Entrevista de Maíra da Costa
Entrevistada por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 20/08/2021
Projeto: Mulheres Empreendedoras - Ernst & Young
Entrevista número: PCSH_HV1008
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Então, pra começar, eu qu...Continuar leitura
Entrevista de Maíra da Costa
Entrevistada por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 20/08/2021
Projeto: Mulheres Empreendedoras - Ernst & Young
Entrevista número: PCSH_HV1008
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Então, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, ou como você preferir, sua data de nascimento e local.
R – Maravilha. Eu sou Maíra da Costa, eu nasci no dia vinte de dezembro de 1981 e eu nasci em São Paulo e moro em São Paulo.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Olha, eu sou filha de Janete da Costa Pedro Nogueira da Luz e de Hélio Nogueira da Luz Filho.
P/1 – E o que eles fazem?
R – Hoje, na verdade, os dois são aposentados, mas a minha mãe, durante muito tempo, foi... ela, na verdade, se formou em Tecnologia Digital, foi professora e trabalhou durante muito tempo com tecnologia e também com atividades no terceiro setor. Na verdade, hoje ela me ajuda, trabalha junto comigo, empreende junto comigo, na Free Soul Food. O meu pai é contador de formação, ele foi, durante muitos anos, auditor contábil e hoje ele é aposentado.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Ai, olha, os meus pais são... sabe esse casal de fazer inveja? Você vê, eles casaram super novinhos. Na verdade, eles, a minha mãe e o meu pai começaram a namorar quando a minha mãe tinha quatorze anos, eles namoraram até eles casarem, quando a minha mãe tinha 21 e estão casados há mais de... quase 45 anos. Então, sabe aquelas histórias que a gente quase não ouve mais? Então, eles são esse... eles colocam as minhas expectativas num patamar muito alto (risos).
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Na verdade, é engraçado, que eles se conheceram porque o meu pai, o avô dele tinha um sítio e os meus tios, irmãos da minha mãe, eram amigos do meu pai e eles costumavam ir pra esse sítio aí da avó, do avô do meu pai e aí eles se conheceram assim. A coisa divertida da minha família é que o meu pai é Hélio, mas o pai dele era Hélio e o avô dele era Hélio e, na família da minha mãe, o pai dela é Hélio, era Hélio, na verdade, e o irmão dela é Hélio. Então ficou, quando eles se casaram, uma família com cinco Hélios (risos).
P/1 – E como é a sua relação com eles?
R – Nossa, eu tenho uma relação muito boa. Muito engraçado, que a minha mãe, eu sempre brinco que a minha mãe, eu tive sorte de tê-la, ter a Janete como mãe, mas ela é minha amiga por escolha, e nós somos muito, muito amigas, temos uma relação muito próxima. E o meu pai sempre foi, apesar de a gente viver num mundo que tem todas essas questões do machismo e todas essas questões, mas eu acho muito interessante que meu pai sempre me fez, me criou, pra ser uma mulher independente. Eu lembro que, quando eu era muito criança, muito pequena, uma vez o meu pai, um homem grande, então olhou pra mim e falou: "Maíra, você não pode ter medo das coisas" e eu era pequena e eu fiquei com tanto medo dele falando pra mim que eu não podia ter medo, que eu desenvolvi uma relação engraçada com ele: toda a vez que eu tenho medo de uma coisa, eu falo: "Hum, interessante, quero saber como é isso" e o medo acaba me impulsionando. Então, eu fiz, durante essa minha vida, tô ai esse ano, que eu vou fazer quarenta anos e eu já fiz muitas coisas diferentes e eu acho que é muito por conta dessa coisa de o medo não me paralisar, o medo ser uma mola propulsora na minha vida. Então o medo me faz querer testar, vivenciar, experimentar, descobrir. Eu acho que eu criei essa relação e eu acho que tem muito a ver com a forma que o meu pai, os exemplos que ele me dava, o incentivo também que ele sempre me deu, de ser essa pessoa um pouco destemida, entendeu? E acabei, por isso, sendo um pouco ousada nas coisas.
