P/1 – Remídio, primeiro boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Eu queria começar pedindo pra você me dizer o seu nome completo, o local e a data de seu nascimento.
R – Meu nome é Remídio Costa Soares, nasci em Salvador, Bahia e tenho 28 anos de idade.
P/1 – E você vivia com seus pais, c...Continuar leitura
P/1 – Remídio, primeiro boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Eu queria começar pedindo pra você me dizer o seu nome completo, o local e a data de seu nascimento.
R – Meu nome é Remídio Costa Soares, nasci em Salvador, Bahia e tenho 28 anos de idade.
P/1 – E você vivia com seus pais, com seus avós, com quem você vivia em Salvador?
R – Bom, em Salvador eu cresci em um bairro periférico muito pobre, nasci em um bairro periférico muito pobre. Porque minha mãe veio retirante do interior da Bahia, de um município chamado São Gonçalo dos Campos, a 20 quilômetros de Feira de Santana. E ela veio com uma história interessante pra Salvador, ela ganhou um dinheiro de uma vaca que ela vendeu e cansada daquela situação do interior, aquela questão, né, muito complicada daquela região, cansada daquilo, ela veio pra Salvador, né? E ali invadiu um pequeno pedaço de terra e um resto de uma construção onde ali estava se construindo ainda o Detran [Departamento Estadual de Trânsito], o Iguatemi, hoje um dos maiores shoppings de Salvador, e ali tem um pedacinho de terreno e fez uma pequena casa. E eu cresci nesse bairro, nessa pequena casa eu nasci e tal. E é engraçado que quando eu nasci chegou água e luz nesse bairro, ela me conta: “Quando você nasceu aqui chegou água e luz”. Aí passando ali quase, praticamente quase toda a minha vida, né?
P/1 – Conta pra gente um pouco como que é esse bairro, descreve ele um pouco pra gente.
R – O bairro de Saramandaia é um bairro hoje bastante populoso, com cerca de 30 mil habitantes ou mais, ou mais, próximo de tudo, ele é próximo dos maiores shoppings de Salvador, ele é próximo dos maiores supermercados de Salvador, ele fica localizado próximo também da BR-324 que é o portal de entrada e saída de Salvador, porém é um bairro pobre. Ou seja, é uma ilha de pobreza em um mundo de riquezas, porque ali naquela região do Iguatemi está todos os grandes, impérios industriais, ou, desculpem, impérios comerciais de Salvador, porque Salvador são poucas indústrias. Os grandes impérios comerciais de Salvador. E é assim uma ilha, parece uma ilha de pobreza em um mar de riqueza.
P/1 – Eu vou te perguntar agora, você falou da sua mãe, queria que você falasse do seu pai, seu pai já era...
R – Não não, já quando eu nasci meus pais já não moravam mais juntos. É bem comum em Salvador, e acho que na maioria do Brasil, os lares serem sempre administrados por mães, né, e eu sou um desses casos. Mas minha mãe, ela conseguiu suprir todas as necessidades, né? Me deu educação, também ajudei muito, trabalhei muito cedo, desde os sete anos que eu trabalho vendendo ovo de codorna, cafezinho, picolé, desembolei minha vida, se virando do jeito que podia e fui nesse caminho aí de trabalho, de luta e foi mais ou menos assim.
P/1 – Era só você e sua mãe, você tinha irmãos?
R – Não, tenho mais dois irmãos que moravam comigo, hoje cada um já tem a sua casa, né, e tinha outros irmãos mas no interior.
P/1 – E com seus avós você tem contato?
R – Não não. Quando eu nasci também a minha avó tinha morrido, tinha falecido.
P/1 – Conta um pouco pra gente dessa sua infância até os sete anos, antes da gente chegar no trabalho, como é que era?
