P/1 - Boa tarde, senhor José Ricardo.
R - Boa tarde.
P/1 - Meu nome é Genivaldo e nós vamos começar então com a sua entrevista. Primeiramente eu vou pedir que o senhor informe o seu nome, local e data de nascimento.
R - José Ricardo Martins Ferreira, nascido em São Luiz Gonzaga, no dia oito de março de 1959.
P/1 - Qual o nome dos seus pais?
R - Setembrino José Ferreira e Gisa Martins Ferreira.
P/1 - O que seus pais faziam?
R - Agricultores.
P/1 - Eram agricultores. Em Santo Ângelo mesmo?
R - Não, em São Luiz Gonzaga, só que era no... Era maior a cidade. Hoje é Itacurubi o nome da cidade.
P/1 - Eles vieram, eles... Onde o senhor nasceu, eles já eram de lá ou tinham vindo de outras cidades?
R - Não, eles já eram de lá.
P/1 - E antes disso, os seus avós, por parte paterna ou materna, também eram de lá ou tinham se deslocado?
R - Não, eles eram imigrantes, eram... Tinha alemães e tinha italianos, que vieram na época da guerra para essa região - inclusive trocaram de nome, meu nome verdadeiro é... São outros nomes, o nome de... Aqui na região costumava se trocar de nome quando, na época da guerra, os imigrantes vinham. Eles trocavam de nome, adotavam o nome das famílias onde eles vinham residir.
P/1 - Falando um pouco sobre a sua família, eu gostaria de saber sobre o senhor, a respeito da sua infância. Quais eram os costumes, como funcionava a rotina da sua família quando o senhor era criança?
R - Era o costume normal aqui da região, que era agricultura. Era uma rotina diária de tratamento dos animais, lavoura, lavoura de fumo, e se passava os dias dessa forma, fazendo todo serviço desde criança. Com cinco, seis anos, já estava trabalhando lá. Todas as crianças eram assim.
P/1 - Então o senhor também trabalhava na lavoura junto com seus pais?
R - Sim.
P/1 - E como era essa rotina, vocês levantavam cedo, voltavam tarde?
R - É, sempre era... Como diz o ditado aqui, “no clarear do dia”. Às cinco horas...
Continuar leituraP/1 - Boa tarde, senhor José Ricardo.
R - Boa tarde.
P/1 - Meu nome é Genivaldo e nós vamos começar então com a sua entrevista. Primeiramente eu vou pedir que o senhor informe o seu nome, local e data de nascimento.
R - José Ricardo Martins Ferreira, nascido em São Luiz Gonzaga, no dia oito de março de 1959.
P/1 - Qual o nome dos seus pais?
R - Setembrino José Ferreira e Gisa Martins Ferreira.
P/1 - O que seus pais faziam?
R - Agricultores.
P/1 - Eram agricultores. Em Santo Ângelo mesmo?
R - Não, em São Luiz Gonzaga, só que era no... Era maior a cidade. Hoje é Itacurubi o nome da cidade.
P/1 - Eles vieram, eles... Onde o senhor nasceu, eles já eram de lá ou tinham vindo de outras cidades?
R - Não, eles já eram de lá.
P/1 - E antes disso, os seus avós, por parte paterna ou materna, também eram de lá ou tinham se deslocado?
R - Não, eles eram imigrantes, eram... Tinha alemães e tinha italianos, que vieram na época da guerra para essa região - inclusive trocaram de nome, meu nome verdadeiro é... São outros nomes, o nome de... Aqui na região costumava se trocar de nome quando, na época da guerra, os imigrantes vinham. Eles trocavam de nome, adotavam o nome das famílias onde eles vinham residir.
P/1 - Falando um pouco sobre a sua família, eu gostaria de saber sobre o senhor, a respeito da sua infância. Quais eram os costumes, como funcionava a rotina da sua família quando o senhor era criança?
R - Era o costume normal aqui da região, que era agricultura. Era uma rotina diária de tratamento dos animais, lavoura, lavoura de fumo, e se passava os dias dessa forma, fazendo todo serviço desde criança. Com cinco, seis anos, já estava trabalhando lá. Todas as crianças eram assim.
P/1 - Então o senhor também trabalhava na lavoura junto com seus pais?
R - Sim.
P/1 - E como era essa rotina, vocês levantavam cedo, voltavam tarde?
R - É, sempre era... Como diz o ditado aqui, “no clarear do dia”. Às cinco horas da manhã já estavam todos de pé, levantados. Tratando dos animais primeiro, tirando leite, tomando café, para ir para roça, ir para lavoura. A partir daí, o almoço era quando o sol estava a pino -, a pino, que se diz, é bem no meio, bem no centro, esse era o relógio. Depois até às seis horas da tarde, por aí, e voltava para casa para o resto do serviço.
P/1 - Esse restante do serviço eram as tarefas domésticas?
R - Sim, era cuidar dos animais novamente. Tinha que separar as vacas dos terneiros para eles poderem tirar o leite no outro dia, cuidar dos cavalos, cuidar dos cabritos, ovelhas. Nove horas da noite, por aí, era a janta, e aí depois iam se recolher.
P/1 - O senhor tem irmãos?
R - Dois irmãos.
P/1 - Qual o nome deles?
R - É Antônio Claréu e o outro é Luís Carlos.
P/1 - O senhor é mais velho que eles?
R - Não, tem um mais velho. O Antônio é mais velho, o Luís é mais novo, e eu sou do meio.
P/1 - Como funcionava a sua infância em relação a brincadeiras, em relação às suas atividades como criança?
R - A brincadeira era um... Aqui na região existe, existia... Brinquedos eram difíceis no interior, mas tinha um ditado muito interessante que era “tropa de osso”. Era uma quantidade de osso tirada da canela dos animais e aí fazia que era uma tropa.
As crianças todas brincavam de situações que aconteciam aqui, e o sonho sempre era ter uma tropa, ter uma na série de bois no pasto. Esse era o sonho que se tinha, então você trabalhava com essas ideias de ser um fazendeiro sempre.
P/1 - O senhor tinha muitos amigos ou o local era um pouco isolado onde vocês moravam?
R - Era restrito, tinha poucos amigos. No domingo sempre vinham os primos, vinham outras pessoas, para fazer as brincadeiras. Tinha-se muito como fazer arte - não no sentido da arte, mas fazer sacanagem, brincadeira. Então ia para os rios, ia para brincar com os cavalos, correr carreira, essas coisas todas.
P/1 - Certo. E isso era então ainda na cidade onde o senhor nasceu?
R - Era no interior, na cidade de São Luiz. Era num local bem distante de qualquer... Inclusive, ainda hoje é distante, Itacurubi é longe de quase tudo.
P/1 - Até esse momento, então, o senhor não tinha nenhum contato com a cidade grande, digamos assim?
R - Não, não, não. A escola ficava a seis quilômetros da casa, eu ia a cavalo sempre na escola. E lá vários meninos iam a cavalo. Chegava lá, tinha uma mangueira; botava os cavalos na mangueira, ia para escola, depois pegava o cavalo e voltava.
P/1 - O senhor tinha algum sonho de infância? Algo como "eu gostaria de ser tal coisa quando crescesse"?
R - Fazendeiro. Eu achava que se eu tivesse, como diz o ditado gaúcho, uma coxilha cheia de bois, eu estava realizado. Depois o sonho passou, eu vi outras realidades.
P/1 - Então vamos falar um pouco sobre a escola. O senhor começou a estudar com quantos anos?
R- Com seis, que era o normal.
P/1 - Ah, era normal?
R - Era normal, seis anos ia pra escola.
P/1 - O senhor se lembra qual era o nome da escola?
R - A primeira escola era Escola Zona Sul.
P/1 - E o senhor disse que ia de cavalo, não é? Para a escola.
R - Sim.
P/1 - A escola ficava a seis quilômetros de distância. Ficava dentro da mesma cidade ou ela ficava...
R - Na mesma região. Essa escola antigamente era um frigorífico e eles adaptaram para uma escola. Era uma construção grande, mas era usado pouco espaço para escola. Eram uns cem alunos, mais ou menos. .
P/1 - O senhor ficou quantos anos nessa escola, ou mudou de escola depois?
R - Eu fiz o ensino... Ensino fundamental, naquela época era outro nome, não me lembro o nome agora. Estudava até a quinta série, fazia a admissão, não sei se tu já ouviu falar nisso.
P/1 - Sim, já.
R - O livro de admissão te levava para outra série - ou não, tu repetia, era como se fosse o vestibular. Aquele que passava na quinta série passava como se fosse para sexta, ele... Não era sexta série, mas que passasse, daí tu ia pro ensino... Pro segundo grau. Na época era segundo grau. Aí então tu cursava as outras séries, mas tinha que fazer o vestibular. Eu tenho até hoje o livro, o livro de admissão, que me ajudou muito. Até nos concursos me ajudou.
(PAUSA)
P/1 - O senhor se lembra como era essa escola, tem alguma recordação desse período?
R - A escola existe até hoje. Como eu te disse, era um frigorífico e a parte de cima foi adaptada para a escola. Ela permanece até hoje, desativada já, há muito tempo. As escolas do interior foram todas desativadas aqui na região.