P/1 – E, Maíra, você é filha única ou tem irmãos?
R – Não, eu tenho uma irmã, uma irmã mais nova, a Mariana. Ela é... e é engraçado, que a minha irmã é uma pessoa super, muito diferente de mim. Eu sou uma pessoa muito família. A minha irmã é diferente, é uma pessoa que gosta muito... quando era mais nova, gostava muito dos amigos, mas agora ela está numa fase muito mais caseira, não sei o que e é engraçado que ela é psicóloga, a minha irmã, ela é psicóloga. Mas somos nós duas e a gente tem só dois anos de diferença.
P/1 – E como é a relação entre vocês?
R – Olha, ela já passou por várias fases, mas eu acho assim... é engraçado que, quando nós éramos pequenas, a gente era muito próxima, muito próximas, só que a minha irmã, quando tinha dezessete anos, ela entrou, resolveu ser freira e entrou num convento e ela passou dez anos nesse convento e, pra mim, aquele período foi muito difícil, porque a minha irmã... era engraçado, só pra você entender: eu lembro sempre, quando ela foi pro convento, que a gente passava, os momentos que a gente estava em casa, às vezes, eu estava com ela assistindo filmes, fazendo coisas e às vezes eu olhava pro lado pra fazer um comentário e aí, sabe, aquele vazio, porque ela não tava. E aí foi, pra mim, [foi] complicado esse período e eu acho que acabou fazendo... porque ela foi pro convento quando ela tinha dezessete e eu tinha dezenove e eu acho que muita coisa dessa vida inicial adulta que você vivencia, eu acabei perdendo essas experiências e de compartilhar com a minha irmã. Eu sou uma pessoa muito família, então eu sou muito próxima dos meus primos, eu tenho muitos primos, mas eu era muito próxima também da minha irmã e eu acho que isso, por algum período, fez com que a gente se afastasse um pouco, essa coisa até da distância, dela estar longe. Mas foi interessante porque, quando ela voltou do convento, ela voltou quando ela estava pra fazer 27 e aí, o que aconteceu? Ela voltou do convento, ela veio pra casa, eu já não morava mais na casa dos meus pais, nesse período eu casei e aconteceu muitas coisas e eu fui morar na Itália e aí ela veio, voltou do convento, exatamente na época que eu estava indo morar na Itália. E aí eu fiquei morando na Itália quatro anos e eu acho que, nesse período que eu voltei da Itália, foi o período que a gente mais se reaproximou e hoje a gente, eu acho que compartilha de muitos pensamentos. Ela é uma pessoa super... a gente pensa muito no feminino e nas causas femininas, então pensa muito nisso e ela é muito ativista nesse sentido, ela pensa muito, principalmente em política, em mulheres na política, ela tem meio que uma plataforma discutindo, pensando nisso e eu, a forma que eu empreendo, é empreendendo pra dar voz e possibilidades pra mulher. E aí a gente compartilha muito desses pensamentos, então a gente conversa muito sobre o mundo, sobre essas questões. Então eu acho que é sempre muito rico, muito bom.
P/1 – E sobre seus avós, você conhece um pouquinho da história? Você os conheceu?
