Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Euro Alves
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Manaus, 30/04/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC_HV21_Euro Alves
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Euro, para a gente...Continuar leitura
Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Euro Alves
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Manaus, 30/04/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC_HV21_Euro Alves
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Euro, para a gente começar esta conversa, fale o seu nome completo, onde você nasceu e a data.
R – Meu nome é Euro Alves, sou da etnia Sateré-Mawé, do município de Maués. Nasci na comunidade São José do Rio Marau, do município de Maués, aos dez de abril de 1977.
P/1 – Euro, fale um pouco do seu nascimento e também da sua infância. O que você quiser contar para a gente.
R – Bom, com imenso prazer eu posso estar contando um pouco da história da minha infância que, a princípio, eu vou abrir essa exceção. Porque, a princípio, eu não gostava de comentar, porque quando descobri… A história da minha infância foi uma história muito triste, muito… Entendeu? E até hoje, por coincidência, eu não gosto de comemorar a data do meu aniversário e ninguém lembra, sabe? Ultimamente, nem da minha família lá, as pessoas com quem eu trabalho - porque eu sou gestor da escola agora - nem meus colegas professores, ninguém lembrou. Mas depois eu disse: “Pô, ninguém lembrou de mim!” Cheguei lá, no dia daqui da cidade Parintins, lá na comunidade, cheguei no dia do meu aniversário. Aí depois eu pensei: “Está tudo bem, porque eu não quero que ninguém cante parabéns, porque não foi uma história linda, porque deveria ser uma história muito linda, o nascimento de toda pessoa é uma história linda, mas o meu nascimento não foi uma história linda (risos).
P/1 – E você pode deixar registado?
R – Com certeza. Então... A minha mãe, Luzia Alves, minha mãe, querida mãe, ela engravidou. Foi uma gravidez indesejada, ela engravidou, teve caso com um homem comprometido, aí ela engravidou. O meu avô, sabendo da situação, não gostou, não aceitou e depois que… Eu acho que por volta… A minha mãe já tinha completado acho que o sexto mês de gravidez, a barriga cresceu, aí acho que o meu avô perdeu o controle, aí expulsou a minha mãe de dentro da casa, a minha mãe teve que sair da casa, abandonar a casa. E uma família acolheu a minha mãe, da outra comunidade. Cederam uma casinha para ela, uma maloquinha para ela morar e completar os nove meses de gestação e o dia de dar a luz ao bebê. Aí, depois que eu nasci, com muita insistência da minha avó, a minha avó teve que… Eu imagino como a minha avó... Mãe, papel de mãe, fez para convencer o meu avô a aceitar a minha mãe de volta para casa. Aí, por sorte, o meu avô aceitou a minha mãe de volta para casa e nós voltamos para casa. Aí eu cresci, não é? O bom da história é que o meu avô, que não me aceitou, que obrigou até a minha mãe a não me pegar, que desse por aí para alguém... Isso foi uma ordem que o meu avô deu para a minha mãe, não é? Mas depois, mais tarde, o meu avô se tornou o meu pai (risos). Ele me criou, ele caçou,
pescou para mim, falecido meu avô, que já morreu, mas eu considerei ele como meu pai, não é? Ele é meu pai, eterno papai, que me criou, que passou um tempo de sua vida cuidando, caçando, pescando para que pudesse me criar.
P/1 – Uma bonita história! Qual o nome dele?
R – João Paulo Alves. O saudoso…
P/1 – Ele era Sateré?
R – Sateré.
P/1 – E a sua avó também?
R – A minha avó também. Sateré, legítimo mesmo, tradicional mesmo, família tradicional mesmo.
P/1 – Com que idade você volta para a comunidade?
R – Assim, depois do nascimento?
P/1 – É.
R – Aos quatro… Três ou quatro meses de vida. Quando eu nasci, minha avó se comoveu, eu imagino o estado em que a minha avó se encontrava. Com a filha... Aí ela lutou, na verdade foi uma luta da minha avó para trazer
a minha mãe de volta para casa.
P/1 – Muito bom. E Euro, você disse que o seu avô pescava, caçava. Conte um pouco da sua infância junto com ele.
R – Olha, depois que eu cresci, falando da minha mãe também, a minha mãe... A primeira família que ingressou na escola... O meu avô foi o primeiro pai que colocou os filhos na escola. O tempo da missão católica, que abriu a primeira escola na reserva indígena no Marau, aí a minha mãe estudou com os padres e teve uma escolaridade. E com isso, ela recebeu o primeiro trabalho de ser professora pela missão. Aí, a minha mãe seguiu o cargo de professora numa comunidade bem distante e essa foi a razão de ela ter me abandonado, me entregou para a minha avó, para o meu avô e ela teve que ir embora para trabalhar. Aí, os meus avós assumiram esse trabalho de criar, não é?
P/1 – Com que idade você estava?
R – Seis meses. Com seis meses de idade a minha mãe me entregou nas mãos dos meus avós. Aí, quando eu me dei conta já no mundo, já me lembrei da minha vida, eu ainda senti aquela história, aqueles momentos… Quando a minha mãe chegava em casa, lá da comunidade… A minha mãe aparecia, na verdade, a cada final de mês lá em casa, aí aquela agonia quando a minha mãe… Ela chegando era uma alegria, tamanha alegria e a tristeza era no dia em que ela tinha que ir embora, para voltar só no final do mês, era uma agonia. Eu sinto hoje, quando a criança chora aquela saudade, vendo a mãe partindo, o pai viajando, eu sinto uma dor tremenda que a gente sente no coração da gente quando a gente vê a mãe da gente indo embora, viajando para bem longe. É uma história legal, não é? Aí, nessa vida, a minha mãe chegando, viajando e eu crescendo. E eu vi o meu avô trabalhando duro para me criar... Caçar, pescar... Aí eu comecei a estudar aos sete anos, na escola.
P/1 – Apesar da sua mãe ir e vir, ir e vir, tinha alguma coisa que ela falava ou que você lembrava dela que lhe influenciou de alguma forma?
R – Olha, eu lembro que depois que me recordei no mundo e comecei a desejar as coisas... As roupas, relógio, um bonezinho que, na época, na comunidade, era moda um bonezinho...Aí, quando a gente viajava para a cidade queria… Eu era viciado... Não sei como é que chama por aqui, mas para lá é picolé. E chope é um flau, que a gente chama em outros lugares. Chegava na cidade, eu queria que a minha mãe comprasse as coisas para mim... flau. Eu chorava, aí a minha mãe sempre dizia: “Olha, meu filho, eu não tenho dinheiro”. Aí comprava uma: “Agora acabou. Agora você tem que estudar para ter o seu dinheiro um dia e comprar o que você quiser comer, vestir..”. A minha mãe sempre dizia, sabe? “Meu filho, você tem que estudar para poder um dia... Você conseguir trabalhar e ter o seu dinheiro para comprar as suas coisas”. Isso me inspirou muito, sabe?
Eu acho que foi isso que a minha mãe criou dentro de mim, um incentivo, de pensar no estudo, pensar na vida. Eu acho que é isso.
P/1 – E seus avós? Você disse que o seu avô trabalhou bastante, mas antes fale um pouquinho da sua infância, das brincadeiras. Como era?
R – Eu não tive a questão de brincadeiras, brinquedos eu não tive. Até porque eu me criei sozinho. Eu era… Lá onde eu me criei, não tinha crianças; eu era isolado das outras crianças. Eu tive um problema muito… Por muito tempo eu carreguei um problema de timidez, porque eu não brincava, não me divertia. Lazer… Não tive isso. Eu acho que a forma assim de lazer, de brincadeira que eu tive, era de flechar. O meu avô fazia as flechinhas e eu ia ali para o mato. Pescar também, a pescaria também foi o meu… Inclusive eu, muito cedo, por conta disso e pela necessidade também, porque só o meu avô quase não ia dar conta de sustentar toda a família, muito cedo eu aprendi a pescar, aprendi a caçar também e começava também a ajudar o meu avô a sustentar a família pescando, caçando, muito cedo. Eu me lembro muito bem que só parava assim, eu parava de estudar de manhã, voltava para casa e, à tarde, passava o resto da tarde pescando, trabalhando, brincando, flechando pássaro por aí. Esse era o meu lazer, o meu único lazer. Não tinha futebol, esporte, não tinha, sabe?
P/1 – E nadar?
R – Nadar também, com certeza. Eu aprendi muito cedo. Aprendi a nadar.
P/1 – E na pesca, por exemplo, até para flechar, tinha alguma coisa que o seu avô lhe ensinava assim: “Olha, se você fizer isso…”?
R – Aham, ele ensinava. Ele ensinava, porque tem toda uma técnica de usar flecha. Se for para matar uma caça tem que acertar o alvo, o alvo certo, caçar o pássaro, caça grande. E até as flechas... Tem os tipos de flechas para cada tipo de caça, também. Para o peixe, por exemplo, a flecha para o peixe é diferente da flecha para caça.
P/1 – E ele te ensinava tudo isso?
R – Ensinava. Ensinava a flechar e tem até remédio que os nossos antepassados usavam, uma folha que a gente coloca no olho para a gente ser um bom flechador, não é? Tem até uma folhinha… É muito… É uma agonia tremenda quando coloca, arde muito o olho, diz que é para enxergar bem para… Entendeu?
P/1 – E depois, você percebia que…?
R – E, com certeza, isso surtiu efeito também, não é? Inclusive eu caçava muito, pescava muito com flecha, mesmo.
P/1 – Até pescava com a flecha?
R – Pesquei com a flecha mesmo. Matava aqueles peixes grandes com flecha. É muito legal essa parte da história.
P/1 – Ficou bom nisso, mas não é fácil, não é?
R – Não é fácil, não.
P/1 – Euro, aconteceu alguma coisa, alguma história nesse momento de pesca, da caça, que você lembra até hoje? Algum acontecimento assim…
R – Bom, eu já até escrevi em livro, participei de uma edição, elaboração de um livro, material pedagógico, onde eu contei essa história, eu até ilustrei lá, no tempo de curso de formação de professores, pela SEDUC, houve essa extensão de projetos para a produção de material didático. Eu sempre conto essa história. Foi quando eu tinha acho que seis anos de idade, um curuminzinho sapeca e danado também. Aí, eu ia pescar lá onde eu morava junto com os meus avós, tinha um rio grande lá, tinha que atravessar o rio para o outro lado. Eu peguei o casco grande e atravessei pescando, não é? Flecha, anzol... E lá, eu estava adentrando o igapó... Igapó é um mato submerso, chama de igapó, um mato, mas fica por cima da água, é um mato dentro da água, não é? Aí eu fui desviando lá, até que eu ia passando entre dois paus, duas árvores, eu não sabia se a canoa ia passar lá, mas eu… Jeito de criança, eu meti o meu casco lá, empurrando, empurrando, quando a canoa já estava bem no meio, perdi todas as forças, engatou lá. E eu me desesperei, gritei desesperadamente e o pessoal lá de casa ouviu os gritos e todo mundo ficou desesperado. Não tinha canoa lá para… Aí o meu tio mais velho teve que cair na água para atravessar a nado aquele riozão desesperado, quase ele morre. A salvação dele é que tinha uma árvore seca bem no meio do lago, aquela pontinha do pau que salvou, ele já estava… Nadou, nadou, nadou, aí se cansou e quase afundou. Ai, deu para ele se segurar num pau lá, recuperou o fôlego, continuou, quando eu cheguei lá não era nada de sério que aconteceu comigo, era só porque o meu casco engatou lá. Aí todo mundo ficou com muita raiva de mim, quase que o meu tio perdeu a vida por causa disso (risos). É uma história… Ainda apanhei por causa disso, de deixar o meu tio… É uma história muito interessante.
P/1 – É interessante porque mostra como a criança ia, não é?
R – É verdade.
P/1 – E tinha que atravessar aquele riozão, não é?
R – É que na nossa cultura, a criança… Depois que souber nadar, remar, aí já fica por conta da criança, não é? Os pais… Porque eu não sei de onde os nossos pais tiravam tanta tranquilidade para deixar a criança ir sozinha por aí. Mas é da cultura. Da cultura mesmo, e a gente aprendia assim, a gente aprendia desse jeito aí.
P/1 – É da cultura desenvolver autonomia mesmo?
