Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Maria da Conceição Andrade Paganele Santos
Entrevistada por Lee Choi e Tereza Ruiz
São Paulo, 18/10/07
Realização Instituto Museu da Pessoa.net
Entrevista PC_MA_HV76
Transcrita por Vanuza Ramos
Revisado por Adriano dos Santos Silva
Tags: migraç...Continuar leitura
Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Maria da Conceição Andrade Paganele Santos
Entrevistada por Lee Choi e Tereza Ruiz
São Paulo, 18/10/07
Realização Instituto Museu da Pessoa.net
Entrevista PC_MA_HV76
Transcrita por Vanuza Ramos
Revisado por Adriano dos Santos Silva
Tags: migração nordestina; alfabetização; alcoolismo; dependência química; Febem.
P/1 – Conceição, para começar, queria que você falasse seu nome completo, a cidade que você nasceu, o ano e o nome dos pais.
R – Maria da Conceição Andrade Paganele dos Santos. Nasci em quatro de julho de 1955, na cidade de Conde, Bahia. Meu pai chamava-se José Antônio Paganele, mais conhecido como Biú. E a minha mãe, Rosalina Alves de Andrade, conhecida como Rosa. Sou a filha mais velha de uma família de 12 irmãos. Uma família numerosa.
P/1 – E todos nasceram lá em Conde?
R – É, todos nasceram em Conde. Meus pais casaram-se na cidade de Conde e lá construíram as suas famílias, tiveram seus filhos, e vivemos no Conde até a época em que meu pai morreu.
P/1 – E você, entre os irmãos, está no meio, no começo?
R – Eu sou a mais velha. Sou a primeira filha.
P/1 – E como foi isso? Você cuidou deles todos, ajudava?
R – Quando a minha mãe ficou grávida, o sonho do meu pai era que eu fosse homem. Todas as adivinhações que ele fazia davam que eu seria homem. Nada de homem, superfeminina! E, quando eu nasci, ele estava em São Paulo trabalhando e foi pro Conde esperar meu nascimento. E ele foi muito adiantado, enfim, demorou. Ele trabalhava em São Paulo, voltou pra São Paulo, e, naquela época, eles iam de pau de arara, então se demorava 15 dias para poder chegar. Quando ele chegou a São Paulo, a carta avisando meu nascimento havia chegado antes dele. E ele ficou muito decepcionado porque ele esperava um filho homem. E ele falou que se fosse homem, ele nem desmancharia a mala, ele voltaria imediatamente. Mas era mulher, depois ele voltaria. Machismo. Com uma semana que ele estava trabalhando, ele quebrou o braço. Com o braço quebrado, disse que não poderia trabalhar. Ele voltou para me ver, para me conhecer. E, no primeiro momento, disseram que ele ficou meio chateado com a menina, que ele queria um menino, mas depois de dois dias, foi um amor muito grande. Ele nunca mais voltou para São Paulo, justamente por isso. Eu me pareço muito com ele e ele nunca mais voltou. E depois vieram os meus outros irmãos. Mas uma coisa que eu queria resgatar é: o meu pai foi uma pessoa órfão de pai e mãe. Ele foi criado por uma irmã dele e foi criado numa fazenda, igual a um bichinho de estimação. Igual a gente cria um cachorro, ou nem isso, porque o cachorro ocupa um lugar privilegiado na vida das pessoas, mas, naquela época, se criava um filho, uma criança que não tinha pai nem mãe, como se criasse um bichinho de estimação dentro da fazenda. E foi assim que meu pai foi criado. Ele praticamente era analfabeto, mas, como ele foi criado com fazendeiros, pessoas muito ricas lá do Conde que estudavam, que prosperavam, que os filhos iam embora para Salvador, para Sergipe, para estudarem, para formarem-se, ele tinha um sonho de que os filhos dele pudessem reverter a história, que não fossem analfabetos, que pudessem se formar, que pudessem ir embora daquela cidade, mas para uma vida melhor. Não abandonar a cidade, mas tentar uma vida melhor. E ele investiu seriamente para que a gente pudesse estudar. Porque naquela época não estudava. As filhas mulheres muito menos.
Havia uma cultura de que mulher que estuda é para fazer cartas para namorado. Então os filhos homens ainda aprendiam a ler e escrever, mas as mulheres não. Por que mulher queria ir pra escola? Para arrumar namorado? Ele foi muito criticado pela família, a própria família dele. Havia um irmão dele que xingava, porque ele estava colocando as filhas para estudar. E para que aquilo? As filhas mulheres tinham que casar, cuidar da casa e procriar. Esse era o trabalho das mulheres. Mas como ele fora criado como esse bichinho de estimação, era curioso e via as meninas, as filhas daquela família, daquelas famílias, terem outra cultura, outro encaminhamento de vida, era isso que ele sonhava para os filhos dele. Vencendo todos os preconceitos, lutando contra tudo isso, nos vigiando como se fôssemos animais, a ponto de fugir. Mas nós íamos estudar, íamos para a cidade. Eram poucas crianças naquela época que tinham o privilégio de estudar, principalmente quando eram de descendência de família muito pobre, e nós éramos muito pobres. E a gente estudava na cidade e, com a idade de 12 anos, eu já sabia ler e escrever, o que era uma novidade naquela época, alguém com essa idade saber ler e escrever. As pessoas da fazenda onde nós morávamos eram analfabetas. E os maridos, namorados, noivos, os sobrinhos, enfim, vinham para São Paulo tentar a vida. Saíam da roça e vinham para São Paulo em busca de melhores salários, de melhorar alguma coisa na vida delas. Eles escreviam uma vez por mês. As mulheres recolhiam as cartas no final de semana, no sábado, que era o dia da feira, o dia que elas saíam da fazenda para irem até a cidade fazer a feira. Passavam no Correio, pegavam as cartas e depositavam outras. Até aí, a minha mãe era quem fazia essas cartas, quem escrevia e lia. Quando eles descobriram que eu sabia ler e escrever, a minha mãe passou o bastão. Ela já nem fazia as cartas e nem lia. Eu fiquei encarregada de, aos sábados, no final da tarde, no domingo, o dia inteiro, receber as pessoas da fazenda que queriam ler ou escrever alguma carta para colocarem no outro sábado, no Correio. Iam até a cidade colocar. E uma das coisas que começou a me incomodar – e eu acho que isso eu trago muito da origem do meu pai, que era uma pessoa revolucionária, mesmo sendo analfabeto, mesmo não tendo carinho, sendo criado como bichinho de estimação, ele tinha uma coisa muito legal, que era a preocupação de uma mudança de posição das pessoas –, ele não se conformava que as pessoas não tivessem acesso ao que os outros tinham. Que as crianças da fazenda não tivessem acesso ao que os filhos do fazendeiro tinham. Ele tinha essa revolta com ele. Ele não queria que nós fôssemos iguais. E eu trazia aquilo. E, quando eu comecei a ler as cartas das famílias, havia alguns conflitos. A minha mãe falava assim: "Olha, é segredo inviolável, o que a gente lê, o que a gente escreve de alguém é um segredo entre você, a carta e a pessoa. Nunca pode falar isso pra ninguém. Aconteça o que acontecer, você jamais vai falar o que você leu ou o que você escreveu na carta dessas pessoas. Só abra quando elas te mandarem. Só leia quando elas autorizarem, e silêncio total. É confissão isso, acabou." Teve uma família que me despertou muito. Uma moça da fazenda namorava o filho dessa família muito minha amiga, e ela não queria o namoro. O filho dela veio para São Paulo e ele escrevia para a mãe e para a namorada. E sogra e nora não se topavam. Eu lia as cartas das duas, as duas chegavam a se cruzar no terreiro da minha casa. Não era quintal, era terreiro naquela época. E ficava aquele clima chato e, um dia, a sogra queria saber o que o filho tinha mandado falar para a namorada. Eu falei: "Olha, eu não posso. Assim como eu não falo da sua carta pra ela, eu não posso falar da carta dela. Mesmo sendo a mesma pessoa que escreveu, mas são pessoas distintas, eu não posso fazer isso. A minha mãe não me perdoaria nunca por uma coisa dessas, ela diz que é crime. Fazer isso é crime, eu não vou fazer.” Ficou um clima meio tenso. Eu comecei a me preocupar, precisava fazer alguma coisa porque eram muitos filhos. Era uma família tão numerosa quanto a minha. As mulheres lá tinham 12, 15, 20, 30 filhos, era um horror. E ela tinha outros filhos criados, da minha idade. E eu me ofereci para alfabetizar os filhos dela, então ela não precisaria mais ficar curiosa. Eles leriam a carta, e eu não precisaria também saber dos segredos deles. E ela achou superlegal. Aí ela foi à feira no final de semana, comprou a cartilha de ABC, uma tabuada, um lápis, um caderno, uma borracha e colocou os filhos dela para eu dar aula. O que eu aprendia na escola, ia repassando para os meninos. E outras famílias da fazenda foram descobrindo e mandando os filhos, para as crianças aprenderem a ler e escrever comigo. Com isso criou-se um número muito grande e minha casa já não comportava mais, era uma casinha pequena, uma casinha muito simples, e eu não tinha como ensinar. Primeiro porque a gente não tinha cadeira, não tinha mesa. Segundo, era tudo muito difícil para ensinar aquelas crianças, passar para elas um pouco do que eu sabia. E terceiro, eu tinha 12 anos na época. E tinha a casa grande da fazenda. A casa ficava fechada, uma casa linda, com uns desenhos, umas pinturas. O fazendeiro era pintor. Ele fazia quadros na parede, a coisa mais linda. Na casa grande, tinha uma sala enorme, que era uma biblioteca, com muitos romances, muitos livros, com muito material pedagógico, mas que ficavam trancados ali. Quando ele resolvia ir pra fazenda, ele sentava lá na sua preguiçosa e lia. Lá havia bancos, tinha mesa, era bem equipada. E o meu número de alunos foi aumentando na minha sala, na minha casa, e eu não tinha como fazer. Eu tive uma brilhante ideia de colocar os meus alunos para estudarem na biblioteca da casa grande. E eu achando que estava muito certa. E daí? Está lá fechada, abandonada, as filhas do fazendeiro, as dondocas, não gostavam da fazenda. Se elas iam pra fazenda, com aquele clima maravilhoso, adoeciam, porque elas queriam ir pra Salvador, elas queriam ir pra cidade, não pra fazenda se queimar. E eu ficava com muita raiva daquilo, que coisa! Tinha raiva daquela pele tão fina. Eu ficava: "Nossa, que coisa! Nós aqui queimados de sol, lascados, danados, e esse povo parece de cristal." Até um papel rompia a pele da mão. Como as coisas mudam. O papel hoje rompe a minha mão também, que coisa mais incrível. Talvez tenha sido sonho do meu pai. E eu achei que aquela sala equipada era o lugar ideal para que eu pudesse dar aula. E eu fui pra sala da fazenda dar aula para os alunos.
P/1 – Com quantos anos você estava?
R – Eu tinha 12 anos na época. E um dia o fazendeiro descobriu que eu estava usando a fazenda dele, invadido a fazenda dele para dar aula. Jamais ele iria entender, jamais ele iria querer entender que era um trabalho, que aquele pessoal que era empregado dele deveria ser alfabetizado. Quanto mais burro melhor. E, praticamente, eu fui expulsa da sala, da biblioteca dele. Eu fiquei muito triste, por isso, chorei muito. Os meus pais ficaram muito nervosos, muito humilhados pelo que eles ouviram. E eu achava que tava tudo injusto, que eu estava fazendo uma coisa boa, não estava fazendo nada de errado. Eu não entendi porque aquele homem não queria que eu usasse aquela sala bela, abandonada. Aquele casarão abandonado com tanta coisa lá dentro, com tanta coisa sonhável pra gente, porque era tão distante da vida minha e daqueles meninos. E o meu pai, muito chateado, falou que eu voltasse a dar aula na nossa salinha. Mas não tinha como. Ele falou: "Ah, a gente serra troncos de árvores." - cepinhos de madeira, como a gente chamava - "E os meninos sentam nos cepinhos de madeira, e você faz seu trabalho." Aí não tem outro jeito, não é? Então fomos pros tronquinhos de madeira, sentar lá e estudar. E cada menino – eu guardo muito essa lembrança –, vinha com os cepinhos de madeira na cabeça, o livrinho aqui, o caderninho aqui debaixo do braço, o lápis na mão e o cepinho, aquele pedacinho de madeira na cabeça, chegando no horário. Eu estudava de manhã. Saía de casa cinco e meia da manhã – pois nós andávamos três quilômetros para ir, três para voltar –, para ir até a cidade, para podermos estudar. E, quando eu chegava por volta da uma hora da tarde em casa, uma e meia, os meninos já estavam me esperando para estudar. Era chegar, comer aquele feijão com farinha, o que tivesse, e já ir para a salinha, tentar alfabetizar os meninos. E tinha muitas crianças. Foi aumentando, a sala ficou cheia. Eu não consigo hoje precisar o número que teria, mas era um número acima de 20 ou 30 crianças, juntas. E em um dia de segunda-feira, eu estava na sala ensinando, e passou um fazendeiro, que era um vereador da cidade, e pediu água. Nordeste, calor. Ele passou, com sede, pediu água lá em casa. A minha mãe serviu a água, e ele olhou pela janela e viu aquele monte de crianças lá sentadas e eu junto. Ele foi embora pra fazenda. Na sexta-feira, quando ele voltou – pois eles passavam a semana na fazenda –, ele viu novamente. Eu estava brincando de pular corda com as crianças no quintal, era o horário do recreio. Tinha tudo organizado, tinha horário pra tudo. E ele, mais uma vez, tomou água lá em casa e foi embora. No sábado ele procurou meu pai. Foi justamente por essa família que o meu pai foi criado, só que na época ele já morava em outra fazenda, ele já era empregado de outra fazenda, não mais da fazenda que ele tinha sido criado. E o seu Eduardinho chamou o meu pai e perguntou o que era aquilo. Ele tinha passado dois dias na frente da casa e me viu, viu um monte de criança, depois aquele monte de crianças estava naquele terreiro pulando corda. O que significava aquele aglomerado de crianças? Meu pai falou: “A minha filha está ensinando-os a ler e escrever." Ele falou: "Mas como, que história é essa? Conte-me: como ensinando?" Aí o meu pai contou a história: "Ela lia as cartas, se incomodou com isso e achou que o que ela aprendia tinha que passar pra alguém. E ela resolveu ensinar os meninos, e aí todo mundo das fazendas vizinhas está mandando aluno pra ela." Aí o vereador falou: "Mas por que você nunca me procurou por isso? Isso é uma ideia fantástica da tua menina. Que idade ela tem? Qual é a tua filha?". Aí ele falou: "É a mais velha.” Aí ele falou: "Mande busca-la porque eu quero conversar com ela". Meu pai imediatamente mandou me buscar. Pegaram o cavalo e foram me buscar. E foram me buscar em casa, eu fiquei surpresa, mas, enfim, quando eu cheguei lá, o meu pai me pediu para eu falar com o vereador. Ele perguntou por que é que eu fazia aquilo e eu contei. Mas contei que eu estava ensinado na fazenda, na casa grande, e que o homem fazendeiro não deixou, mas já contei chorando, porque eu me achava muito ofendida diante do que tinha acontecido. Como se eu tivesse algum direito, de agir daquela forma. Mas o vereador disse: "Não, mas ele está certo, você não pode fazer isso. Mas fica tranquila, vamos fazer um negócio? Eu vou mandar fazer uma escolinha pra você." Aí falou com meu pai: "Você vai construir uma sala, uma escola pra ela. Você vai ao mato e tira a madeira." As casas na fazenda, dos pobres, eram feitas de taipa, de barro. É um trançado de varinhas com madeira que é tirada no mato, com cipó, que é amarrado, tipo uma corda. E depois faz um barro amolecido, pisa, amassa bastante o barro e vai tampando as paredes, e assim vai fechando, não é tijolo. É feito dessa forma. E a cobertura é de palhas de piaçava. E meu pai fez na mesma semana. Juntou o pessoal da fazenda, foi no mato, tirou as madeirinhas e todo mundo ajudou, os pais dos meninos da fazenda, e fizeram uma salinha com uma porta e uma janela. Ficou pronta bem rápido. Depois de pronta, fizeram um amassado no chão, um piso de chão batido, de terra batida. E o vereador mandou todo o material de escola. Tudo que uma escola da cidade tinha, a minha escolinha também. Desde a lousa, sala, a mesa birô de professora, as carteiras dos alunos, todo o material, de caderno a lápis, tudo que se precisava para alfabetizar, uma orientação para eu poder dar aula. Eu tinha o meu livro de orientação, para me ajudar a alfabetizar os meninos. Foi muito legal esse vereador. E a minha escola tinha um nome na frente: Escola Paganele. E ali eu fiquei dos 12 até os 19 anos dando aula. Muitos meninos se alfabetizaram, vieram pra São Paulo e eu continuei. Mas, infelizmente, o meu pai sofreu um acidente. Ele vendia coco, entrou numa crise muito difícil e precisou trabalhar fora. E até fui eu quem, através de uma amiga do colégio, consegui um emprego pra ele. Nesse emprego, ele sofreu um acidente e faleceu. Quando ele faleceu, a gente foi embora da cidade. A família da minha mãe morava em Paulo Afonso, e já tinha uma irmã minha, a segunda filha, em Paulo Afonso pra estudar. Ela queria estudar contabilidade na época. No Conde, na minha cidade, só tinha um curso que não é como hoje que se chama magistério, eu não lembro como se chamava naquela época, um curso para se formar como professora. Eu queria ser professora mesmo, as outras duas também, mas essa queria ser contadora. Queria estudar contabilidade, foi pra Paulo Afonso onde nós tínhamos família. Mas logo meu pai morreu e nós fomos embora pra lá. Saindo pra Paulo Afonso. Eu não consegui mais fazer o que eu queria, que era continuar nas fazendas alfabetizando. Aí foi outra vida. Eu fui trabalhar de balconista pra ajudar a criar meus irmãos, que eram 12 filhos. Eu era a mais velha e tinha a minha irmãzinha caçula de seis meses. Então tinha irmã de seis meses, irmão de um ano e meio, de três anos, todas as idades. Foram 12 filhos, uma escadinha. E, chegando a Paulo Afonso, nós fomos trabalhar pra ajudar a criar os meus irmãos. Eu trabalhei de balconista no Armarinho Imperial. Depois eu trabalhei no banco, no almoxarifado do Banco Real, e lá eu casei. Lá eu conheci o meu marido, casei. Quando nasceu a minha primeira filha, que eu estava grávida já do segundo, meu marido – que era muito ciumento, muito ignorante, uma pessoa muito, muito violenta, muito ignorante, um baiano terrível – me tirou do banco. Eu parei de trabalhar, fui cuidar dos filhos. Ele era viúvo também, tinha dois filhos. Eu fui cuidar dos filhos, e a vida foi superdifícil com ele. Ele já conhecia São Paulo. Ele sempre vinha pra São Paulo, o sonho dele era São Paulo. E, quando nasceu meu segundo filho, nós viemos pra São Paulo.