R – Ai, olha, você sabe que, antes até de falar dos meus avós, pra mim, como uma mulher e uma mulher negra, essa coisa dos meus antepassados sempre foi uma coisa muito difícil pra mim. Eu lembro que quando eu… na escola estudei sobre - era muito pequena - a imigração e aí as pessoas, meus colegas de classe, que tinha descendente italiano, que tinha descendente espanhol e eles sabiam muito sobre as suas origens e eu nunca soube muito sobre a minha origem. Eu sabia que os meus avós vieram da parte da minha mãe, do interior. A minha avó veio de Itu e o meu avô de Campinas, eles se conheceram aqui em São Paulo, da parte da minha mãe. A minha avó paterna, na verdade, veio também do interior, mas ela veio já mais de longe. Ai, agora fugiu o nome da cidade dela, eu esqueci, mas ela também conheceu o marido dela, o pai do meu pai, aqui em São Paulo. Então eu conheço um pouco das histórias deles, mas num período da minha vida eu tinha muito essa angústia de saber mais das minhas origens, porque eu sei que, por ser uma mulher negra, que os meus antepassados vieram da África, mas eu não sabia de que país, de onde e isso era uma angústia que eu carregava comigo. E aí durante um período, eu comecei a entrevistar pessoas mais velhas da minha família, principalmente depois que meu avô paterno morreu, algumas pessoas da minha família, pra entender e saber das minhas histórias, do que eles lembravam de mais antigo e foi assim que eu acabei descobrindo muitas coisas sobre a minha família. Uma coisa que eu achei muito interessante sobre a família da minha mãe, que o pai do meu avô foi uma pessoa que, na década de 1918, ele teve uma empresa, ele tinha uma marcenaria e tinha funcionários e eu achei aquilo muito incrível porque pra um homem negro, naquela época, ter uma empresa e ter funcionários era uma coisa muito fora da curva. Isso é uma coisa. Em contrapartida, a mulher dele, a mãe do meu avô, quando ela era criança, a mãe dela quis que ela estudasse, ela e as irmãs, elas eram em três irmãs, numa época em que nem as portuguesas estudavam, mas ela quis que as filhas dela estudassem e elas foram pra escola e elas chegaram a estudar. Quando eu descobri isso da minha própria família, eu achei muito... e eu acho que isso conta muito do que eu sou e as coisas que eu faço porque, teve muita gente que, muito antes de mim, já fazia coisas muito ousadas pra época que eles viviam. Isso da parte da minha mãe. Da parte do meu pai, a minha avó, o pai dela, quando ela era pequena, acho que quando a minha vó tinha onze anos, a mãe dela morreu e ela tinha... eles eram em doze irmãos, doze no total e o pai dela decidiu que não queria dividir, porque naquela época era comum, quando a mulher morria, ou ele casava de novo, ou ele pegava, repartia os filhos entre as irmãs e as irmãs terminavam de criar e cuidar dos filhos e ele não quis, ele quis criar e ele ficou viúvo, até quando ele morreu e cuidou de todos os doze filhos sozinho e eu acho isso muito legal, muito, muito, muito legal. Pensando nem nos meus avós, mas nos meus tataravós. E aí, falando um pouco dos meus avós: por parte de mãe, o meu avô, que era o meu vô Hélio, era - porque o meu avô por parte de pai eu não conheci, só conheci o por parte de mãe - uma pessoa muito visionária. É muito engraçado, que eu cresci com ele falando, contando que ele estava construindo uma máquina que ia tirar coisas da televisão, então era pra eu fazer uma lista de tudo o que eu queria, se eu via as coisas na televisão, o que eu queria, que ele estava construindo essa máquina, que faltava um parafuso, mas que logo, logo ia ficar pronto. E depois eu descobri, com essas minhas pesquisas e tudo, que essa máquina existia desde quando a minha mãe era criança (risos). Então essa máquina que faltava um parafuso (risos) pra tirar as coisas da TV (risos) era desde quando era