Uns dois meses atrás ainda passei lá. A escola continua de pé. Abandonada.
P/1 - E o senhor tem alguma recordação específica, especial, de alguma coisa que aconteceu nessa época? De algum professor, de algo assim?
R - O que me aconteceu de mais relevante [foi] que eu tirei o primeiro lugar no [processo de] admissão e fui conhecer a praia, coisa que eu não conhecia. Imagina um menino do interior conhecer a praia numa situação daquela de que... Não faltava nada, mas ninguém tinha recurso para fazer viagem e coisas assim, nem era costume da região. Foi um evento fantástico, naquela época.
P/1 - E o senhor foi com outras pessoas da escola? Como foi essa viagem, conta um pouquinho para gente.
R - Não, isso aqui foi do Estado inteiro, então eles fizeram essa... Essa atividade, o governo do Estado que bancou essas viagens, por região. [De] cada região vinha, saía um ônibus e ia até Porto Alegre, até a praia. Lá na praia nós nos encontramos com muitos alunos de todo o Estado, que vinham das várias regiões.
Foi um evento muito interessante e muito integrativo. Nós conhecemos pessoas de outras regiões, conversamos, passamos três dias lá, então foi um evento muito significante na minha vida.
P/1 - E depois que o senhor fez esse exame de admissão, o senhor mudou de escola?
R - Sim. Aí nós vamos para a cidade de São Luís mesmo, porque eu tinha interesse em fazer técnico agrícola e nessa cidade tinha… Na minha cidade mesmo, só que era na cidade [e não na área rural] daí. Tinha uma escola agrícola, onde eu fiz o técnico agrícola.
P/1 - E o senhor tem alguma recordação relevante dessa época, dessa escola? Com quantos anos o senhor chegou lá, com quantos o senhor saiu?
R - Olha, pra mim foi um... Um divisor de águas, porque era uma escola técnica dirigida por alemães e a escola era muito rígida, não podia sair da escola. [As] atividades eram de manhã e a aula era à noite. Quer dizer, de dia tinha atividades, todas, que eu era acostumado a fazer: cuidar de animais, plantação. Já era acostumado a fazer, mas desde às sete da manhã até às sete da noite, era trabalho. E das oito até às onze horas era [a aula] Essa era a rotina, de segunda a domingo.
P/1 - E o senhor tinha quantos anos nessa época?
R - Nessa época que eu entrei na escola, eu tinha onze anos.
P/1 - E esse curso durou quantos anos?
R - Eu fiz três anos e meio de curso e fiz mais um estágio em outro Estado, no Paraná. O Paraná estava mais adiantado nesse quesito, nessa formação; eu fiz especialista em enxerto de mudas e lá era um estudo muito avançado. Eu fui para lá para me especializar em enxerto. Fiquei lá um ano e voltei.
P/1 - Nessa época que o senhor foi para o Paraná, o senhor tinha alojamento?
R - Era na escola, também interno. Era um convênio da minha escola com aquela escola de lá.
P/1 - Nesse caso, o senhor já tinha então essa definição na cabeça. O senhor queria realmente trabalhar com essa parte de agricultura, queria continuar com essa atividade que seus pais também tinham?
R - Sim. Sim.
P/1 - Depois que o senhor terminou esse curso, voltou para sua cidade. Quando foi que o senhor se mudou para Santo Ângelo? Foi algo mais tarde ou o senhor continuou na sua cidade por um bom tempo ainda?
R - Não, mais tarde.
Isso é um fato interessante que aconteceu e acontece ainda hoje, o filho que nessa região aqui…. Em São Paulo também é assim, eu conheço algumas coisas de São Paulo da área da agricultura. Quando o filho chega formado, os pais não deixam fazer o que ele aprendeu. Os pais dizem assim: "Não, se tu viveu até agora com o que eu faço, tu não precisa mudar. Tu vai mudar quando tu for o dono da terra." Quer dizer, muitas técnicas que vieram com o aprendizado não podem ser implementadas.
Isso aconteceu com centenas de jovens, aí os jovens foram para outros ares, foram buscar outras oportunidades. Tinham formação, conheciam que aquela técnica antiga já não dava mais certo - quer dizer, dava certo, mas podia ser melhorada, né?
Entrei no Exército, fiquei seis anos e aí fiz concurso. Não queria ficar no Exército mais, eu já vinha de um regime muito autoritário e cheguei no tempo da ditadura, era mais autoritário ainda. Não queria mais aquele regime, aí busquei concurso, fiz vários concursos. Passei no mesmo ano em três e escolhi a rede ferroviária para desenvolver minha carreira.
P/1 - Então foi dessa forma, o senhor permaneceu seis anos no Exército...
R - Eu estava no Exército ainda. Eu era fixo, era amparado, não precisava dar baixa no Exército. Eu fazia parte já do quadro, mas como eu não queria mais aquele regime, que na época era complicado, resolvi fazer concurso. Fiz os concursos, passei e saí do Exército.
P/1 - E em relação à atividade da sua adolescência? O senhor estava no Exército. Quais eram as outras atividades que o senhor tinha em relação a lazer, passeios, outras coisas que o senhor fizesse?
R - Quase sempre de interior, pescaria, essas coisas todas que aconteciam na região. Tinha alguns colegas lá que também gostavam da atividade - tiro esportivo, jogo de bocha, pescaria, essas coisas. .
P/1 - O senhor serviu o Exército em São Luiz Gonzaga mesmo?
R - São Luiz Gonzaga, só São Luiz. Fui transferido para Roraima, daí não... Quando eu fiz os concursos veio a transferência, daí não quis mais, saí.
P/1 - Vamos falar então um pouco sobre esse começo, essa sua entrada na rede ferroviária. O senhor se lembra mais ou menos em que ano que isso aconteceu?
R - Foi em 82. Eu fiz o concurso 80 e aí saiu outro. Eu fiz para três tipos de vagas, e como eu fui chamado em uma vaga que eu não queria, eu não assumi. Depois eu fiz de novo para a vaga que eu queria, que era maquinista, e aí assumi.
P/1 - E foi para qual cidade mesmo, foi para São Luiz Gonzaga mesmo?
R - Santo Ângelo.
P/1 - Aí o senhor se mudou pra Santo Ângelo?
R - Sim, me mudei pra Santo Ângelo e estou aqui até hoje.
P/1 - Explique como foi esse início de trabalho. Exatamente qual era o trabalho do maquinista, como era a sua rotina?
R - Como uma cidade intermediária, fica longe do porto, os trens passam basicamente a noite aqui. Durante o dia é o carregamento dos vagões, e como é só trem de carga aqui - de 82 pra cá é só trem de carga. Aqui na região as empresas carregam durante o dia, de noite são recolhidos os vagões e o trem vai ao destino. Quase todas as viagens aqui são à noite, por essa razão.
Saía daqui de Santo Ângelo, aí até Cruz Alta ou Passo Fundo. Ficava no alojamento e dali, conforme a escala, ia a Porto Alegre, a Rio Grande, ia a Bagé, Uruguaiana, Livramento, com a fronteira. Não tinha uma região definida ou uma rota definida. Tu estava no alojamento ou no hotel; conforme a necessidade te escalavam para tal região, tu tinha que ir. Às vezes ficava quinze dias viajando sem voltar em casa, às vezes voltava no outro dia. Era muito relativo, isso.
P/1 - Entendi. Então dependia do destino da carga, na verdade, pra onde o senhor ia?
R - É. Por exemplo, se tinha navio para carregar lá em Rio Grande, era um fluxo muito maior de trens, porque tinha que alimentar lá o porto, então os trens corriam mais para essa região. Quando carregava o navio, tinha que encher os armazéns.
Daí puxava-se arroz - conforme a época, as cargas são sazonais aqui. Elas têm um período certo para acontecer, tem as safras, então lá por maio pegava a safra de trigo... Não, de soja, e ela tem um fluxo muito maior de soja para exportação. Tem a soja paraguaia também, que sai pelo Brasil. A safra do Uruguai também sai. Alguma coisa da Argentina.
Todas essas cargas passam pela fronteira com bitolas diferentes, é claro. A Argentina tem uma bitola de um metro e quarenta, a nossa é um metro. E aí tá o teu transbordo ali, que passa na carga de um vagão para o outro e segue via Rio Grande.
P/1 - E me conta um pouco a respeito dessa função de maquinista. Pra gente, que não conhece bem, como funciona esse trabalho?
R - É como se fosse um motorista de caminhão. Com características diferentes, é lógico.
(PAUSA)
P/1 - Retomando a pergunta a respeito da sua atividade como maquinista, o senhor estava explicando como ela funciona.
R - O maquinista, para ter um bom desempenho, precisa conhecer a linha que ele está andando, porque a linha tem aclive, declive, tem acentuado, tem médio, tem situações de nível. Tudo isso tu tem que controlar, porque o trem tem uma velocidade média e isso tem que ter, tem que acontecer. Não pode andar a setenta [quilômetros por hora] e depois vinte; tem uma velocidade média para andar, até para poder ter um bom desempenho da economia de trilho, de rodas, [do] material rodante todo, você não tem muito desgaste nisso.