R – Isso, com certeza.
P/1 – Euro, e você falou que o seu avô falou tudo isso para você. E, além desses ensinamentos, você foi para a escola com que idade?
R – Aos sete anos porque, na época, tinha a lei. Por causa da lei mesmo, não é? A criança podia ir para a escola aos sete anos de idade, fazer a pré-escola ainda. A minha primeira experiência de vida escolar foi uma história interessante também, porque na época a nossa escola ainda era escola tradicional mesmo, professor… Interessante que a clientela... Os alunos, todos, não sabiam Português. E a professora não era Sateré, era da cidade. Eu imagino como acontecia a educação, sabe? Era esse conflito de línguas, não é? A professora dando aula para as crianças, que não entendiam Português. Eu, principalmente, não entendia… No primeiro dia de aula ali, sabe, é uma coisa que…
P/1 – Como foi? Conte se você conseguir lembrar a sua sensação…
R – Bom, é uma estranheza total, não é? Uma professora falando uma língua que a gente não entende. A gente não entende nada que… Parece que a gente aprendeu assim… O que eu chamo... Uso essa expressão: a gente aprendeu na marra mesmo, na marra! A pancadas mesmo, ainda recebi umas pancadas da professora, não é? Uma pontada de caneta. Eu me lembro muito bem de que para eu aprender as vogais tive que pegar umas pontadas de caneta da professora. Era assim: “A, e, i, o, u”. “De novo”. “A, e, i, o, u”. “Repete”. Entendeu? Era pontada de caneta (risos). Mas eu consegui me alfabetizar com essa professora na marra mesmo, aos poucos…
PAUSA
P/1 –
Euro, você teve que, ao mesmo tempo, aprender a língua…
R – A língua, o desafio. O desafio, aprender a língua da professora e me alfabetizar, aprender a
ler e a escrever, um desafio muito grande.
P/1 – Muito sofrimento?
R – Muito sofrimento. Eu acho que é uma coisa que eu tenho essa história assim para contar. Hoje, eu luto para construir uma forma mais eficaz de ensinar uma pessoa, não é? Porque ensinar de qualquer jeito, a gente acaba prejudicando muitas pessoas. Por exemplo, nós éramos uma faixa de trinta alunos numa sala. Trinta alunos e hoje, daquela turma minha… Daquela minha turma que começou comigo, eu posso dizer que oito dos trinta alunos, hoje... Eu e mais sete chegamos lá no final, hoje eles são professores assim como eu. Sete colegas hoje, da mesma idade, começaram comigo, iniciaram comigo, sete chegaram ao final, se formaram e hoje são professores. E o resto foi abandonado pela escola. Eu estou usando essa expressão, eu estou usando muito essa expressão porque se usa muito a expressão: “Fulano abandonou a escola” (risos). A gente ouve muito por aí, não é? “Fulano abandonou a escola”. Abandono é uma coisa que… Abandono de escola até hoje se entende como se fosse do próprio aluno, mas eu entendo que, nesse caso, não foi o aluno que abandonou a escola, foi a escola que abandonou… Os alunos foram abandonados pela escola.
P/1 – Você falou, Euro, que era uma lei, que tinha que ir para a escola.
R – Isso.
P/1 – Porque não era uma vontade da comunidade? Não era uma coisa tão à vontade, tão forte, assim…?
R – Eu acredito que não. Isso foi um dos fatores também que contribuiu para essa evasão escolar, não é? Uma delas é a questão da metodologia mesmo, da língua, da professora. A professora tinha uma metodologia, isso foi… Mas outro fator foi a questão do conflito da cultura, a escola… O propósito da escola era um e a família, a comunidade tinham outro propósito, que era formar as crianças para serem pescadores, caçadores, trabalhadores, lavradores no caso, não é? Isso era um propósito, eu me lembro de que uma família... Quando eu entrei na fase de adolescente, eu escutava muito assim... Quando a filha de um casal, uma moça, na verdade queria namorar com um menino, se esse menino fosse alguém que estudasse, os pais diziam: ‘Olha, você quer comer papel? Então fique com esse menino”. Isso significava que quem estava estudando não valia mais para nada para a comunidade, porque não sabia caçar, não sabia pescar, não sabia trabalhar, não sabia fazer casa, não sabia fazer nada, estava estudando, todo dia ia para a escola e perdia a condição de aprender com os seus pais a caçar, a pescar. Então já houve essa ruptura entre a escola e a educação tradicional, a educação cultural, não é?
P/1 – Eu vou colocar uma pergunta agora mais para essa parte, depois a gente retoma. Como seria se as crianças, os jovens, continuassem preservando a cultura dessa forma que você falou? Seria necessária essa parte do estudo se eles mantivessem aquela tradição?
R – Com certeza! Olha, a gente entende hoje uma cultura… É um processo, é uma construção, mas a gente defende muito que a cultura originária não se perca, não é? Porque faz parte da identidade. Então, por exemplo, hoje eu estou aqui, isso aqui é fruto daquela escola, aquela escola é imposta, mas eu acredito que teve fruto no meu caso. Só que para eu ser essa pessoa que eu sou hoje, eu tive que construir a minha própria educação. As pessoas contribuíram, os meus pais contribuíram, mas acho que é justo, é correto a pessoa, um indígena, ter a sua educação escolar, a escolarização, questão do domínio da escrita, da leitura, da escrita, da aprendizagem, não é? Mas sem deixar o seu hábito cultural, a sua essência cultural, porque enquanto nós moramos na nossa comunidade a gente precisa de todo esse entendimento, essas práticas tradicionais para a nossa vida lá. Imagine eu, se ao longo da minha vida de estudante tivesse deixado já toda a minha cultura, os meus hábitos tradicionais, eu acho que não poderia mais me sentir bem lá onde eu estou. Mas como eu sei falar a minha língua, eu sei falar bem... Lá na minha comunidade eu falo Português com aqueles que não entendem Português, mas com aqueles que entendem Português eu falo a minha língua lá, porque lá na comunidade tem famílias que só usam o Sateré entre filhos, a nossa língua. Aí eu vou lá, vou visitar meu vizinho e lá eu me sinto à vontade, falo só a minha língua. E se eu quiser caçar, eu sei caçar; se eu quiser pescar, eu sei pescar; se eu quiser fazer um trabalho do nosso jeito mesmo, sei fazer artesanato, sei fazer de tudo, não é? Eu já não sou… Eu já não me considero cem por cento Sateré, indígena, porque eu já tive algumas mudanças, não tive oportunidade porque o meu avô, quando ele me manteve na escola, ele achava que eu tinha que me desligar da cultura, não precisava mais ele passar os conhecimentos dele, da tradição. Esse era o contato da sociedade envolvente que criou na consciência dos nossos antepassados essa questão de desvalorização da… Então, a entrada da escola… Isso influenciou muito. Os pais passaram a acreditar que a cultura naquele momento não valia mais nada. Eu escutei muito o meu avô dizer assim: “Meu filho, eu quero de você… Quando você crescer, você não seja mais como eu que tem que caçar, que tem que trabalhar, que tem que fazer artesanato, tem que fazer tudo isso que eu faço para sustentar nossa família hoje. Eu quero que você, quando crescer… Que você se forme, arrume um trabalho que você possa trabalhar sentado, uma roupa bonita, bem vestido, bem bonito, isso que eu quero para você, por isso que você tem que estudar”. Então, é uma coisa que eu não vejo assim, uma razão para… É uma coisa, na minha opinião pessoal, é uma coisa que
já é contra a questão da cultura essa atitude do meu avô, não é?
PAUSA
P/1 – Euro, para que seria bom o estudo, no caso?
R – O estudo, para qualquer pessoa, independente da sociedade em que se insere, seja indígena, seja… O estudo tem uma importância e sabemos que, com a evolução da humanidade, todo ser humano acaba tendo essa necessidade de estar ligado com o mundo. As necessidades da vida, do dia a dia, das pessoas, da comunidade foram ocasionados por esse desenvolvimento da humanidade, não é? O fato, por exemplo, de ter que aprender Português, isso é uma necessidade. Hoje, para nós indígenas, isso é uma necessidade. A gente precisa se alfabetizar em Português, a gente precisa se comunicar com as pessoas que estão ao redor da gente, pessoas que precisam, porque a gente depende… Hoje, a gente vive nessa teia de dependência, não é? A gente não pode mais, hoje, viver isolado da nossa comunidade. Porque a gente depende da saúde, nós somos usuários da saúde, precisamos nos comunicar com médicos, com os profissionais de saúde. As nossas necessidades da comunidade... Hoje, a gente depende da questão do saneamento básico, a gente precisa… Nossa comunidade precisa ter poço artesiano, a questão da atenção à saúde preventiva, a gente tem que ter a nossa escola, não é? A gente está lutando para ter a nossa escola. Então, são necessidades que surgiram por conta do contato e por conta da evolução da humanidade. Hoje, por exemplo, a
gente tem que aprender a acessar as redes sociais para a gente se conectar com o mundo. Isso é uma necessidade também da globalização que existiu aqui na última década, e a cada vez o mundo nos cria essa necessidade, essa dependência. Então, para que a gente esteja habilitado, a gente esteja inserido, a questão da inclusão, a gente se inclui no mundo, a escola tem esse papel, alfabetizar, começando pela alfabetização em Português, em paralelo com a nossa língua materna, a leitura... A leitura é uma porta de entrada para o mundo. Uma pessoa que… Isso também, teoricamente, isso já é… É muito defendida a questão da leitura, do domínio da escrita - da leitura e da escrita. Uma pessoa que não domina a escrita e leitura é uma pessoa pode-se dizer que é isolado, uma pessoa que está só naquele lugar. Mas isso para nós, hoje, é uma coisa que limita a nossa condição, no momento em que a gente precisa se comunicar com o mundo. Então, a escola tem esse papel fundamental de incluir pessoas no mundo, na sociedade. Eu vejo isso.
P/1 – E como teria que ser essa escola para ser diferente do que foi para você? Que abandonou esses muitos jovens, muitas crianças. Como teria que ser?
R – Bom, na minha opinião, a escola, na minha linguagem, é uma escola adequada para uma comunidade indígena. Primeiro, teria que ser… As aulas teriam que ser ministradas pelo próprio indígena falante daquela… Conhecedor daquela cultura, falante da língua materna. Aí já seria um grande passo, uma grande conquista. Cinquenta por cento da condição dessa escola conseguir realizar uma educação de qualidade já está garantido pelo fato de que o professor é falante da língua do aluno, não é? Porque existe a teoria de que a alfabetização de uma criança tem que ser na língua do aluno, a língua que o aluno fala na sua casa. Para que essa criança possa ter o sucesso na alfabetização, não pode forçar uma criança a ser alfabetizada na outra língua. Pode acontecer, mas é difícil, como eu me alfabetizei à base da pancada, da porrada - desculpando a expressão - mas a gente consegue se alfabetizar. Mas, para acontecer uma alfabetização saudável, tem que ser da língua materna mesmo. E aí, tem que ser valorizada a questão da tradição, sem que a escola precise retirar o aluno do seu ambiente tradicional. Dizer assim, afastar o aluno do cotidiano da vida, não é? É uma escola que possa não criar uma certa barreira entre a vida cultural, familiar e a vida escolar, não pode… Eu acredito que não deve ser assim, a vida escolar é uma coisa diferente, separada. E a vida familiar da criança… Quer dizer, a criança vem, entra numa outra realidade ali na escola e, ao sair da escola, vai para a sua família. Isso, para mim, é uma coisa que não deve ser assim. Mas a criança... No caso, a escola deve ser uma extensão da família, uma extensão da família. Deve ser um colaborador da educação familiar, porque a criança ali, no ambiente familiar, já está recebendo uma educação. E a escola entra para dar essa extensão, para continuar a educação que já começou lá no ambiente familiar. Assim que tem que ser, para nós, uma escola para a comunidade indígena.
P/1 – Agora a gente vai voltar para o Euro lá naquela escola que dava canetada, sofrimento, não é?
R – Isso.
P/1 – Você ficou quanto tempo nessa escola?
R – Eu fiquei por dois anos nessa escola. Eu fiz meu primeiro ano e segundo ano nessa escola, até quando foi determinado o afastamento dos professores não indígenas na comunidade, não é? Aí começou a substituição dos professores não indígenas pelos próprios indígenas. Inclusive, meu terceiro professor foi o meu próprio tio, porque ele estudou, se formou e começou a assumir esse trabalho, a educação…
P/1 – Ele se formou na faculdade?