P/1 – Qual que era o nome dele?
R – Valter. E nós viemos morar em São Paulo, trazendo dois filhos pequenos: a Valéria, com um ano, e o Frank, com dois meses. Porque antes da Valéria completar um ano, o Frank nasceu. Com 11 meses após o parto de um filho, já nasceu outro. E aqui eu fui enfrentar a vida. Ele era metalúrgico. Era uma pessoa que tinha um salário até legal, mas tinha alguns problemas de alcoolismo. Eu fui cuidando da casa, dos meus filhos e foram nascendo filhos, todo ano, filho. Eu tenho cinco filhos. Mas em 86 ele faleceu. Eu fiquei sozinha. Nós fomos morar em Carapicuíba, depois fomos morar em Osasco. Depois em Santo Amaro. Aí ele fez a inscrição na Cohab [Companhia de Habitação], pois nós pagávamos aluguel. Saiu a nossa casinha na Cidade Tiradentes. Ele achou muito distante, muito feio o lugar, não queria morar. Eu insisti muito pra que a gente pudesse ter a nossa casa própria, até por que, quando eu trabalhava no banco, eu nunca tinha retirado o meu PIS/Pasep [Programa de Integração Social/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público]. Eu tinha o dinheiro do PIS/Pasep, os juros e mais um dinheiro que eu podia retirar. E, nessa época, quem não tinha tirado quando casou, podia retirar. Eu fui ao banco, pedi a transferência para São Paulo e chegou, um ano depois, quando saiu a casa da Cohab. Com esse dinheiro eu paguei toda a documentação, regularizei tudo que precisava, e nós mudamos pra Cohab. Um ano depois de mudarmos para a Cohab, ele faleceu de infarto, com 33 anos.
P/1 – Conceição, antes de entrarmos nessa parte de São Paulo, voltando um pouquinho pra Conde, você podia contar o que seus pais faziam? Por exemplo, você disse que seu pai trabalhava nas fazendas. Como que eram essas fazendas? Como era onde você morava?
R – Era uma fazenda de coqueiro e de gado, mas meu pai era lavrador. Ele plantava mandioca, feijão e juntava coco. Juntar coco é: o tirador de coco sobe na árvore e os derruba; depois vêm pessoas atrás soltando o coco do cacho; depois vem outro atrás com um jegue ou um burro com os caçuás, uns bauzinho que ficam enganchado nos cavalos com um furador. Eles vão pegando e jogando dentro dos caçuás, enchendo para levarem a outro terreno, também na fazenda, aonde outras pessoas vão descascando, tirando aquela casca de fora pra deixar só o coco limpo, com aquela casca dura. Tiram aquela mole. Era esse o trabalho dele. Quando ele não estava na roça, ele estava juntando coco ou então fiscalizando. Ele tinha mais um trabalho de fiscal da fazenda, de fiscalizar o trabalho dos outros empregados. E a minha mãe era dona de casa. De vez em quando também pegava na enxada pra plantar roças de arroz. Na minha cidade tinha o brejo, o rio Itapicuru, lá no Conde. E, diz a lenda, que a cada dez anos o rio Itapicuru enche e acaba com a cidade. Ele destrói tudo, e as pessoas precisam se retirar dali. Na beira dos brejos se planta arroz. E a minha mãe colocou muitas roças de arroz. Nós colocamos juntos, nós também íamos pras roças, nós fazíamos farinha de mandioca. Tanto é que eu tenho meus dedos aleijados. Foi na bola de fazer farinha, quando eu tinha mais ou menos nove ou dez anos. Aquela bola comeu. Eu estava ajudando meu pai, cinco horas da manhã, na casa de farinha e enfiei a mão lá, e a bola comeu a ponta dos meus dedos. E era isso. Pescávamos também pra poder comer. Caçávamos, pescávamos. Não tinha essa coisa de lanche não. A comida básica. Era feijão, a farinha, que predomina, não tinha arroz. Arroz era se fosse um dia de festa. Nós não tínhamos arroz nem macarrão. Essas coisas eram muito distantes da nossa realidade. Praticamente macarrão a gente nem conhecia. Era farinha mesmo e pimenta pra ajudar a descer. Uma coisa em abundância era água de coco, era o caju, era o jenipapo. Nós saíamos pelo meio das fazendas, dos matos, em busca do caju, da castanha, do jenipapo, do coquinho. A gente conhecia como aricuru, mas pra cá, no Sul, se conhece como coquinho. E dali a gente fazia uma paçoca pra ajudar na alimentação, que era muito difícil. Do jenipapo a gente fazia jenipapada. Se comesse muito, ficava embriagado, porque o jenipapo tem álcool no próprio suco dele. Ele solta muito suco. A gente espremia um pouco aquele suco, uma delícia, vocês precisam conhecer. Ele é carnudo por dentro, ele tem um monte de carocinhos e é meio azedinho. A gente batia bastante, picava, colocava açúcar, deixava descansar e depois a gente comia. O caju também. Então, à tarde, se nós chegássemos com fome, almoçávamos. Muitas vezes também não tinha muito o quê comer. Chegou ocasião em que a gente chegava em casa e não tinha nem a farinha. Não tinha o feijão. Principalmente nas enchentes do rio, porque acabava com toda a lavoura. Nós perdíamos tudo e íamos à busca de mangaba, que é uma fruta do nordeste, aqui ninguém conhece. Era o caju, o jenipapo e o coquinho. O coquinho a gente chupava, e aí o coquinho de dentro nós colocávamos pra secar, depois sentávamos, com as pedras, e quebrávamos aqueles coquinhos. Íamos juntando, separando, depois o socávamos no pilão. O pilão é um tronco de madeira que tem uma mão também de madeira. E a gente colocava ali dentro com farinha, o coquinho com farinha e o açúcar. Fazia tipo uma paçoca, igual nós comemos hoje paçoquinha de amendoim. A nossa ficava mais gostosa. Aí a gente guardava aquela farinha pra comer com café ou comer tomando água mesmo pra se alimentar. Eram alternativas de alimentação que nós buscávamos dentro da comunidade. Depois, com essa falência do coco, o meu pai colocou olarias. Ele tinha olarias de telha e de tijolo. Eu aprendi a fazer telha e tijolo. Nós éramos todos pequenos nessa época. Meu pai batia os tijolos, ensinou a gente a bater tijolo, fazer o tijolo, colocar no chão, com dois dias levantar, fazendo parede, até secar e ir ao forno assar. Nós aprendemos isso muito crianças. Nós começamos a trabalhar em olarias mesmos, a queima do tijolo. Era mais tijolo, a telha era pouca. A telha é mais sensível, pra fazer o tijolo ainda é melhor. E a nossa olaria praticamente era de tijolo. E disso a gente sobrevivia, mas era muito difícil. Além do tijolo que ia trazer pouco dinheiro, nós tínhamos que nos virar: caçar rolinha, pombinhas. A gente matava pra poder comer os anus, os ovinhos dos passarinhos; a gente não pegava por perversidade, mas pegava como forma de alimentação. O anu põe muitos ovos. Quando nós descobríamos uma ninhada de anu, era uma festa porque a gente ia ter bastantes ovinhos pra comer. Além das criações de galinha, de peru. Mas era difícil pra conseguir criar peru. Peru era caro, pra conseguir criar peru tinha de ter um poder aquisitivo melhor. Porco era caro, pra conseguir era alguém que tinha dinheiro pra comprar. Gado, então, era sonho, só os fazendeiros é quem tinham. Cabra vai crescendo e vai ficando mais difícil. A nossa possibilidade era pegar mesmo os passarinhos pra matar e comer, e ir à busca, no campo, dessas alternativas de alimentação. Umas das coisas mais ricas era o peixe, que nós pescávamos. Tanto o meu pai pescava como nós também pescávamos e caçávamos pra poder nos alimentar. E ele ficava muito triste, porque ele não aceitava. Ele achava que os filhos dele mereciam outro mundo, outra história. Ele tinha obrigação de transformar aquela vida que ele viveu e a vida que nós estávamos levando numa outra história, em outra vida, e que nós teríamos que ser políticos. Ele acreditava muito na política. Ele era apaixonado pela política e o sonho dele era que nós entrássemos na política. Ele dizia que um dia, algum de nós seria prefeito daquela cidade. E ele sofria por nos ver naquela situação. Mas era necessário, não tinha outra saída. A gente passava fome porque éramos muitos filhos. E chegamos a passar fome. E, quando isso acontecia, ele chorava muito. Porque, na casa dos fazendeiros, havia fartura. E, lá na Bahia, ninguém faz conta de comida. Se há uma coisa que os nortistas fazem é comer bastante, e comer bem carne e farinha, eles acham que isso é comer bem. A mesa do nortista tinha de ter diversas carnes. Meu pai foi criado assim. E, num determinado tempo, a nossa mesa era assim. E ele trazia pessoas, até mais pobres do que nós – quer dizer, miseráveis, porque nós já éramos pobres, e ainda havia pessoas mais pobres do que a gente –, pra comer em casa. Eram aquela mesona de madeira grossa, aqueles bancos grosseiros, mas ali todo mundo comia. O saco de farinha do lado, uma panela enorme de feijão, e era assim que a gente se alimentava. Roupa a gente ganhava, não comprávamos. Uma vez no ano, quando conseguia, no São João, nas festas juninas, comprava-se a chita, aqueles paninhos de chita. Fazíamos aqueles vestidos estampados, a coisa mais linda do mundo, tudo muito princesa. E o sapato nós não tínhamos, muito difícil colocar um sapato no pé. Estourava tudo, não conseguíamos andar de jeito nenhum. Eu lembro muito do meu pai e não me lembro dele muito calçado, eu lembro muito dele descalço mesmo, andando de pé no chão. Eu me lembro da minha mãe e uma coisa que me incomoda é que a minha mãe não tinha um sapato pra andar. Não tinha sandália pra ir até a cidade. E, quando chegava a época da eleição, ela ganhava um sapato, uma sandalinha. Eu estou vendo aquela sandália, mas é tão ruim, tão fraquinha, que só dava mesmo pra ir votar. E andar descalça mesmo, levar o sapatinho na mão, quando chegar à porta da cidade, colocar no pé, levar um paninho, um trapinho, limpar o pezinho ali na entrada da cidade, colocar a sandalinha, ir à cidade votar e, quando sai de dentro da cidade, já tirar. E vem andando naquela terra quente, pisando em cima de gramado, de capim, de mato, pra não torrar o pé. Essa era a nossa realidade. Quando eu estava estudando a minha sandália quebrou e eu não tinha sandália, não tinha como comprar. Eu ia de um pé só pra escola. E eu me lembro de um fato – quando falo, as minhas filhas choram –, eu mancava, entortava o pé que estava sem chinelo. Eu o virava, ficava mancando, eu tinha muita vergonha, mas era pra dizer que o meu pé estava machucado, por isso que eu estava sem aquele chinelo. Mas não era, era porque eu não tinha mesmo. E assim, se achasse um chinelo velho, que fosse só um pé de chinelo pelos lixões onde a gente passava – porque quem morava na cidade já eram pessoas com outro nível financeiro –, a gente pegava. Um pé de sapato velho, um pé de chinelo velho, a gente pegava e levava pra casa. E eu tive a felicidade de pegar um desses chinelos, um pé só, e levei. E, com isso, fiquei vários dias indo pra escola e fingindo que estava com o pé machucado. E que servia até de gozação pra outras crianças porque tinha umas meninas que descobriram que eu não estava com o pé machucado. Eu fingia aquilo e tinha muita vergonha, mas eu ia pra escola mesmo assim. As roupas eram ganhas da minha tia que morava em Esplanada, que era criada por uma família rica. Ela juntava as roupas, levava. E eram uns vestidões enormes, e eu ia pra escola daquele jeito. Era bonita a roupa, era de pano bom, tinha um corte bonito, mas não era pro meu gosto de menina. Eram roupas pra moças, então ficava tudo muito desajeitado, tudo muito feio. E um dia a professora, a própria professora brincou. Ela fez uma gozação comigo: "Nossa, Conceição, que vestido! O finado era maior?” Eram coisas que iam marcando a vida, que a gente ia ficando triste com aquilo, mas que não desanimava. Às vezes chorava sozinha, ficava emburrada: "Que vida de porcaria, que vida é essa? Também, meu pai e minha mãe com tanto filho, por que eles não param com isso?" Eu ficava naquela raiva cada vez que a minha mãe ficava grávida. Nossa, eu ficava com tanta raiva, que era mais um pra dividir o que não tinha. E aí ia se apertando cada dia mais, mas todo ano era um filho e cada dia a gente ficava com mais raiva das gravidezes da minha mãe porque eles não tinham mais onde pôr filho. Eles não tinham mais o que dar pra ninguém. Aquelas coisas de adolescência, de raiva, nós passamos por tudo isso, eu com minhas irmãs bem próximas a mim. E isso no primário. Até chegar à quarta série. Tinha admissão naquela época. Então, na quarta séria, se prestava o exame e já ia pro primeiro ano ginasial, que hoje é o ensino fundamental mesmo. Eu fiz admissão na quarta série e era ótima aluna. E meu pai falava assim: "Olha, a única riqueza que eu tenho pra deixar pra vocês é o saber, e o saber morre com os donos. É a única herança. Eu não tenho nada, a gente não tem nada, mas vocês precisam estudar, se formar, porque isso ninguém rouba. Ninguém vai tirar, vocês vão morrer com isso, você dá se você quiser. Você ensina, você passa, mas você não perde. Você dá e não perde. Então isso eu quero garantir na vida de vocês.” E, pensando nisso, que só através mesmo dos estudos – nós não tínhamos bens nenhum –, era que nós conseguiríamos, iríamos reverter a história. Eu estudava muito. E havia toda uma discriminação da menina pobre, que veio da fazenda despenteada, sem brilho nenhum no cabelo ou no olhar, ou sem roupas, ou de pé no chão mesmo. Meio índia, meio selvagem. Tinha toda essa história de exclusão. Já era uma exclusão naquela época, por outras crianças e até mesmo pelos professores. E eu acho que não tínhamos registros de nascimento. Quando nascia cada filho, minha mãe anotava no caderno a data e o horário do nascimento. E só fomos registrados quando chegamos ao ginásio, por exemplo. Nos primeiros dias de aula, a escola pedia, mas não exigia. E os registros também eram caros. Então, pra registrar, minha mãe fazia atestado de pobreza. Acho que era na delegacia, nem lembro onde se fazia aquilo. Ela ia lá e a gente com muita vergonha. Tudo que fazia tinha que ter atestado de pobreza, até pra não pagar a APM [Associação de Pais e Mestres] da escola – que naquela época já tinha um taxa que se pagava –, também tinha atestado de pobreza. Ia lá declarar aquela, era tudo muito humilhante, era tudo muito difícil. E, ao mesmo tempo, eu me incomodava que as outras crianças da fazenda nem isso conseguiam ter. A gente, com tudo, ainda conseguia ir avançando. E eles que ficaram pra trás?