Primeiro tem que conhecer a linha, porque ele tem que andar dia de chuva, dia de sol, dia nublado, com cerração. Quem não conhece a região sempre tem que ir com um que conhece, porque tem muitas situações que não tem como controlar o trem se tu não conhece a linha. Às vezes tá descendo e um pouco [depois] já tá subindo, a linha.
O trem não tem como parar e andar no mesmo momento; ele tem que fazer a média de velocidade e uma média sempre constante, que é o previsto, que tem que fazer. De cidade tal a cidade tal o previsto é tanto, o previsto para fazer aquele trecho é de tantos minutos, tantas horas. Tem que obedecer a isso, porque com essa regra tem os cruzamentos. Quem está controlando tudo isso no painel sabe que aquele trem vai chegar tal hora em tal estação; ele pode cruzar o outro trem, porque na nossa região aqui, na maior parte do Brasil, é uma linha só. Não é uma que vai e outra que vem, é uma linha só e tem os cruzamentos nas estações. O controlador de tráfego, ele sabe que aquele trem deve chegar naquela hora, então ele prevê que o outro que vem em sentido contrário faça o cruzamento ali, por isso que tem as regras, os previstos todos para obedecer. O maquinista tem que fazer essas manobras todas de aceleração, de freio, para poder chegar no [tempo] previsto com segurança.
P/1 - Chegou a acontecer algum caso que devido às condições climáticas ou algo assim esse horário não conseguiu ser cumprido?
R - Ah, muitas vezes aconteceu por avaria, por problemas climáticos. Por exemplo, leva o aterro da linha, tem que ficar parado. Árvores caídas, pedras, barreiras de terra, isso aconteceu muitas vezes. E acidentes também, vários acidentes; os acidentes são diários na ferrovia.
P/1 - Nessas pausas que o senhor fazia, que o senhor ficava no alojamento e aguardava para saber para onde ia para sua próxima viagem... Nesses intervalos, o senhor tinha algum tipo de convivência, relação com os outros ferroviários? Algum tipo de atividade, algum tipo de reunião que vocês tivessem?
R - Sempre, em todas as cidades, polos onde tem alojamentos, sempre tinha associação. Eram várias atividades, cada cidade tem uma característica e cada cidade tem alguma atividade. Por exemplo, eu tinha futebol, tinha jogo de bocha, tinha praia, tinha...
Cada cidade… Tem cidades, por exemplo, como Santa Maria, que na região tem muito mais cultura. Porto Alegre, que é a capital… Quando a gente estava em Porto Alegre tinha muitas atividades. Quando era no interior também, eram coisas básicas: o futebol, o jogo de bocha, essas coisas todas.
P/1 - Eu queria que o senhor contasse algum caso específico - algum sufoco, digamos assim, que o senhor passou. Algum problema que o senhor teve e como isso foi contornado. O senhor tem algo assim para contar para a gente?
R - Olha, eu tenho uma situação que aconteceu numa serra aqui e essa serra desce quatro centímetros a cada metro, então tu imagina numa extensão de trinta quilômetros e o que desce isso. Para descer nessa serra o maquinista tem que fazer vários cursos, várias atividades para trabalhar com o freio, para poder fazer a descida toda com segurança.
A descida com segurança tem duas atividades: tem o frear, que se tu não controlar ele, ele termina e tu não tem mais feio, e o freio motor, que é o mais conhecido; se ele passar de 45, ele não atua mais. Nós estávamos descendo a serra e o rapaz que eu estava instruindo para descer a serra - eu já descia há muito tempo - se perdeu na colocação do freio, colocou feio demais. O trem começou a andar rápido, só que lá embaixo tinha cidade, e todo mundo sabia… O trem era de combustível, uns setenta vagões de combustível, então ia incendiar a cidade inteira.
Eu peguei de volta o comando e conseguimos parar a uns três quilômetros da cidade. Foi um susto muito grande, todas as habilidades que eu aprendi tive que colocar em prática e eu não sabia se ia dar certo ou não, foi um momento de muita tensão. Não é porque ia disparar o trem; não era isso, não é esse o problema, o problema era a cidade, com certeza ia incendiar metade da cidade.
A situação toda a gente nem dimensiona, nem sabe e nem imagina o que poderia ser. Nós imaginamos isso de uma situação que aconteceu, que eu não estava presente. Eu fiquei sabendo só por filmagens que foram feitas, de uma cidade onde houve uma coisa dessas e duas ou três vilas ao redor foram dizimadas, porque o trem era também de combustível e as pessoas começaram a levar o combustível para casa. Não aconteceu acidente com o trem; o trem parou, mas descarrilhou e as pessoas começaram a levar o combustível para casa. Aí se formou aquela nuvem de gás, alguém acendeu um cigarro e incendiou tudo.
Isso é uma coisa que muitas pessoas não conhecem, não sabem, o código de carga perigosa. Muita gente tá viajando e vê placa nos caminhões, vê placa nos trens e até aviões, e a gente não sabe ler a placa. A maioria das pessoas não sabe ler essa placa. É um produto químico que reage não só com fogo, mas com outro produto químico também: por exemplo, graxa com um gás é explosão na certa. [Se] o sujeito tá viajando e vendo que o caminhão de combustível, de gás, ou o de graxa está tombado, não pare perto, porque se tiver um vazamento, tendo teu carro tá feita a explosão. Mas isso só se sabe se estuda ou se você vive isso.
O treinamento de maquinista tem muito disso, de carga perigosa, que é a carga mais valiosa; com certeza a empresa ganha muito mais para transportar, mas é uma carga perigosa, tem que ter muita atenção. O que veio na mente foi exatamente aquilo que aconteceu no meu episódio, que aconteceu em Pojuca, na Bahia; foi um incêndio fantástico lá, morreram muitas pessoas, e eu pensando que poderia acontecer aquilo também na cidade que estava adormecida - as pessoas estavam dormindo, era de noite.
Foi um momento de mais tensão. Eu tive acidentes, muitos, mortes de acidente, mas nunca tive tanta tensão quanto nesse dia.
P/1 - E agora a gente vai passar para o inverso então: algum momento que você tenha passado que tenha sido engraçado, que tenha sido estranho, mas nada perigoso, na sua profissão.
R - Eu tenho. É só um momento muito particular meu, que não tem nada de... Acho que não tem nada de muito interessante, mas eu estava viajando numa região que é lá da fronteira. Às três horas da manhã nós trocamos a equipe que conduzia o trem, que era um trem de passageiro. Vamos no restaurante para jantar naquela hora e aí eu olhava assim a paisagem naquela… Na geada muito grande. Não chegava a ser neve, mas era uma geada, e como a terra ao lado era uma planície, então aquilo [ficava] tudo branco com a lua bem brilhante, a lua cheia.
Foi um momento que eu me lembro, [o] mais interessante em toda minha trajetória porque foi um momento único. É só naquela região que se tem isso, só naquela região que tinha a geada; tinha o gelo na vegetação rasteira e a lua emoldurando tudo aquilo. Sempre me lembrei disso.
Houve muitas situações, mas essa para mim foi a que mais me marcou. Porque em primeiro lugar, refeição quente às três horas da manhã, dificilmente vai arrumar. Um local aquecido também é difícil numa região dessas, e um cartão postal daqueles dificilmente tu vai achar. Eu viajei 25 anos e nunca mais encontrei uma situação, uma paisagem daquelas. O que eu me lembro mais é isso.
P/1 - Foi uma coincidência das três coisas ao mesmo tempo que acabou marcando?
R - Com certeza.
P/1 - Do momento que o senhor começou, no início da década de oitenta, a trabalhar como maquinista, quais foram as mudanças que foram acontecendo a respeito do seu trabalho - sejam técnicas ou qualquer tipo de mudança que aconteceu, que alterou o seu trabalho?
R - Nós tínhamos, nós formamos uma Associação Estadual dos Maquinistas aqui, que era para lutar por melhorias porque, como acontecia em muitas empresas e acho que acontece até hoje, a ponta, quem faz o trabalho, quase sempre é esquecido. Eu fui o presidente estadual dessa associação. Lutamos por melhorias, tanto em alojamentos, hotéis… Nós conseguimos fazer uma melhora muito grande em reforma de alojamentos, reforma de máquinas, contratar outros hotéis com melhor qualidade, porque na verdade a tua vida estava ali, em casa tu pouco parava, parava mais era em hotel e em alojamentos - e dentro das locomotivas, é lógico.
Tivemos um avanço fantástico ao longo de dez, doze anos, que foi uma luta mais ferrenha. Depois as coisas ficaram normais, até hoje. Como não tinha comunicação, foi colocado o GPS nas máquinas para poder ter uma comunicação mais fácil. Quando a própria empresa viu que isso era uma coisa boa, eles mesmos começaram a dar mais atenção para isso. Tinha um controle muito maior, a gente podia conversar com os outros maquinistas. Às vezes tu ia viajar à noite inteira, se tu tivesse os outros viajantes também, tu podia conversar com eles via GPS, com um teclado instalado dentro da locomotiva.