R – Na época, no ensino médio ainda. No ensino médio. Ele se formou aqui em Manaus, aqui na Rainha dos Apóstolos, ele se formou técnico agrícola e, naquele tempo, a pessoa que tinha ensino médio já podia lecionar, já podia…
P/1 – E como foi a experiência com ele?
R – Bom, a experiência com ele foi muito diferente. Com certeza teve os primeiros avanços na educação, com certeza foi no dia em que ele assumiu.
P/1 – Você lembra?
R – Lembro muito bem. A gente teve um momento diferente, o contato ali dentro da escola, a comunicação na escola, com certeza ali houve essa evolução do trabalho da escola. Com certeza, os alunos que entraram a partir desse ano, com certeza não tiveram mais a mesma sorte que nós tivemos…
P/1 – Como é a alfabetização na língua Sateré? Como faz para escrever? Porque tradicionalmente, não existe escrita…
R – Não, já temos a escrita.
P/1 – Mas desde que você tinha essa idade?
R – Naquele tempo não, naquele tempo era… Na verdade, já existia o alfabeto de índio, já havia. Então, o professor ensinava o alfabeto, os fonemas todos, aprendia a escrever. A comunicação foi mantida, dentro do ambiente escolar, sempre na língua Sateré. Como o professor dominava a língua, então lá… Porque o principal veículo da aprendizagem é a linguagem, a comunicação entre o professor e o aluno. Então, foi isso que aconteceu, não é? Aí, a gente aprendia, se alfabetizava ao mesmo tempo em Português, mas o que facilitava é que o professor se comunicava na língua e foi com certeza… Só que, nesse ano, eu já estava alfabetizado, já fui terceiro ano já com ele, não é? E isso também contribuiu bastante, porque já tinha uma turma alfabetizada e surgiram outras turmas iniciantes na educação, lá o primeiro ano e, com certeza, contribuiu muito para a melhoria da educação.
P/1 – Euro, é importante registrar essa história de como é que era. A grafia da letra era da língua portuguesa?
R – Isso, isso…
P/1 – Ia formando as palavras na língua Sateré… Saterê ou Sateré?
R – Sateré. Isso.
P/1 – Ia formando as palavras na língua Sateré. Explique como é que formava, para a gente registrar.
R – Bom, metade dos alunos da época já foram alfabetizados em Português, não é? E para alfabetizar em Sateré foi… Eu acredito que não tivemos dificuldade, porque a gente já conseguia escrever, por exemplo, palavras em Sateré. Porque nós temos, na nossa língua... Eu acredito que a maior parte das palavras, dos fonemas, já são escritos com os fonemas existentes no alfabeto da língua portuguesa; portanto, não existia essa dificuldade de utilizar os fonemas da língua portuguesa para escrever uma palavra em Sateré, não é? Existe uma diferença, uma pequena diferença de pronúncia, mas a grafia tem essa coincidência com a grafia do Português.
P/1 – Isso é uma construção, não é?
R – Uma construção, com certeza! Isso, uma construção.
P/1 – E quem chegava sem ter passado pela escola, como você, você sabe dizer como era? Quem chegava assim, sem saber nada.
R – Da língua portuguesa, no caso?
P/1 – De tudo. Só falava o Sateré. Você sabe como acontecia?
R – A questão da escrita?
P/1 – É.
R – Assim... A questão da comunicação... Porque, por exemplo, o meu avô aprendeu a falar Português convivendo com os padres. O meu avô era o tradutor… Na verdade, ele começou a aprender o Português através dos regatões que iam lá vender os seus produtos na comunidade. Eles iam aprendendo a falar Português, dominaram bem rápido mesmo a língua. Aí, no tempo em que a missão iniciou o trabalho dentro da área, o meu avô ganhou esse trabalho de ser tradutor dos padres e, com isso, ele aprendeu a dominar as duas línguas, não é? E existia muito também a questão do convívio, do contato com as pessoas, os profissionais da FUNAI. Eles iam lá… A gente sempre manteve essa comunicação entre os não índios que permaneciam nas comunidades, nas nossas comunidades. E assim a gente conseguiu aprender, não é? Muita gente que nunca foi para a escola dominou assim, falar Português muito bem.
P/1 – Na prática?
R – Na prática mesmo, isso.
P/1 – E você, depois os professores indígenas entraram e você continuou estudando nesse lugar?
R – Eu continuei até a quarta série. Quarta série.
P/1 – E depois?
R – Aí depois... Porque, na época, na nossa comunidade, só tinha escola até a quarta série. Para continuar os estudos, tive que me mudar para a cidade, não tinha mais nenhum local na comunidade onde ensinava, sexta… Quinta série e daí em diante, não é? Aí, como os meus pais não tinham condições para me manter na cidade, eles procuraram uma escola onde… Naquele tempo, foi implantada uma escola de quarta e quinta séries lá no município de Barreirinha, no Andirá. Aí, a minha mãe me levou lá para essa escola muito longe, nós tivemos que caminhar mato a dentro para varar para o outro rio, porque o rio Andirá é em outra região, que faz parte do município de Barreirinha. Para chegar lá tem que andar pelo mato, é muito longe. Eu sei que no dia em que a minha mãe me levou para lá, nós saímos às seis horas, pegamos a estrada, dormimos no meio da estrada, no meio do mato. E eu tinha onze anos de idade. E a minha mãe, junto com outros três alunos e os pais deles, nós fomos uma turma no meio do mato procurando escola (risos). Aí, varamos para o Andirá, para o outro rio…
P/1 – Passaram a noite?
R – Não. Dormimos no meio do mato, numa barraquinha lá, dormimos no meio do mato. Amanheceu o dia, seguimos a viagem. Aí, por volta das dez horas do outro dia, chegamos no outro rio, onde estava essa escola. Até hoje está a Escola São Pedro, lá no Andirá, que foi uma história muito interessante também, não é? E a minha mãe me matriculou lá e me deixou lá, foi outro abandono (risos). A minha mãe me largou lá, me deixou, ela voltou, passei um ano sem ver a minha mãe, sem ver a minha família, porque não podia voltar nem nas férias. Mas lá eram… Também indígenas lá, alguns professores também eram indígenas lá. Era a escola dos padres, da missão católica lá de Parintins, era uma escola agrícola.
P/1 – Dormia lá?
R – Lá é tipo uma… Como é que se chama? Os alunos moravam lá mesmo. A gente ia para lá e lá tinha casa para a gente morar, comida, tudo era lá.
P/1 – E como você se sentiu, além…
R – Olha, lá foi uma luta também, foi um grande desafio também para mim. Eu me lembro que sofri muito lá, sofri. Assim... A falta da família, longe assim, não é? Lá eram indígenas também, como a gente, se comunicavam bacana, mas eu sentia muita falta da minha família. E também eu enfrentei muito sério a questão da necessidade, não é? Eu não tinha mais roupa, calçado, porque os meus pais moravam… Não podiam vir de lá, que era muito longe. No meio do ano, e olha que eu era… Sempre fui um aluno muito assim, muito interessado, esforçado mesmo, não é? Boas notas, eu era aluno muito, muito… Bem dotado mesmo. Eu tenho orgulho de mim mesmo, não é? Até as minhas… Eu mostrava para os meus alunos: “Olha, pessoal, olha aqui o meu diploma, as minhas notas aqui - nove, dez, nove, dez, nove e dez”. Então, eu falo para os meus alunos até hoje: “Vocês têm que se esforçar, vocês têm que estudar, vocês têm que ter esse interesse de estudar, é assim que a gente aprende”. Eu, quando tirava sete, ficava triste. Sete para mim era uma nota que… Entendeu? Era assim. Aí, no primeiro bimestre, eu tinha nota muito boa; no segundo bimestre, caiu. Notas baixas. E o meu professor… Os meus professores, na verdade, perceberam que eu mudei, algo estava errado, algo estava acontecendo comigo. Aí um professor… Olha, eu conto essa história também, eu tenho uma história de vida muito rica, sabe? Eu tenho os meus ex-professores... Eu elegi ele, das dezenas de professores que eu tive, ele foi um professor que assim... Cumpriu o seu papel de ser professor, mesmo. Eu acho que o professor, ele não pode se preocupar com o aluno só naquele momento na sala de aula, só de trabalhar a alfabetização, alguma coisa, de passar o conhecimento para ele. Não, só isso não. Mas um verdadeiro professor tem que se preocupar com a vida do aluno, não é? Talvez o aluno esteja tendo aquela dificuldade de aprender algum assunto porque não está se sentindo bem ali. Algo está dando… Ele está sentindo, não é? Está sentindo alguma coisa. Aí, o professor que não se preocupa com isso, ele não liga para isso, aí vai achar que o aluno está com preguiça, não tem disposição de estudar, não é? Mas esse professor… E não é indígena esse professor… Aí ele percebeu que eu estava triste. Um dia, ele esperou encerrar a aula, esperou os alunos saírem de lá da sala de aula, pediu para eu ficar lá. Aí, ele chegou: “Meu filho, o que você está sentindo? Está sentindo alguma coisa? Porque, olha, você não era assim, você era bem esperto, as suas notas, as suas provas…”. E ele era professor de Língua Portuguesa e eu tinha boas notas em Língua Portuguesa. “O que está acontecendo? Você está doente? Sentindo alguma coisa?” Aí, quando ele perguntou isso, eu comecei a chorar, não conseguiu sair nenhuma palavra, sabe? Comecei a chorar. Aí, eu consegui respirar e fui contar: “Professor, estou passando muita dificuldade. Só tenho uma roupa para estudar, uma peça de roupa para estudar e uma outra para trabalhar. Eu não tenho mais calçado, os meus pais… A minha mãe não pode vir e eu estou adoecendo também porque eu sou alérgico a ferrada de formiga, não posso mais estar roçando, eu estou doente também e eu quero ir embora para casa. Se tivesse uma oportunidade já teria ido embora, não estou mais podendo seguir os meus estudos aqui, eu quero ir embora para casa”. Aí eu chorei tanto, ele me disse mesmo assim - me lembro como se fosse hoje - ele disse: “Meu filho, eu entendo todas as suas dificuldades, todas as suas razões para você ficar nesse estado, eu entendo. Mas uma coisa eu vou lhe dizer: você não está perdido, não, você está no caminho certo”. Ele disse essas palavras para mim: “Hoje, você está precisando de tudo isso - calçado, roupa. Você está passando essa necessidade toda porque você está dependendo de alguém para ter essas coisas. Você precisa do seu pai, da sua mãe; se eles não lhe dão isso, você sofre essa necessidade. E eu lhe garanto que você hoje está aqui, você está lutando pela sua vida, você está num bom caminho. Um dia, se você vencer aqui e vencer outras etapas, um dia você vai vencer tudo isso aqui e você vai conseguir comprar tudo que quiser comprar para você, você vai comprar sem precisar que ninguém dê para você, você mesmo vai comprar as coisas que você quiser. Mas, para isso, você precisa ser forte e vencer tudo isso aqui”. Ele falou isso para mim. “Agora, se você abandonar hoje, por conta dessa necessidade toda, você
pega e vai embora para a sua casa, você vai abandonar a sua escola, esse caminho, essa luta, aí você pode continuar dependendo das pessoas e você pode estar correndo o risco de sempre depender das pessoas, se você não vencer isso aqui”. Pronto, ele falou isso: “Então, você não vai embora, tire isso da sua cabeça, você vai vencer. Eu vou lhe ajudar no que eu puder, o que eu puder fazer por você eu vou lhe ajudar”. Aí eu consegui respirar, sabe?