P/1 – E como foi que seu pai resolveu colocar vocês na escola? Foram todos, foi um só, como é que foram entrando?
R – Não, foram entrando conforme o tempo, a idade. Todos que iam completando a idade de escola. Por exemplo, eu não fui logo pra escola porque eu era mais velha, a primeira. Mas, quando chegou a segunda e a terceira, as três mais velhas, com idade escolar, eu fui pra escola. Como eu me dedicava muito pra trabalho, pra essas coisas, eu gostava muito de ler. Eu lia de dia à noite, a coisa que eu mais fazia na minha vida era ler. Aqueles livros de faroeste... Tinha tanto faroeste que à noite, teve uma época que eu fiquei tão assustada, que eu não conseguia dormir, por causa daqueles livros pesados que eu lia. Também li muita história para o povo da fazenda, que é uma das coisas que eu tenho muita vontade de voltar a fazer hoje na nossa brinquedoteca do trabalho da Cidade Tiradentes. Tinha uns livrinhos de história, hoje eu não lembro direito como era que se chamavam aqueles livros, também não vejo mais. Mas contavam casos, e aí as pessoas compravam, ou pegavam emprestados aqueles livros, levavam pra fazenda. Nos finais da tarde, depois dos trabalhos na roça, dos coqueiros, de prender o gado, eles iam pra casa do meu pai pra que eu pudesse ler as histórias pra eles. Eu ficava lá sentada, com o candeeiro do lado, lendo aquelas histórias. Cada dia tinha uma história pra ler. E eles adoravam ouvir aquelas histórias. Juntava aquele monte de homens e de mulheres da fazenda nos finais da tarde pra que eu pudesse ler as histórias pra eles. Você vê que coisa? Era uma diversão e aquilo ficou sendo como uma rotina deles, eles iam todo final de tarde. Aquilo dava muito orgulho para o meu pai e para os irmãos dele, que tanto criticaram ele por ter colocado a gente pra estudar. As pessoas que criticaram, que atacaram bastante por ele estar colocando as filhas na escola, começaram a se envolver, a ouvir e a perceber também o tanto que era importante a gente ter aprendido a ler e escrever. Tinha essas etapas da vida. Mas quando eu chego no ginásio, tinha uniforme, e as meninas da cidade que iam terminando o ginásio iam encostado o sapato, a meia, que eram umas meias até aqui, até o joelho quase, com um sapatinho colegial, saias, com blusinhas, mais ou menos do jeito dessa minha que eu estou hoje, com o escudinho da escola no bolso, desenhado no bolso o nome da escola. A minha mãe pedia. Então nós estávamos prestes a entrar no ginásio e não tínhamos, ia ser difícil. Nessa época eu já dava aula, já ganhava meu dinheiro, mas comprar uniforme pra todo mundo era caro, era um tecido caro, a costura era cara e não dava. Ia faltar. Como algumas moças estavam terminando o ginásio, aquela roupa ficava encostada, porque era uniforme. Elas repassavam pra gente. Nós ganhávamos no final do ano os uniformes escolares usados e, com isso, nos proporcionava também andar uniformizados, com sapatinho, com tudo bonitinho.
P/1 – Conceição, você falou pra mim que começou a estudar, aprendeu a ler e escrever, e sua mãe passou o bastão pra você começar a trabalhar com cartas, ler e escrever. Como era o lugar em que você ficava escrevendo e lendo? Como eram as pessoas, em quais dias? Conte um pouquinho pra gente como é que foi essa experiência.
R – Era na sala da minha casa. A sala da nossa casa era uma mesa rústica de madeira que meu pai tinha feito. Pegou duas tábuas, colocou num cavalete, e essa era nossa mesa. Os bancos também eram rústicos de madeira, ele mesmo confeccionava com o pessoal da fazenda. E tinha dois bancos grandes, do lado daquela mesa, de um tamanho que sentasse todos os filhos ali naqueles bancos pra comer ou pra escrever. Essas pessoas iam, sentavam de um lado da mesa, e eu lia as cartas. Às vezes eu lia as cartas no quintal mesmo. A gente ficava sozinha, debaixo de um pé de coqueiro, ou na casa de farinha. Na própria casa de farinha, eu sentava com elas, e ali eu lia. Na casa de farinha havia umas pilastras de barro, então dava pra gente sentar ali do lado do forno mesmo ou na bancada onde mói a mandioca. E ali a gente sentava, e eu lia as cartas. Mas, quando tinha que escrever, eu tinha que entrar. Quando eu entrava pra ler, a minha mãe saía, os demais saíam. Ficavam fora, ninguém ficava dentro da casa, até pra não ouvir os segredos. Tinha muito essa questão do respeito, que hoje se perdeu tanto, as famílias perderam isso. Mas tinha muito respeito. Na hora de ler, se eu tivesse lendo a carta de alguém, nem mesmo os meus irmãos pequenos poderiam chegar perto. Eu ficava isolada só com aquela pessoa. Na hora de escrever também. Se eu estivesse dentro de casa escrevendo, os meus pais saíam para o quintal, iam fazer alguma coisa lá fora, mas ninguém ficava por perto.
P/1 – A sua mãe aprendeu a ler e fazia isso. A mãe dela também fazia? Como é que foi?
R – Eu não sei se a minha vó fazia. A minha mãe aprendeu a ler trabalhando com coco de piaçava, eu não sei direito o que ela fazia com esse coco, devia tirar a casca, eu não sei o que era. E ela aprendeu a ler porque tinha uma senhora que trabalhava também com esses cocos que sabia ler e escrever. Minha mãe aprendeu a ler escondido dos meus avós. Meus avós não sabiam que ela sabia ler. Ela, trabalhando, com o dinheiro, comprou uma cartilha de ABC e um caderno. E essa mulher que trabalhava junto com ela a ensinou a ler, e ela escondia embaixo do chapéu para o meu avô não descobrir, porque não podia. Mulher não podia saber ler e escrever. Naquela época, mulher não podia ter acesso à leitura porque ia escrever carta pra homem, ia se comunicar com os homens. Então não seria decente. Moça oferecida fica escrevendo pra homem, se comunicando com homem, então não podia de jeito nenhum, era uma cultura. E a minha mãe aprendeu a ler e escrever assim. Quando meus avós descobriram, ela já sabia ler e escrever. Parece que teve uma permissão dela entrar na escola. Ela chegou a entrar na escola. O meu pai aprendeu a assinar o nome dele porque precisava assinar o nome pra votar. Foi ensinado na própria fazenda a rabiscar o nome, escrever, rabiscar e a juntar. Ele conseguia juntar algumas palavras e ler algumas letras. Mas era muito pouco, a letra era muito feia, muito ruim. Mas minha mãe não, ela já tinha uma caligrafia muito bonita, muito melhor que as nossas, que aprendemos depois cursar mesmo uma escola. Ela era muito inteligente também. Minha mãe falava corretamente o português. E ela também escrevia corretamente. Era uma pessoa que sempre nos corrigiu na nossa fala. Eu não sei de onde ela tirou aquele dom de falar tão bem, mas ela falava muito corretamente, mesmo sendo uma pessoa leiga, totalmente semianalfabeta.
P/1 – Você falou que lia os livros para o pessoal no fim de tarde. Onde você conseguia esses livros?
R – Eu não consigo mais lembrar. Lembro-me que eu comprava alguns, tinha algumas histórias que eu comprava. Tinha um senhor que foi lá prestar um serviço na fazenda, mas ele vinha de outra cidade e ele trazia muitos livros, eu acho que eu aprendi a ler com esse homem. Eu também não lembro o nome dele. Lembro pouco da fisionomia dele, lembro pouquíssimo dele. E ele me emprestava. Eu o via ler e comecei a me interessar pela leitura e eu viciei, eu era viciada em ler. Eu não conseguia ficar um dia sem ler um livro. E os livros de histórias, que eram histórias contadas, eu não consigo mais lembrar. Eu vejo os livrinhos, mas eu não consigo lembrar como que eram. Aqueles contos. Eram contos, alguma coisa assim. Quando eles iam pra feira, o pessoal da fazenda conseguia comprar, pegar emprestados. Eu sei que eles me levavam um monte de histórias. Falavam: "Ah, hoje nós queremos essa". Aí eu lia aquela história que eles pediam.
P/1 – Depois vocês mudaram pra Paulo Afonso. Você conheceu seu marido lá em Paulo Afonso?
R – Eu o conheci em Paulo Afonso.
P/1 – No banco também?
R – Conheci no banco, é.
P/2 – Conceição, você falou pra gente um pouco da sua infância, que foi em Conde, contou como vocês faziam pra se alimentar, contou como você começou a aprender a escrever e ensinar pras pessoas, mas e a parte das brincadeiras? Vocês brincavam? Você e seus irmãos tinham um tipo de brincadeira específica, o que vocês faziam? Sei que tinham uma vida dura, a parte do trabalho, uma responsabilidade de, muito cedo, partilhar da renda da casa, mas tinha algum momento que vocês se reuniam pra brincar?
R – Tinha. Mas só quando éramos muito pequenas, porque depois de certa idade já começávamos a arcar com algumas responsabilidades da fazenda e da casa. Era brincar de casinha mesmo. Eu levantava barraca, fazia umas casas de palhas, levantada com madeirinhas. E arrumar caquinhos, que eram os pratos (risos), pratos quebrados, vidrinhos, tampinhas de vidro de remédio. Aquilo tudo servia pra decorar nossa casa. Era a arrumação da nossa casa. Outra coisa que a gente também adorava, e até hoje eu sou apaixonada, eram bonecas de pano. Nós não tínhamos brinquedos. Então nós fazíamos. E eu aprendi a confeccionar, a fazer bonecas e aprendi a bordar sozinha, e fazia as roupas das minhas bonecas e das minhas irmãs. E também brincava com as bonecas de milho. Colocava-se uma espiga e tinha um cabelo bonito, e a gente sonhava com aqueles cabelos dos milhos. Porque na hora saía cabelo vermelho, um cabelo loiro, e a gente ficava inventando o cabelo do milho como se fosse da gente, amarrando pano. A gente tinha muita inveja de quem tinha o cabelo liso, de quem era branco. Mas as brincadeiras mais gostosas eram as de casinha, brincando de fazer comidinha, fazendo a cabidela com a tripa das galinhas que a minha mãe matava. A mãe matava galinha pra gente comer, e as tripas das galinhas, do frango, a gente limpava, lavava, escaldava e fazia comidinha. E a gente comia nas nossas brincadeiras. Mas era muito legal, e a gente ficava muito triste quando chegava a hora do banho ou de parar pra ter que comer. A minha mãe chamava pra comer, e é tão distante isso... Isso era bem antes de ir pra escola, porque parece que, quando chegou a época de ir pra escola, era a época também de ter responsabilidades com a casa. Então a brincadeira acaba, não tem mais. Não tem mais direito com as bonecas, já não tem mais direito com as casinhas. Aí se ia estudar e trabalhar, era o que restava. A brincadeira ficou muito, muito, muito na infância mesmo, bem distante. E aí se brincava com os irmãos menores, eram os bonecos, eram os filhos, os próprios irmãozinhos que a gente tinha de cuidar. Dar comida, dar banho, ficava tudo pelado mesmo (risos) porque era quente, também não havia roupa. Mas era a gente quem cuidava dos irmãos, e acho que a brincadeira ficou muito bem numa infância bem pequenininha mesmo.
P/2 – E o começo da adolescência, você se lembra? Vocês estavam muito entretidos nessa coisa de trabalhar ou estudar ou você lembra-se de alguma coisa específica da adolescência? Isso antes de você ir pra Paulo Afonso. Não sei se a escola era mista ou era separada.
