. Na Consolação lá, né, tudo. Isso a gente lembra. Depois veio as músicas e deu pra gente lembrar melhor, né? E escuta, cadê a Márcia?
P/1 – Já vem, já tá aí. Fala.
P/2 – A senhora trabalhou como tecelã grande parte da sua vida, né? Teve alguma coisa, alguma carreira que a senhora quis seguir, estudar?
R – Na fábrica?
P/2 – Não não, fora assim, a senhora já quis estudar alguma coisa, algum curso a fazer?
R – Eu já contei daquela, né, que fechou o Antonio e passou pra, mas como era perto, então se fosse longe eles indenizavam, mas era perto. E tinha Jarcarte, eram aquelas máquinas que só homem trabalhava.
P/1 – Não precisava fazer curso, né?
R – Não não, homem aquele Jacarte era um tecido mais pesado, e os homens era em cima e eles subiam pra amarrar. Daí quando eu saía de casa dez horas assim, era na parte da noite, e como eles trabalham de noite eu tive que, né? E daí um dos que entrou lá falou assim: “Escuta, Zilda, você não tem medo de você só de mulher nessa homarada?” Eu falei: “Quem anda com Jesus Cristo não tem medo de assombração. Eu ando com Jesus Cristo no meu coração!” Ele falou: “Você pode ficar sossegada que nunca ninguém vai mexer com você”. E eles me respeitavam e nunca, graças a Deus! Isso aí marcou. Agora, eu esqueci, mas agora eu tô me lembrando, mas é assim.
P/1 – Então pra trabalhar na tecelagem não precisava fazer cursos, né?
R – Não não não.
P/1 – A senhora estudou, né, a senhora disse que quando era pequenininha estudou numa escola até o quarto ano.
R – É até o quarto ano, eu tive um tempo de irmãs, né?
P/1 – A senhora lembra da escola como era?
R – Eu me lembro, a primeira foi uma tal de dona Jundira, eu queria muito ir na escola, mas quando eu fui na escola de dona Jundira eu não gostei, cheguei lá comecei a chorar, chorar, chorar, chorar, né? Daí ela foi lá e me pôs eu deitadinha, eu dormi. Daí saí eu não queria mais ir na escola, de jeito nenhum, né? Daí nós fomos pra Penha e lá não tinha escola, só tinha as irmãs, né, e eu não queria de jeito nenhum ir lá. Daí a mãe: “Zilda, mas precisa ir na escola, não pode, né?” Daí ela fez um lanche pra mim, ela tinha aquelas guardanapos de saco tudo limpinho, né? Pôs ali, né, e me deu pra mim. Eu fui lá e entrei chorando, chorando sentei até esperar. E daí uma lá veio lá a Mariana e falou assim: “Não chora, você vai ficar na sala da dona, da Irmã Ana, é uma irmã lá e ela é tão boazinha, você vai gostar, né?” Mas eu chorando, chorando. Depois veio a Revolução de 36, né, aquela revolução e nós, o pai, nós morávamos na avenida Celso Garcia, daí um que era muito amigo dele falou: “Olha Amâncio, se vocês não saírem daí eu pego a sua família e levo, né?” E daí quando nós chegamos lá estava tudo aqueles soldado tudo, né? Daí nós saímos pra lá, pra lá, pra cá, chegamos num lugar que tinha rio, tinha um que atravessava nós de canoa, descemos lá na canoa e fomos, olha que coisa! Fomos na casa desses Antero, né, quando eu cheguei lá toda assustada, eu falei: “Mãe, essa aí é a menina que levou eu pra sala da Irmã”. Então a mãe dela falou assim: “Ah, então eu não preciso nem apresentar, elas já se conhecem, né?” E ela tinha uma boneca de papelão aquele tempo, eu peguei a boneca e saímos juntos, sabe? E ficamos irmãs, ela morreu, até morrer.