“Então, volte a estudar, volte, eu preciso que você tire… Continue tirando boas notas e vamos resolver esse problema”. Aí, ele me convidou para ir para Barreirinha, porque todo final de semana os professores iam para as suas casas
e ele era de Barreirinha. Ele me convidou para passear com ele para Barreirinha. E lá ele arrumou umas peças de roupas do irmão dele - porque ele tinha um irmão do meu tamanho - e resolveu o problema de uniforme, de roupa, não é? E ele também me tirou lá do trabalho, porque a gente trabalhava de manhã e estudava, porque era escola agrícola, não é? De manhã… Isso era regra da escola... De manhã a gente estudava e, à tarde, trabalho de equipe, ou para cuidar das galinhas, ou dos porcos, ou para roçar lá a área da escola. E aí ele me tirou desse trabalho de equipe e eu fiquei só ajudando nos trabalhos que não precisavam estar entrando no cerrado, no mato, não é? Me livrou também da ferrada de formiga. Pronto, e eu consegui me estabilizar de novo, comecei a estudar e venci, venci a batalha com a ajuda desse professor. Hoje, esse professor é um amigo, entendeu? Eu o chamo sempre de mestre, a gente conversa: “Mestre, o grande mestre”. Eu chamo ele… Entendeu? Eu o considero como uma pessoa… Uma das pessoas muito importantes da minha vida. Então isso foi uma luta, sabe?
P/1 – Bonita!
R – Venci o ano, a minha mãe apareceu, foi no encerramento do ano, ela foi me buscar. Eu me apeguei tanto ao meu professor que eu não queria mais voltar com a minha mãe, eu queria vir para a cidade do meu professor continuar o meu estudo. Eu queria morar lá com os pais do meu professor. Eu criei uma amizade com ele que ele, sabe...? Substituiu a minha mãe, o meu pai, entendeu? E eu quis... Eu pedi para a minha mãe: “Mamãe, eu não vou mais com a senhora, eu vou para Barreirinha estudar, meu professor vai me matricular lá e eu vou continuar… Não vou mais voltar para casa, não”. A minha mãe não aceitou, mas mesmo assim eu ia, já estava tudo certo com o professor, o professor aceitou a proposta. Só que aconteceu um outro imprevisto: o meu tio e o meu avô, que foram acompanhar a minha mãe pelo mato, levaram a espingarda e outras coisas, munição, levaram para lá... E lá da escola, depois do encerramento, o meu tio e o meu avô foram convidados para participar de uma reunião para cá, em Parintins. Então, de lá mesmo tiveram que pegar o barco rumo a Parintins e a minha mãe teve que voltar sozinha para o mato, ela e mais três alunos. E tinha que carregar uma espingarda e as munições. Aí, fui obrigado a voltar com a minha mãe para ajudar ela a carregar essas coisas no meio do mato; foi aí que eu tive que voltar para a minha terra de novo e recomeçar a vida por lá.
P/1 – Em Maués?
R – Em Maués.
P/1 – Nessa comunidade?
R – Nessa comunidade, isso.
P/1 – E você tinha terminado o ensino fundamental?
R – Não, só até a quinta série. Eu tive que voltar para me matricular em Maués. Só que houve um problema, aí já vamos começar outra história, não é? Cheguei lá na minha terra, lá com a minha família, aí, no momento em que eu queria que eles me matriculassem lá em Maués, na cidade, para continuar os meus estudos, não foi possível porque foi descoberto que uma nota da escolaridade não apareceu no meu histórico escolar. Por conta disso, não conseguiram me matricular naquele ano, eu parei e fiquei fora da escola por um ano. Eu lembro que foi em 1994, foi o ano em que eu fiquei fora da escola e, nesse ano, eu comecei a visitar outras comunidades, fui acompanhar a minha mãe. Naquele tempo, os padres faziam curso para agentes de saúde, para professor, os padres faziam esses cursos, não é? E quando a minha mãe ia participar desses cursos, eu ia na companhia dela. Meu avô também ia para participar desses cursos. E nessa minha visita, houve uma mudança da minha vida, completamente. Foi o dia em que entregaram uma menina para mim. Eu estava conversando com uma menina lá naquela noite, aí a mãe da menina foi lá, que é a regra da cultura mesmo, que no meu tempo não podia… Menino e menina não podiam… Adolescentes não podiam conversar, não podiam namorar por aí, não é? Se acontecesse isso, a mãe da menina ia lá e entregava a filha para… É assim... Aí já ficam casados, lá nas leis da cultura. E foi isso que aconteceu comigo. Aí, pronto. Aí eu arrumei a minha primeira mulher, aos quatorze anos (risos). Pronto, foi uma outra dificuldade, eu entendi aquilo como uma dificuldade. Para quem queria ter o seu tempo, a sua dedicação para os estudos como eu, na época já tive uma outra dificuldade, não é? Então, só para dizer que a luta não foi fácil. A minha vida, o que eu conquistei hoje foi o resultado de muita luta mesmo, sabe? A cada etapa da minha vida aconteciam esses desafios.
P/1 – Euro, você estava ainda na sua comunidade?
R – Ainda na minha comunidade nesse tempo. Mesmo assim eu consegui me matricular na cidade. A mulher ficava junto com… Morando com a minha mãe e eu vim embora para a cidade enfrentar aquele desafio de continuar os estudos.
P/1 – Sua mãe que você diz seria a sua avó?
R – Minha mãe mesmo. Eu tenho, na verdade, duas mães. Eu chamo a minha avó de mãe e a minha mãe biológica de mãe também, eu tenho duas mães (risos).
P/1 – Sua esposa ficava… Sua companheira ficava com a sua mãe lá na comunidade e você ia para Parintins…
R – Para Maués…
P/1 – Desculpe, para Maués.
R – Estudar. Fazer o sexto ano lá.
P/1 – E o trabalho? Que época começou para você sobreviver junto com a sua mulher?
R – Pois é. A mulher era sustentada ainda pelos pais. Ajudavam a sustentar. Eu não trabalhava, só estudava. O meu avô também ajudava na comida, não é? E a questão das coisas, roupas e outras coisas, os pais dela… O pai dela, na verdade, trabalhava muito também. De vez em quando, todo mês levava lá alguma coisa, roupa... Essas coisas. E eu lá, trabalhando. Não. Estudando, na verdade. Mas eu me virei também na cidade, eu me lembro de que uma vez eu fiquei sem dinheiro lá na cidade e eu preocupado com a mulher lá: “Poxa, vai chegar o final do mês e eu preciso arrumar alguma coisa”. Eu procurei trabalho... Isso eu era criança, sabe, eu era… (risos) Era só uma criança, tinha quinze anos. Arrumei um trabalho lá na Usina de Pau Rosa, carregar aquelas toras de madeira lá para eu ganhar um trocadinho na cidade. Aí, foi assim, não é? Eu sei que aguentei estudar só um ano. Foi o tempo em que surgiu um projeto da SEDUC, na época IERAM. Na época, aqui em Manaus, na SEDUC, surgiu um projeto para a formação de professores, o primeiro projeto de formação de professores. E a nossa área lá de Maués foi contemplada para incluir no projeto. Aí, o meu tio, que era professor, foi lá em Maués comigo: “Olha, vai ter curso aí para professores, não quer se matricular, não?” E eu: “Vou! Pode colocar o meu nome lá”. Aí eu parei de estudar em Maués, voltei para a comunidade para começar o curso de formação de professores que me salvou, sabe? Com dezoito anos comecei a dar aula, foi o meu primeiro emprego. Aos dezoito anos.
P/2 – Esse curso de formação que você foi é o Logos 1 ou Logos 2?
R – Eu acho que foi o um.
P/1 – Vou lhe perguntar uma coisa: você disse que já tinha dezoito anos. Você disse que casou com quatorze…
R – Isso.
P/1 – E depois foi lá estudar em…
R – Maués.
P/1 – Na cidade, não é?
R – Isso.
P/1 – No centro. E terminou o ensino fundamental? Porque com dezoito você disse que foi para a sua cidade…
R – Isso, parei na sexta série. O estudo normal eu parei na sexta série, escolaridade mesmo. Aí, a formação para professores foi a nível de ensino fundamental e ensino médio. Eu me matriculei, concluí o ensino fundamental já no curso de formação. E só fiz a complementação - sétimo, oitavo e nono anos.
P/1 – E era lá em…
R – Na comunidade mesmo.
P/1 – E você daí concluiu o ensino fundamental?
R – Conclui já no curso de formação o ensino fundamental.
P/1 – Batalha, hein?
R – Batalha. Uma luta! O meu avô… Aí eu voltei para a cidade, ele não aceitava… Na verdade, a minha ida para a cidade foi a minha vontade, exclusivamente a minha vontade. A minha mãe, o meu avô… Meu avô dizia: “Meu filho, você escolheu mulher porque você não quis mais estudar. Agora, tem que cuidar da sua mulher”. Mesmo assim eu desobedeci (risos) e fui embora para a cidade. Aí, sempre quando saía… Porque era por módulo o curso, aí quando teve… Na verdade, o curso acontecia numa comunidade um pouquinho distante da minha comunidade. Eu tive que ir embora para aquela comunidade para passar trinta, quarenta e cinco dias fora da comunidade, e a mulher lá. Aí, o meu avô pirava comigo, não aceitava, porque eu tinha que trabalhar, tinha que caçar, pescar para sustentar a mulher. Mas eu insistia, sabe, eu fui… (risos) Eu não abandonei, sabe?
P/1 – E para a sobrevivência você ia fazendo esses trabalhos…
R – Isso, esses trabalhos. Durante ainda dois anos e pouco eu lutava para garantir o sustento, sabe? Trabalhando... Naquele tempo já podia trabalhar, não é? Tirava matéria-prima, palha, essas coisas, quebrava castanha e vendia, aí comprava as coisas para a gente. Aí completou-se… Eu me formei na oitava série, na época oitava série, aí pronto, já dava para trabalhar como professor - fui contratado para ser professor.
P/1 – Professor indígena?
R – Professor indígena.
P/1 – Onde você foi a primeira vez professor?
R – Lá na minha comunidade mesmo. Na comunidade Terra Nova, comunidade da minha família, dos meus pais, da minha mãe.
P/1 – E como foi? Você se lembra do seu primeiro momento de professor?
R – Olha, não… Foi um desafio, não foi fácil também não (risos), não foi fácil também. Mas eu acho que já tive essa vocação para ser professor mesmo. Inclusive, eu já fui assim bem respeitado pelos meus alunos, até hoje. Os meus ex-alunos já se formaram na faculdade e por ali, não é? Os meus ex-alunos, da minha primeira experiência de sala de aula.
P/1 – Mas conte o primeiro dia.
R – Olha, o meu primeiro dia… Porque assim... Antes de eu assumir mesmo, pelo contrato, o meu tio... Ele já deixava a sala de aula para eu conduzir. Toda vez que ele ia se ausentar da sala de aula, ele me chamava: “Filho, assume a minha sala de aula lá, eu vou viajar por dois dias, fica lá”. Aí eu já começava exercitando isso, sabe? Ensaiando ali. Eu acho que, por conta disso, eu não tive tanta dificuldade em dirigir uma aula, não é? Mas eu tive, porque imagina, aos dezoito anos, dezoito anos já começar essa responsabilidade… É uma responsabilidade muito grande, na verdade, não é? De passar conhecimento para as pessoas. Como eu já tinha essa habilidade, essa… Eu já perdi a timidez, por exemplo. A expressão, o diálogo me ajudou muito também. Porque isso foi uma luta também, por conta da história da minha infância eu era muito tímido. Para eu falar alguma coisa na frente das pessoas… Mas isso eu fui perdendo. Fui perdendo no contato com outras pessoas, não é? As minhas experiências de substituir o meu tio na sala de aula, tudo isso já foi perdendo essa timidez. Mas sim, aí, o meu primeiro dia, ia lá… Fiz a reunião, primeiro foi uma reunião com os alunos, com os pais, me apresentei lá, primeiro dia, tá? Aí, segundo dia já comecei a trabalhar e a sala multiseriada (risos), não foi fácil, não. Crianças e adolescentes, tudo misturado ali, eu tive que me virar, mas foi muito legal a experiência.
P/1 – E aí, você foi para o ensino médio depois?
R – Aí eu continuei no projeto, ensino médio com qualificação para o magistério indígena. Eu sou professor indígena mesmo, por conta do projeto. Eu posso dizer que no meu diploma está: “Professor indígena”. Magistério indígena é a formação nossa.
P/1 – Euro, quantos anos eram o ensino médio no projeto?
R – Três anos, normal. Foram, no total, nove períodos, que era por período, módulo, não é?
P/1 – E você continuou trabalhando como professor?
R – Continuei trabalhando.
P/1 – E como é que você encontrou o projeto do Telecurso?