R – Não, era mista. Eu tive namorados, sim. Meu pai severo, não queria que namorasse, não podia namorar, não podia falar em namoro. Tinha que falar noivo e casamento, não era pra namorar, era pra noivar e casar. Era uma loucura, e o namorado não podia nem chegar perto. Eu tive um namorado, arrumei um namoradinho, me apaixonei. Era tão legal aquele namoro, e foi numa festa, meu pai inventou de dar uma festa lá em casa. Um dos músicos que tocava pandeiro e cantava se interessou por mim, o José Carlos. E ficou ali o tempo todo olhando, eu já mocinha também, muito interessada. E ele me tirou pra dançar, mas eu não sabia dançar. Ele me deu um beijo no meu rosto, que até hoje queima, sabe (risos)? Nossa, aquilo queimou tanto, meu Deus do céu, ai que coisa! Até hoje acho que eu sinto aquela sensação que eu senti naquela época. Mas muito escondido. Depois ele me pediu em namoro e eu queria, mas o meu pai descobriu e não deixou. Tinha uma coisa legal nele: o meu pai nunca fazia vergonha pra gente na frente dos outros. Quando ele tinha que conversar algum problema com o filho, ele chamava sozinho, separado, e lá a gente conversava. E na época eu já tinha a escolinha. E ele me chamou justamente na escola. Ele falou com minha mãe que eu estava namorando o esse moço e que ele não queria porque a família desse moço era de maus maridos, e um cajueiro azedo não coloca um caju doce, que o pai do moço era muito ruim pra mulher e que ele não queria de jeito nenhum esse namoro, e que eu teria que acabar. Eu vi a minha mãe toda preocupada. Eu também estava arisca porque eu sabia o que estava acontecendo. Com medo, porque lá todo mundo cuidava, todo mundo vigiava. Ele me chamou numa salinha lá da escola, chegou da feira – falaram pra ele na feira – e disse que queria falar comigo. Já tinha tomado umas duas. Aí me levou pra salinha da escola, me mandou sentar e falou: "Olha, eu estou sabendo que você está de namoro com o filho de Neném de Adelito e eu não quero. Ele é muito ruim pra mulher dele. A mulher dele é de uma família excelente, não tenho nada contra. Mas ele é violento, é um pai ruim e eu não quero esse namoro. Hoje eu estou te pedindo que acabe com o namoro. Se você insistir, eu lhe dou uma surra e você para de estudar. Você escolhe: ou você estuda, ou você namora. As duas coisas não podem". Eu fiquei muito triste, mas no outro dia eu fui e falei com o rapaz que não. Quando eu o encontrei, eu falei pra ele. Imagina, a gente nem sequer pegava na mão, não podia. Falei que eu não ia namorar porque meu pai não queria. Eu era tão tonta que eu falei que a família dele era ruim (risos), que o pai dele era de uma família de ascendência muito ruim, então o meu pai não queria o namoro com ele. E ele foi embora pra Salvador. Foi muito interessante que, quando ele voltou, ele ficou um tempo trabalhando em Salvador. Ele era tão bonito. Quando ele voltou, acho que ficou uma paixão, uma coisa mal resolvida, e ele foi fazer uma serenata na janela da minha casa. Ele cantava aquela uma música do Roberto Carlos que falava: "Tantas vezes eu tentei voltar... O tempo me impediu, mas eu só quero dizer." Sempre eu escuto essa música. Depois ele namorou uma amiga minha e acho que ele casou com essa menina, não sei, mas eu acho que ele terminou casando. E era interessante que ela não tinha ciúmes. Toda vez que ela encontrava com ele em Salvador – eles eram mais adultos do que eu –, quando ela voltava, ela falava: "Olha, o Zé Carlos perguntou por você". E eu ficava: “Nossa, mas será que ela não tem ciúmes?” Ficava meio impressionada com aquilo, mas ela falava: "Olha, ele perguntou por você". E eu: "Ah é?" "Tantas vezes eu tentei voltar e dizer que o meu amor, nada mudou" Ele cantava. Eu acordei com ele cantando essa música na janela lá de casa. E o meu pai quase morreu. (risos) Quase que ele morre por causa dessa música. Mas eu já estava namorando outro rapaz que era de uma família muito digna, que os meus pais queriam, que os pais dele também queriam. Era o casamento do ano, o meu casamento com esse moço. Esse moço, quando eu ainda era menina, passava no carro de boi. Eles tinham um poder melhor do que o nosso. O meu pai e o pai dele foram criados pelo mesmo fazendeiro, só que o meu pai saiu da fazenda e foi se aventurar em outras fazendas, mas o pai dele ficou na fazenda e cercou um pedaço de terra na fazenda e plantou coqueiro. Se eles criassem um filho, cercassem uma terra, ali plantassem, construíssem as suas casas e casassem ali naquele pedaço, a terra ficava sendo de uso deles. O fazendeiro não tirava e nem os filhos do fazendeiro. E o velho Chico foi mais inteligente do que meu pai. Ele cercou um pedaço de terra que estava meio abandonado e foi plantando, foi construindo a casa dele. Casou. A mulher dele era doceira e vendia muitos doces bons na rua. Ficou com outra estrutura melhor do que a do meu pai. Ele casou primeiro, os filhos dele eram mais velhos do que a gente. E tinha um filho dele, o Hélio, que, quando eu ainda era menina, quando ele passava, jogava aquela varona de boi na minha frente e falava: "Quando você crescer, eu vou casar com você.” E eu fui crescendo. Tive essa paquera com o José Carlos, mas o Hélio sempre falando que ia casar comigo. Depois do Zé Carlos, eu comecei a pôr aquilo na minha cabeça, porque começava a despertar a adolescência, o interesse por outra coisa. Eu acho que comecei aquilo, eu o chamava de negro, porque eles eram bem negros. O pai dele era bem negro e eu falava: "Esse urubu fica agora enchendo meu saco." Ficava com um preconceito danado. E, de repente, enquanto eu o achava feio e preto, comecei a achar que eu deveria casar com ele mesmo, que, de repente, iria namorá-lo. Eu comecei a me interessar, mocinha mesmo, com o corpinho de moça, numa festa de Cosme e Damião da casa grande. A dona da casa grande fazia uma vez por ano, e eles iam lá fazer comidas típicas de Cosme e Damião. Quem me aparece? O Hélio, e eu já mocinha. Ele mexeu comigo, e eu me interessei. Ele perguntou se eu estava namorando o rapaz e eu falei: "Não, eu nem namorei. Eu não o namorei". Ele falou: "Ah, não?" Eu falei: "Não". Eu falei: "Então, agora, quem sabe você cumpre a sua promessa.” Eu fui ousada com ele. Ele parou, olhou, a gente conversou no meio da fazenda, no meio dos coqueiros, aquele monte de gente. Mas a gente deu um jeitinho de dar uma escapada pra conversar. No outro dia, ele foi me buscar no colégio de cavalo. Eu andando e ele de cavalo do lado, coisa mais ridícula. Andou um pouquinho com a gente e eu fui pra educação física, porque a gente fazia educação física, tinha os dias de fazer. Eu encontrei com ele no final da tarde, quando eu estava voltando da educação física. Ele perguntou do namoro. Eu falei: "Ah, vou pensar". Eu pensei por umas duas semanas. Depois comecei o namoro com ele. Aí, mais uma vez, o fazendeiro velho que criou meu pai, lá da fazenda, viu a gente passar. Eu, as minhas irmãs e ele junto. Pois no sábado ele chamou meu pai e falou: "Olha, o filho do Chico está namorando uma das tuas filhas e eu acho que isso é legal, isso é bom". Meu pai ficou possesso. Onde já se viu uma coisa dessas de namorar assim? Ele falou que se o menino quisesse namorar comigo, ia ter que falar com os pais dele. Eu falei: "E agora?" Chegou em casa perguntando, eu falei: "E agora?". Aí falei com ele, ele falou: "Ah, eu vou lá falar com ele." Mas também todo mundo era novinho, ainda sem experiência. Aí foi pedir namoro pro meu pai. Meu pai falou: "Namoro não, noivado. Não pense que você vai esquentar lugar na minha casa não, porque não vai. Você quer casar? Então vocês vão se preparar pra casar. Eu não vou te dar resposta, não. Eu vou pensar e depois eu falo com você". Mas no outro dia, o meu pai pegou o cavalo e foi pra casa dos pais dele falar com eles. Mas os pais dele já sabiam e queriam muito. Parece que era o ideal da família, que as duas famílias se unissem realmente. Esse casamento era o casamento falado da cidade, todo mundo planejava uma semana inteira de matança, de festa. Eles faziam uma semana pra matar gado, pra matar peru, enfim, era uma "comidaiada", uma festa enorme. E meu casamento eles já planejavam. As nossas famílias já planejavam essa grande festa, junto com esse grande fazendeiro que criou os dois, os dois pais, meu pai e o dele. E a gente terminou namorando mesmo. Eu terminei me interessando por ele e agente se apaixonou, chegamos a noivar, porque não podia perder muito tempo com namoro. A família dele era muito legal. E foi quando o meu pai morreu. Meus pais tinham muita confiança nele. E em uma festa de São João, eles me pediram pro meu pai me deixar passar na casa dos pais dele. A mãe dele que pediu. E, como era de muita confiança, meu pai deixou, e eu fui passar a festa de São João na casa deles. Eu já era noiva, praticamente. E era mais perto da cidade. Eles eram melhor financeiramente do que nós. Por isso eles já moravam bem próximos à rua. Próximos mesmo. Todo barulho que tinha na rua, da missa, a gente escutava de lá da casa deles. E aí nós resolvemos ir a uma quadrilha que tinha na cidade, na rua. E ele era muito danado, dançava muito. E eu não sabia dançar porque meu pai nunca deixou a gente ir a festas, Pro meu pai tudo era feio, tudo era proibido. Nós não tínhamos acesso a forró. Até hoje eu não sei, nunca aprendi. E o rapaz dançava forró, se matava pra dançar. E namorando uma moça presa, totalmente amordaçada, que não conseguia, não sabia nada disso. Nós fomos lá, assistimos, e ia ter festa na cidade, dança mesmo, forró. Ele deixou a família e eu na casa dele. Voltou escondido pra dançar. Aí, cadê o Hélio? Tinha ido embora pra cidade. Os pais dele ficaram muito nervosos. À meia-noite nós íamos acender a fogueira, fazer adivinhações, aquele monte de besteira que se fazia lá, acho que ainda fazem, aquela cultura. Adivinhação pra ver com quem casava numa bacia d'água. Nós estávamos todos preparados, eu e as irmãs dele pra fazermos adivinhações e na hora ele não estava. E um empregadinho da fazenda, empregado deles, falou que ele tinha voltado pra festa na cidade. Eu fiquei muito triste. Eu chorei, fui dormir, não quis mais nada. E dormi no quarto dos pais dele. (risos) Era tudo muito seguro. Os pais ficaram muito nervosos, mandou o menino ir lá à rua buscá-lo, que ele tinha que voltar, mas quando ele voltou, eu já estava adormecida. Eu deitei, eles acharam que eu estava dormindo e, à noite, o comentário foi essa desfeita que ele fez. E a Sônia, irmã dele, falou: "Olha, o Hélio vai casar com a Cecinha” – eles me chamam de Cecinha –, "por conta da vontade da família, mas está na cara que ele não gosta dela. Ele vai casar pra fazer a vontade da família". Eu ouvi aquilo e eu falei: "Nossa, mas casar comigo pra fazer a vontade da minha família e da dele? Não, jamais!" Porque eu gostava dele, então não era isso que eu queria. Quando amanheceu, que eu acordei, eu ouvi tudo isso e queria ir embora. Queria ir embora pra minha casa. E eles não deixaram ir pra casa. Quando ele acordou, me pediu desculpa e tentou me agradar, mas eu estava muito brava. Não mais brava porque ele tinha ido pra festa, mas muito decepcionada com o que eu ouvi da irmã dele. E ainda a outra irmã falou assim: "Imagina, você está louca? Ele gosta sim, é que ele é safado, mas ele gosta dela, gosta muito sim, eles se amam." Aí eu queria ir embora, ele não deixou, e, quando foi à tarde, eu falei: “Eu quero ir embora pra minha casa, eu quero ir pra minha casa.” Ele falou: "Não, eu vou te levar, não precisa minhas irmãs irem, porque é de dia, a estrada é muito larga e eu vou te levar, não tem problema". Aí eu fui sozinha com ele, mas quando nós estávamos indo, eu não sei se ele quis reparar alguma coisa, não sei, ele piorou a situação. Ele nunca tinha avançado, ele tinha um total respeito. Naquela época se namorava com todo respeito à moça, e tudo só depois que casar. Não tinha avanço, você pegava na mão, mal um beijo muito escondido. Até porque homem tinha isso nele, que aquela moça era de uma família decente, que ele ia casar e que ele não poderia avançar. E ele tentou ser ousado comigo na estrada. Aquilo na minha cabeça virou uma confusão muito grande. Primeiro ele me deixa e vai pra festa dançar com outras meninas. Depois a irmã dele fala que ele iria casar comigo porque a família queria, não por amor. E agora ele vinha avançar o sinal? Então realmente ele não era bem intencionado. Porque, quando o rapaz era bem intencionado com a moça, ele não mexia, ele esperava, se arrumava tudo, se preparava para o casamento. E, se ele estava com certa ousadia pro meu lado, é porque ele estava achando que eu era igual às meninas que ficaram dançando na cidade. Quem ficava dançando na cidade não eram meninas decentes. Não eram moças decentes pra nenhum homem casar. Aquilo me marcou muito e eu fiquei muito triste com isso e muito brava com ele. Eu falei: "Olha, você passou a noite dançando não sei com quem, está confundindo as coisas? Então, amigo, não dá. E eu realmente não quero nada com você". E a gente terminou por causa disso. Ele enrolou duas semanas sem falar pro meu pai que a gente tinha acabado o namoro. Falou: "Ah, a gente só acaba quando eu comunicar pros seus pais, tudo bem?" "Ah, tudo bem". Aí ele ficou enrolando pra ir falar e foi quando meu pai morreu de acidente. Aí, na morte do meu pai, ele foi muito legal. Ele não era ruim, era uma pessoa muito boa. Ele ficou muito do lado da minha mãe. E minha mãe ficou muito fragilizada porque tinha doze filhos, as primeiras filhas todas mulheres e meu irmão homem era ainda uma criança de dez anos. E ele ficou, ajudou muito a gente. Ele