ela era criança. Então, a gente... e ele gostava muito dos livros do... acho que é Perry Rhodan, mas eu sei que eram livros futuristas, que falavam de outros universos e pessoas de outros planetas. Ele adorava “Jornada nas Estrelas”. Então esse era o meu avô, que adorava essas coisas e falava sobre teletransporte e ele amava essas coisas, ele era uma pessoa muito visionária, assim, muito, muito visionária. E a minha avó, mãe da minha mãe, era uma pessoa... é engraçado, porque o meu avô era essa pessoa super dinâmica, que falava muito e tinha muitos amigos e a minha avó, mãe da minha mãe, era uma pessoa que era mais quieta, era mais introspectiva, muito elegante, sempre estava super arrumada e ela adorava cozinhar, então pense nas coisas mais deliciosas. Quando eu penso na minha avó, eu lembro da cozinha da casa dela, que era um espaço que era quase o coração da casa, onde estavam todos os netos, os meus primos e que a gente se reunia pra comer as coisas maravilhosas que a minha vó fazia. Então eu tenho essa lembrança da gente correndo no quintal do meu avô, arrancando todas as folhas do pé, eles tinham um pé de caqui no quintal. Eu tenho muito essa lembrança do meu avô, dos meus avós paternos... maternos, desculpa, meus avós maternos. E a minha avó paterna, que eu conheci a minha avó paterna e também conheci a minha bisavó porque, na verdade, o meu pai, a avó dele de verdade, na verdade o pai do meu pai, teve uma madrasta, porque a mãe dele morreu e aí o pai dele casou de novo e aí eu conheci essa madrasta, que é a minha bisavó Flora. Ela morreu quando eu tinha cinco anos, mas é muito engraçado, porque eu tenho algumas lembranças de algumas coisas: ela gostava de fazer uma banana frita e eu lembro dessa coisa dessa banana frita; ela dormia numa cama que tinha dois colchões, um em cima do outro, então eu lembro bastante disso. E eu cresci com uma proximidade muito grande também com a mãe do meu pai, a minha avó Amélia e é engraçado que a minha vó Amélia, eu fico pensando que... ela é uma mulher, assim... ela é viva, dos meus avós é a única que é viva, ela tem 95 anos agora e é uma pessoa com uma disposição e uma saúde de fazer inveja, é uma pessoa super cheia de... ai, ela é uma pessoa que gosta de falar e que tem posicionamentos firmes e fala o que pensa, eu acho super legal isso da minha vó e eu acho muito incrível que, quando ela casou, ela tinha sete anos a mais que o marido dela e eu acho aquilo maravilhoso, eu acho tão ousado (risos), eu acho muito ousado, mas ela é essa pessoa…
P/1 – E, Maíra, você falou da sua avó, que tem uma super relação com a cozinha e comidas. Tem alguma comida que você lembra dessa época, que ela cozinhava pra você ou que vocês já cozinharam algum prato juntas?
R – Na verdade, eu, a minha avó, eu lembro sempre dela fazendo cocada, que era a coisa que ela fazia, que eu amava e ainda ela fazia num canudo, ela fazia... hoje você compra esses canudos que acho que é frito, de uma massinha, fica um canudinho assim, mas ela fazia esse canudo e recheava de cocada e eu lembro muito disso. Mas eu lembro que, quando eu era maior, eu sempre gostei também de cozinhar e aí eu aprendi a fazer com ela um empadão de frango e aí eu adoro e esse empadão, é a receita… eu acho que é uma coisa que eu faço, faço bem e me lembra muito dessa minha relação com a minha vó. Só que a minha avó paterna também gosta de cozinhar e, quando eu era criança, a minha vó fazia essas coisas, tinha cocada, tinha a coxinha que ela fazia, que era maravilhosa, materna, mas a paterna fazia arroz doce que eu amava e ela amava fazer bolo de fubá e eu sei que eu tenho um combinado com a minha vó, que o livro dela, de receitas, vai ser meu (risos). É a minha herança, que eu já quis garantir.
P/1 – E, Maíra, você sabe a história do seu nascimento? Como seus pais escolheram o seu nome?