R – Olha, o Telecurso… Na verdade, essa formação não foi o Telecurso ainda, era uma formação presencial mesmo, normal, não é? A minha formação foi nesse curso que é do Projeto Piraiauara, esse era o nome do projeto de formação dos professores. E foi onde eu me formei.
PAUSA
R – Continuando a história da minha trajetória de formação, aí eu me formei nesse projeto de formação de professores indígenas pela SEDUC, Projeto Piraiauara, concluí o meu ensino médio e continuando a atuar como professor indígena na minha aldeia, lá na minha comunidade. Foi quando surgiu um outro projeto de formação pela Prefeitura de Maués, em parceria com a UFAM. A Prefeitura de Maués conseguiu abrir um curso para formação de professores - licenciatura e licenças naturais - e foi uma oportunidade para eu continuar os meus estudos. Eu me matriculei e comecei a minha faculdade, minha formação, licenciatura. Foi uma sorte, uma benção muito grande naquela época, porque precisava mesmo. Aí foi uma outra luta mais difícil ainda, porque eu tive que estudar na cidade, tive que deixar a família mais longe, e o meu avô no meu pé: “Não, meu filho, você está deixando…”. E já tínhamos filhos, já tinha dois filhos para cuidar, precisava comer, beber, todo dia eu tinha que dar conta, mas mesmo assim eu fui insistente e quando chegava o período do curso eu ia lá, participava do curso e eu tinha muita dificuldade, tanto que eu faltei um período por conta… A mulher também, que já havia amadurecido mais, ela também trabalhou para impedir de eu viajar, aí numa dessas… Na segunda etapa... Começou a primeira etapa, na segunda etapa a mulher não deixou eu ir para o curso. Naquele tempo, eu tinha um trabalho na comunidade, porque lá na comunidade eu me envolvi também com a questão da religião, da Igreja, não é? Eu organizei todo o trabalho lá, comecei um projeto de construção da igreja, nós estávamos organizando a festa do padroeiro da comunidade, tudo por minha conta, eu demoli a igreja naquele tempo para construir uma igreja nova. E nesse período foi anunciada a segunda etapa do curso. Aí a mulher disse: “Você não vai”. (risos) E ela mandava mesmo, sabe? “Você não vai agora, você tem que ficar aqui senão não vai sair essa festa. Você vai ter outras etapas do curso, aí nessa etapa você não vai, você vai ter que ficar aqui para continuar o trabalho aqui na igreja, aqui na comunidade”.
P/1 – Tinha um motivo, não é?
R – Tinha motivo (risos). Aí eu pensei e me informei: “Quando a gente falta a uma etapa, o que acontece?” Me informaram que tinha como recuperar, era só pedir o plano de estudo que a coordenação do curso pede para o professor ministrante parar o plano de curso para o aluno e faz as avaliações, tudo. Aí, beleza, então. Então não vou. Só que um detalhe não me avisaram: só tinha plano de estudo para disciplinas obrigatórias, está na lei lá dos cursos, da faculdade. Para optativa não tem plano de estudo e quando o aluno é reprovado na disciplina optativa é considerado como obrigatório, reprova. Esse detalhe não me disseram. Aí, terceira etapa eu fui lá, expliquei para o coordenador do curso, ele me disse: “Professor, você prepara uma boa justificativa para convencer o diretor lá do departamento. Prepara o papel que eu levo lá para Manaus para analisar. Se ele acatar, ele vai solicitar o plano de estudo para os professores”. Quatro disciplinas que eu perdi naquele módulo. Aí, pronto, veio a confirmação: “O diretor aceitou, acatou o seu pedido e você vai ter plano de estudo”. Eu esperei. Aí, pronto, aí só me mandaram dois planos de estudo, de duas disciplinas e das duas não me mandaram, me enrolaram. Eram cinco anos de curso, nove etapas no total, aí me enrolaram. Toda etapa: “E o plano de estudo?” “A gente está resolvendo por Manaus, não se preocupe não que vai dar certo, não vai ter problema”. Terminou o curso, encerrou o curso e não tive esses planos de estudo.
P/1 – Fez tudo e faltou isso.
R – Faltaram duas disciplinas optativas, que eram Antropologia e Língua Portuguesa, eram disciplinas optativas para o meu curso de Ciências Naturais. Aí é que me falaram: “Olha, por que não veio plano de estudo para você? Porque as duas disciplinas são optativas, então para disciplina optativa não tem plano de estudo”. Eu liguei para o coordenador: “Mas isso não vai dar problema?” “Não se preocupe não que nós vamos resolver aqui, não se preocupe”. Encerrou o curso e eu fiquei assim preocupado, sabe? Pronto, chegou o dia da colação de grau e eu já subi no cargo, eu já era coordenador da educação escolar indígena da SEMED de Maués, todos os professores, trabalhando na SEMED, em Maués, por conta… O que estava me segurando era porque eu estava fazendo… Porque essa vaga, esse cargo aí é para quem já tem o nível superior, e me seguraram lá. Claro que tinha a política envolvida nisso, mas o que me segurou mesmo é porque eu estava cursando o nível superior, eu podia perder a qualquer momento o meu cargo. Aí, no dia… Ligaram, a UFAM me ligou: “Professor, organize a colação de grau e a colação de grau vai ser lá na aldeia, vai ser a colação de grau diferenciada, vamos fazer um ritual para comemorar lá”. E eu fui encarregado de organizar tudo. Aí chegou o dia: “Professor, amanhã às nove horas nós vamos passar o fax dos formandos, da relação dos formandos, receba lá”. E o meu caso ninguém soube mais informar. Só fizeram falar isso: “Professor, receba o fax em que vai a lista dos formandos”. E no outro dia, nove horas, a secretária foi lá na minha sala: “Professor, telefone para o senhor”. Peguei lá: “Professor, nós estamos enviando o fax, receba aí”. Dei lá, apertei o botão, aí o papel do fax ia saindo a lista e eu de olho: cadê o meu nome? Letra A... Porque a lista foi em ordem alfabética... Letra B, letra C… Letra E, cadê Euro? Cadê Euro? Todos os nomes com a letra E e não apareceu o meu nome, um desespero! Chorei, chorei, não saiu o meu nome. Eu não colei grau. Eu fui para a área indígena, para a aldeia, organizei tudo, eu vi lá aquela festa, eu podia estar lá no meio, não colei grau, uma tristeza muito grande. Cinco anos, não é? Aí foram lá os coordenadores, o representante do reitor estava lá e, numa oportunidade, eu fui perguntar para o meu coordenador do curso, professor Felício na época: “Professor, e a minha situação ainda tem jeito?” Aí chamou o outro coordenador, três lá que se reuniram para pensar o meu caso. Disseram assim para mim: “Professor, a UFAM não vai pagar um professor para vir dar aula para você aqui. Isso é impossível, não existe essa possibilidade. A única solução é você ir lá para Manaus para pagar essas horas, quarenta horas de cada, assistir a aula lá na UFAM para pagar essas horas e talvez possa resolver, mas essa é uma dica”. Pronto, só isso falaram para mim. E eu, muito triste, voltei para Maués, preocupado de perder o meu emprego e outra luta eu tive que enfrentar. Aí eu fui falar com o prefeito: “Prefeito, o senhor me ajuda? O senhor me libera para eu ir para Manaus procurar lá o meu direito? Porque eu estou… Não colei grau e…”. “Professor, eu vou lhe ajudar, vou pagar todas as despesas para você, pode ir lá. Só que você não vai se ausentar do seu trabalho, você vai lá e volta, vai lá e volta”. O prefeito foi muito gentil comigo, sabe? Aí eu vim embora para cá, eu fui lá na gerência, eu fui lá: “Vim ver a minha situação. Eu fui aluno do curso lá de Maués”. “Cadê o seu CPF?” Digitaram lá e a menina que estava lá de frente do computador, eu vi a expressão facial dela. “E aí, senhora?” “Meu filho, você foi jubilado”. Eu não sabia o que era a expressão, pensei que era uma palavra… “Você foi jubilado”. “Explica aí o
que significa isso?” “Vou lhe explicar. Você já foi excluído do curso, você não existe mais aqui”. Outro desespero. “Você perdeu tudo”. Porque o curso é assim. Quando encerra, aí o aluno que não colou grau, já foi jubilado. Então, eu fui procurar outras pessoas para me informar, fui lá com a minha ex-professora, lá do outro departamento. Aí, ela se assustou com a situação porque eu fui um dos que mais se destacaram lá, boas notas - nove, dez, nove, dez as minhas notas. Ela disse: “Meu filho, você foi um dos nossos melhores alunos, nós vamos lutar. Conte comigo, o que depender de mim eu vou lhe ajudar”. Aí ela me convidou para a gente ir lá com o professor Felício, que era o coordenador geral do curso. E lá me deram a informação: “Professor, nesse caso você tem direito de recorrer, você pode preparar um requerimento solicitando o recurso, explicando a sua situação”. Aí ele deu detalhes de todo o procedimento que eu tinha que… Foi mais uma chance. A professora me orientou como tinha que ser feito o documento, tudo, eu encaminhei para o departamento. “Amanhã, às nove horas, vai sair o resultado”. Aí, a professora ficou responsável por fazer essa articulação e eu estava lá no hotel, aqui no Parque Dez, tremendo, era a última chance. Se o meu recurso fosse votado… Fosse indeferido, já era para mim, ia perder definitivamente toda a
luta. Aí, no outro dia, eu estava no telefone, liguei para a professora: “Professora, como foi?” “Olha meu filho, você teve sorte, foi deferido o seu pedido, então você tem chance novamente agora. Só que agora a sua situação vai ser julgada, vai ter julgamento no seu caso, vai ser julgado, vai…”. Porque lá tem esses casos, lá tem uma equipe para julgar essa situação, não é? Tipo um fórum ali, funciona assim dentro da instituição. “Vai ser julgado, vamos rezar muito, vamos fazer isso, começar pelas orações, e outro passo... Nós vamos lutar”. O relator do julgamento vai ser um amigo meu…”. A professora dizendo: “…um amigo meu, eu vou convencê-lo a votar favorável ao seu recurso, vou conversar com ele, pode contar”. Ela fez isso por mim. Aí chegou o dia do julgamento lá da minha situação. Empatou. O voto para desempatar era do relator. E pronto. Conforme o que a professora conversou lá com ele, ele votou a favor. Aí a professora liga: “Pode vir embora se matricular de novo aqui”. Aí peguei o ônibus e fui embora lá para o campus”. Mas outra missão muito difícil também. Eu tive que procurar professor que me aceitasse como aluno especial, só nessa disciplina. Aí, como a professora conhece lá, eu tinha que arrumar um professor de Antropologia e outro professor de Língua Portuguesa para poder me aceitar na turma, na sala. É uma história muito interessante, eu vou contar até o final. Só para se ter ideia de quanto foi a minha luta para eu vencer. Aí, a professora me indicou: “Fulano, professor tal, professor de Antropologia, é um bom professor. Conversa com ele lá, eu já vou ligar para ele para conversar com ele a seu respeito e o resto vai ser com você. Tem uma professora lá que é professora de Língua Portuguesa, também vou ligar para ela e pode ir lá”. Eu fui lá com o professor de Antropologia, professor Lino, na verdade professor… Me esqueço do nome do outro professor que ministrou, o professor que ministrou lá. Só que quando eu cheguei lá: “Eu não sou mais o ministrante dessa disciplina, agora é o professor tal, mas eu vou lhe ajudar”. Porque é um professor que fez projeto para a área indígena, projeto dele, o professor nos conheceu muito lá, tem o maior carinho pelas comunidades: “Eu vou lhe ajudar, esse professor não é fácil, não”. Professor Lino, bigode desse tamanho, “Mas eu vou conversar com ele, ele vai aceitar”. Aí ele conversou lá, me chamou, eu conversei com ele, tudo certo, só que ele disse assim... Professor de Antropologia aqui eles falam tudo na gíria, não é? Chamava de caboclo: “E aí, caboclo, o que você veio fazer aqui?” “Professor, aconteceu comigo uma situação…”. Expliquei a minha história, aí ele disse: “Hum, você conhece Manaus? Já morou alguma vez em Manaus?” “Não”. “Então você não conhece Manaus. Você tem condições de morar em Manaus? Tem dinheiro para morar em Manaus?” “Eu não tenho, mas tem pessoas que vão me ajudar, eu preciso vencer”. “O que você faz para lá?” “Eu trabalho lá, por isso que eu estou precisando, preciso concluir a minha faculdade, preciso que o senhor me ajude, só quero a sua ajuda, o senhor vai me ajudar muito, ajudar a minha comunidade também”. Eu conversei com ele, não é? Aí ele disse assim: “Olha, se você achar que você não vai dar conta de morar aqui alguns dias, se você não tiver segurança, melhor parar por aqui a nossa conversa, eu tenho muita coisa para fazer aqui, eu estou perdendo tempo com você”. Falou assim mesmo: “Estou perdendo tempo. Então pense bem e eu não gosto de brincar com palavras, então você vai bagunçar comigo se você fechar uma coisa aqui comigo e depois você não cumprir, você vai bagunçar comigo. Eu não gosto disso”. Esse professor foi um exemplo para mim também, sabe, vou contar uma história. A professora de Língua Portuguesa aceitou bacana, não colocou dificuldade…
P/1 – E você conseguiu concluir?