tomou a frente do sepultamento do meu pai, resolveu tudo, até porque podia, tinha outra situação financeira, trabalhava. Ajudou muito a minha mãe, então ele ia todos os dias ajudar minha mãe naqueles afazeres mais pesados da casa, como rachar lenha. Ele não deixava minha mãe pegar no machado ou na foice pra pegar lenha, pra rachar um tronco pra fazer comida, pra cozinhar, porque o forno era de lenha. Ele fazia isso pra minha mãe e a minha mãe a cada dia ia se apaixonando mais por ele, achando que era isso mesmo, que era o genro ideal. Comigo mesma eu pensava: “Mas agora a gente nem namora mais.” E agora? Que confusão que ficou, tudo isso aconteceu, meu pai morreu, ele assumiu como uma responsabilidade dele alguns afazeres pesados da casa, de lá daquele pequeno quintal onde a gente morava. E as famílias se unem mais com a morte do meu pai. E eu sofrendo, porque amava e tinha toda essa confusão na minha cabeça. Eu não conseguia falar com ninguém. Eu não tinha amigos pra falar, não tinha ninguém que eu pudesse falar. E eu caí na besteira de falar pra essa irmã dele que falou que ele não gostava de mim, talvez por vingança, não sei o que foi na minha cabeça naquela época. Ele tinha sido ousado comigo e por isso eu não queria mais casar com ele. E, no meio disso tudo, a família dele ficou sabendo e foi uma confusão tão grande, porque os pais dele cobravam que ele não havia me respeitado, que queria ser ousado. E ele ficou também com muita vergonha, se arrependeu muito daquilo. Ele pediu perdão e que não era nada daquilo. E aí surgiu a oportunidade da gente ir embora pra Paulo Afonso, e nós fomos pra Paulo Afonso. Eu com a minha família. E eu tinha uma coisa na minha mente, que eu não voltaria pra casar com ele, até porque ele não gostava. Não porque eu não gostasse, eu estava sofrendo muito porque eu tinha um amor muito grande por ele, afinal de contas ele era meu primeiro namorado, ele era uma paixão mesmo, não tinha outra. Mas aquilo me machucava, mas agora, em uma cidade maior, eu teria oportunidade de conhecer outras pessoas, conhecer outro rapaz e me apaixonar e namorar, já que eu não era amada por aquele. Aquilo ficou muito na minha mente, sem conseguir falar isso com ninguém. Ficamos em Paulo Afonso, voltamos pra audiência da morte de meu pai, porque ele estava trabalhando numa máquina do fazendeiro, tinha um indenização a receber por conta disso, nós tivemos esse direito. E, quando eu voltei, dois meses depois pra audiência, ele já estava com as alianças compradas e nós ficamos noivos. Então aquele casamento que ia acabar foi pra frente. Ele começou a construir casa e começou todo um preparo. A minha mãe também me preparando pra casar, comprando camisolas, colchas pra cama. Havia todo um preparo de algum enxoval, e a família dele também. Como a gente era mais pobre, eles prepararam enxoval pra eu também casar, criando porco pra vender, pra justamente ajudar no meu enxoval do casamento. E eu não conseguia mais sair daquilo: amando e sofrendo, e naquela confusão louca na cabeça, não sabia como resolver. As famílias estavam mais unidas, ele estava muito mais próximo agora. E aí? Como é que fica a história dele não gostar? Como é que casa sem gostar? Não dá certo, não é? Eu arrumei emprego, fui trabalhar e lá eu conheci um policial de trânsito. Menina besta se apaixona à toa. E eu me apaixonei por aquele homem. Ele era muito mais velho do que eu naquela época e descobriu que eu estava apaixonada porque uma amiga falou. Ele lanchava na mesma lanchonete que eu. E, um dia, ele entrou na lanchonete. Eu estava tomando um copo de suco, o suco caiu, comecei a tremer, caiu no chão, saí correndo pro meu serviço e aí era outro problema. Era noiva de aliança, um rapaz se arrumando pra casar na Bahia e agora eu já não amava mais aquele rapaz, eu achava que eu amava o cara do trânsito. Eu fiz uma carta. Esse mesmo rapaz, o Tarcísio, pegou um dia a aliança do meu dedo, tirou e falou assim: "Olha, deixe eu te dar um conselho, entregue esta aliança pro dono porque você não ama o suficiente pra casar. E eu sou um cara vivido, muito mais velho do que você, você é uma menina. Eu não vou me casar nem com você e nem com mulher nenhuma enquanto eu não tiver uma situação financeira definida. Eu não vou casar pra ver a minha mulher trabalhando, eu não vou casar pra ver a minha mulher passando algum tipo de problema. Mas você pode muito bem arrumar um cara legal que case com você." E eu fiquei muito decepcionada com aquilo porque ele dizia que não ia casar comigo. Então, um não gosta e outro não gosta também. Ficou aquela confusão na minha cabeça, medonha. E aí foi quando eu terminei o meu casamento, o que eu me arrependo até hoje. Eu fiz uma carta muito bem feita, era boa pra escrever que era uma beleza, era boa de redação. E deixei em cima da mesa uma cópia, e coloquei a carta no correio, tirei uma cópia, coloquei em cima da mesa e a aliança, na minha casa isso, pra minha mãe ver o que eu tinha feito e deixei a minha aliança. Tirei a aliança do dedo e fui embora de manhã cedo trabalhar. Quando a mãe acordou que viu aquilo, quase morreu. A minha mãe quase enfartou por conta disso que eu tinha feito. E deixei avisado ainda: “A carta original já foi pro correio.” Eu mandando terminar o casamento com ele. Sim, dei mil e uma desculpas e falei que tinha problemas no meio do caminho, que o nosso casamento não poderia acontecer. Fiz uma carta muito bonita e mandei. Mas eu tinha a certeza de que ele não me amava, eu acho que era isso o pior, o nó nosso era isso. Era saber que não existia amor por parte dele. E, quando ele recebeu essa carta, ele entrou em desespero. Ele leu essa carta, disseram que ele gritava igual um louco. Ele se trancou dentro do quarto, não saía pra comer, nem pra beber, nem pra banho nem pra nada. Naquela época não era depressão porque acho que nem tinha esse diagnóstico de depressão, mas ele entrou num estado muito doloroso de adoecimento, porque ele não se conformava, disseram que ele gritava e a família dele não entendia. Quando pegaram a carta pra ler, eu estava terminando o casamento, foi um momento muito difícil pra todos eles, e eu sofrendo também do outro lado. Porque era uma decisão que eu tinha tomado e estava muito dividida entre aquilo. E também tinha a mágoa de tudo aquilo, eu achava que o amor tinha acabado. E minha mãe ficou muito triste. Ficou todo mundo revoltado contra mim, foi uma guerra que eu criei dentro da família, tanto dele quanto da minha. Houve um silêncio total entre a gente. Ninguém me dava notícias dele, não se falava deles perto de mim, falavam escondido. Porque eu era a culpada por ter terminado o casamento, eu era uma irresponsável, o que eu estava fazendo. Ninguém entendia por quê. E os anos se passaram, eu casei. E o pior de tudo (risos) é que anos depois - ele ficou solteiro durante muito tempo – eu fiquei sabendo que ele tinha casado e eu fiquei muito triste. Eu já casada, com filhos, e eu chorei muito porque ele tinha se casado. Eu não me conformava porque ele tinha casado. Foi quando eu falei pra minha mãe: "Eu estou muito triste, eu não me conformo que ele casou". Aí minha mãe falou: "Mas como, você é besta? Ficou louca agora? Quer dizer, toda loucura que tu fez, tu continua louca até agora? Porque agora tu está casada, com filhos, e ainda está preocupada com o rapaz que você abandonou? Um rapaz que adoeceu, um rapaz que enlouqueceu por você e foi preciso se tratar em Salvador?". E eu não sabia disso. Ele ficou num estado tão grave que o levaram pra Salvador, pra tratamento. E só depois de tudo isso é que eu descubro que existia nele um amor muito grande que o levou à loucura de precisar de tratamento fora. Isso me adoeceu mais ainda. Isso me perturbou muito e eu comecei a entrar em conflito em sonhos, eu comecei a sonhar com ele, eu tinha sonhos da gente namorando. Eu dormia, sonhava que nós estávamos namorando e, quando a gente começava a namorar, que ele se aproximava de mim. Eu tinha muito medo porque eu não era mais moça, não ser moça é não ser virgem. Na hora que ele chegava perto, eu lembrava que eu não era mais virgem, mas eu já estava casada na vida real, mas, no meu sonho, eu não estava casada, tinha algo rompido no meu sonho que impedia que nós dois nos aproximássemos de novo. Então eu acordava com pesadelo, chorando. Eu sofri muito porque eu descobri que teve muitos segredos, muitas conversas que a gente não conseguiu ter. Nem ele falar, nem eu falar. Ele sofreu, eu sofri. Existia um amor grande entre a gente, que por uma fala de uma irmã dele, uma fala infeliz dela, ela tirou tudo do nosso caminho. Tanto meu quanto dele. E ele demorou muitos anos pra poder casar. Aí eu comecei a sentir desejo, olha que absurdo. Eu casada, com filhos, no íntimo, no fundo do meu coração, tinha muito desejo de vê-lo. E, acho que por conta desse desejo profundo, eu sonhava com ele quando eu dormia. Fiquei muitos anos casada e sonhando com o homem. Quando eu sonhava, tinha mais medo ainda, porque, se eu falasse, o meu marido me mataria, imagina se eu chegasse no sonho a falar alguma coisa. Eu acho que é a primeira vez que eu estou falando isso na minha vida (risos). É que eu tinha muito medo que alguém soubesse desse segredo. E assim que ele casou, o meu marido morreu. Foi muito próximo, um ano ou dois que ele casou, eu fiquei viúva. Quando ele casa e logo depois eu fico viúva, eu falei: "Caramba, agora, quem sabe? A gente poderia se reencontrar." Eu fui numa cartomante, essas coisas de loucura, uma adivinha, sei lá o que é, e a cartomante falou que um dia eu ainda ia ter um reencontro com o meu passado e que isso ia me perturbar bastante, talvez mudasse totalmente a minha vida. E eu fiquei com aquilo na cabeça, que a gente poderia se reencontrar um dia. Mas os anos se passaram. Naquela época eu era ainda nova, quando fiquei viúva. Com 29 anos, ainda tinha alguma esperança mesmo, e depois, acho que ele estava casado e estava bem. O tempo passou e a gente nunca se encontrou. Tem 34 anos que nós nos separamos e que nunca mais nos vimos. Mas, quando a minha família vai até o Conde, que ele encontra minhas irmãs, a minha família, ele ainda pergunta por mim, e eu também consegui o telefone da mãe dele. Agora até parei, mas anos atrás eu ligava pra família dele. Mas eu acho que eu ligava com esperança de que ele atendesse ao telefone (chora), sabe? Tinha aquela esperança dentro. Toda vez que eu ligava, no final de semana, eu falava: "Quem sabe ele vai atender ao telefone". Mas, não, ele nunca atendeu ao telefone porque ele nunca estava no Conde, ele hoje vive em Salvador. Ele tem um restaurante em Salvador. Ele casou, não sei quem é a menina com quem ele casou, tem um filho, dois filhos. O filho dele também hoje é moço, mas eu fiquei com esperança muitos anos de que a gente pudesse se encontrar pra conversar sobre todo esse mal entendido que ficou na nossa vida. Eu acho que a gente se deve isso. (chora) Na [ONG] Ashoka, há uma pessoa descendente da família da qual meu pai foi criado, a Tiana. Ela é lá do Conde, da minha cidade, e, justamente a família dela é da família que criou o meu pai, é a família dos Lins. E eu chorei muito no dia que eu a encontrei na semana passada. Eu a encontrei e quando nós conversamos, ela falou: "Sou baiana". E eu falei: "De onde?" Ela falou: "Do Conde". Ela falou: "Você é de onde?" Eu falei: "Sou do Conde". Eu falei: "Mas você é de que família?" Aí que ela falou. Nossa, mas eu chorei tanto. Falei: “Nossa, mas como o destino. Termina aproximando a gente. Que coisa!”.
P/1 – Verdade.
R – Então eu conheci toda família da Tiana, lógico que era da família que, praticamente, era a minha família de criação. Os velhos a gente até chamava de vô. Morreram. Imagina, a Tiana é da quarta, quinta geração, mas é da família. Família muito nobre. Família de senhores de engenho, descendência daqueles senhores de escravos, mas eram pessoas boas, não eram pessoas ruins, não. Era gente muito boa. E traz de volta um pouco dessa história mesmo, e eu chorei muito quando a vi, quando a gente começou a falar. Eu me lembrei das minhas professoras, das meninas que estudaram comigo, que são primas dela. Alguns deles ela conhece ou já ouviu falar do nome. Acho que elas já morreram também. Não sei hoje, porque já tem muitos anos. Depois disso, eu nunca mais voltei pro Conde. E aí, nessa semana, falando lá na [ONG] Conectas [Direitos Humanos], falando sobre isso, pra doutora Heloísa, que é uma grande amiga, uma advogada parceira nossa, ela perguntou: "Há quantos anos você não volta pra sua terra?" Eu falei: "Nossa, muito mais de 30". E ela perguntou se eu não tinha vontade de voltar. Eu falei: “Tenho.” Aí ela falou: "Então a gente vê a passagem, Conceição. Escolha o dia, escolha o mês que você quer ir que a gente vê pelo Conectas as tuas passagens pra você ir passear". Eu falei: “Nossa, está voltando tudo mesmo.” E agora isso aqui foi muito profundo.
P/1 – Que bom.
R – Deixa o Hélio ficar lá na vida dele, mas eu ainda vou voltar pra falar com ele. (risos) Um dia a gente vai se encontrar ainda, só pra se ver, dois velhos. Eu fico imaginando hoje como ele está. Ele é mais velho do que eu. Já estou com 52, ele está com 60. Eu acho, não sei, está velho também. Mas até pra falar um pouco sobre isso. Eu acho que a gente tem o direito de falar. Porque eu acho que teve sofrimento na nossa infância, na nossa adolescência, que não era uma culpa nossa. Os adultos intervieram muito nas nossas vidas e isso foi ruim pra gente.
P/1 – Me conta: quando você estava aqui em São Paulo, como é que foi? Você não estava trabalhando quando você chegou aqui, não é?