R – Eu sei que, quando a minha mãe, na verdade, ficou, ela casou então com 21, eu nasci quando ela tinha 25 porque, na verdade, a gente só tem dois dias de diferença, a minha mãe faz aniversário no dia dezoito de dezembro e eu nasci no dia vinte, então eu fui o presente dela de aniversário. Ela nem sempre fala isso, mas eu tenho certeza que foi. E aí o que acontece? Eu sei que a minha mãe já tinha tentado ficar grávida antes e ela teve um aborto. Então quando ela ficou grávida de mim, ela teve todo... foi toda uma gravidez cuidada, olhada de perto e eu sei que a minha mãe passou mal, acho que um dia antes de eu nascer, eu não sei se foi um dia antes ou foi no dia que eu nasci, então eu sei que ela passou mal, ela comeu romã, eu sei dessa história dessa romã aí que ela comeu e aí passou mal com essa tal dessa romã que comeu, aí foi pro hospital, disseram que ela estava com um pouco de dilatação, só que ela estava de oito meses, então não estava no momento, então deram um remédio pra ela e a mandaram pra casa. Aí ela voltou pra casa, só que diz que passou mal e vomitou todo o remédio e não sei o que e que à noite começou a passar muito mal, muito mal, achando que estava acontecendo alguma coisa, que achava que eu estava pra nascer mesmo e aí ela voltou pro hospital, só que eu sei que não deu nem tempo da obstetra dela chegar no hospital e eu nasci bem antes, porque a minha mãe tem esses partos sem dor, que a criança… eu quase nasci no carro (risos), nem cheguei no hospital direito. Eu sei que esse dia do meu nascimento foi todo assim. E quem escolheu o meu nome foi o meu pai, porque Maíra é um nome de um livro, tem um livro chamado “”Maíra e esse livro, ele conta, é um nome indígena, que conta a história de uma tribo chamada... da tribo dos Mairuns e Maíra é como se fosse uma entidade, ela é como se fosse, sabe a Santíssima Trindade pros católicos? Maíra é essa entidade pra essa tribo, pra essa comunidade indígena.
P/1 – E você lembra da casa e da rua onde você passou a sua infância?
R – Na verdade, eu estou morando agora nessa casa, porque essa casa é muito engraçado, porque os meus pais, quando casaram, depois, acho que foi um... eu sei que no ano que eu nasci eles compraram essa casa, eu nasci em dezembro, eles compraram, acho que a casa em janeiro. Então essa casa foi a casa que nossa, eu os vi economizando todo o centavinho pra pagar a casa e eu lembro até hoje, quando eu fiz acho que doze anos, foi quando eles finalmente conseguiram terminar de pagar a casa e que a gente fez toda uma comemoração e tudo mais. Mas foi essa casa, é essa a casa, que é muito engraçado, porque essa casa é completamente diferente, a casa hoje é completamente diferente da casa de quando eu era criança, porque a minha mãe... sabe essas pessoas loucas por reforma? Porque o meu pai, quando eu era criança, viajava muito, porque como ele fazia essa história das auditorias contábeis, ele viajava muito. Então eu lembro do meu pai viajando e sempre viajando. E a minha mãe, toda a vez que o meu pai ia viajar, vinha meu avô com a minha mãe: "Ai, vamos mudar esse pedaço aqui? Vamos fazer não sei o quê?", porque o meu pai odeia reforma (risos), odeia reforma. Então a minha mãe aproveitava que o meu pai viajava pra poder pensar na próxima reforma da casa.
P/1 – E como era essa casa, quando você era bem pequena?