R – Consegui. Consegui. Aí teve… Porque assim... Aí eu fiz o meu calendário, duas semanas aqui e duas semanas lá no meu posto de trabalho, em Maués. Aí sempre viajava. Aí, numa dessas, ele disse: “Olha, você fez esse calendário, não fui eu não, foi você quem fez esse calendário. Se você faltar a uma dessas aulas eu vou terminar o trato com você na hora”. Ele falou assim mesmo. Aí, para o meu azar eu precisava viajar um dia antes porque eu tinha que chegar aqui num dia e no outro dia ir para a faculdade. Nesse dia, não tinha barco de Maués para cá, o barco que ia vir foi fretado para Parintins. Aí eu cheguei, perdi um dia de aula. Quando eu cheguei, peguei um ralho de um professor aos trinta anos, peguei um ralho. A gente se cruzou lá, naquela área lá da rio. lá da UFAM, de modo que ele nem… Eu falei: “Professor…”. Ele passou por mim, subiu lá para o escritório dele, aí tomei o meu café rápido e fui lá: “Professor”. “Caboclo, como eu disse para você, acabou o negócio, acabou. Estamos perdendo tempo e eu vou para a aula, se você quiser ir, pode ir lá, mas acabou, não tem mais jeito. Esse foi o nosso trato, você falhou, você faltou a uma aula”. E não deu tempo nem de justificar. Aí eu fui lá, assisti a aula dele, no final da aula ele liberou outros alunos. “Agora, vamos conversar”. “Professor, eu preciso explicar o que aconteceu”. “Está bom, pode falar”. Aí que ele me deu espaço para explicar. Ele disse: “Professor, o professor tem que ser assim, não pode estar brincando com os alunos, não. A gente tem que ser assim porque se a gente não fizer isso vai ter aluno que vai brincar com a gente, vai… Entendeu? Tem que ser assim. Isso demonstra que não é fácil estudar, não é fácil vencer, isso é a vida, isso é o estudo, é difícil. Aí você está entendendo que a coisa não é fácil, mas tem que ser assim, não me leve a mal, é o meu jeito. Mas agora, vamos tratar sério. Aí eu respirei (risos). Eu venci com muita dificuldade. No dia da minha colação de grau foi aqui mesmo, não foi aquela colação de grau com festa. Foi só o diretor, eu e mais outro. Peguei aquele papel lá, chorei muito, a emoção tomou conta de mim. Aí eu disse: “Eu não posso nem agradecer à minha mãe, ao meu avô, ninguém. Foi bem melhor, porque eu estou longe aqui, não precisa ninguém vir aqui para comemorar comigo. Porque ninguém me ajudou, foi só eu e Deus; Deus está aqui comigo, e pronto”. E foi uma luta mesmo e, graças a Deus, valeu a pena a minha luta. Hoje eu estou aqui, tenho muito orgulho de ser indígena, tenho toda essa história, eu venci. Tanta gente da minha época tinha muitas condições de estudar mas não teve a mesma sorte. E é motivo de muito orgulho mesmo, sabe? Hoje eu estou trabalhando, graças a Deus. Eu estou longe da família, mas estou muito bem, estou do lado das pessoas que eu considero bastante. Para mim, a família é isso aqui, que compartilha comigo todo o aprendizado, toda a conquista, a história, tudo. O trabalho e tudo. Para mim, a família é isso aqui.
P/1 – Foi muita sorte e muita garra.
R – Isso. Com certeza.
PAUSA
P/1 – Vocês mantêm na comunidade algumas tradições de festas e comemorações, alguma coisa assim?
R – Sim. Lá na região de Maués, lá a cultura, as práticas tradicionais, os hábitos, lá ainda são mantidos muito fortes os rituais, por exemplo. Lá ainda é bem valorizado. A língua… Houve uma época em que a gente percebeu que havia o conflito da língua portuguesa com a língua materna, Sateré, muito forte. Começando pela comunidade que ficava logo na entrada da região do rio. Lá, as famílias não falavam mais a língua Sateré, a língua materna, e a segunda comunidade falava tudo misturado. A terceira comunidade, parte das famílias já falavam, então quer dizer que pela nossa… Pelo nosso diagnóstico do uso da língua, já estava se perdendo, ocupado pela língua portuguesa, assim, visivelmente mesmo, de fora para dentro. Se a gente não agisse, não houvesse uma política para fortalecimento da língua, a gente ia, a cada período, adentrando mais essa situação, não é? E aí a gente entrou em ação.
P/1 – O que vocês fizeram?
R – Fizemos um projeto, uma professora estava fazendo… Na verdade, fazendo uma pesquisa linguística lá na época. E através dela, a gente conseguiu o financiamento de um projeto para a produção de materiais, livros em língua Sateré, a
edição da gramática da língua portuguesa. Então, com esse recurso, nós conseguimos também desenvolver capacitação específica para esses casos de perda da língua nas comunidades. Nós trabalhamos com encontros pedagógicos com os pais, professores, lideranças, para que nessas comunidades se tome o resgate do uso da língua materna, aí nós tivemos sucesso. Hoje, naquela região, já está estabilizada a questão do uso da língua materna e da língua portuguesa.
P/1 – Então, Euro, como você começou no Telecurso?
R – Telecurso foi uma experiência de trabalho muito boa, também. Para eu participar desse projeto, como professor presencial, foi a minha mudança da cidade… Do município de Maués para Parintins. Por volta de 2011 teve um problema lá, questões políticas, eu perdi o cargo de coordenador lá em Maués, aí tive que correr atrás de trabalho. Conheci alguns amigos, aqui nessa região de Parintins, que ligaram para mim e disseram que tinha vaga de professor aqui. Como eu estava desempregado em Maués, eu vim embora para Parintins buscar novas experiências de trabalho. E aqui, Parintins faz parte também da nossa reserva indígena Sateré-Mawé, município de Parintins, e eu tive essa sorte de arrumar um novo trabalho num lugar diferente. Vim embora para cá, para Parintins. Cheguei em 2011, tive o meu primeiro contrato pelo município e, naquele ano, teve processo seletivo da SEDUC, eu participei, fui selecionado, fui convocado para assumir a sala de aula. E, naquele ano, quando eu fui assinar o meu contrato passaram para mim que o trabalho ia ser de professor presencial de uma escola, de uma sala de aula mediado por tecnologia, por televisão, transmissão… Eu não conhecia ainda, para mim foi uma novidade, sabe, nunca tinha visto na minha vida, nunca tinha ouvido dizer, até aquele momento, uma aula daquele tipo lá, usando os equipamentos… (corte no áudio)
PAUSA
P/1 – Euro, você falou do novo, da tecnologia. Faça um resumo de como funcionava e depois eu vou perguntar mais algumas coisas sobre o que elas acabaram de falar, tá? Na sala de aula, um pouco de como funcionava o seu papel. E depois a gente volta um pouquinho.
R – Ok. Bom, o nosso papel como professor presencial é, na verdade, o de conduzir a turma. Além de ligar e desligar o equipamento, resolver alguns problemas técnicos dos equipamentos, o nosso papel maior é de conduzir a turma, não é? De organizar as interatividades, os alunos participarem das interatividades, a questão da correção das avaliações. Tem uma metodologia que foi muito utilizada, a questão do Memorial. O Memorial foi uma metodologia que foi trabalhada no projeto e que foi uma forma encontrada para que os alunos pudessem desenvolver a habilidade da escrita e da leitura. Todo dia os alunos levavam para as salas a questão do que eles faziam no dia a dia deles, não é? Quando eles chegavam em casa, de volta da escola, ao amanhecer, dentro do cotidiano da comunidade. Ali os alunos relatavam todas as suas vidas. Eles passavam o dia a dia na comunidade e a gente orientava como é produzida a questão da escrita. Antes de iniciar a aula, a gente organizava a participação dos alunos para ler o Memorial. Ali os alunos tiveram uma oportunidade de, além de estudar o conteúdo de cada disciplina, desenvolver a prática da escrita, da leitura. E falando na importância do Memorial do aluno, quando o projeto foi implantado na nossa comunidade, nós descobrimos que os nossos alunos... Como em outras escolas também, na zona rural, a escola do interior tinha problema muito grande na questão do alto índice de evasão, até de aprendizagem mesmo, não é? Nós tivemos muito esse problema. O que quer dizer isso? É a questão de que os alunos… Os adolescentes cresciam, passavam de série, mas a aprendizagem deles era muito baixa. Isso tudo tem uns fatores que influenciam essa questão aí. Então, logo nos primeiros dias de aula nós tivemos essa dificuldade dos alunos participarem e acompanharem a aula pelo IPTV, porque tinha tempo, o aluno tinha que ser… Assim... Dominar bem a questão da escrita para poder o aluno conseguir anotar alguma coisa, escrever alguma coisa, a leitura, não é? Nós tivemos também a leitura de imagem, a interpretação, uma metodologia também que nós trabalhamos muito na leitura de imagem. O professor ministrante passava um vídeo relacionado ao conteúdo da aula, depois os alunos faziam uma leitura de imagem interpretando o vídeo, um vídeo que faz parte do cotidiano dos alunos; eles conseguem interpretar, contextualizar o vídeo para a realidade deles. Então, tudo isso nós tivemos no desenvolvimento do conteúdo da prática pedagógica, não é? Com isso, os alunos conseguiam aprender muito melhor.
PAUSA
P/1 – Tinham alto índice de aprendizagem e mesmo na escrita e na leitura. Então, qual a
conclusão sobre isso em relação a esse projeto? Você disse que teve o Memorial, teve as aulas… Aí, você ia concluir agora.
R – Então... Eu tive uma turma que começou o sexto ano no Igarité, no Telecurso. Eu me lembro de que mais da metade dos meus alunos tinha essa dificuldade na escrita e na leitura. Eu fiquei até muito preocupado: “Meu Deus, será que esses meus alunos vão conseguir ter uma aprendizagem boa no final do ano?” Os alunos que têm uma certa dificuldade na leitura, na escrita não conseguiam acompanhar assim, aproveitar bem as aulas, não é? No momento da… Até quando a gente pedia os Memoriais, havia alunos que tinham dificuldade de escrever porque eles tinham dificuldade na escrita. Quando a gente… Na hora dos exercícios eles tinham dificuldade de responder, de escrever as respostas- sínteses do assunto. Aí eu fiquei preocupado, mas como nosso papel como professor presencial é de estimular os alunos, é conduzir a turma, é desenvolver essas metodologias, eu fiquei até surpreso que, no final do ano, todos os alunos superaram essa dificuldade, todos os alunos. Hoje, esses alunos já estão no ensino médio, concluindo o ensino médio. Aquela minha turma, que começou comigo no sexto ano, no Projeto Igarité, hoje… Na verdade, com essas metodologias que nós aplicamos, em paralelo aos estudos dos conteúdos a gente trabalhava também a questão da alfabetização, porque havia alunos que ainda não estavam nem alfabetizados direitinho, mas essas metodologias proporcionaram que nós pudéssemos trabalhar essa questão do letramento com os nossos alunos. Isso é uma coisa muito interessante, não é? Muito interessante, mesmo. E com isso, os alunos já conseguiram desenvolver a prática de escrita, da leitura, o domínio da escrita e leitura, que é uma coisa muito importante. A gente sabe que o aluno que tem essa dificuldade na escrita e na leitura tem uma certa dificuldade para desenvolver esses estudos.