A partir daí começou toda uma modernização. Hoje em dia tudo é por satélite, não é mais... Antes era tudo com papel - chegava na estação, pegava licença, essas coisas todas. De uma época em diante começou tudo a se modernizar e ficar mais fácil. Tu tinha uma comunicação mais efetiva, e assim, um conhecimento do que estava acontecendo também em toda a região; se acontecia um fato qualquer, era noticiado ali pelo terminal e aí... Então tu começou a ter uma vida diferente. Antes parecia um ermitão, não sabia nada, viajando de noite como se fosse uma coisa escura.
Melhorou muito, e hoje a ferrovia funciona tudo com satélite, não é mais com... As estações todas terminaram, a atividade delas terminou, tanto que não tem mais estação funcionando. Hoje tudo é uma central e na central tem todas as ordens, as advertências; todas as atividades que serão feitas vêm para o terminal agora. Quando chega para fazer o teu serviço, tu já sabe: pega o teclado ali, pega a tua senha e aí já vê as instruções todas, tudo que tem que fazer. Antes não, tinha que revisar um papel dizendo o que tinha que fazer ou não; às vezes o papel não era bem o que tinha que fazer e aí dava confusão. Hoje não tem problema, se resolve a... O controle lá resolveu mudar, mudar o rumo do serviço; ele muda automaticamente, sem problema nenhum.
(PAUSA)
R - Eu acho que aqui, a minha trajetória na ferrovia se confunde com funcionário e com pesquisador também. Eu pesquisei muitas coisas que aconteceram na região aqui, porque a história da ferrovia nessa região tem uma importância muito grande - ao contrário de muitos centros, que foram desenvolvidos nas periferias, [com] a ferrovia na periferia, então tem poucas histórias. Mas aqui na região, desde a capital até o interior aqui, a ferrovia é o centro de tudo, era o centro de tudo.
(PAUSA)
P/1 - O senhor estava dizendo que houve uma evolução tecnológica, vocês recebem essas informações já de dentro do próprio trem.
R - Sim.
P/1 - Essas evoluções começaram a acontecer a partir de quando, da década de 90 para frente?
R – É, foi do tempo... É, de 90, de 95 para cá, começaram os primeiros ensaios, mas primeiro por uma pressão muito grande dos funcionários. Nós éramos quinhentos maquinistas que faziam parte da associação e aí começamos a pressionar, não só dentro da empresa, mas politicamente também. Sempre a administração da empresa era um político, era alguém indicado por um político. Quer dizer, é um cargo político; embora fossem funcionários, eles obedeciam, era uma empresa estatal.
A gente começou, aprendeu a fazer essa pressão, tanto dentro como de fora para dentro, e aí deu certo. Deu certo, mas de uma forma moderada.
Eu nunca fui do sindicato; embora tenha conhecido muitas pessoas, fizemos muita coisa juntos, mas eu nunca fui do sindicato, eu sempre fui da associação. Meu interesse não era político, eu não tinha interesse político nenhum, e o sindicato na maior parte tem interesse político, então... Mas nós fizemos muitas coisas juntos, greves e muitas situações que a gente fez junto com o sindicato. A gente tinha uma boa relação com eles, sem problema nenhum.
Isso tudo ajudou: o sindicato ajudando, a associação trabalhando, os funcionários pressionando. Houve uma mudança de comportamento muito interessante nessa época.
Depois, quando chegou a privatização, que era... A primeira foi aqui na Ferrovia Sul-Atlântico, que é a mesma empresa, só que mudou de nome. Depois vem a ALL, agora a Rumo, quer dizer, mudou. A tecnologia já veio junto com a empresa, daí eles... Não era uma pressão de funcionários, já era uma vontade da administração, que era economizar, os processos ficarem mais fáceis.
Muitos ferroviários reclamam, mas eu nunca achei muito ruim isso. Eu achei bom porque tu tinha uma comunicação mais adequada, mais transparente. Eu achei sempre bom, acho que a inovação sempre é uma coisa muito interessante, e necessária também.
Aquela pressão de funcionário, de política, quase acabou, porque a empresa veio com outras ideias. Com certeza os investidores querem resultado, então eles estão trabalhando para o resultado. O que aconteceu muito foi que [a empresa] fechou muitos ramais, porque eram antieconômicos. O Rio Grande do Sul, por exemplo, ele tinha superávit só em seis meses do ano, então quer dizer... Foram muitas mudanças, muitas mudanças.
P/1 - O senhor vivia viajando bastante, mas o senhor tinha morada específica em Santo Ângelo?
R - Em Santo Ângelo.
P/1 - E durante esse período, o senhor viu alguma modificação na cidade em relação à ferrovia? Quando o senhor começou já não tinha mais trem de passageiros, não é isso que o senhor tinha dito?
R - Não, tinha trem de passageiros. Aqui não tinha mais, mas a região em que eu viajava tinha o trem de Porto Alegre até a fronteira. Viajei muito lá, fiz muitos trens lá, mas aqui na região não tinha mais.
O que eu falei é que a ferrovia aqui na região quase sempre é no centro da cidade, porque é uma região de muitos rios, muitos banhados; essa região mais na fronteira [tem] muito banhado, e a ferrovia então foi fundamentada no desenvolvimento da cidade. Tanto que nós estamos falando aqui do lado do museu onde era a estação, e a linha ia até o centro da cidade, onde se instalaram as primeiras empresas aqui - coisa que eu fiz pesquisa, muitas pesquisas.
Toda a região aqui… Se nós formos até a capital, todas as cidades se criaram em torno da ferrovia. Não foi a ferrovia que veio para desenvolver a cidade, ela já veio para fixar a cidade; as pessoas iam se aglomerando ao longo da ferrovia e formando as vilas, as cidades. Hoje todos, se tu viajar de Santo... De São Luiz, por exemplo, que é um dos terminais, até Porto Alegre, [em] todas as cidades a ferrovia passa no meio, por essa razão.
Como não tinham estradas... Estradas tinham, mas não tinham pontes. Os rios nem sempre davam passagem porque tinha cheias, tinha problemas - no inverno, principalmente. Então a ferrovia, depois de 1922 em Santo Ângelo, foi a... Era o caminho onde traziam todos os insumos, tanto medicamentos quanto automóveis, toda a matéria prima que vinha do centro do país vinha pela ferrovia. Até o próprio Exército, quando se instalou aqui, era um nome militar, o acantonamento, que é um primeiro... É um acampamento, mas o nome que se dá a isso é acantonamento. Tem os registros, eu tenho alguns registros ainda aqui; os primeiros remédios que vieram para os militares, armas, carros, tudo veio pela ferrovia.
Isso não foi, não é comum [só] aqui em Santo Ângelo, como em todas as cidades do interior do Rio Grande do Sul pela razão que eu te falei - muitos rios, muitos banhados. A ferrovia foi fundamental.
Aqui em Santo Ângelo, as primeiras empresas que se instalaram aqui eram ao longo da ferrovia; era o frigorífico, eram serrarias, moinhos que se instalaram nessa região que a gente tá falando aqui, no centro da cidade. A partir daí então foi desenvolvendo a cidade; as pessoas iam chegando pelas mais diversas razões, os hotéis, era tudo ao redor da.... A rodoviária também era aqui.
Depois a cidade foi crescendo e a ferrovia foi sendo expulsa, aí foi para a periferia.
P/1 - E me conte um pouco sobre essa questão dessa pesquisa, que o senhor disse. Percebe-se que o senhor tem um conhecimento a respeito do desenvolvimento das linhas férreas, de como elas atuaram para o desenvolvimento das cidades do Estado do Rio Grande do Sul. Essa pesquisa foi algo que despertou no senhor durante o seu trabalho ou foi alguma coisa posterior?
R - Não, isso com a... Como nós trabalhávamos a ideia de melhorias, quando vai trabalhar uma melhoria tu tem que conhecer as realidades, conhecer a história, porque não se pode fazer uma mudança sem conhecer a história. Fica com se uma árvore não tivesse raiz, então vou conhecer a raiz, o que aconteceu, qual a importância que teve, qual o impacto que tinha.
A gente trabalhou muito em pesquisa, conversando com outros historiadores, de várias.. Como eu tinha facilidade em andar pelo Estado e até fora do Estado, eu tinha facilidade de fazer a pesquisa, porque tinha pessoas que tinham se mudado daqui, moravam na capital, em outros Estados. A gente fazia esse trabalho nas horas de folga, e muitas vezes viajava para isso também.
Como essa associação tinha delegacia em vários municípios, cada delegado fazia também a pesquisa da sua cidade para nós fazermos a apresentação disso, para a gente observar o que mudou, o que precisava mudar, para não ser simplesmente um funcionário, contribuir com o crescimento da empresa. A gente… Eu sempre pensei nessa ideia de que o capital e o trabalho têm que estar juntos, um ajudando o outro. Dentro dessa ótica, nós conhecemos a história primeiro para depois procurar as mudanças, e as mudanças aconteceram porque a gente conhecia a história.
Não vou te dizer que foi uma mudança muito significativa, mas para a nossa época, para as condições que tinha - e nessa época não tinha celular, o telefone era raro, as comunicações eram complicadas; na verdade, tu tinha que ir no local para conversar com as pessoas. Hoje não, hoje tu tá fazendo uma entrevista aí, né? (risos) De uma outra capital, sem problema nenhum, mas nessa época não tinha comunicação da forma que tem hoje. Era tudo magneto, o telefone tinha que pedir ligação para completar com outro, quer dizer, era complicado.