R – A casa era assim: sempre foi um sobrado, só que ela está bem maior do que quando eu era criança. Ele era esse sobrado que tinha um quintal no fundo, que eu adorava esse quintal, porque eu lembro sempre deu correndo ali, brincando com a minha irmã no quintal. Também na frente tinha um espaço na entrada, tinha a garagem e essa entrada, esse corredor lateral pra entrar na casa, e nesse corredor lateral tinha uma balança, que até tem uma foto minha muito bonita com a minha irmã, que a gente ficava brincando nessa balança. E, assim, é engraçado que eu lembro da minha casa, mas quando eu penso na minha infância, na minha infância eu lembro muito a casa dos meu avô, principalmente do meu avô paterno, porque a gente passava muito tempo lá com os meus primos, até porque eu tenho primos, da parte do meu pai, só que primeiro que são... eu só tenho três primos lá, ali, e eu tinha uma relação muito mais distante com eles, eu quase não os via, eu via mais em datas comemorativas. Os meus primos por parte de mãe, eu quase posso te dizer que eu não imagino um dia da minha infância sem eles, todas as minhas recordações são com eles, porque a gente sempre estava junto. Então só pra entender: quando eu saía de férias da escola a gente passava, eu passava metade das minhas férias na casa da irmã mais velha da minha mãe, que é a minha tia Georgina e metade das férias na casa da irmã mais nova, que é a minha madrinha, por sinal, que é a minha tia Rute. Então eu passava... e, por sinal, quando eu era criança, a minha tia Rute até depois, quando eu era adolescente já e ela era casada, ela casou, mas ela não tinha filhos e ela ficava com todos nós, ficava todo esse monte de criança, ou na casa de uma ou na casa de outra. Então eu passava muito tempo com os meus primos.
P/1 – E o que vocês gostavam de brincar?
R – Nossa, eu... a gente gostava muito de brincar, eu adorava fazer, ensinar, primeiro a gente jogar dominó, a gente jogava dama, o meu avô amava fazer a gente jogar dama, a gente corria muito, depenava a pobre da árvore, meu avô sempre falava: "Pega só as folhas, os frutos, os caqui que estiverem no chão!" e eu sei que a gente arrancava, eu lembro sempre de subindo, pegando tudo, depenando a árvore lá, porque no quintal do meu avô tinha bananeira, tinha chuchu, tinha esse pé de caqui gigante, que era uma árvore enorme. Então eu lembro da gente pegando isso e fazendo, brincando de fazer comidinha ou fazendo competição de dobradura, fazer esses aviões de dobradura e jogando, fazendo competição. Então eu lembro muito disso, dessa casa do meu avô e da gente desfrutando essa casa.
P/1 – E você pensava o que você queria fazer quando crescesse, nessa época?
R – Nossa, eu sempre fui, eu sou uma pessoa metódica e desde criança eu era assim. Então eu tinha tudo planejado (risos) o que eu queria e, quando eu era criança, eu queria ser médica, queria ser médica e ainda queria ser médica obstetra. E aí tinha tudo planejado: onde eu ia estudar, o que eu ia fazer, mas como eu queria ser médica e eu... mas eu achava que, antes de ser médica de fato eu precisava, eu queria fazer colegial técnico pra ter uma profissão e já, de repente, trabalhar, se eu quisesse, antes de fazer Medicina e aí eu ia fazer colegial técnico de enfermagem e aí eu tinha toda essa coisa planejada na minha cabeça, só que foi muito engraçado, porque quando, de fato, eu fiquei na idade de fazer o colegial técnico, porque na minha época tinha colegial técnico, você fazia o colegial e o técnico juntos. Na época, um ano antes, porque eu queria fazer um cursinho pra poder, depois, fazer