R – Não. Quando eu vim pra São Paulo, meu marido trabalhava, e eu cuidava dos filhos. E também foram nascendo os filhos. Eu trouxe dois, e nasceram mais três aqui. Eu trouxe a Valéria e o Frank. Aqui nasceram o Téo, a Viviane e o Cássio. Eu fazia algumas coisas, mas pra vizinhos. A minha vida estava muito ligada à criança. Tem outra coisa que me incomodou muito em São Paulo: é o fato das mães saírem cedo pra trabalhar e deixarem os seus filhos trancados. E as crianças se cuidavam sozinhas. Como eu não trabalhava, eu pegava os filhos das vizinhas e cuidava. Eu dava comida, banho, colocava pra brincar com os meus filhos, colocava pra dormir à tarde. Ensinava lições de casa. Se estivessem doentes, eu medicava. Eu comecei a fazer isso ali onde eu morava, durante o tempo em que o meu marido foi vivo. Eu comecei a cuidar dos filhos dos outros. Lavava a roupa das vizinhas, passava. Com isso, também me trazia certo dinheiro pra casa, pra ajudar nas despesas de casa, nas minhas despesas mesmo, besteiras com os filhos. E aí foi quando meu marido enfartou. Foi em 86. Em 84 nós mudamos pra Cidade Tiradentes, quando saiu a nossa casa lá na Cohab. Com dois anos que nós estávamos lá, ele enfartou na porta de casa e morreu. E quando ele morreu, eu fiquei com os filhos pequenos. Meu marido morreu no dia 22 de setembro de 86. O Frank, que é o segundo filho, fez oito anos no dia 23 de setembro. A Valéria ainda estava com oito anos. No dia 12 de outubro ela fez nove anos, que é a mais velha. E o Cássio era bem pequeno também quando o pai dele morreu. E ele estava desempregado quando faleceu, ele ia começar a trabalhar. Ele tinha deixado todos os documentos dele, carteira profissional, registro das crianças, em uma metalúrgica. Eu não tinha o endereço, perdi todos esses documentos dele. Ele foi na quinta-feira, fez o teste, passou, foi na sexta e entregou toda a documentação pra começar na segunda. De sábado pra domingo ele faleceu, enfartou. Estava desempregado, e ainda os últimos registros de carteira ficaram nessa firma que eu nunca descobri onde era. Não fiquei com nada da firma que ele tivesse levado pra casa para ir à busca dos documentos dele. Aí comecei uma peregrinação, fazendo levantamento das carteiras antigas que ele tinha pra conseguir a pensão. Eu consegui uma pensão, mas o meu marido, se ele hoje fosse vivo, ganharia uma média de dez salários mínimos. Ele era soldador de classe A. Então era um metalúrgico que ganhava muito bem. Mas infelizmente ele estava desempregado, eu não tive seguro, não tive nada. O que eu consegui foi uma pensão, que era de quase dois salários mínimos. Hoje, com essa problemática do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], eu estou com um salário mínimo. Preciso até rever, porque houve uma caída terrível, eu preciso rever essa coisa da minha pensão. E a minha pensão é vitalícia, não é alimentícia. Mas de pensão não dava pra viver e criar cinco filhos. Eu trabalhei muito em casa de família, lavei muita roupa pra fora, eu varri rua quando eu fiquei sozinha com cinco filhos. Ele ainda deixou a prestação da casa atrasada. A casa foi quitada porque estava no nome dele e era da Cohab, mas as prestações que estavam atrasadas teriam de ser quitadas, pagas pra poder entrar com o pedido da quitação da casa. E eu fui trabalhar pra acertar tudo que ficou pra trás e criar os filhos. Trabalhei bastante. Fui muito infeliz com meu marido, ele era um homem muito violento, muito agressivo. Foi um homem que me bateu muito, foi um homem que me humilhou muito. No meu terceiro filho, eu quase morri porque ele me agrediu, eu grávida de sete meses. Eu comecei a perder água até os nove, até o nono. O Téo nasceu em casa, com meu marido bêbado. Na hora que ele chegou do serviço, eu estava já sentindo as dores de parto e falei pra ele tomar banho e jantar, que nós iríamos pro hospital porque eu ia ganhar neném. Ele falou que não, que eu esperasse pro outro dia, naquele dia, não. E eu ainda era muito ingênua. Como ele falou que era pra eu esperar, que naquele dia não, eu falei: "Bom, se ele mandou esperar, eu vou esperar". E eu fiquei quietinha dentro de casa. Tinha um monte de vizinhos no quintal, mas eu não falei nada pra ninguém. Ele comeu e foi dormir bêbado e eu fiquei lá, me torcendo de dores de parto. Quando foi por volta das 11 e meia da noite, eu, com muitas dores, não conseguia mais deitar, não conseguia sentar, não conseguia mais nada, andando, e eram umas casinhas bem humildes, e era um banheiro coletivo no quintal, não tinha banheiro dentro de casa. Tinha urinol, bacia, que a gente leva pro quarto pra fazer as necessidades à noite e, no outro dia de manhã, tira. E, de repente, me deu uma vontade muito grande de fazer cocô, mas eu estava com muita dor. E eu acho que, nos dois primeiros filhos, eu não tive muita noção do que era o parto, sei lá como é que foi, parece que eu não vi direto essas coisas. Não sei se é porque eu tinha toda assistência do médico, do hospital. Eu me lembro das dores, eu lembro de todo o problema do parto da Valéria, como foi difícil, eu sofri muito. O parto do Frank foi muito rápido, do segundo filho. Mas eu acho que eu fiquei besta no parto do terceiro filho. E, como ele me mandou esperar, quem seria eu pra desobedecer? Eu tinha mais era que obedecer e esperar. O que é que eu ia fazer? Eu achei que o neném ia esperar pro outro dia, na hora que o pai dele quisesse me levar pro hospital. E aí ele nasceu. Mas quando deu essa vontade grande de fazer cocô, eu peguei o urinol e abaixei. Na hora que eu abaixei, o neném veio. Eu senti na hora, aquilo rasgou. Eu estava agachada, e o neném saiu, a cabeça do neném. Eu comecei a gritar. Corri pra cama com a perna aberta, com aquele neném saindo. Quando eu deitei na cama, que eu fiz assim com a cabeça, o neném nasceu. E começou a se afogar no meio daquilo que sai, aqueles restos de parto, aquela água, aquele sangue, nem sei o que era tudo aquilo, e aí o neném começa a se sufocar naquilo. É muito interessante, o menininho nasce emborcado, de barriga pra baixo. E a menina nasce de barriga pra cima. E ele nasceu, quando ele saiu, começou a se sufocar e acordou. O meu marido acordou assustado, quando viu aquilo, ficou nervoso. Queria que eu morresse, falava: "Eu quero que você morra, tomara que você morra. Olha só o que você fez, quero que você morra!" Eu falei: "Mas...". E eu fiquei parada, olhando. Falei: "Olha, o neném está se afogando, pegue a criança, está se afogando". Aí ele pegou, quando ele virou o menino, falou: "Ô! É homem. E agora o que é que eu faço?". Ficou com aquele neném na mão. "E agora o que é que eu faço?" Eu falei: "Coloca ele do lado, no fundo aqui, essa senhora que mora aqui no fundo é parteira. Ela é nordestina, é parteira. Vá lá, chame ela, que ela vem até aqui. Ela cuida do neném e de mim". E aí ele foi chamar. Isso em Carapicuíba e por volta da meia-noite, muito tarde. Um lugar escuro, porque não tinha iluminação. Eram casas alugadas, mas eram de madeira, eram barracos de madeira. E ele gritava pela senhora Francisca, e ela ficou com medo de sair. Mas o meu filho começou a chorar. Acho que foi passando o tempo e o neném mesmo começou a chorar, sozinho. Ele nasceu caladinho, ficou quieto, mas, de repente, ele abriu a boca a chorar. A filha dela ouviu o choro do recém-nascido e falou: "Mãe, olha, uma criança acabou de nascer, e a pessoa que está te chamando é pra socorrer, vai lá". E elas vieram com aquele candeeirozinho na mão. Bateram. Ela falou: "Ai, minha filha, que é que você fez?". Eu falei: “Eu não fiz nada, o neném nasceu.” Ainda estava com a placenta, ela foi tentar me limpar, me apertar pra que a placenta saísse. Porque a placenta é justamente o que leva o óbito na maternidade, essa questão do resto do parto que fica dentro da mulher, e ela me perguntava se era sempre assim, porque tinha dificuldade de limpar. Eu sentia que ela estava com dificuldade. E ela: "E com os outros, foi assim?" Eu falei: "Eu não sei, eu nem vi direto, me cortaram lá, nasceram os meninos, eu não sei". Mas, enfim, esquentaram água, deram banho no meu filho, cortaram o umbigo, vestiram, limparam a cama, que estava tudo bagunçado. Ele pegou aqueles restos de parto que ela mandou enterrar e, junto com os lençóis da cama, colocou num tanque, do lado de fora, no quintal. E, no outro dia, os cachorros pegaram aquilo e saíram arrastando, comendo, sei lá o que é que os cachorros fizeram com aquilo. Os vizinhos viram e reconheceram que eram restos de parto, que era alguma coisa ligada a um parto de mulher. Foram descobrir que eu tinha ganhado neném em casa. Ficaram superchateados porque eu não chamei ninguém, porque eu não avisei, porque ele era muito irresponsável, que eu poderia ter morrido, meu filho poderia ter morrido também. Mas, enfim, o Téo nasceu. Três dias depois, ele pesava cinco quilos e duzentos gramas. Ele era enorme, era uma criança muito gorda, muito grandona. Ele é grandão até hoje. Tinha uma cara desse tamanho! E muito saudável, nunca teve problema nenhum. Queriam me levar no hospital no outro dia, e eu falei: "Mas o que é que eu vou fazer no hospital?” Pra mim, já estava tudo resolvido. Mas é lamentável como os pais criavam os filhos naquela época, onde tudo era feio. Tudo era tão proibido. Eu saía da mão de um pai muito controlador pra um homem muito domador. Isso é muito triste. É uma história que eu tenho certeza que não ficou só comigo, essa história se repetiu com outras meninas, com outras moças. Outras mulheres tiveram esses traumas da vida por terem casado, por terem um pai controlador demais, vigiador. E casam com um homem estúpido também, ignorante. E essa é uma realidade hoje das mulheres que eu atendo, das mães, das minhas vizinhas, das pessoas da minha classe, das pessoas que foram criadas como eu, que tiveram toda essa dificuldade para avançar e casaram com pessoas tão severas. E tiveram famílias também tão severas. Acho que a gente traz alguma sequela muito séria dessa infância, dessa adolescência, dessa mocidade. É lógico que, pra mim, ela me serviu muito como exemplo de vida. Cada pedacinho que eu passei na minha vida, eu tirei dele uma lição para avançar. Acho que cada momento serviu de degrau pra minha vida. Porque eu procurei orientar as minhas filhas tudo em cima de cada ponto vivido na minha vida, foi o que eu levei pra eles, pros meus filhos. Tanto as meninas, quanto os meninos. É tanto que os meus filhos homens são mais maternos do que paternos. Os meus filhos conseguem ser mais amorosos e carinhosos com os filhos deles do que as próprias mulheres deles. De trocar fralda, de levar ao médico, de dar vacina, de levantar à noite. Esse envolvimento que eu não tive com o meu marido, eles têm com a família deles. Isso é uma coisa que me deixa feliz. Eu acho que tudo foi muito para o meu crescimento, para eu consegui crescer com a minha família.
P/1 – Conte um pouquinho pra gente como é que foi pra você, sozinha, criar esses filhos, batalhar tanto, levá-los pra escola?
R – Na época em que o marido era vivo, eu os levava pra escola e buscava. Os dois primeiros. Até o terceiro, eu ainda consegui levar no pré. Com a morte dele, as crianças ficaram sozinhas, e eu precisei ir trabalhar. Eu saía de casa muito cedo, cinco horas da manhã, porque eu entrava às sete. Isso quando eu consegui fazer concurso e entrar no serviço público. Depois que ele morreu, eu consegui entrar na Prefeitura de São Paulo. Contratada, depois eu consegui prestar concurso e me efetivei. Era muito difícil porque eu tinha que sair muito cedo e deixar meus filhos muito pequenos sozinhos. Eu deixava tudo arrumado: uma garrafa com café, uma garrafinha térmica com leite, o pãozinho já com a manteiga na mesa, os copinhos de plástico pra que eles não se machucassem. Eu comprei canecas de plástico, deixava o leite, o café numa temperatura que, se caísse na pele, não machucasse, para que não se queimassem. Eu deixava tudo pronto, os pratinhos, tudo certinho. Os pratinhos que eles iam comer. O suquinho ficava pronto. O arroz, o feijão pronto e a mistura também. Durante a semana, eu procurei deixar sempre carne cozida pra que eles não precisassem fritar, pra não se queimarem, pra não precisar fazer “arte”. Porque eles eram muito pequenos. A Valéria tinha nove anos e ela tinha que cuidar de cinco irmãos. Quer dizer, eles eram todos muito crianças ainda. Eu saía de manhã, os deixava dormindo, ia ao quartinho, os cobria e fechava a porta e tinha que ir embora, não tinha jeito. Eu tinha que deixar as chaves deles em cima da mesa e levar minha chave, e pedir pra Deus cuidar e os vizinhos olharem. E os vizinhos olhavam também, muito. Eles tinham muito medo do trovão, muito medo da chuva. Eles tinham muito medo de um rapaz que se chamava Magrão, que era um meio indigente. Eles morriam de medo, mas foi muito sofrido pros meus filhos porque eu trabalhava em dois serviços, o que aparecesse eu trabalhava, porque eu queria. Eu acho que a mulher tem muito isso, eu queria provar que eu era capaz de criar os meus filhos dignamente. E muito melhor do que com aquele homem que bebia, que me espancava e que nos maltratava. Porque os meus filhos tinham traumas de bêbado, de violência. Então, quando meu marido chegava de forma violenta, já dava dor de barriga na Valéria, diarreia e os outros começavam a tremer, a se esconder. Era uma vida muito difícil. Mesmo o meu marido sendo um bom profissional, com um emprego legal, ele era um homem muito violento. Ele era um homem que o dinheiro dele não rendia. Quando ele morreu, os meus filhos não tinham uma cama pra dormir. A casa era pequena, eram dois cômodos. Era a casa da Cohab. Ele não conseguiu aumentar a casa pra que a gente pudesse viver melhor, e o meu sonho era que os meus filhos tivessem o quarto deles, que cada um tivesse a sua cama, que a vida pudesse mudar. E eu tinha certeza que eu podia fazer isso com a morte do meu marido. Eu comecei a trabalhar desesperadamente. Tanto pra aumentar a casa, como comprar algumas coisas que eu queria, que eu precisava, para que a vida dos meus filhos também fosse diferente. A gente estava livre da violência dele, então a gente estava livre pra voar. E a primeira coisa que eu fiz foi comprar pratos com o primeiro salário. Eu comprei pratos novos pra casa. Pratos e talheres. E comprei uma cama, comprei um beliche pros meus filhos dormirem. Tinha o beliche, onde os dois meninos dormiam, os dois mais velhos. Tinha um sofá onde a menina preferia dormir, e os dois mais novos dormiam comigo na cama. Primeira coisa que eu fiz foi comprar cama e colchão novo, pra dormir com dignidade. Porque dormia numas espumas velhas, muito pobres, muito feias aquelas espumas eram. E eu comecei a trabalhar pra juntar dinheiro pra aumentar a casa. Murar, colocar portão, porque a casa era toda aberta. Coloquei portões na casa, primeiro. Depois, comecei a construir dois quartos, que era um quarto pra mim com as meninas, e o outro pros meninos. Enfim, a gente tinha dois quartos na casa. Eu assentei bloco, eu reboquei naquela casa, eu sei onde tem cada tijolinho porque eu trabalhei de ajudante de pedreiro pra poder fazer. Pegava o final de semana que eu estava em casa. O pedreiro ia final de semana pra construir pra eu poder ajudar. Tem o vizinho, que ficava com muita dó e ia lá mexer a massa, porque me via ajudando o pedreiro e me ajudou muito. Teve um rapaz que me ajudou muito na construção da casa. Os vizinhos ficavam, acho, penalizados de me verem ali trabalhando daquela forma. E nós construímos. Fiz os dois quartos, comprei móveis, guarda-roupa, cama nova pra eu dormir. E aí foi se organizando a casa. Mudamos de televisão, pra uma televisão em cores. Aquela cômoda velha, cheia de baratas, foi substituída por uma estante. Entendeu? A gente foi colocando sofá, foi organizando realmente a vida. E aí foram dez anos de total felicidade. Dez anos muito bons. Eu trabalhava bastante, mas eu era muito feliz. A minha vida, a minha casa era uma festa com os meus filhos. A Valéria começou a trabalhar muito cedo. Até contra a minha vontade. Mais ou menos com 12, 13 anos ela arrumou um serviço num depósito de material de construção e foi trabalhar. Primeiro nos finais de semana, depois já durante a semana ela conseguiu ficar. Com isso eles foram me ajudando. O Frank começou a trabalhar com 14 anos também em uma tinturaria no Bom Retiro, pra ajudar. Foi melhorando. Os dois filhos já trabalhando, só tinham três em casa. E a verba aumentou, a gente já podia sonhar com algumas coisas. E durante dez anos nós vivemos numa felicidade muito grande. Em um amor, em uma união, em muita paz, não tinha guerra. Era um sonho a nossa vida nesses dez anos. E eu tinha uma preocupação muito grande. Quando meu marido morreu, a única coisa que me deixava muito preocupada era o medo das drogas. Sempre me assustou muito. O Frank, o Téo, até a própria Valéria, eu vigiei bastante. Eu cheirava os bolsos dos meninos, olhava carteirinha deles. Eu vivia numa vigilância total.
Todo mundo bem, o Frank foi trabalhar e o Téo era o mais inteligente da casa. É até hoje. Ele sempre era o primeiro lugar na escola. Como ele se interessou mais pelo estudo, ele chamava mais atenção, até pelos próprios elogios, pelos presentes que ele ganhava da escola. Eu comecei a colocá-lo pra fazer cursos profissionalizantes. Ele fez serviços gerais de escritório, e a gente pagava um valor bem pequeno. Depois a escola conseguiu que ele fizesse um curso de informática, digitação. Foi pago também, mas era um valor que dava pra pagar. Nós três, eu e os dois irmãos um pouco mais velhos, fomos procurando investir nele, já que ele tinha algumas vocações. E aí ele foi estudando. Depois eu queria que ele fizesse Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], que fosse torneiro mecânico. Não, eu não sei o que era. Só sei que ele fez curso de torneiro mecânico, que era o que tinha no Senai. Era um sonho fazer Senai, pra mim, que não conseguia naquela época pensar em uma faculdade pra eles, era como se ele estivesse fazendo nível superior, faculdade. Tinha o Senai, perto de onde eu trabalhava, na Prefeitura. Eu saía de casa cinco e meia da manhã com ele, pra ele entrar às sete horas no Senai. A gente pegava o ônibus, descia próximo, eu o deixava na porta do Senai e ia pra prefeitura trabalhar.