Quem vê essa história hoje nem imagina que aconteceu isso, mas acontecia. Eram poucas as casas que tinham telefone, era muito caro, e manutenção cara também. Era um público mais seleto que tinha as comunicações, não tão boas como são hoje, mas pelo menos tinha com quem falar. Para nós, por exemplo, às vezes acontecia de um trem ter uma avaria e tu ter que caminhar quilômetros para achar um telefone. Hoje nem se acredita mais nisso.
A gente pesquisou muito conversando com as pessoas que fizeram a história, que viveram a história, porque aqui na região tinha muitas pessoas nessa época. Pessoas já com idade, mas pessoas lúcidas, que fizeram a história da cidade... Não da cidade de Santo Ângelo, mas das cidades daqui, da região toda. A gente descobriu muitas coisas e usou todos esses argumentos e descobertas para melhorar a relação entre a ferrovia e a comunidade.
O trem sempre teve um romantismo, sempre teve uma coisa... Uma ideia de sucesso, de progresso. As comunidades pensam assim, pensaram assim, pelo menos, porque era quem trazia [o progresso]. Por exemplo, aqui na estação eu vi muitos relatos de jovens que estudavam na capital ou em Santa Maria e pegavam o trem para ir para lá, então deixavam as namoradas, ou quando chegavam recebiam as namoradas.
Nessa estação de Santo Ângelo tem uma história muito interessante: um senhor daqui inventou o primeiro jornal, que era um folhetim. Era só um bilhete dizendo que um rapaz gostava de tal moça ou coisa assim e se formou um jornal disso na estação de Santo Ângelo. O primeiro jornal foi aqui, foi [de] um filho do primeiro agente com o Léo Fetti, que era bem conhecido aqui, hoje é falecido. Tem muitas histórias desta natureza nas cidades aqui.
Imagina como tem muitas histórias na Estação da Luz em São Paulo, de viagens. As pessoas faziam viagem para o interior, voltavam do interior, iam estudar, iam trabalhar. E as famílias ficavam então, tinha um programa certo que as famílias iam para a estação esperar o trem que vinha, ou uma encomenda, uma pessoa querida, qualquer coisa assim. Tem muitas histórias e muitas pessoas que contaram [que] conheceram o namorado, a namorada, na estação, ou situações assim, de muitas coisas.
P/1 - E essa pesquisa toda vocês faziam por meio desta associação?
R - Da associação, isso.
P/1 - E aí baseados nisso, nesse conhecimento, vocês propunham as mudanças?
R - As mudanças que eram necessárias, que a gente entendia que seriam necessárias.
O início da ferrovia foi muito desgastante, com muitos acidentes, muitos problemas e isso passava despercebido. Um acidente a mais, um acidente a menos não fazia diferença, tinha bastante gente para trabalhar e a ferrovia tinha que seguir. Nessa época a gente começou a entender - não só os maquinistas, porque nós precisávamos de quem fazia a manutenção da linha também, mas não eram pessoas separadas, era um conjunto. Nós começamos a trabalhar isso, que todas as pessoas eram importantes. A partir disso, a gente começou a interagir com eles também e assim como nós cuidávamos deles, eles cuidavam de nós também.
Houve uma troca muito grande de associações; tinha outras associações também, tinha o pessoal de linha, pessoal de estação… Eles tinham reuniões também e nós começamos a participar todo mundo junto; antes não, o maquinista era separado, era como se fosse um diretor isolado, porque ele tinha o domínio. A gente começou a mudar isso, a gente começou a entender que isso não era o ideal. O ideal seria que a classe trabalhadora toda tivesse a mesma visão e todo trabalho para o mesmo objetivo, que era para andar o trem, não era uma pessoa mais importante do que a outra. Isso foi compreendido pelo grupo.
Não é uma coisa assim… Como eu te falei, nunca fui do sindicato, nunca gostei de atuar em sindicato, mas de ser associativo mesmo, como nós temos aqui na região. Como eu tô falando de história, o maior exemplo de cooperativa que nós temos aqui é dos nossos índios, que trabalhavam em sistema cooperativo. Muitas ideias disso são dos primórdios mesmo. Como nós temos uma redução aqui, indígena, eles trabalhavam todos para o bem comum, e isso não precisa estudar na Europa, em outros lugares. A gente tem aqui esse exemplo aqui, todos trabalharam para todos, o que era colhido todos comiam, o que era plantado todos trabalharam para... Cada um tinha a sua atividade dentro do processo cooperativo. A gente começou a tirar dessa ideia, que é uma ideia muito rica aqui, e levou para a ferrovia isso. Quer dizer, se nós tivermos um pensamento dessa forma, vamos chegar num objetivo bem mais rápido e bem mais objetivo também.
P/1 - Voltando um pouquinho nessa questão que o senhor disse a respeito das coisas que aconteciam no ambiente ferroviário, de você esperar uma pessoa que está chegando, de pessoas irem para outras cidades, o senhor conheceu alguma história ou aconteceu com o senhor alguma história de pessoas que se conheceram por causa da estação do trem ou na estação dos trens? Casamento, namoro ou coisas que aconteceram por causa do trem, o senhor conhece alguém que teve isso?
R - Ah, tem muitas histórias. Essa é a parte mais bonita da coisa, porque tu faz o trabalho, o trabalho simplesmente tem que desenvolver de toda forma possível e tudo bem. Mas nessas histórias que fizeram parte da pesquisa teve muitos encontros e desencontros, pessoas que foram e não voltaram mais e pessoas que chegaram e tiveram situações.
Nós tivemos aqui mesmo, na estação, tinha... São histórias contadas, eu não vivi isso, mas as pessoas que... Por exemplo, o rapaz ia estudar na capital e quando voltava tinha duas namoradas esperando. Isso acontecia também, já dava problema aí. Aqui teve vários casos [em] que isso aconteceu. As pessoas, hoje… Agora são pessoas que se conhecem, que se dão bem, mas contam a história, que estavam as duas moças esperando - e não foi uma vez, foram várias. Tinha-se [a] ideia que o rapaz ia ser doutor, engenheiro, militar ou o que quer que seja, então era uma pessoa preferida por muitas moças - ou moços também, a mesma... Não que o gênero seja problema. Muitos rapazes que a moça ia estudar também e queriam namorar ela por causa da situação dela. Isso aconteceu muitas vezes aqui, mas o mais comum era o rapaz ir. As famílias não deixavam muito as moças saírem, era uma percentagem pequena de moças que saíam para estudar nesta época das pesquisas - para lá de 1930, 30 e poucos aí, 40.
Como teve trem até 78, aí inverteu muita coisa, mas acontecia da mesma forma na minha região, quando eu estava em São Luiz. Tinha estação lá, tinha trem lá. Às cinco horas da tarde era a hora da chegada do trem, então eles ali se aglomeravam, trezentas, quatrocentas pessoas, pelos mais diversos motivos. E essa situação acontecia muito, é o que mais acontecia.
P/1 - E o senhor conhece alguma [história] especifica que possa contar para a gente, de alguém próximo? Não precisa citar nomes, não tem problema, mas alguma que o senhor conheça.
R - Ah, eu conheço uma situação aqui, que os familiares dele estão aqui ainda.
O rapaz tinha uma característica, que era usar dois anéis. Deu um problema porque desceram dois rapazes com dois anéis e a moça não [o] conhecia, a moça conhecia de ouvir falar. As gurias, as outras moças falaram para ela que o fulano que gostava dela tinha dois anéis. (risos) Ela estava esperando o trem para o rapaz descer, e ela imaginava como fosse o rapaz, só que desceram dois e ela não pôde falar com nenhum porque não sabia qual era.
Depois que o rapaz chegou em casa e ela voltou para casa, ela ficou sabendo quem era o rapaz. Ele disse que viu ela, que já conhecia ela. Começaram a conversar, mas na hora da espera ali ela não pôde conversar com ele porque desceu dois rapazes com dois anéis, que era uma coisa comum aqui.
Nós tínhamos um maquinista aqui que usava cinco anéis. É bem interessante a história dele: ele mandava comprar com o anel. Se mandasse o anel dele lá no mercado, no bar, eles mandavam o que ele queria só com o anel. É coisa comum isso das pessoas andarem com três, quatro anéis de ouro nessa região aqui, mas eu fixei bastante essa questão dos anéis por esse assunto, por essa situação que ocorreu.
Eu conversei com eles. Depois eles se casaram e eu conversei com o casal. Conversei com a outra moça também, que era amiga dela, e o outro moço que tinha os dois anéis também. São empresários aqui. Mas houve uma confusão ali (risos), um problema, que é uma coisa pitoresca, um pouco diferente do que acontecia.
O que mais acontecia aqui em Santo Ângelo que eu tenho conhecimento é a questão, porque nessa época um rapaz conversar com uma moça não era tão fácil assim como é hoje, né? (risos) Os rapazes tinham que pedir para namorar ou para visitar a moça, essas coisas todas, não era tão fácil assim, então acontecia muito do folhetim fazer tipo um telegrama - não sei se você se lembra do telegrama ou se as pessoas se lembram o que é telegrama, mas [era] um folhetim, então ele tinha já um textinho pronto. Ele botava o nome e mandava para entregar para moça, e tinha um rapazinho ali que sempre entregava os bilhetes. Umas botavam fora, rasgavam, outras guardavam e seguia ou não [com] a situação. Mas isso era bem comum aqui, em toda a região era bem comum.