um vestibulinho pra prestar o colegial. Eu ia fazer esse cursinho pago... gratuito, não sei o que e aí eu fiz a prova e não consegui passar e eu fiquei tão indignada, tão indignada, que aí eu peguei, comecei a estudar tudo e aí quando eu fui fazer o vestibulinho, eu falei: "Ai, meu Deus, como tive aquela experiência de não ter passado no cursinho, eu acho que, talvez, pode ser que eu não passe". Então eu prestei pra enfermagem, que era o que eu queria, mas prestei pra Administração, prestei no Liceu, que era pra edificações, que uma das minhas primas fazia, prestei pra... ai, pro Senai, que era Artes Gráficas, que eu não sabia nem o que era, que uma menina da minha escola disse que era maravilhoso, que a família dela toda era de gráficos, ela queria estudar e daí eu prestei isso e prestei também na federal. Eu sei que eu prestei um monte de coisas e falei: "Ah, sei lá, um deles eu vou passar". Aí quando saiu o resultado, eu passei em todos e passei nesse que eu queria, que era o de enfermagem, eu passei em segundo lugar e eu lembro que a minha mãe foi ver o resultado e estava todo mundo na expectativa de eu ir fazer a matrícula e tudo mais. E aí eu lembro que quando eu passei pra mim estava certo que eu ia estudar lá, só que eu fui no Senai, que era o Senai de Artes Gráficas e eu me apaixonei pelo lugar, me apaixonei, era uma escola super arborizada, era lindo e eu achei muito engraçado, porque o processo seletivo lá, a primeira parte era você, de fato, passar na prova, mas além de passar na prova, você tinha que fazer três dias de vivência, você tinha que ir com os pais, que eles faziam toda uma apresentação da escola pro aluno, pros pais e depois você passava dois dias lá fazendo uma espécie de uma vivência, entendendo o curso, o que era e tudo mais. E eu achei aquilo incrível, eu fiquei apaixonada pela escola, pelas pessoas, pelo lugar e a minha madrinha, que é enfermeira, falou pra mim, ficou me enchendo a paciência, dizendo que eu era muito nova pra estar enfurnada em hospital e que enfermeiros não tinham nada a ver com médicos, se eu quisesse fazer mesmo Medicina, que eu fizesse depois e deixasse isso pra lá, que eu não precisava fazer enfermagem, técnico de enfermagem. E aí ela falou, falou e eu desisti de fazer enfermagem e eu fui estudar no Senai, Artes Gráficas e eu completamente me apaixonei e trabalhei, depois disso, quinze anos na área.
P/1 – Meu Deus! Antes disso, eu vou voltar só um pouquinho, eu queria saber qual a sua primeira lembrança da escola, então, antes do técnico.
R – Da escola, engraçado, lembrança da escola, minha primeira lembrança da escola... é interessante, porque eu tenho uma lembrança de uma amiga, da Cecília, que era uma amiga minha muito... é minha amiga até hoje e eu lembro muito dela na escola, da gente fazendo coisas juntas. Eu tenho... essa lembrança porque eu não tenho, da escola especificamente, mas eu tenho das pessoas. Eu tenho essa da Cecília, agora que você falou, eu lembro muito, porque a Cecília era minha amiga, eu sei que eu estudei com ela quando eu estava no terceiro, sei lá, maternal, eu nem sei, porque eu sempre... minha mãe sempre trabalhou, então eu estou na escola desde acho que os seis meses, eu sempre fiquei em algum lugar, eu sempre estive nesse ambiente. Mas eu lembro disso, da Cecília, porque eu era muito, muito, muito pequena e depois, quando eu era um pouco maior, que eu tinha a Priscila e a Juliana, que nós três éramos muito amigas, então eu lembro da gente fazendo coisas, nós três juntas.
P/1 – E você lembra de algum professor ou professora que tenha te marcado?