R – Engraçado, a minha infância foi muito legal, trabalhei muito, mas também trabalhei, quer dizer, de forma braçal muito, né, mas também me diverti muito. E em uma dessas diversões, em várias dessas diversões eu fazia teatro, fazia dança, fazia capoeira, e fazia teatro de bonecos, teatro de bonecos. Aos sete anos, mais ou menos, foi pra lá um mestre chamado Elias Bonfim dos Santos com um trabalho de teatro de bonecos na Associação de Bairro, e desenvolveu um trabalho lá de oficina, oficina com a garotada da comunidade e tal. E a gente fez um trabalho com esse mestre, com Elias Bonfim, durante um ano confeccionando bonecos, produzindo alguns materiais, discutindo algumas temáticas que ele gostava muito de discutir e abordar algumas temáticas relacionadas ao nosso cotidiano, a nossa história de vida, a nossa vivência, né, gostava muito de estar estimulando a gente a modificar o que a gente estava achando errado no nosso dia a dia. E passei um ano trabalhando teatro de bonecos, né, dos sete a mais ou menos oito, nove anos de idade. Foi quando eu comecei, convidado por Elias, a trabalhar o teatro de bonecos de uma forma mais profissional, né? Aí ele me convidou pra fazer parte do grupo dele, o Mamulengo da Bahia, Teatro de Bonecos Mamulengo da Bahia, e nesse grupo é que eu vim me descobrir como ser humano, como gente, como, né, pessoa, como pessoa em seu lugar, né? Pessoa em um lugar comum, pessoa no seu próprio espaço, no seu próprio habitat. E lá no Mamulengo eu tive a oportunidade de transitar por vários meios artísticos, tive acesso a muita gente de teatro, tive acesso a muita gente de música, tive acesso a muita gente de dança. E comecei a me perceber como ser humano, como indivíduo, como ser transformador de mim e do meio que eu vivia. Trabalhando com Elias durante três, quatro anos, dos nove até os 14, mais ou menos, foi quando eu comecei a dar aulas, aulas de teatro de bonecos. Comecei na minha própria comunidade, voltei pra minha comunidade, né? Saí da minha comunidade pro teatro de bonecos pro Mamulengo, que se situa ali no Pelourinho, passei muito tempo lá e voltei pra minha comunidade pra dar aos 14 anos.
P/1 – Como que era esse fluxo de sair da comunidade tão novo ainda pra um lugar que você não conhecia, o que chamou a atenção?
R – Porque o Mamulengo foi muito enriquecedor, muito enriquecedor. Com 13, 14 anos eu tinha acesso a coisas que eu jamais, dentro dessa comunidade, preso nessa ilha, jamais poderia ter acesso de uma forma tão positiva, de forma tão relevante. Conheci gente como o Capina, conheci gente como o Bel Borba, conheci gente como Caetano, como Gil, uma galera que mexia com arte com Elias: Titã Lopes, Caribe, uma série de pessoas que transitavam ali naquele meio, que Elias também transitava nesses meios e sempre me levava ao seu lado com o seu trabalho com o teatro de bonecos, e nós fazíamos vários... Quer dizer, até hoje nós fazemos vários eventos, né, e nesses eventos eu conhecia muita gente. Então você vivenciar esse meio, essa ferveção, essa cultura, você acaba se contagiando, acaba aprendendo de alguma forma, acaba repensando o seu mundo, o seu universo, só o fato de você estar perto ali vivenciando: “Pô, isso aqui é interessante, isso aqui é importante”. O que é poesia? O que é arte? O que é viver em busca de alguma coisa, viver produzindo alguma coisa, viver sendo exaltado, sendo muitas vezes criticado. Então o meu amadurecimento foi muito precoce dentro desse meio.
P/1 – Com 14 anos então você começa a dar aula?
R – Com 14 anos eu comecei a já dar aula para crianças lá na escola no meu bairro chamada Criança São Francisco... Chamada Escola São Francisco de Assis, uma escola da comunidade, escola comunitária que era administrada por uma associação, Associação de Pais e Mestres, a mesma associação que trouxe Elias pelo CECUP [Centro de Educação e Cultura Popular], trouxe Elias pra minha comunidade. A Associação de Pais e Mestres Saramandaia, ela traz Elias para a minha comunidade, Elias vai embora, né, passa um ano lá mais ou menos, vai embora, me leva e Elias me manda de volta pra essa mesma comunidade pra continuar o processo, e nós continuamos o processo. A partir dos 14 anos eu comecei a dar aula no Teatro de Bonecos lá e desenvolvi, ao longo da vida, outros trabalhos em outras instituições dentro do próprio estado mesmo da Bahia com alguns projetos como o projeto Jovens Baianos, projeto Arte Educação, projeto Resgatando a Cidadania. Vários projetos que eu trabalhei, Agente Jovem e por aí vai uma série de projetos que eu trabalhei dando aula já aos 14, 15, 16, 17, 18 anos dando aula. E comecei a estudar, a pegar todo esse conhecimento e a direcionar um caminho pra todo esse conhecimento, né? E hoje eu desenvolvo os projetos do Mamulengo, escrevo para o Mamulengo alguns projetos, pra gente poder estar continuando o processo. Hoje nós atuamos em outras comunidades como Paripe, Santana de Paripe, no próprio Pelourinho, em Saramandaia também a gente continua com algumas coisas lá ainda, né, com alguns movimentos mais de reforço e multiplicando todo esse processo que a gente começou, quer dizer, que Elias começou lá há tantos anos atrás, né?