À tarde, se ele saísse primeiro do Senai, ele ia à Regional me pegar. Aí ficava um pouco comigo, depois nós pegávamos o ônibus e íamos embora pra casa. Ele era um dos melhores alunos do Senai. Ele não tinha faltas, não tinha atrasos. Os pais de muitos meninos do Senai, geralmente, já são de empresas, ou estão trabalhando em alguma metalúrgica. Enfim, esses meninos já têm uma carta pra que fossem encaminhados pra empregos de metalúrgico, mas o meu não tinha, a gente não tinha quem fizesse isso. Mas ele se destacava muito na questão da pontualidade e da inteligência. Tinha até a esperança de conseguir uma firma pra que ele fosse trabalhar se ele continuasse ali. Porque não pode ter atraso, não pode ter falta. Faltar é gravíssimo. Você perdia, não sei hoje como está. Mas era um fator que, se tivesse alguma empresa ali te namorando, você perderia oportunidade de ir pra aquela empresa diante de uma falta. E, um dia – foi uma coisa muito marcante pra gente –, eu perdi a hora de acordar. E como eu perdi a hora, ele também perdeu. E, quando eu acordei, não dava mais tempo. Ele ia chegar atrasado. E, ao invés dele correr e se vestir pra que a gente pudesse sair rápido de casa, ele ficou chorando meia hora em cima do beliche. Ele sentou no beliche e chorava (risos), me dizendo que eu era culpada porque ele tinha perdido a hora, porque agora ele ia chegar atrasado. Esse menino fez tanto escândalo por causa disso. "Você vai chegar atrasado. Não quer chegar atrasado? Então fique em casa." E aí me troquei e fui embora trabalhar. Cheguei atrasada, mas eu fui. E ele ficou chorando, e esse dia pra ele foi um terror. E, por conta disso, ele perdeu uma vaga, um encaminhamento que tinha de uma metalúrgica já querendo levá-lo pra trabalhar. Mas ele terminou o curso dele, foi um ótimo aluno, concluiu tudo bonitinho. Ele já tinha de 16 pra 17 anos. O Frank, com 14 anos, começou a trabalhar numa tinturaria no Bom Retiro. Ele levou a Valéria pra trabalhar com ele. Quando Téo concluiu o Senai, como não conseguiu uma metalúrgica pra trabalhar no curso que ele se profissionalizou, como ele tinha serviço de escritório e digitação, o Frank conseguiu levar ele pro escritório da firma também, e lá ele ficou. Depois, com algumas ambições de crescer na vida, ele saiu de lá e não deu certo também aonde ele foi. A vida ia dessa forma, muito legal. Até o momento em que eu desconfio do Cássio, que é o caçula. Os dois ficavam em casa, Cássio e Viviane, e uma das coisas que me marcam e que hoje eu falo muito pras minhas noras e pras minhas filhas é pra que elas fiquem próximas dos filhos o mais que elas puderem. O Cássio perdeu o pai, eles perderam o pai. Ao mesmo tempo, eles perderam a companhia da mãe. Porque eu fui trabalhar, e só tinham a mãe à noite e nos finais de semana, lavando e passando e fazendo tanta coisa que não dava tempo de cuidar deles, de se dedicar a eles. O Cássio era o caçula. Então ficou sendo criado pelos outros e pela rua. Porque não tinha creche, não tinha onde deixar. Então, ou eles ficavam em casa, ou ficavam soltos na rua. E eu desconfiava da adolescência do Cássio, estava estranha. Muito estranha em relação aos outros irmãos. Todos foram adolescentes, todos tiveram lá suas questões. O Frank, eu não digo que ele teve adolescência nem infância. Quando o pai dele morreu, ele, sendo o segundo filho, era como se quisesse assumir o papel de pai. Ele era aquele que tentava controlar tudo, tentava olhar tudo, tentava arrumar melhor a casa do que a Valéria pra me agradar. Não sei por que era aquele sentimento dele, qual era o sentimento que ele tinha, de criança, daquela forma. E uma das coisas que ele fazia muito comigo era me beijar. Eu chegava e ele beijava tanto que ele grudava e ficava beijando. "Para, menino! Por que você beija tanto?" Ele falou: "Mãe, sabe por que eu te beijo tanto? Porque o meu pai não deixava a gente beijá-lo, ele dizia que homem não beija homem. E o meu pai morreu. E eu tenho uma vontade louca de beijar o meu pai. Então eu quero te beijar muito, muito, que é pra o dia que você morrer, eu não sentir vontade de te beijar, como eu sinto do meu pai." Aí eu fui me conformar que aqueles beijos eram pra matar a necessidade de alguma coisa, porque realmente o pai era muito ignorante. Mas eu não fui uma mãe beijoqueira, até porque eu recebi isso, eu acho, da minha mãe. Se ela tem tantos filhos, você imagina: até chegar o décimo segundo (risos), ela ia ficar cansada. Mas os meus filhos são muito carinhosos, graças a Deus. Ia tudo maravilhosamente bem. Eu achava que a vida difícil, sofrida, tinha ficado ali, a gente tinha enterrado com o pai deles. Era isso que eu tinha, a minha sensação era essa. Ele tinha levado com ele toda a ruindade. Tudo aquilo que não crescia, ele levou embora. Mas, quando Cássio completa 14 anos, mais ou menos, eu começo a perceber algumas diferenças, algumas mudanças. Em toda a sua infância, não saiu da minha cama. Mesmo tendo a cama dele no meu quarto, ele tinha uma caminha lá e não dormia na cama dele, só dormia comigo. E, de repente, ele foi dormir na cama dele. E já não me olhava mais nos olhos. Eu entrava, ele sempre baixava a cabeça. Quando eu queria falar com ele, ele baixava o olhar. E aquilo foi me causando preocupando. Eu falei pros dois maiorzinhos que eu achava que o Cássio estava meio estranho. Será que não era droga? Porque eu tinha achado os olhos dele vermelhos. Eu achava estranho, ele comia muito. Ele comia mais do que o normal. Mas ele tava tão bem na escola, querendo ir pra escola, com toda a disposição. Ele era sempre manhoso, preguiçosíssimo. "Mas que bom, mas que estranho também, de ir pra escola. Já levanta, vai pra escola. Será que esse moleque vai mesmo pra escola?" E pedi pra minha irmã, que morava próximo da escola, no quinto andar de um prédio, olhar se ele entrava na escola e olhar na hora da saída. Ela ficou observando, e ele entrava na escola. Ela me falou: "Olha, fica tranquila porque ele entra. Ele passou lá, bonitinho, entrou no portão, o vi entrar no portão da escola, ele vai estudar." Eu falei: "Nossa, que bom! Despertou a vontade de estudar no menino preguiçoso?" E as coisas foram se modificando dentro de casa. Começou a sumir os CDs. A gente já tinha um controle, uma situação melhorzinha de conseguir estar longe de cheque, limite no banco, cartão de crédito, essas coisas que estavam distantes ainda das nossas vidas. Aí, com o trabalho dos meninos, nós três trabalhando, e eu sempre trabalhando, fazendo alguns bicos fora, eu consegui ir conquistando essa cidadania, essa inclusão. E eles também passaram a ter vaidades. Aquilo que os primeiros usavam, aquelas roupas compradas lá no “queima”, as roupinhas mais baratas, o tênis mais barato, o Cássio e a Viviane passam já a ter outro status. Eles já usavam tênis de marca, usavam camisa da Ombongo, da Nicoboco, tênis Adidas. Eu não sei, tinha lá umas marcas, que até hoje eu não consigo entender muito porque eu nunca me interessei muito por essa questão das marcas das roupas caras deles. Mas, enfim, a gente já conseguia fazer isso. Não comprar à vista, mas eu assinava o meu cheque, dava minha identidade, e eles podiam ir ao shopping, coisa que foi distante dos primeiros irmãos, da minha vida, inclusive. Eu poucas vezes fui ao shopping, até podendo ir mais vezes, mas eu quase não vou mesmo porque eu acho que não tem nada a ver. Mas eles não, eles dois já conseguiam ir com o cheque da mãe, com a identidade. E, assim, muito felizes, eles escolhiam as roupas deles da Bad Cat, a Viviane se vestia toda de Bad Cat, toda bonita, muito linda. E o Cássio também, aquele menino lindo, bem vestido, bem calçado. E a gente botando pra pagar. E o Cássio começa a usar drogas dentro da escola. Começou a se envolver com os meninos do tráfico lá dentro. E roubos. E a nossa estrutura de vida muda por conta do nosso trabalho, eu e os meus filhos. A escola onde estudaram Amélia, Frank e Téo em uma situação mais humilde, recebe Cássio e Viviane em uma situação que já era um pouco melhor. E o Cássio acha de se envolver com meninos envolvidos com drogas. A escola, muito inteligente, tira a conclusão de que eles andavam melhores, um pouco melhor, roupinha de marca, por causa do tráfico, eram os bandidos que estavam dando. É uma coisa que eu não consigo perdoar da escola. E meu filho vai se envolvendo dentro da escola, a escola acha que é bandido quem está mantendo a minha família, sem, em nenhum momento, me chamar pra uma conversa, em nenhum momento se aproximar da gente pra perceber o que é que estava diferente. E eu noto a diferença dele. Um dia, a própria diretora da escola falou que, quando o viu chegar de tênis de marca e de roupa de marca, achou que ele estava muito envolvido com o crime, e por isso ela não me avisou nada. E isso me deixou muito mal, aí eu fui mostrar pra ela meus talões, meus canhotos de cheque, onde eles compravam, o que era comprado, com nota e tudo e que éramos nós que estávamos pagando. A escola errou muito quando foi omissa comigo. O meu filho se tornou dependente químico dentro da própria escola. E eu descubro aquilo, já bem depois das coisas e do dinheiro começarem a sumir. E aí começam as coisas a caírem. Porque a droga é um terror, é um saco sem fundo. Acho que não tem dinheiro pra suprir aquela miséria. O Cássio começa a se envolver com outros meninos, começa a se distanciar da gente e começam a sumir as coisas de dentro de casa, as coisinhas de valores. Dinheiro, que sempre foi guardado num bolso dentro de casa, começa a desaparecer, e pertences dos próprios irmãos, as coisinhas dos próprios irmãos – os irmãos já tinham lá suas vaidades – começam a desaparecer. E eu começo a desconfiar, até um dia em que eu deixei de propósito dinheiro dentro de minha bolsa. Eu estava vendo que estava sumindo e fiquei de vigília. Cheguei com a bolsa, deixei o dinheiro num lugar estratégico, bem em cima, e entrei pro quarto. Mas fiquei observando, porque tinha o espelho no quarto que dava pra eu ver todo o movimento do corredor e da sala. E eu fiquei olhando e vi a hora em que ele abriu o bolso. Já deixei num lugar mesmo para que eu pudesse observar. Pegou o dinheiro e saiu muito rápido. Aí eu coloquei um pano na cabeça e saí também atrás, com cuidado pra que ele não me visse. E ele passou no portão de um prédio, muito rápido também. E – toma lá, dá cá – entregou o dinheiro e pegou alguma coisa. E aí eu tive a certeza de que ele realmente estava se drogando. Aí o mundo desabou nas nossas cabeças. Nós entramos num estado de muito desespero, eu e os meus filhos. Eles ficaram muito envergonhados, muito tristes, assim, de abandonarem a escola. Eles pararam de estudar, eles não queriam mais trabalhar, eles entraram num momento de isolamento. Com vergonha de tudo e de todos. E eu também. Eu tinha vergonha de sair na rua, eu tinha medo, eu não sei se a sensação é medo ou se é vergonha. Mas eu queria mesmo que o mundo tivesse acabado naquele dia. Sabe? Que todo mundo morresse. E que ninguém soubesse daquela história. E como era difícil, era um monstro, era uma coisa que eu não sabia tratar dela. Assustava-me e eu fiquei acreditando que aquilo fosse passar. E não passava, ia ficando pior. E, de repente, começaram as cobranças dos traficantes. E nós começamos a pagar traficante pra que ele não morresse. Aí começaram os roubos. Quando a gente não tinha mais o que pagar, eu perdi cartão de crédito, peguei dinheiro com agiota, perdi meus talões de cheque. Aqueles dez anos de felicidade foram engolidos por essa maldição das drogas. E a gente percebia. Eu sabia que ele já estava praticando roubos. Não chegavam em casa coisas roubadas, no começo. Mas um dia eu tive uma decepção. Talvez pior do que o dia em que ele foi preso: foi quando ele chegou em casa com a bolsa de uma mulher. E, na bolsa dessa mulher, tinha todos os documentos dela, e ela era uma professora da escola. Aquilo me marcou profundamente. O holerite dela de professora. Ele pegou tudo, e eu não sabia o que fazer da minha vida com aquilo, eu me vi dentro de um dilema tão grande, tão desesperador, que eu só ordenei que ele tirasse aquilo da minha frente. Eu não podia aceitar aquilo dentro da minha casa, pelo amor de Deus, fizesse qualquer coisa, menos uma agressão. Mas eu acho que o que mais me agrediu mesmo era o fato de ela ser uma professora da mesma escola onde ele começou a se drogar. Foi muito difícil. Foi difícil saber que ele estava roubando e que foi justamente uma professora da própria escola onde tudo começou. E aí foi quando nossas vidas acabaram. Eu sabia, lógico, e é besteira quando a mãe diz que não sabe. As mães sabem. Porque a mãe conhece os filhos. Eles mudam, se alteram. Eles não são mais os mesmos. A droga modifica, o crime modifica. Ele rompe com as relações de casa, com as relações familiares. Acho que tem que ser uma mãe, uma família muito displicente ou totalmente ausente de tudo pra não conseguir identificar que tem algo de errado com seu filho, dentro da sua casa, porque a gente consegue identificar. Mas é muito difícil a gente assumir isso. Eu jamais ia falar pra ninguém que meu filho estava se drogando, e que o meu filho tinha roubado, isso jamais. Há uma cumplicidade muito grande entre mãe e filhos. Não existe cumplicidade maior no mundo do que entre uma mãe e um filho. Ela é cúmplice dele. A vida inteira. Não porque ela aceita o que ele está fazendo, mas porque ela não consegue trair. A gente pode trair todo mundo, eu posso trair o mundo, mas eu não posso trair o meu filho. A maternidade não deixa esse lugar. E eu depois fui trabalhar muito isso com as famílias, essa questão, pra podermos conseguir avançar, entender isso. Hoje eu falo da droga, do roubo do meu filho, mas esse foi um processo muito grande. Eu passei por um processo de construção, de amadurecimento, de calejamento da dor, talvez uma casca foi se criando pra que pudesse chegar um momento em que eu falasse sobre isso. Porque não consegue falar. Eu não conseguia. E eu vejo hoje que as mães também não conseguem, porque a gente tem muita vergonha, a gente não cria o filho para o crime nem para as drogas, a gente cria o filho para ser honesto, para trabalhar, para dar alegria, é isso que nós queremos. Nenhuma mãe quer ver o seu filho em uma situação dessas. E, diante disso, chegou um dia em que ele foi preso. Ele foi preso por duas vezes. Houve uma negociação para pagarmos para a polícia liberá-lo, mas chegou uma hora em que não deu. E ele foi preso. Quando foram me buscar, a polícia, muito irônica, perguntou se eu ia passear. Dez horas da noite, ele não estava em casa, e já estávamos preocupados, porque já sabíamos o que ele andava fazendo. Quando a polícia parou na porta, eu falei: "E agora pronto." Quando eu saí, a polícia toda armada, com as armas apontadas pra dentro da minha casa, perguntaram quantos filhos eu tinha, se todos eram bandidos, que a minha casa devia estar cheia de drogas e de armas. Eu falei: "Olhe, fique à vontade e entre. Pode entrar na minha casa e olhar qual é a arma que tem, qual é a droga. Vocês podem ficar à vontade.” Aí, eles