P/1 - Agora eu vou passar um pouquinho para uma parte mais pessoal, um pouco mais distante dessa questão da ferrovia. O senhor me disse que o senhor é casado. Como o senhor conheceu sua esposa nessa vida de tantas viagens, como isso aconteceu?
R - Não, eu conheci ela em São Luiz mesmo, no tempo que eu estava no Exército. Quando ela veio para cá já era casado.
Eu conheci ela acho que foi num baile, até. Começou um namoro e faz quarenta anos que eu sou casado com ela.
P/1 - Ah, certo. Então o senhor se casou antes de ser ferroviário?
R - Sim, sim. Casei em São Luiz mesmo, no tempo do Exército ainda. Nós estávamos para ir embora, para ir para Roraima nessa época. Eu ia casar antes de ir embora, porque depois era muito longe.
Roraima, nessa época - 79, por aí - era um estado em construção ainda. Ele tinha sido emancipado de uma região lá, e se construiu, se concebeu o estado de Roraima. O Exército estava acampado, se formou um batalhão e eu fui designado para lá - ou para Brasília ou para lá, daí eu optei por Roraima. Mas como eu não estava muito a fim de ficar ali, eu tinha feito alguns concursos. Fiz de novo e passei. Passei no Banrisul aqui, no banco do estado, no INSS e na ferrovia, e escolhi a ferrovia.
P/1 - E qual o nome da sua esposa?
R - Noemi.
P/1 - Vocês têm filhos?
R - Três filhas. Três filhas e três netos agora.
P/1 - Qual o nome das suas filhas?
R - Elise, Thaís e Milena.
P/1 - O senhor já tem netos, então?
R - Sim, sim. A Gabriela, o João e o Samuel.
P/1 - Suas filhas moram também em Santo Ângelo?
R - Duas moram. Uma mora em Santa Maria, é no outro polo ferroviário.
P/1 - O senhor se aposentou quando do seu trabalho como ferroviário?
R - Eu me aposentei em 2002. Deu os 25 [anos], eu já tinha um tempo, aí saí porque estava muito... A nova empresa que administra agora a ferrovia tem um sistema de levar os funcionários para outras regiões, e aí era pra ficar muito tempo fora. E eu já estava, não estava muito criança, aí achei melhor encerrar a carreira e fui trabalhar com outras coisas. Eu me aposentei, lógico, tinha que me aposentar primeiro; me aposentei e aí saí.
P/1 - E qual é a sua atividade atual? O senhor tinha falado sobre recuperação de dependentes químicos?
R - Isso. Eu atuo numa ONG aqui há 21 anos. Lá pelos 2000, mais ou menos, eu estava na ferrovia ainda, eu já atuava nessa ONG.
Houve uma mudança na legislação, que tinha que fazer muitos cursos, aí eu comecei a fazer cursos para me tornar especialista nisso. Fiz umas mil e poucas horas de curso e aí eu tô até hoje. Eu comecei lá para ajudar, um mandato só, e tô até hoje.
Depois que tu começa a estudar isso, os transtornos todos - a dependência química é nada mais, nada menos que um transtorno, como muitas pessoas têm. Dizem que 78% da população tem transtorno leve, grave ou moderado. Então isso faz parte de um grande conjunto de coisas da saúde mental.
Tem muito que estudar isso, cada dia te apresenta uma coisa nova, uma droga nova, uma situação nova, de comportamento. A gente tem que analisar tudo para poder ter um bom trabalho. Nós temos uma grande equipe aqui: médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas e especialistas também. O especialista, no meu caso, é alguém que não teve uma faculdade, mas fez pós, fez... Na área de dependência química, então tem o nome de especialista. Se eu tivesse faculdade seria para graduado ou doutorado, coisa assim qualquer, mas eu estudei isso tudo nesses 21 anos e continuei estudando, porque isso muda, não é uma coisa fixa. O transtorno acontece com toda a sociedade, com todas as camadas, isso é uma coisa muito interessante.
Sempre gostei da inovação. Para mim é uma coisa boa, tem que estar sempre se atualizando. Tem pessoas que falam de dependência química de livros escritos há dez anos. Isso não existe mais, já acabou; são teorias ultrapassadas, não tem mais que buscar elas. Tem como os primórdios, como a raiz, como a gente sempre diz, mas tem que estudar. Qualquer coisa que tu vai estudar, primeiro tem que ver de onde que veio, o que aconteceu - como foi criado, como foi feito, como faziam, como é feito hoje e o que a gente pode mudar.
É isso que sempre me trouxe… Quando me perguntam o que é bom para se manter vivo, é ter um planejamento na cabeça. Tu tem que ter uma ideia na cabeça na cabeça sempre, e umas duas de reserva. Se tiver alguma coisa em andamento e umas duas ideia de reserva, tu tá sempre vivo, senão fica apático. Eu tenho muitos colegas que já morreram há muito tempo porque não quiseram fazer mais nada; se aposentaram, ganham mais ou menos e [dizem]: "Vou curtir a aposentadoria." Mas não é desse jeito, não é dessa forma. A aposentadoria é só uma situação que tu tem. Se aprendeu alguma coisa, é bom que tu passe um pouco disso para os outros também. Essa é a verdadeira vida.
P/1 - E qual é a atuação do senhor nessa ONG, exatamente com que o senhor lida? Como especialista?
R - Eu trabalho mais com a parte externa. Eu sou presidente da entidade, sempre fui presidente ou vice-presidente. [Quando] tenho muito tempo de presidente, largo pra outro vice que já foi, até para eles irem aprendendo, e vou ensinando pessoas. Agora eu tô me preparando para parar com essa atividade e começar outra.
(PAUSA)
P/1 - Retornando, o senhor estava falando que senhor é presidente e qual o trabalho que faz nessa ONG.
R - O meu trabalho sempre é de buscar situações novas, buscar conhecimento novo, e a parte da administração mesmo. Faço a política externa da entidade, mas nos treinamentos. Como já tive muita experiência dentro da entidade, eu sempre busco pessoas novas para ensinar.
Se tu pegar uma menina nova da faculdade, ou um menino, tanto faz, eles vêm com a teoria, mas o conhecimento mesmo, profundo, eles não têm, então tem que ter um acompanhamento sempre. Nós temos três ou quatro pessoas que fazem isso, o acompanhamento das atividades para trabalhar a filosofia da entidade, que é em primeiro lugar o acolhimento. Se não tiver um bom acolhimento, [não] tiver uma instalação adequada, uma conversa adequada, tu não trata ninguém, é um faz de conta.
A parte medicamentosa, a parte de terapias, essas obedecem protocolo, que não nós não temos como interferir, mas a parte da assistência social é a parte mais importante que tem, em qualquer doença. Se tiver um bom acolhimento, se for bem atendido tu vai ter um resultado muito melhor.
O fundamento da comunidade terapêutica, do trabalho social em dependência química, ele nasceu assim. Eram dois médicos que colocaram numa enfermaria um grupo de pessoas e elas viram que quando as pessoas interagiam entre si melhoravam mais do que as isoladas. Quem faz o tratamento de fato não é o técnico, são as próprias pessoas, as que convivem junto porque têm as mesmas dores, os mesmos problemas, e conseguem dividir.
Os técnicos só fazem dar os tópicos para as discussões, trazer o assunto, só que um dependente químico que está internado já tem uma caminhada de cinco ou seis anos, no mínimo. Ele tem uma vida já muito avançada e conhece muitas coisas, até porque tem que se defender de muitas coisas. Em primeiro lugar, ele tem que se defender da família não saber, isso é a primeira coisa. Quer dizer, ele consegue ser uma pessoa que guarda segredo. Ele é uma pessoa que vê, ele enxerga qualquer situação nos detalhes - os homens, por exemplo, são complicados para isso, para enxergar detalhes; as mulheres enxergam mais.
É um conhecimento todo que tu tem que ter para poder conversar com alguém, é o mesmo que ir conversar com uma pessoa que é pós-graduada no assunto e querer discutir com ela. Tu que tem que saber discutir com ela, tem que saber o que tá acontecendo, senão vai passar vergonha. (risos) Vai discutir o que se não sabe?
Esse é um dos meus papéis, um deles. É fazer essa integração entre o conhecimento técnico e a realidade, e a realidade, com certeza, tem muito mais coisa a ensinar do que a técnica. Claro, depois que o técnico pega o jeito ele começa a funcionar diferente. O meu papel é muito mais nesse sentido de organização e de inovação, de buscar novas tecnologias para o trabalho também poder andar, não ficar parado no tempo. Sempre foi de meu interesse isso, de buscar sempre a inovação. Desde criança, sempre fui assim.
P/1 - E qual é o nome dessa ONG?
R - SOS Vida. É um nome fantasia, é um centro de reabilitação, mas o nome conhecido é SOS Vida.