P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa: com 14 anos quando você volta pra comunidade. Você ainda morava lá?
R – Morava, sempre morei. Mas assim, a partir do momento em que eu entro no Mamulengo, eu passo muito pouco tempo dentro da comunidade, né, que eu acho que também foi isso que me livrou um pouco, né, porque eu tenho diversos amigos, uma infinidade de amigos que perderam as suas vidas para o tráfico de drogas, perderam as suas vidas de formas trágicas por não ter tido as oportunidades que eu tive. Eu penso sempre que a vida é feita de oportunidades, muitos dizem: “Ah, pau que nasce torto nunca se endireita!” Mas é mentira, porque ser humano não é pau, né, se o ser humano tiver uma oportunidade ele vai mudar, ele vai querer sempre o melhor pra sua vida. Ninguém gosta de sofrer, ninguém gosta de chorar, as pessoas gostam de sorrir, de ser feliz. Agora, o que falta é ter oportunidade pra isso, né?
P/1 – Assim, que que o Mamulengo mudou na sua vida?
R – Rapaz, o Mamulengo me tirou... Eu acredito que se não tivesse essa tábua de salvação, por ter nascido nesse meio, por ter que sempre trabalhar muito cedo, estar exposto. Eu não era um menino de rua, eu era um menino na rua, porque eu tinha casa pra morar, tinha mãe, tinha irmãos, mas vivia muito tempo na rua produzindo, trabalhando, correndo atrás do pão de cada de dia, correndo atrás de grana para se alimentar, pra comprar roupa pra vestir e tal. Então vivia muito tempo na rua exposto a tudo, muito pequeno. É até engraçado que até os oito anos de idade eu não sabia ler, eu pegava ônibus pela cor, eu via a cor do ônibus: “Ah, esse passa lá perto de minha casa” entrava. Muitas vezes o ônibus era errado, me perdia, ia parar no final de linha (risos), pegava outro e voltava. Mas até aí tudo bem, né? Aí eu também começo a me interessar por leituras, né, por estar, né, atrás do conhecimento puro mesmo, o conhecimento mais sofisticado e tal.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco da relação com o mestre Elias nesse processo de aprendizagem. Como é aprender, como que se dá essa transmissão desse conhecimento, desse saber?
R – Elias é interessante porque ele não ensina só com palavras, ele ensina com exemplos, né, ele arrasta a gente pelo exemplo. Se ele diz pros alunos dele: “Ó gente, não vamos jogar lixo no chão”, ele é o primeiro a pegar um saco e catar o lixo que ele não jogou, se ele ver um lixo no chão ele pega um saco e cata o lixo que ele não jogou, quer dizer, ele dá exemplo, ele vai na frente, entendeu? Ele sempre é o primeiro e ele é reto, ele é rente no que ele prega, se ele diz: “É x!” Será x, sempre x, não mudará nunca. Então assim, ele não é só palavras, ele é além tudo exemplo. E pra mim, assim, é meu exemplo de vida, né, tanto é que eu acho que eu passei mais tempo com ele, né, do que a própria família dele e com minha própria família, né? Um elo de ligação muito forte. A gente praticamente passou muita parte de nossas vidas juntos trabalhando, produzindo, coisas que eu não vi os filhos dele, né? Os filhos dele moram em outro bairro de Salvador, que não o Pelourinho, né, e eu sempre me percebia mais presente na vida de Elias do que os seus próprios filhos, né, que ele também, né, sempre se preocupou mas ele nunca forçou ninguém a querer seguir a sua carreira, o que ele gostava de fazer que era ser bonequeiro. Então, assim os filhos dele não optaram por ser bonequeiros, optaram por outras coisas, né, estudar aí por outros caminhos e eu me via sempre mais perto dele que os seus próprios filhos, isso é engraçado! E que ele não ouça isso (risos).
P/1 – E deixa eu te fazer uma outra pergunta, hoje você tem outros trabalhos, você tem outras dedicações, mas que espaço o Mamulengo ocupa na sua vida?