baixaram. Eu falei: "E, olha, os meus filhos não são bandidos, os meus filhos trabalham, o que está acontecendo, você pode dizer?" Ele falou: "Não, porque o seu filho Cássio é bandido." Eu falei: "Mas você tem que me dizer por que ele é bandido." Ele falou: "Porque ele roubou um carro. Você não sabe que seu filho é ladrão? Que seu filho rouba?" Eu falei: "Ah, você está me dizendo isso. Mas e aí, o que é que você veio fazer aqui? Veio me agredir, agredir minha família, o que vocês vieram fazer? O que vocês querem?" "A senhora tem que ir pra delegacia. Porque ele é menor, o infeliz é menor.” Eu falei: "É, ele tem 15 anos. Então, vamos." Quando eles abriram a porta da viatura pra eu entrar, levei um susto muito grande porque ele estava algemado, deitado no solo da viatura, e eu dei um grito quando eu vi aquela cena dele ali deitado e algemado daquela forma. E eu perguntei: "O que você fez, Cássio?" Ele falou: "Mãe, roubei um carro." Ele estava tão drogado que não conseguia nem falar. Aquela voz enrolada. "Mas, meu Deus do céu, e agora?" Fomos pra delegacia, e lá eles falaram que ele ia pra Febem [Fundação do Bem Estar do Menor]. Até então, a Febem pra mim era uma coisa muito distante. Mas quando eu descubro também que ele está usando drogas, eu fui até o Fórum da Infância de Itaquera procurar ajuda porque eu queria interná-lo pra se tratar. Mas ele não queria. Cheguei a conversar com o promotor, com o assistente social, pedindo ajuda. Eu fui ao Conselho Tutelar pedir ajuda, eu fui à escola pedir ajuda. Foi quando a escola achou que o menino tinha roupa de marca porque os bandidos estavam dando. Desrespeitarem-me totalmente. Eu me senti sem ninguém. Não tinha mais o que esperar, não tinha como. Ele não queria se tratar. Não tinha um lugar pra colocar. Ele ia terminar matando ou morrendo na situação em que já estava. E eu falava isso em todo lugar que eu ia: "Olha, não tem lugar pro meu filho. Só que ele pode matar alguém, ou alguém pode matá-lo. São vidas que estão em jogo, e não é isso que eu quero. O que eu faço?" "Não, não tem o que fazer". Então eu voltava pra casa e tinha meu filho lá dentro de casa, drogado, vendo bichos, tendo alucinações, tendo visões horríveis, porque ele ficava totalmente alucinado. Chegou um dia em que ele quase me matou. Eu precisei sair e deixei o Frank cuidando dele. Toda hora ele ia ao banheiro e estava numa crise de droga muito grande, e, quando eu voltei, ele estava deitado coberto com o edredom, e a mão meio escorada. Eu achei estranha aquela posição, e o Frank saiu do quarto, foi embora pra casa dele porque ele morava na casa de cima. Quando eu levantei o edredom, vi que ele tinha um trinta-e-oito, uma arma. Eu nunca tinha visto uma arma na minha vida, dizem que aquilo era um trinta-e-oito, e engatilhado. Quando eu levantei, que eu vi, gritei: "Que é isso!" Baixei de novo o edredom. E, na mesma hora, eu pensei que, se eu saísse do quarto, ele guardaria aquela arma em algum lugar. Eu saí do quarto, fiquei no corredor, ele levantou, colocou a arma embaixo do colchão do berço da filha dele – ele foi pai com 15 anos de idade, ainda tem isso – e entrou no banheiro. Eu voltei pro quarto, peguei a arma e subi com a arma na mão pro meu filho Frank. Frank ficou com aquela arma na mão, sem saber muito que fazer. Falei: "Abra isso aí, eu não sei como é que abre, mas tem que tirar essas balas daí e guardar." "Mas como?" Eu falei: "Estava com ele." E ele começou a chorar, porque queria a arma, que não era dele, era emprestada, e eu falei que, se eu pegasse, eu jogaria fora. Eu daria fim em qualquer arma que entrasse na minha casa. E ele ficou com muito medo. Mesmo muito drogado, nos relances de normalidade, ele lembrava que eu jogaria fora, eu destruiria, então ele entrou em desespero. Eu fui tentar acalmar, eu não ia dar porque ele não estava bem, mas eu não ia jogar fora, depois eu devolveria para o dono. Ele foi se acalmando, e passou. Quando ele foi pra Febem, que eu achei que ia dar tudo bem, um dia, em meio a todo aquele sofrimento, ele falou que precisava conversar comigo porque ele tinha uma dor muito grande na espinha e no coração. Que, naquele dia em que ele estava com aquela arma, na hora em que eu me aproximava, ele via um monstro em câmera lenta. No momento em que ele via meu rosto chegando perto, ele via um monstro querendo pegá-lo. E, na hora em que ele via o monstro, ele ia sacar a arma pra atirar no monstro e matar. E, na hora em que ele ia sacar a arma, eu aparecia na frente. Ele ficava: "Mato, não mato? Mato, não mato?" Até o momento em que eu levantei o edredom, e ele estava armado, e eu consegui tirar aquela arma dali de dentro de casa, mas ele, a todo o momento, me via e via o bicho. As drogas transformam a vida da gente. Quando ele entrou na Febem, eu achei que, pelo menos, ele correria menos risco. Ele estaria em uma fundação do Estado, que deveria ter bons profissionais, capacitados, preparados, formados pra cuidar das drogas. Porque o nosso problema era a droga, não era o roubo. Sem droga, ele jamais pegaria nada de ninguém, eu tinha certeza disso. Quando ele estava bem, ele não pegava. Você podia deixar o que fosse, não tinha problema. Eu achei que lá ele seria tratado. Quando eu me deparei com a Unidade Imigrantes da Febem, aquele monte de meninos, parecendo um campo de concentração, meninos mal tratados, meninos maltrapilhos, não tinham direito a nada, a não ser uma escova descartável pendurada no pescoço e uma caneca péssima, pendurada também na mãozinha pra que eles pudessem tomar água. E lá se apanhava muito. Quando eu me deparei com aquilo, que eu vi aquelas mãe chorando, aquelas fisionomias, aquelas roupas, aquele vestiário tão pobre quanto o meu, os pertences levados, eram tão pobres quanto os meus. Eram sacolinhas de supermercado, não de um grande supermercado, mas dos pequenos supermercados, barzinhos do bairro, da rua mesmo. E eu comecei a pensar: "Que coisa mais louca. Todo mundo aqui tem a mesma tristeza no olhar, tem o mesmo cabelo, tem a mesma cor da pele.” A beleza das mães estava muito apagada. E eu comecei a me questionar: que lugar era aquele? Por que os meninos choravam? Por que os meninos apanhavam? Por que tudo aquilo? Havia um cheiro horrível, porque a tortura tem um cheiro característico. Que cheiro era aquele, já que eles tomavam banho? Que era aquilo? Quando a gente entra em uma unidade prisional, ou manicômio, eu descobri que a tortura tem um cheiro. Ela tem um odor. As pessoas que vivem sob opressão e tortura, elas transpiram um odor diferente do nosso, e eu senti aquele cheiro, aquilo me incomodava. E todos cheiravam do mesmo jeito. Aquele ambiente cheirava daquele jeito. E, quando eu saí dali, o meu filho falou que ali tinham drogas, que ali tinha espancamento, e eu havia passado por aquela revista humilhante, de tirar toda roupa, entregar na mão daquela mulher e agachar de frente e de costas – porque, de repente, eu podia portar drogas pra levar pra ali pra dentro –, eu me senti a pior das pessoas do mundo. Porque ninguém podia pensar isso da gente. Os filhos erraram, mas nós não. Drogas? As drogas estavam destruindo a nossa vida, como é que alguém podia pensar daquela forma? Saí muito confusa, eu queria fazer alguma coisa pra mudar aquilo, e foi meu primeiro impacto. Era fazer algo pra mudar aquela realidade. E eu procurei algumas pessoas. A Febem era um lugar mau, daquele jeito não se recuperava. Eu encontrei meu filho com um odor ruim, a escola era ruim, o chinelo era muito grande, a roupa era muito pequena e, enfim, era tudo muito difícil. As mulheres eram muito pobres, eu também era, mas, tinha pessoas muito mais pobres do que eu. Que diabo, que coisa era aquela? E as pessoas que eu procurava perguntavam quem eu era. Eu era mãe de um infrator, a mãe de um “noia” e eu não teria poder para mudar uma estrutura de Estado tão grande como a Febem. E que muitas pessoas de poder e muito boas tentaram fazer alguma coisa e que, infelizmente, foram engolidas pelo Estado e não conseguiram, pois a Febem tinha uma cultura, e que aquilo não ia mudar, que eu esquecesse e procurasse tirar o meu filho dali o mais breve possível. E que ele saísse dali melhor, que se arrependesse, e que a vida era assim mesmo. Mas essa vida assim mesmo não me conforma, não é isso, não pode. Alguém vai ter que mudar um dia, e a gente vai fazer alguma coisa. Eu já saí dali querendo fazer alguma coisa: primeiro, eu não aceitava visitar meu filho uma vez por semana; segundo, o filho é meu, quem pariu fui eu, ele errou, foi preso, está pagando, mas eu não vou me conformar de deixá-lo durante sete dias da semana, e eu vou só ver um, sendo que lá ele pode ser espancado, pode ser estuprado, podem acontecer mil e uma coisas. Então eu comecei a briga direta com a unidade. Eu, durante a semana, não ia trabalhar, ia chorar na porta da unidade pra ver o meu filho. E eu revolucionei todo o Conselho Tutelar de São Paulo, porque eles teriam que fiscalizar. O papel do Conselho Tutelar é fiscalizar? Então, vai fiscalizar. Porque eu quero saber como é que estão os meninos, como é que está o meu filho. Eu quero saber como é que ele está. Meu filho não pode apanhar lá dentro, ele não está lá pra isso. E, como eu era uma mãe chata demais e enchia o saco, eles transferiram muito rápido o Cássio do Complexo Imigrantes pro Complexo Tatuapé. No dia em que ele chegou ao Complexo Tatuapé, que me avisaram, eu senti uma dor tão profunda no meu coração. Ele saía de uma unidade provisória, onde dormiam no chão, onde não tinham uma atividade, era de total castigo, e ele ia pra uma UE [Unidade Educacional] onde ele teria escola, atividade, um lugar próprio pra dormir. Mas aquilo me causava uma dor muito grande. Eu não conseguia entender por que o meu coração estava doendo. Era como se apunhalassem no meu coração. Eu falei: "Mas eu estou muito mal, não estou entendendo por que eu estou passando mal." E as pessoas falavam: "Mas lá é melhor, que bom que ele já foi transferido, tem meninos que ficaram lá três meses, e o seu já foi transferido." E eu fui fazer a primeira visita do Cássio e, na outra semana, em menos de um mês, teve uma rebelião dentro da unidade e, segundo os técnicos, ele estava numa fissura muito grande em busca de droga. E ele tentou fugir pulando do alambrado. Ele caiu e destruiu os dois calcanhares. Caiu e ficou lá no chão com os calcanhares destruídos. Demoraram a socorrê-lo, levaram-no ao hospital, ninguém me avisou nada. Três dias depois, eu fui avisada por uma evangélica que passou a evangelizar no hospital que o meu filho estava agonizando numa maca de um PS [pronto socorro], a ponto de serem amputadas as pernas dele, por conta de um acidente que tinha acontecido. Ele rogava, pedindo que alguém me avisasse. Na minha casa, já tinha telefone e tinham o endereço, tinham tudo. E que alguém me avisasse, porque ele sabia que eu não teria ido até lá ainda porque ninguém tinha me avisado. E bateu um desespero quando eu cheguei ao hospital e encontrei meu filho daquele jeito. Essa unidade que o meu filho ficou da Febem, na unidade 20, o diretor era um psicólogo que inclusive é meu amigo, era uma unidade que não tinha tortura física. Mas porque ele não aceitava. O diretor falava: "Se torturar, eu mando embora. Aqui ninguém tortura ninguém." Mas havia a questão psicológica, e isso não dá pra identificar muito. Mesmo sendo uma equipe legal, que eu aprendi muito com eles, com essa direção, com essa equipe, de não aceitar certas coisas, eles violavam todos os nossos direitos, tanto é que eu não fui comunicada. O meu filho estava sob a tutela do Estado, mas eu não deixei de ser a mãe, a responsável por ele. Eu tinha uma obrigação, um direito, e eles, a obrigação de me avisar. Ninguém me avisou. E isso me deixou muito mais com vontade de mudar tudo mesmo na história. E nós começamos a fazer, criamos panificações dentro da unidade, trabalhos artesanais, como forma de ficarmos próximas dos filhos, porque eu não acreditava que houvesse alguma recuperação de um filho se a família não participasse disso. Quem sabe eu também estava adoecida, então precisava estar junto pra encontrarmos um caminho. E isso era quando ele estava preso, fragilizado, necessitando da minha presença, já que tinha rompido comigo lá fora. Quando ele foi para as drogas e para o crime, comigo e com a casa, com a família, ele rompeu laços, se distanciou. Ele já estava em outro momento. Mas, nesse momento de prisão, de total controle, era um momento de reaproximação. Era isso que eu conseguia enxergar. Ele precisava de mim. Nesse momento ele reconhece o tanto que errou, nesse momento ele reconhece o tanto que falhou comigo, e eu aproveito esse momento. E havia um controle, porque os irmãos não podiam entrar. E eu começo com a briga para que os irmãos pudessem visitar. Pai, mãe, irmãos e filhos são parentes de primeiro grau. Não se pode distanciar isso. E eu começo com a briga, que os meus filhos têm que ter o direito de visitarem o irmão, sim, nós queríamos reaproximar, reatar o que foi rompido lá fora. Era aquele momento que nós tínhamos oportunidade. E o hospital me humilhava com essa situação. Ele estava internado porque era infrator, estava sob a custódia do Estado, eu não podia visitar. Então, pra eu entrar pra visita, eu passei por muita humilhação. Eu precisei ir ao fórum, pedir uma autorização judicial pra ver meu filho no hospital. E eu sabia do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], mas eu não tinha uma cópia. E uma conselheira tutelar com o nome de Conceição – porque, com essa confusão toda, eu a chamo pra tentar me ajudar no hospital na situação do meu filho – ela me dá o ECA. E eu tinha ido ao fórum pedir autorização, já conseguia fazer a visita todos os dias, só no horário de visita, toda vigiada, como se eu fosse uma verdadeira bandida que ia resgatá-lo, com duas pernas quebradas lá dentro. E a assistente social da Febem foi tão irônica que falou que mesmo com duas pernas quebradas, que eu ficasse tranquila, porque ele tinha tentado a fuga. Uma violação, um descaso, um desrespeito total. E essas coisas me deixavam muito incomodada. E, quando eu consigo o ECA, eu olho e digo: "Bom, artigo 12 fala sobre o tráfico." Quando eu olho o Estatuto, o artigo 12, tem lá que as unidades de saúde precisam se adequar pra que os responsáveis pela criança e pelo adolescente possam permanecer tempo integral na internação deles. Eu falei: "Caramba! Violaram-me, isso aqui é uma lei! Isso aqui valida." Nisso, entra outra mãe com o filho também no hospital, passando pelo mesmo problema que eu, sendo humilhada tanto quanto eu. E eu descubro e mando-a ir ao fórum com o artigo 12 pedir a garantia daquilo. Ela foi e o meu teve alta, voltou pra unidade. Eu tentando levar pra casa, mas não conseguia. Ele estava engessado até aqui em cima. Então, não andava. Pra ir ao banheiro, os outros que o levavam pra sentar no vaso. Totalmente engessado até aqui porque os pés tinham sido operados, colocaram platina nos pés, uma situação muito séria. É, a mãe vai ao fórum e ela consegue garantia para aquilo.Recolher