P/1 - Certo. Senhor Ricardo, a gente vai encaminhando para o encerramento. Gostaria de saber quais são os sonhos que o senhor tem atualmente para o seu futuro.
R - Olha, os sonhos são muitos. Como eu lido com a realidade mais... Como eu vou te dizer, mais complicada da sociedade… A hipocrisia, o faz-de-conta é que faz muito mal para a sociedade, então para mim o sonho que eu tenho e que eu não vou deixar nunca de sonhar é que as pessoas se aceitem como elas são. Porque quando a gente se aceita como a gente é, a gente vive feliz. Quando a gente não aceita o que a gente é, a gente jamais será feliz, porque a gente se espelha nos outros, e os outros são os outros; cada uma tem a sua realidade, a sua vontade, seus desejos, as suas histórias, os seus fracassos, as suas vitórias. E não tem por que eu querer me comparar contigo ou com qualquer outra pessoa, cada um de nós é uma pessoa diferente. A partir do momento que eu aceitar isso, eu tô bem.
Às vezes os pais não aceitam os filhos, os filhos não aceitam os pais, o marido não aceita a mulher, a mulher não aceita o marido. Tanto é que a gente tá vendo nessa pandemia quantas separações teve aí. É porque a sociedade é assim, ela se move assim.
Para mim, enquanto eu estiver vivo, se eu puder fazer alguma coisa para que esse assunto se esclareça… Porque dentro do que eu planejei para minha vida, eu já consegui tudo. Os sonhos que eu tinha já consegui; eram pequenos, eram poucos sonhos, mas já consegui. Nunca tive problema, nunca tive falta de nada, materialmente eu consegui tudo; a questão de buscar o bem-estar dos outros, isso nunca vai chegar ao fim, sempre vai ter o que fazer.
É uma utopia, mas eu acredito nisso. Isso para mim é o mais importante da vida, porque as coisas que eu tenho, eu não vou levar nada, vai ficar tudo aí para os outros brigarem ainda. Se eu conseguir alcançar o copo d'água para alguém ou dar uma palavra amiga para alguém, tá ótimo. Porque ajudar não é só dar dinheiro, dar casa, dar terra, isso não é ajudar. Ajudar enquanto você se importa com as pessoas, tem que se importar com as pessoas. As pessoas precisam ser amadas, aí termina o problema, e amar uma pessoa não precisa ser... Dar nada de coisas, é só um gesto. Quer dizer, qualquer pessoa pode ajudar.
P/1 - O senhor citou essa questão da pandemia. Era justamente a pergunta que eu ia fazer: como está sendo isso para o senhor e para sua família? O que isso alterou na sua rotina, nas coisas que podia fazer e não está podendo fazer?
R - Na minha rotina não alterou nada, porque eu não tenho medo disso. Claro, eu me cuido, lógico, eu já tenho 61 anos então tenho que me cuidar. Mas eu não... Eu não tenho, eu não penso nisso, embora me cuide, é lógico. Todos os protocolos que a saúde implementa eu faço, obedeço, mas tem coisas, as coisas continuam acontecendo.
Não é só isso, isso é uma parcela da vida, é simplesmente um momento. Embora ela seja contínua e progressiva, ela é uma parte da nossa vida, a vida tem que continuar. Lógico que tem que tomar cuidado, lógico que tem que ter distanciamento, essas coisas; eu acredito nisso, eu acredito na ciência, sempre acreditei. Mas as pessoas também não podem ficar enclausuradas dentro de casa achando que o mundo acabou, que não precisam fazer mais as coisas; não precisa mais trabalhar, não precisa mais fazer nada. Não é dessa forma.
Se nós ficarmos em casa, enclausurados, aí nós vamos ter problema porque as coisas não vão acontecer. Tem muita gente trabalhando: tem médico, tem enfermeiro, tem polícia, tem bombeiro, tem os hospitais todos. Tem muita gente trabalhando e se cuidando, mas tá trabalhando.
P/1 - Entendi. E quais são as coisas mais importantes para o senhor hoje em dia?
R - O mais importante para mim, como eu te disse, é na área afetiva. O mais importante para mim hoje é ver que tu conseguiu ajudar alguém. E quanto mais maduro eu vou ficando, mais eu vou acreditando nisso. Tem pessoas que têm necessidade, muitas pessoas têm necessidade de... Até de ter uma pequena conversa. E aquilo satisfaz, porque dentro da área que eu trabalho, na área de saúde mental, tem a depressão, e a depressão nada mais é do que o abandono de muitas coisas. Claro que não é só isso, na depressão tem várias faces, tem medicamentosa, tem clínica, mas como eu te disse no início, o acolhimento faz toda a diferença.
Acontece muito com pessoas que dão conselhos ou trabalham nessa área de aconselhamento. Elas querem dar conselho e a gente não dá conselho para ninguém. A gente tem que ouvir, porque as verdades estão com as pessoas, não estão comigo. A tua verdade está contigo e a minha está comigo.
Quem é que tem resposta para as tuas verdades? Tu mesmo. Eu tenho para as minhas. Só que eu tenho que saber estimular a ti, ou a qualquer outra pessoa, para que ela tenha, que ela entenda a sua resposta mesmo.
(PAUSA)
P/1 - O senhor estava falando então a respeito dessa questão, de esperar coisas das pessoas, e disso não ser uma coisa positiva para si mesmo.
R - Eu fiz esse paralelo, que não tem nada a ver com a ferrovia e tem, porque como eu viajei muito tempo sozinho - doze, quatorze, quinze, dezesseis horas - então eu tinha muito tempo para pensar. Sempre tive essa ideia de novos projetos, de inovação, então quando eu via o assunto eu tinha tempo de pensar. As pessoas hoje não têm tempo de pensar, porque é muita correria, muita coisa que acontece durante o dia, mas como eu tinha tempo de pensar nessa situação toda, isso também vem da ferrovia.
Aprendi também com a ferrovia a ter a tranquilidade de esperar para dar resposta. De não dar a resposta imediatamente, a não ser com uma pergunta. Se a pessoa te pergunta uma coisa imediatamente, tu faz outra pergunta; tu não tem formatado na cabeça ainda o que a pessoa quer saber. Muitas pessoas perguntam para ti querendo a resposta que elas querem que tu dê. E conforme a tua resposta, tu pode estar fazendo um estrago muito grande, então o bom é pensar primeiro. Pergunta de novo, responde, pergunta com outra pergunta, até que tu processe aquilo. Só que isso tem que aprender a fazer e eu aprendi isso na ferrovia, com o tempo tanto ocioso quanto trabalhando. Ali dentro da cabine não tem muito o que fazer, a não ser acelerar, frear, observar, mas pensar pode pensar junto, sem problema nenhum.
Às vezes ficava até quatro... Pensando num assunto, para eu poder discernir o que era interessante daquilo, o que agregava aquilo, o que ia dar resultado, o que ia acontecer com aquilo. Eu fiz esse paralelo de uma atividade que eu tenho hoje, mas ela vem de situações e de momentos que eu vivi na ferrovia. Se eu tivesse uma outra atividade, eu acho que eu não pensaria assim.
P/1 - O senhor acredita então que essa questão do... Digamos assim, que um certo isolamento, de falta de comunicação que o senhor tinha durante esses trajetos, dava espaço para o senhor pensar e ter a paciência de esperar, de não dar respostas prontas?
R - Sim. Vem muito disso, porque imagina, não tinha telefone, não tinha GPS, não tinha nada. Ia fazer o quê? Ou não pensar em nada ou pensar em alguma coisa, né? Então eu optei por pensar nos assuntos que estavam à disposição, ou que estavam para ser resolvidos, ou que estavam para ser implementados.
Como eu tinha bastante tempo, eu podia analisar várias vezes o mesmo assunto, que é o que eu acho que não acontece hoje, as pessoas dão a resposta conforme está o dia delas. Depois se arrependem, ou não dão a resposta correta, e respostas mesmo quase não existem - como eu te disse, a resposta tá com a pessoa que te pergunta. E ela sabe da realidade, todas as pessoas sabem da realidade. Ela sabe das suas verdades, das suas fraquezas, dos seus problemas. As pessoas sabem, só que elas querem dividir com alguém, para esse alguém ser o culpado da situação.
A gente tem que pensar, tem que analisar. Se não analisar, dá respostas que não vão chegar a lugar nenhum. Foi uma coisa que eu aprendi na ferrovia e que coloco em prática na minha vida. Até em briga em casa com a mulher, se ela fica brava, eu fico quieto, não falo nada. Daqui a pouco ela não tá mais brava. (risos) Então é assim que funciona a coisa. Se dois bravos discutem, no que é que vai dar? Vai dar problema.
Tem que aprender a fazer, tem que aprender a ficar quieto. Embora as pessoas achem que tá perdendo - não estão perdendo, estão ganhando - ou [que] é covardia... Aqui na região tem muito disso. “O cara é covarde." Não é, não é covarde. As respostas certas têm que dar na hora certa, não aceitar qualquer coisa, mas também tem que saber o que dizer.
Acho que isso é maturidade, para mim é maturidade. Foi uma coisa que eu aprendi na ferrovia, trouxe para minha vida e assim tento passar para os outros também. Não que seja a melhor coisa, mas eu acredito que seja.