R – Bom, o Mamulengo é 24 horas no ar, 24 horas no ar. Eu tenho outras atividades, faço outras coisas, mas todas as outras coisas que eu faço vira e mexe eu estou sempre atrelando o Mamulengo. Ah, eu estou na instituição tal, fazendo algum trabalho. “Ah, eu tenho um trabalho com teatro de bonecos também!” “Ah, tem um trabalho com teatro de bonecos?” “Tenho sim!” “Deixa eu ver. Rapaz, eu quero isso aqui também, traga aí!” E aí começa o lado também. Aí eu tava ali trabalhando na empresa, uma empresa do estado que trabalha com recursos hídricos, chamada Ingá, trabalhei lá durante dois meses, no terceiro mês Elias já tava lá também fazendo um trabalho de conscientização através de teatro de bonecos, né? Eu não podia porque eu trabalhava na empresa, não poderia estar trabalhando, né, acumulando essa função, mas Elias estava lá porque eu fiz o projeto, fiz a proposta, o pessoal abraçou e estava lá Elias viajando pros interiores da Bahia lá educando através do teatro de bonecos. Então é 24 horas o Mamulengo, não tem pra onde correr.
P/1 – Deixa eu fazer uma pergunta, você falou agora desse exemplo emblemático do teatro de boneco como uma forma de conscientização, e você trabalha também dando classes, ensinando. Você tem lembranças de uma experiência marcante de alguém pra quem você ensinou alguma coisa, uma experiência que foi emblemática nessa trajetória?
R – Várias pessoas, porque geralmente a gente trabalha em comunidades muito pobres, é a metodologia de Elias, Elias não quer estar... Ele teve a oportunidade de estar em vários outros espaços, assim, mais confortáveis porque ele tem alunos na TV Globo, tem alunos no mundo todo, e esses alunos chamam ele pra ir pra lá, pra tá nesses espaços, mas ele sempre optou por estar nas comunidades carentes, né? “Minha missão é aqui na base, vocês já estão aí encaminhados, siga lá o seu caminho de vocês, se vocês quiserem dar uma força aqui dão, mas a minha é essa aqui, é assim que ele vive a vida dele”. Então se eu citasse aqui um exemplo só de vitória eu estaria sendo injusto com os outros 300 que fazem parte do Mamulengo, porque cada um daqueles 300 que trabalham com a gente lá no Carnaval, no São João, no Natal e em vários outros movimentos que a gente desenvolve, outros trabalhos, estaria sendo injusto com esses outros 300, se eu contasse a história de um. Então eu acho que a minha própria história já é um suficiente, né, porque é eu contando, eu contar a história de outro eu vou deixar outros tantos sem ter esse espaço de visibilidade também, que eu acharia muito interessante que todos tivessem um espaço de contar a sua vitória através do teatro de bonecos, através dessa magia, dessa ferramenta assim importantíssima de transmissão do saber que é boneco, que ele chama de entidade, ele acredita que o boneco é vivo e faz com que as pessoas que estão ao seu redor acreditem. Se ele disser assim: “O boneco disse que vai chover” vai chover mesmo, pode ter certeza disso, vai chover!
P/1 – E deixa eu te fazer uma última pergunta: se você tem um sonho hoje?
R – Hoje assim eu não tenho mais sonhos a realizar porque, graças a Deus, todos os que eu, sonhos que eu tive eu consegui realizar a tempo, né? Mas eu tenho um desejo que é ver o Museu do Mamulengo de pé aqui na Bahia, eu tenho esse desejo de colocar o meu mestre Elias Bonequeiro dentro de um espaço onde ele seja assim lembrado por várias gerações, até que outras coisas apaguem, mas eu acho importante a gente ter o Museu do Boneco aqui na Bahia. E é uma luta nossa e a gente vai conseguir com fé em Deus, antes que o por do Sol chegue para seu Elias a gente vai conseguir montar esse museu. O que não falta é força de vontade e coragem.
P/1 – Pra fechar, como é que é contar a sua própria história, pensando toda essa trajetória como é lembrar disso assim, agora?
R – Rapaz, é um pouco que complicado, né, porque a gente pensa que é fácil, mas não é, não é. A gente tem que tá sempre voltando lá atrás, né, e às vezes a gente se perde, em muitos momentos, mas a gente chega lá, a gente consegue contar lentamente. Mas é emocionante dizer o que é a sua vida e registrar e saber que esse momento vai tá registrado, né, por muito tempo, é importantíssimo, é valoroso pra gente. Muito valoroso!
P/1 – Tá ótimo! Quero te agradecer, obrigadão.
P/1 – Ôxe, obrigado a vocês, um paulista e um baiano na Bahia!Recolher