FIM DA SEGUNDA FAIXA
R – Então, daí a mãe dela falou assim: “Ah, vocês já se conhecem? Então eu não preciso nem apresentar”. Daí eu vi a bonequinha, peguei a boneca e saímos pra lá. Daí ela, depois a Mariana casou, né? E quando ela casou eu tava, cheguei do serviço, disseram: “Zilda, vamos ali no retratista, eu quero tirar meu último retrato de eu solteira”. Daí eu pus assim o pescoço, eu tenho a fotografia dela. Depois, ela teve um filho e eu batizei, o Sergio. Mas ele também me queria tanto o bem, sabe? Quando ele já tava pequenininho ele faz assim: “Mãe, eu quero escrever uma carta pra minha madrinha. Mas eu que quero escrever”, então ela falava assim: “Você vai escrever” e pôs aquelas canecas, né, na mão dele, ela falou: “Mas pega na minha mão, Mãe, a mão é minha mas...” Daí ela pegou e escreveu, sabe? Quando ele teve: “Olha madrinha, foi eu que escrevi. Foi eu que escrevi”. Eu falei: “Então, olha como tá bonitinho, né?” “Fui eu, com a minha mão!” Isso foi uma coisa que foi só rezada depois.
P/1 – E a revolução, o que mais que a senhora lembra dessa época da revolução?
R – Da revolução nós fomos lá na casa, né? E depois de lá nós fomos pra Pindamonhangaba onde a gente, e foi um tempo feliz da minha vida. Chegamos lá na casa dos conhecidos lá, depois o pai já foi arranjou uma casinha que estava desalugada, já alugou, né? E nós então já ia lá e eu, não sei qual era a fruta, meu Deus que tinha, que caía que a gente entrava debaixo e chupava, não me lembro se era manga, uma coisa tão boa, né? E tudo isso marcou. E daí depois ela casou, o Sérgio, né, e isso aí.
P/1 – E lá, nessa cidade a revolução não incomodou?
R – Não não. Quando nós saímos, depois saímos com a roupa, né, umas trouxas, e tinha um cachorro que chamava Nilo que era um parente da gente, o cachorro fica da família, né? Daí o Nilo quando ele não podia ver tiro, ele todos os olhos abertos assim e ele latindo, e eles mataram ele. Mataram o Nilo.
P/1 – Essa época a sua mãe foi junto também?
R – Isso aí também. A mãe tava, pôs uma trouxa na cabeça dela, né, uma trouxinha na minha cabeça e de pequena, o Floriano no colo. Atravessamos, ficamos lá, e depois quando terminou a revolução daí a gente voltou pro normal.
P/1 – Dona Zilda, a senhora gostaria de contar mais alguma história, mais alguma coisa da sua vida que a senhora não contou?
R – O que eu posso?
P/1 – O que a senhora quiser, alguma lembrança? Alguma coisa dos dias de hoje?
R – Eu sempre fui... Cantar, eu gostava de cantar.
P/1 – E a senhora quer terminar essa entrevista cantando?
R – Deixa eu ver o que eu posso cantar, “As três lágrimas”, conhece?
P/1 – Não, então canta.
P/1 – Deixa eu ver se me lembro (pausa). “As três lágrimas...” O meu Deus! As três lagrimas... A primeira... Deixa eu ver... “Ai, se eu pudesse me esquecer daquela noite de São João, era bem bom! Mas quase não vê. Eu era a moça mais bonita, com aquela vestido de chita tudo enfeitado de fita, que pisou na povoação. No volteado do sapateado foi que nós se conhecemos, os nossos olhos se encontraram, os nossos olhos se gostaram e nós também se gostemos. No gemer da viola dessa dor que nos consola, eu fiz a declaração. E como quem pede esmola os meus olhos mendigavam os olhar dos olhos seus. Quando a esmola chegou, disse: Ó meu Deus, eu nem sei o que eu senti, não sei mesmo porque menti, não sei como foi aquilo, senti o nó do __________, uma vontade de chorar, eu quis segurar mas é quase. Os meus olhos se arregalou e uma lágrima rolou porque eu tinha esperança. E mais um ano se passou, mas quando foi no outro São João ainda tava bonita com o vista de chita, tudo enfeitado de fita e o ramo de flor na mão. Os meus olhos estavam seco que nem roça de corvalha. Na hora dela sair, eu não queria que ela saísse assim sem despedir de mim, eu agarrei na cabeça dela e que nem um louco eu beijei. Beijei a sua face amarela e quando larguei eu nem sabia chorar, o resto das minhas lágrimas eu dei pra ela levar. E agora vem de tardinha que eu garro de cismar, de cismar. E de repente sem querer, não sei porquê me deu uma vontade de chorar mas é quá. Os meus olhos secou na dor de uma saudade!”
P/1 – Que bom! Agora fala o seu nome inteiro.
R – Zilda Noronha Miné.
P/1 – Muito obrigada, dona Zilda.
FIM DA ENTREVISTA
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