P/1 - A questão do tempo, então, de aguardar um pouco para dar a resposta certa.
R - 90% dos nossos medos não acontecem. Mais de 90, mas vamos botar 90% daquilo que tu tem medo não acontece. O que é isso? Claro que o medo é bom, é bom ter medo, mas ele não acontece. Às vezes tu deixa de ir, de fazer uma coisa que queria fazer por medo. Ele não vai acontecer. Pode acontecer, mas dificilmente acontece.
Tem que ter, tem que saber… Tem que ter uma certa... Atitude. Por exemplo, voltando para o maquinista, se ele tiver medo ele não anda, porque vai passar o carro, vai passar o caminhão, vai passar outro trem, vai passar uma pessoa, vai passar um animal, a linha tá quebrada, não sei o quê… Não, não pode pensar nisso. Tem que saber que tu tá na linha e que vai chegar em tal objetivo e pronto. Quem estiver na frente, fazer o quê? O que dá para fazer vai fazer, mas tu tem que chegar. E não é uma viagem, são milhares de viagens, passando por cidades, então tu tem que ter uma linha de atuação.
Acho que a nossa vida também é assim. Você tem que ter uma vontade, uma linha de atuação, e seguir por ela, porque aquilo tudo que tu tem medo não vai acontecer. Mas claro que sempre com a razão, nunca a emoção, porque a razão te traz a realidade. Emoção é bom, tem seus desdobramentos, mas a realidade é uma coisa bem diferente da emoção, tanto na fala quanto nas ações. E isso aprendi lá.
P/1 - Então o senhor acabou levando esse aprendizado também para outras atuações, para sua vida em geral?
R - Com certeza, eu não era assim. Eu não pensava assim. Como eu fui criado num ambiente muito hostil… Desde muito novo eu fui para colégio interno, com sistema muito rígido, então eu vejo a dificuldade que se tinha de... Eu queria a resposta imediata, queria ação imediata, queria que as coisas acontecessem ontem. E na ferrovia eu aprendi que não é desse jeito. Não se chega quando você quer, é quando precisa chegar. Vamos chegar a tal hora; se não der pra chegar tal hora, chega na outra hora, não tem problema nenhum. Não dá para chegar hoje, chega amanhã. Se não puder ir, não vai. Não tem problema, não dá problema nenhum. Desde que tu tenha objetivo, que esteja trabalhando para que aquilo aconteça, mas se não acontecer, não é o fim do mundo. Isso eu aprendi lá, tive que aprender na marra, porque não tinha como fazer acelerar o trem para chegar mais rápido.
"Ah, vamos." Tu estava indo muito bem. "Vamos parar uma hora agora na estação tal para cruzar outro trem." Tem que parar, problema nenhum. Deu uma hora, continua de novo. Tem gente que pega a estrada e quer passar por cima de tudo que é carro, dali a pouco tu vê ele virado na frente. Passou mesmo, tendo que passar por cima dele. Isso acontece em todos os sentidos da vida.
Tu quer fazer loucuras, para quê? Para chegar onde? Chegar a lugar nenhum, ou se chegar, chega dois minutos na frente. Tu tem uma viagem para fazer e ela é de cinco horas. "Eu fiz em quatro horas e meia", mas quase se matou correndo, e o outro fez em cinco horas e vinte, cinco horas e meia, e foi bem tranquilo, foi observando, foi conversando. É assim que funciona. Mas tu só aprende vivendo, se não for vivendo não aprende.
P/1 - Bom, então a gente vai encerrar a sua entrevista. Vou fazer a última pergunta: como foi para o senhor a experiência de ser entrevistado pela gente, de contar não só a sua história profissional junto à ferrovia, mas também a história da sua vida, pra gente?
R - É, eu não... Não é uma história com muitos detalhes, mas eu acho que a história de qualquer pessoa sempre impacta na vida de outras pessoas. Às vezes uma palavra só dita - não todo o contexto da entrevista, mas uma palavra dita - impacta algumas pessoas. Tu pode dizer cem palavras, mas uma palavra vai impactar alguém, vai incentivar alguém, vai levar um conhecimento que ela não tinha, de uma realidade que ela não viveu, e isso é a coisa mais importante que tem.
Com certeza a minha história não vai impactar em nada no todo, mas um detalhe qualquer que alguém observar vai poder ajudar alguém. Ou simplesmente ele [vai] dizer que aquilo não valeu nada, mas ele já interagiu com a entrevista, e isso é importante - os pontos de vista contrários, as divergências, isso é tudo bom, tudo tranquilo, tudo certo.
Eu agradeço a vocês pela entrevista. Acho que vocês estão dando um tempo para muitas coisas acontecerem, porque esse país é muito grande. São culturas diferentes, são situações diferentes, mas alguém que vai ver essa entrevista vai concordar comigo em alguns aspectos, então para mim já valeu. E estou à disposição se vocês precisarem de alguma coisa mais, ou quiserem ouvir alguma história mais, porque história tem muitas. Às vezes, contada imediatamente assim, é poupada de muitos detalhes que são mais impactantes, mas foi bom, foi ótimo participar da entrevista.
P/1 - Certo. E tem alguma coisa que o senhor queira comentar que eu não perguntei?
R - Eu acho que a ferrovia em si é uma situação que está ocorrendo no país hoje, que é pouco relevante para muitas pessoas. Se nós déssemos mais importância para a ferrovia… Não é no sentido de saudosismo e coisa assim, é que ela consegue alcançar detalhes, situações no transporte, que são únicos. Se tu viajar de avião, não tem assim uma... Nem uma dimensão do que é, porque tu levanta e já desce. Tu viaja de navio, é uma imensidão, o navio não interage com ninguém. E a ferrovia interage com todo mundo. É impactante isso, porque ela trabalha com o pessoal da cooperativa, trabalha com o pessoal da cidade, trabalha com as pessoas das rodovias. Ela interage com toda a sociedade, por isso que ela é uma coisa… Parece uma magia, uma mágica isso, pois qualquer outro transporte que tem no país não interage com ninguém, e todo mundo sabe o que é o trem, todo mundo sabe para que serve o trem. Isso é a coisa mais importante a ser divulgada.
Se nós tivéssemos um modal ferroviário mais... Com mais ênfase, com mais investimentos, nós teríamos uma diminuição em muitos índices de violência, de acidentes, de gasto de energia, de tudo. E seria um meio de transporte muito... Com a visão de futuro. Eu acho que a coisa mais importante que tem disso é trabalhar para que a ferrovia melhore os seus índices, melhore suas ferrovias, melhore a sua qualidade.
Aquele saudosismo ficou para trás, aquilo não muda mais, não é mais como antigamente, mas a ferrovia tem um papel fundamental. Ela tinha 22% da capacidade de carga; hoje eu não sei como é que ela está, mas eu gostaria de ver no mínimo 50%, de tão relevante que ela é. A gente tem que trabalhar bastante, dar conhecimento disso. Claro que usar mais que são antieconômicos não vai funcionar, mas funcionando nos grandes movimentos de carga, onde tem grande movimento de carga, como fronteira, a capital, ao centro do país, os portos; isso é fundamental para que o país cresça. Eu gostaria de ver no mínimo 50%, porque ela tem essa identidade com a comunidade.
É muita vontade que as pessoas têm que o trem volte, que o trem interaja de novo, por todas essas que nós conversamos e por mais razões ainda, que são as econômicas, porque se nós tivermos um trem um pouco mais ágil vamos ter mais matéria-prima sendo transportada.
E [tem que ter] planejamento. Acho que é interessante que [se] trabalhe muito isso, que o governo próprio invista nisso. Não é simplesmente entregar para a iniciativa privada e esquecer disso. Acho que todo mundo tem que investir nesse negócio, eu acho que faz parte da nossa vida. Não só dos que foram ferroviários, os que são, mas de toda a comunidade, a ferrovia faz bem para comunidade. Como eu disse, as outras são independentes, quem é que vai lá ver o navio chegar? Ninguém. Quem é que vai lá [ver] o avião chegar? Ah, um turista ou outro. E o trem é diferente. O trem interage com a comunidade, então essa é a palavra-chave da coisa, tem que investir nisso.
As empresas que estão agora na ferrovia têm um patrimônio fantástico na mão, desde que saibam trabalhar, que saibam fazer essa conexão entre o lucro que elas querem ter [e] a comunidade. Isso que vocês estão fazendo, essas atividades são fundamentais para isso. Vocês vão ver nas histórias dos outros também que existe uma relação de comunidade com a empresa, que qualquer coisa que for para votar a favor disso, qualquer um vai votar, então isso é fundamental.
Tomara que nós cheguemos lá com 50%. Não sei quanto é que está hoje, deve estar uns 18, 20% por aí, não sei - percentagem de transporte de carga. Isso é fundamental e nesse trabalho que vocês estão fazendo vocês vão ter uma ideia de qual é a relação que se tem com isso, porque ela mexe com toda a estrutura econômica. Isso é fundamental para um país que quer ser desenvolvido. Se nós trabalharmos isso, nós vamos chegar lá.
Sucesso para vocês. .
P/1 - Tá certo. Em nome do Museu da Pessoa eu agradeço o seu depoimento.
Recolher