P/1 – Como você trabalhava? Dê um exemplo assim.
R – Digamos, por exemplo, quando o aluno, na hora de fazer uma síntese... A gente trabalhava com imagem, não é? A gente pedia que o aluno representasse, através de imagem, a aula que o professor presencial passava naquele dia. Aí escrevia lá embaixo o que ele sabia, não interessa que a gente conseguisse ler o que estava escrito, o que ele escreveu lá. Se ele sabe, depois, na hora da apresentação, ele lê alguma coisa que está escrito lá, ele escreve e apresenta. É isso, através da imagem. Aí, a gente foi desenvolvendo, desenvolvendo e os alunos não levaram muito tempo para superar tudo isso.
P/1 – E em relação à cultura? Lá no começo você estava dizendo do choque cultural entre aquela professora que chegou lá quando você era criança, enfim, no ensino fundamental, com a cultura. Como é que isso se deu no Telecurso em face dessa relação com a cultura?
R – Certo. Começando pela língua, nós tivemos a questão da dificuldade, porque nós tivemos uma parcela de clientela que tinha dificuldade na língua portuguesa, os alunos que só falam a língua materna na comunidade, aí tiveram… A nossa luta era para incluir no projeto a língua materna. Isso foi uma conquista nossa, não prosseguiu mas nós tivemos um começo muito importante. Houve a questão da regulamentação do sistema mesmo, não foi aceito, mas nós já tivemos uma iniciativa muito grande…
P/1 – No projeto?
R – No projeto. Eu fui o professor que ministrou a língua materna nos intervalos, meia-hora antes do início da aula, da transmissão, e meia-hora depois. Então, a
gente aproveitava todos os dias, a gente trabalhava a língua materna e eu ministrei essa disciplina nas outras salas - na minha e nas outras salas também. Então, isso foi uma forma de superar essa questão do conflito das línguas, não é?
P/1 – O que era ministrar a língua materna? Dê um exemplo.
R – Hein?
P/1 – O que era ministrar a língua materna? Dê um exemplo para relacionar com o que estava sendo trabalhado.
R – Certo. De conteúdo mesmo, porque a língua materna passou a ser disciplina, um dos componentes curriculares. Então, se trabalhava a questão da produção de texto, porque os alunos já dominavam a escrita e a leitura, não é? A gente já começava a produção textual com os alunos, produção de texto através de cartazes, a gente fazia várias formas de exposição de escrita, através de cartazes, produção de historinhas, historinhas em quadrinhos, tudo isso a gente produzia também, não é?
P/1 – Todos faziam?
R – Todos faziam.
P/1 – Então, quem não tinha… Quem não usava a língua materna… Teve alguma situação assim que passou a usar?
R – Até eles participavam dessa metodologia, porque tinha alunos que não usavam mais a língua materna na comunidade, mas eles participavam da metodologia. Inclusive, nós tínhamos alunos que eram filhos de ribeirinhos também, que estudavam nesse projeto e eles conseguiram escrever na língua Sateré. Aí, eles participaram também. Era uma coisa muito interessante, sabe?
P/1 – Na aula, você lembra assim da reação dos alunos sobre isso? Quem falava e quem também foi aprendendo a falar e a escrever na língua materna? O que eles comentavam? A reação de algum aluno sobre isso?
R –
Dos que não sabiam falar, todos eles representavam assim uma aceitação, uma coisa muito interessante até para eles, não é? Porque a questão do convívio também... Porque lá dentro da escola, alunos falando em Sateré e outros que não entendiam. Mas aí, através da linguagem escrita, eles conseguiam se comunicar entre eles. Então, a partir do momento que eles conseguiram dominar a escrita da língua materna, tanto os que falam como os que não falam, aí… Isso servia como uma comunicação entre eles mesmo, entendeu? Através da escrita.
P/1 – Em relação à cultura em geral, além da língua teve alguma relação, alguma importância? Como aconteceu esse objetivo de fortalecer a cultura indígena? Aconteceu alguma coisa sobre isso?
R – Assim... Na nossa comunidade... Essa região daqui, do município de Parintins, nós temos essa questão muito preocupante na verdade, não é? A questão da perda, da desvalorização da língua materna lá. Então, essa condição que o projeto, o Telecurso nos proporcionou de ter esse momento de trabalhar... O professor presencial é o próprio professor indígena que domina a língua, nós temos esse espaço de trabalhar a questão da linguagem escrita com os alunos. Isso trouxe para a comunidade essa questão da esperança de que, através da escola, possa haver a valorização, o resgate do uso da língua materna, da língua Sateré que, até então, a gente podia perceber visivelmente a questão da perda da língua materna nas comunidades, e lá na nossa comunidade também já houve um índice… Nós fizemos até… Os alunos até faziam assim, um diagnóstico do uso, eles mesmos fazendo pesquisa de quantas pessoas ainda falam Sateré, quantos já não falam mais, um diagnóstico linguístico da comunidade. Muito interessante isso também e, com isso, nós fizemos uma reunião para apresentar o resultado do diagnóstico, os alunos mesmo apresentando para os pais, para a comunidade a situação do uso da linha da comunidade, isso é muito interessante também. Aí, as lideranças puderam perceber que, realmente, é uma situação que deveria estar sendo trabalhada. Então, foi uma conquista na verdade essa questão, o que o projeto trouxe para nós essa questão do fortalecimento da língua materna na comunidade.
P/1 – Quando eu falo cultura, você volta para a língua materna e você diz que o projeto teve uma influência importante sobre isso.
R – Com certeza.
P/1 – Por que a língua? Assim... Isso tem que ser fortalecido. E isso, como reflete nas crianças, nos alunos?
R –
A gente entende... Nós professores entendemos que a língua materna… A gente faz até essas comparações. A língua materna numa cultura indígena, por exemplo, a língua se torna algo assim, digamos, uma viga que sustenta a cultura, porque através da língua é que são passados todos os valores; todos os conhecimentos tradicionais são passados de geração para geração através da linguagem. Então, uma vez que se perde a língua, perde essa transmissão dos valores, dos conhecimentos da cultura, e por isso é que a nossa preocupação está muito voltada para o fortalecimento da língua.
P/1 – Tinha outros conteúdos no Telecurso, nesse projeto, que ajudaram nesse fortalecimento? Que houve essa contextualização? Ou foi mais a língua?
R – Bom, nós tivemos… Foi trabalhado em todas as disciplinas, todos os professores… Acredito que todos os professores ministrantes passaram por essa formação, não é? Inclusive, os professores ministrantes, eles passavam o conteúdo e, na hora da interatividade, eles incentivavam as comunidades indígenas, os alunos indígenas a
apresentar da maneira da tradição mesmo alguma coisa que está relacionada com o conteúdo que os alunos possam fazer uma contextualização, uma adaptação daquele conteúdo para alguma coisa da cultura. Aí eles apresentam. A Educação… Simples Educação Física, os professores da Educação Física, eles trabalhavam muito essa questão das práticas culturais. Então, introduzindo a Educação Física na tradição da cultura e os alunos apresentando… Nós, por exemplo... A gente apresentava o ritual, a dança da Candeia como um exercício, uma atividade física. Aí organiza-se ali uma sala e a gente começava a fazer essa apresentação, não é? Outras escolas que não são indígenas apresentavam a dança como a expressão do corpo. Tem outras modalidades também: a ginástica, que está no conteúdo da Educação Física e nós apresentávamos o nosso ritual, as nossas danças, não é? É isso. Então, todas as disciplinas traziam na sua metodologia sempre esse espaço para manifestação cultural para os alunos. Isso é muito interessante.
PAUSA
P/1 – Você lembra de algum momento da sala, de aluno seu, assim, expressando algo sobre isso que você acabou de dizer? Sabe, você contou muitas histórias de luta sua, de garra que você teve. Agora eu estou falando para você tentar lembrar de algum aluno que expressou algum sentimento… Não precisa ser de sofrimento, não. De emoção. De se sentir importante, valorizado. Mas, se
você lembra de algum aluno e de algum momento em que isso aconteceu. Dá para lembrar?
R – Assim... Porque essa minha história pessoal de vida, eu uso essa história na sala de aula que é justamente para estimular os alunos que é por aí o caminho, é luta constante, não é? A gente consegue, nós só podemos conseguir vencer na vida através da educação e se a gente está disposto a enfrentar todos os desafios. Aí, toda vez eu aproveito a oportunidade para contar um pouco da história. Às vezes, a sala começa a bagunçar, os alunos… Porque a gente sabe, o adolescente, criança, adolescente, é uma criatura cheia de energia, muitas vezes se a gente não tem esse controle, esse domínio da turma ali, a gente acaba deixando espaço para eles, para eles mesmos criarem uma forma de se comportar de uma maneira que eles possam desgastar essa energia do jeito deles. A sala vira uma bagunça. Aí, tem momentos em que a gente perde um pouco o controle, eu chamo a atenção deles: “Pessoal, não é assim que funciona, não é assim que
a gente aprende”.
P/1 – O que eu quis lhe perguntar é se nessas atividades que você acabou de descrever para a gente, se teve algum momento em que os alunos manifestaram o que eles sentiam nessas atividades, entendeu?
R – Então, aí…
P/1 – Na valorização da cultura.
R – Isso. Aí, como os alunos já são constantemente orientados pela vida, assim, muitos alunos, eles se sentem... Se inspiram na minha história de vida. E eu acredito que não me lembro ao certo os momentos, mas todos eles, no momento em que a gente desenvolve, por exemplo, a questão da síntese do conteúdo, aí o aluno conta a sua história, sempre relacionado ao conteúdo estudado no dia e o aluno lembrando da sua história. Aí, começa a participar, lê o seu trabalho e eles produzem essas fontes escritas, as poesias, descrevem uma poesia, fazem uma imagem relatando as suas experiências, histórias de vida, uma coisa muito emocionante também. Eu já… Já teve aluno que se emocionou também fazendo esse trabalho, apresentando o seu trabalho, porque lá também nós temos uma dificuldade muito grande, porque a maioria dos alunos depende do transporte escolar ali, não é? E tem época que o transporte escolar é um problema muito sério, os alunos ficam sem transporte escolar, aí tudo isso vai lá para o Memorial, vai lá para aquele momento de… O aluno tendo muita vontade de ir para a aula, mas o transporte não vai lá, e também é uma coisa que acontece na nossa cultura, a questão do desuso do remo, da canoa, que, no meu tempo, não dependia do transporte, eu pegava a minha canoa e vinha embora. Mas hoje não, quando o transporte não vai, combustível faltou, aí não chega o transporte lá e o aluno se arruma tanto lá para a hora, chega a hora de sair, não chega o transporte, o aluno fica lá. Então, todos esses problemas, eles conseguem relatar também. A questão da cultura mesmo, tem alunos que pretendem participar ali da vida, do dia a dia dos pais, mas, por conta de alguns fatores, eles precisam deixar a mãe, o pai sozinho ali em casa trabalhando, mas eles vão para a escola com essa vontade de buscar uma educação, vencer na vida. E tudo isso que eles deixam em casa eles relatam nos seus trabalhos de uma forma emocionante: “O papai está sozinho, a mamãe está sozinha, mas eu estou aqui lutando pela vida e um dia eu posso retribuir, eu posso ajudar a minha mãe, o meu pai…”. E a questão da tradição também, eles se inspiram muito em mim, porque eu sei falar um pouco o Português, eu tenho toda essa conquista na vida mas eu não perco as minhas raízes, eu lá… Quando eu estou lá na comunidade, junto com os meus parentes, eu me sinto muito à vontade, eu não tenho dificuldade na questão da vivência mesmo com eles. Então, tudo isso também eles… Teve um aluno que escreveu uma poesia, pena que nós já perdemos todos esses documentários, eu tinha guardado toda a imagem de todos os momentos, de cada momento importante…
P/1 – Mas ele escreveu a poesia…
R – A poesia sobre… Porque ele não falava mais a língua materna, ele não sabia mais as coisas que são da tradição - caçar, pescar - ele perdeu completamente porque os pais dele não passaram, não transmitiram mais esses conhecimentos para ele, mas que através do estudo, de toda a nossa luta, ele compreendeu que houve uma perda mas que ele, através da escola, ele está disposto, dentro dele, a resgatar tudo o que foi perdido. Morreu a língua, mas não morreu o espírito de ser indígena, entendeu? Nesse sentido aí, que ele se considera como um membro da comunidade, como Sateré, como indígena e ele… Conforme ele falou, que ele vai lutar para resgatar todos os valores que ele perdeu. E ele confia também na escola, nos professores para que ele possa reconstruir toda essa história que ele não teve essa oportunidade de reconstruir.
P/2 – Euro, você hoje é gestor escolar. Que contribuição você acha que essa sua participação no Igarité tem trazido para o seu trabalho enquanto gestor?
R – Como eu havia relatado, o sistema onde a gente está inserido hoje… Eu sou gestor, eu tenho toda uma proposta curricular para trabalhar, que vem da SEMED. A SEMED já prepara toda uma proposta bonitinha, a gente recebe, reúne os professores e apresenta: “Pessoal, essa aqui é a nossa proposta, vamos trabalhar, isso aqui é uma proposta”. Mas, como o nosso quadro de professores hoje está... Só eu é que participei desse projeto, que tenho essa experiência de bons resultados que o projeto nos deixou, só eu lá. E eu digo que cem por cento… O professor Janderlei não está mais lá, a esposa dele trabalha no Tecnológico agora, não faz parte do quadro do município, não é? E estou só eu. Então, nós estamos trabalhando nessa questão da experiência que nós temos, nós estamos desenvolvendo, dentro do nosso projeto pedagógico. Essa questão do trabalho em equipe, a questão do desenvolvimento da escrita e leitura, da produção textual, tudo isso a gente está… Eu frequentemente estou reunindo os meus professores para apresentar para eles uma nova metodologia. Primeiro eu apresento o nosso resultado, faço uma comparação do resultado quando não se trabalha essa nova metodologia, quando se trabalha aquelas metodologias ultrapassadas, metodologias tradicionais. Olha, nós não temos um bom resultado. A gente deixa o aluno… A gente contribui para o aumento da taxa de evasão, diminui… Aumenta o… Como é que chama? De abandono. Também a questão da frequência dos alunos, os alunos não têm aquela motivação para ir para a escola porque sabe que o ambiente escolar não se torna mais o ambiente prazeroso. O aluno chega lá e tem que assistir à aula ali do professor, cansativo, só fica falando, falando e falando o tempo todo, aí fica cansativo, no outro dia o aluno já não tem mais aquela vontade de ir para a escola porque fica… Já fica cansativa a aula, o aluno não aprende direito porque… O professor tenta utilizar aquela metodologia ultrapassada como a gente chama, não é? Tentar ensinar o aluno na marra. Então, tudo isso eu apresento para eles. Aí eu pego: “Olha, essa nova metodologia que nós aprendemos no Projeto Igarité, no Telecurso, nós tivemos esse resultado aqui, então vamos seguir a partir de hoje, trabalhar dessa maneira”. Eu já trabalhei até com as pequenas capacitações lá na escola. Apresento a proposta, as metodologias, até a gente faz ali uma pequena oficina, eu tento levar o trabalho assim como o projeto nos conduziu aqui. A gente sente muitas saudades, inclusive, até comentando com o professor, as saudades nossas daqueles momentos lá. E todos os professores se reuniam, o projeto realizava esses eventos, das formações, onde todos nós, todos os lugares aqui do Amazonas se reuniam, era uma coisa… Então, eu tento fazer isso lá na minha escola, fazendo com que os professores… Porque até então… Até eu fico muito emocionado quando os meus colegas professores lembram de outros momentos no tempo em que eles trabalhavam por conta deles mesmos e já tinha coordenador, mas cada um cuidava do seu trabalho. É como quem diz, cada um por si e Deus por todos, não é? Não havia essa união, não havia essa interatividade, reunir para discutir a questão do planejamento e tudo. Não havia isso, mas agora, graças a Deus, eu tenho essa satisfação imensa de ter percebido, através da expressão dos próprios colegas professores, que houve uma mudança. Eu sinto essa aceitação dos colegas professores, porque hoje eles têm essa oportunidade de cada professor e não está mais sozinho ali, não é? Ele está ali em equipe. Nós conseguimos uni-los, ter o mesmo propósito, o mesmo desafio, então isso é uma coisa que nós conseguimos através dessa experiência que nós tivemos, que o projeto nos proporcionou e nós estamos aí nessa luta para construir o nosso resultado.
P/1 – A gente tem uma pergunta para finalizar, mesmo. Você trabalhou no projeto com uma tecnologia de ponta.
R – Com certeza. Isso.
P/1 – E você poderia expressar... Sintetizar como essa tecnologia de ponta acabou contribuindo para fortalecer um saber tradicional, uma cultura… Como foi o casamento disso, não é?
R – A tecnologia… A gente sabe que a tecnologia que nós temos hoje supera toda aquela dificuldade da veiculação dos conhecimentos, dos valores, são ferramentas muito importantes para a gente trabalhar essa questão da aprendizagem. Uma simples televisão que a gente utiliza para passar um vídeo ali. Nós temos uma televisão lá na escola que conseguimos comprar, todo o equipamento, não é? Os professores da educação infantil, a professora Maria, ela é auxiliar, monitora da turma da educação infantil, então, são duas professoras que trabalham nessa sala. Muito interessante essa metodologia, onde a tecnologia, os equipamentos tecnológicos auxiliam o trabalho do professor. Eu ficava… Toda vez que elas trabalhavam essa metodologia eu ficava lá de longe porque eu não podia entrar na sala, é claro, mas eu ficava brechando como que as crianças se sentem muito bem seguras ali, todo mundo atento, participando, é muito interessante isso. A tecnologia chegou mesmo para auxiliar o professor, para conduzir esse trabalho de aprendizagem de forma muito produtiva mesmo.
P/1 – Porque numa comunidade indígena há o preconceito de que vai entrar computador, vai entrar rede social, vai entrar… E pode comprometer a própria cultura, ao invés de fortalecer.
R – Isso.
P/1 – Então... Por isso que eu perguntei como é que se deu esse casamento na época do Telecurso…
R – Certo, é justamente porque isso pode acontecer se nós professores... A gente não tiver o cuidado do uso da tecnologia, não é? Porque é isso que acontece nos outros lugares onde a tecnologia não traz mais as coisas boas. A gente sabe que a tecnologia abre as portas para tudo... Coisas boas, coisas desagradáveis, muitas coisas que a gente assiste, não é? Tudo que acontece hoje, tudo por conta da tecnologia, fora da nossa comunidade, mas o que nós temos de bom é que a
gente consegue ter esse controle, as nossas lideranças… Esses tempos mesmo nós instalamos um wifi lá na escola, um colega nosso comprou um equipamento e pediu para o técnico instalar e liberou o sinal de internet… Só que a gente tem ainda esse controle de manter na comunidade essa ordem, não é? A gente mesmo restringe o uso das redes sociais, por exemplo. Aí, no momento em que a gente descobriu que os adolescentes já não estavam mais utilizando de forma devida, de forma correta, para o bem da família... Porque a gente liberou isso porque a gente… Olha, eu tenho uma ex-aluna que passou um tempo estudando na cidade, eu fiquei muito… Assim, admirado mesmo. Ela tinha uma certa dificuldade na escrita do Português, mas depois que ela conseguiu um celular eu acredito que a tecnologia serviu para ela se soltar de uma vez na aprendizagem. Uma vez, ela, conversando comigo, eu... “essa aqui não é ela, alguém está escrevendo assim, mensagem, sabe, muito bem elaborada, as palavras, tudo certinho, as concordâncias, porque isso não é fácil para uma indígena que está dominando o Português, essas pequenas regras da concordância, mas um texto, uma mensagem bem… Mas essa aqui não é ela”. Quando eu descobri, era ela; era ela quem estava escrevendo, conversando comigo, sabe? Aí, poxa... Então a gente liberou o sinal da internet porque a gente acreditou que os alunos vão dominar, vão se apossar disso, mas para a educação deles. Vão se conectar com outras pessoas, vão desenvolver a habilidade de escrever, até de manusear algum celular, já está aprendendo a trabalhar no computador, um dia… Nós lá agora, os diários agora são todos digitais. Se o professor não souber manusear o computador... E nós temos colegas professores que não conseguem ainda nem mexer nos teclados, estão tendo dificuldade, mas se a gente tiver esse controle de liberar para o aluno usar um celular, para ele começar a digitar, mexer com o teclado, no dia em que ele precisar ter um curso de computação, ele já vai ter habilidade. Então, nós temos um propósito do uso dos equipamentos tecnológicos, da tecnologia, mas ao mesmo tempo a gente tem… A gente mantém um controle na comunidade sobre o… A gente não deixa livre, livre não. Esses dias mesmo o professor flagrou um aluno baixando coisas que não devia, não é? “Olha, parou”. Reunimos os jovens: “Vamos parar. Se vocês não obedecerem essas regras a gente vai restringir o uso…”. Então é assim, na comunidade é assim, lá a gente trabalha a questão das redes sociais, a gente está trabalhando e, ao mesmo tempo, a gente está tendo esse controle do uso.
P/1 – E para fechar, por que o nome Igarité?
R – Igarité…
P/1 – O que quer dizer?
R – Olha, Igarité, pelo que eu sei, é um termo indígena, não é nossa… Se eu não me engano, é do nheengatu, é um termo nheengatu, é uma língua que é utilizada por várias etnias aqui do Alto Solimões, não é? Igarité é uma canoa grande que, muito inteligentemente, foi utilizado como símbolo do projeto. Porque, na verdade, pensando bem, é como se fosse uma canoa grande o Projeto Telecurso. É uma canoa grande que surgiu. Eu ainda posso fazer uma outra interpretação. Porque a gente sabe que aqui no Amazonas é a nossa região que tem uma dificuldade geográfica muito grande, o acesso entre nós, as comunidades... É difícil o acesso, a gente precisa de deslocamento, o nosso meio de transporte é fluvial, é a canoa mesmo, não é? E fazendo essa comparação, a gente está isolado, cada comunidade, cada etnia nessa imensidão aqui do nosso estado. De ficar isolado. Então, para que haja essa interatividade com outras etnias, tipo um passeio, vamos dizer assim, vamos comparar a Educação com um passeio, uma comunidade, uma escola que visita outra escola através de uma canoa. Fazendo essa comparação. Então, essa canoa, com certeza, trouxe essa garantia de que a gente possa se comunicar com outras etnias, outros alunos, outras culturas, levando… Fazendo essa distribuição. A canoa embarca toda essa diversidade que nós temos e vai divulgando, vai passando para outras culturas, não é? Eu tenho essa outra interpretação. Canoa grande nessa imensidão do Amazonas levando toda essa diversidade cultural, transformando toda essa riqueza para fortalecer a educação.
P/1 – Muito bom. O que você achou de contar essa história para a gente, que é muito rica? A gente contou só um pedacinho, mas o que você achou? Como é que você se sentiu aqui?
R – Da minha parte é uma satisfação imensa poder contar essa história, essa experiência de vida, experiência que eu tive no Projeto Igarité. Eu me sinto... Porque toda essa história vai poder contribuir para muitas pessoas, porque muitas pessoas estão nessa luta, nesse desafio mundo afora. E como eu já... Lá onde eu moro, lá onde eu trabalho, venho contando essa história para as pessoas, isso já tem servido muito para inspiração de muita gente, eu sinto isso, muitas pessoas já falam isso para mim mesmo: “Professor, sua história é uma história muito interessante, eu estou me inspirando muito na sua história, depois que você contou essa história eu me sinto mais forte para enfrentar todo esse desafio”. Muitos dos meus alunos, meus ex-alunos chegam comigo dizendo isso, com o maior orgulho, para mim, sabe? Então, eu acredito que com essa história... Porque foi-me dada essa oportunidade de contar essa história para muitas pessoas agora, não é? Que, com certeza, muita gente vai ouvir essa história, vai assistir essa história e eu acredito que possa… Indiretamente possa estar contribuindo para muitas pessoas, isso para mim foi…
P/1 – Muito obrigada. Parabéns pela história e pela luta.
R – Obrigado.
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