R – Ah, eu lembro da Ana Maria, que era a minha professora de... duas: a Ana Maria, que era minha professora de Português, porque foi muito engraçado, eu estudei durante muito tempo em escola particular, eu estudei até a quinta série em escola particular. Na quinta série meus pais perderam o emprego, primeiro meu pai perdeu o emprego, depois a minha mãe perdeu o emprego e a gente ficou numa situação muito difícil em casa, e aí eu acabei mudando de escola e aí eles me colocaram pra estudar, eu fui estudar no Sesi e aí eu lembro muito dessa... porque quando eu fui estudar no Sesi, até lá eu nunca tive muita preocupação, na minha casa a minha mãe sempre foi muito rígida em relação a escola, então tinha que tirar dez, tinha que ser maravilhoso, tinha que ser perfeito, tinha que ser... ela era muito rígida. É engraçado que a minha mãe, ao mesmo tempo, ela sempre foi uma mãe de muito brincar, de brincar de verdade, sabe? Sair correndo, de fazer brincadeira, ela gostava muito de brincar, mas em relação à escola era muito severa. Mas eu nunca tive essa percepção, se eu era inteligente ou não era inteligente, eu fazia as coisas, ia bem na prova, fazia as coisas, porque eu tinha que fazer, e quando eu fui pro Sesi, essa professora Ana Maria, eu lembro que, pra mim, foi a primeira pessoa que me mostrou e que me fez entender que eu era inteligente, que me deu essa sensação de ser uma pessoa inteligente, que ela queria que eu participasse de uma competição de redação e Português não era nem a matéria que eu mais gostava, eu gostava muito mais de Matemática, mas eu achei, sabe essa coisa dela gostar de uma pessoa, achar que você é boa, que você é capaz e que você pode participar da competição? Então isso foi uma coisa que me marcou, que me trouxe essa lembrança. Tem isso e a outra lembrança que eu tenho foi que eu... e, nessa fase, logo que eu saí e fui pro Sesi, acabei estudando em alguns Sesis diferentes, até chegar à oitava série, aí no colegial eu fui pro Senai, mas eu estudei em alguns diferentes. E eu lembro que, numa dessas mudanças, quando eu estava acho que indo pra sétima, eu fui estudar no Sesi da Nadir Figueiredo e eu tive uma professora, a Marisa, que era minha professora de Geografia que, por sinal, Geografia eu nunca entendi, não sou boa de Geografia e eu lembro que eu sempre fui muito bem na escola e essa foi a primeira vez que eu fui mal numa prova e aquilo me marcou muito, de ter ido muito mal, porque eu não entendia. Eu mudei, eu acho que eles já tinham começado o ano letivo, então eu perdi um pouco, estava meio perdida e aí fui mal e eu lembro dela tão rígida e aí eu falei: "Meus Deus". Eu fiquei... uma coisa que me marcou, a professora Marisa.
P/1 – Como foi essa mudança de escola pra você, esse período?
R – No começo não foi bom, eu não... porque eu estudava muito perto de casa, era uma coisa que eu ia a pé. E aí foi essa coisa, essa experiência de ir estudar longe, que você tinha que pegar ônibus. Na verdade, foi todo um período muito difícil no começo, porque foi uma queda de situação de vida, eu tinha uma condição de vida que era muito melhor e com o desemprego dos meus pais, ficou uma situação muito complicada em casa, que eu acho que a minha mãe conseguiu lidar, na época, muito bem, porque a gente não teve uma percepção tão real do que estava acontecendo, mas de qualquer jeito eu percebi que tinha alguma coisa estranha, então eu sentia que tinha alguma coisa estranha. Mas o que eu acho é que eu vejo, hoje, que pra mim foi a melhor coisa que aconteceu, porque eu acho que toda essa questão, desse censo muito crítico em relação às questões sociais e tudo mais, que eu carrego pra minha vida, aconteceram nesse período, dessa mudança, dessa transição. Eu acho que eu me via meio que numa bolha, porque eu tinha, assim, um mundo, que era um mundo muito protegido da minha família, porque eu me relacionava muito dentro da minha família, com as pessoas da minha família. O máximo, como a minha família é muito religiosa, então com as pessoas da igreja, mas era muito... eu não via, apesar de até morar num bairro periférico, porque eu tô na Zona Norte de São Paulo, mas não é um bairro extremamente periférico. Então eu não... eu acho que eu vivia muito numa bolha e aí, a partir do momento que eu tive que ir, eu fui estudar na Vila Maria, eu pegava ônibus, essa primeira escola que eu fui estudar era uma escola que ficava muito perto de uma comunidade, então você vê pessoas de uma situação muito diferente da minha realidade, eu acho que me fez perceber muito a realidade ao redor, as coisas que aconteciam, e ter muito essa consciência mais social e que, às vezes... eu sempre tive muita noção de que eu era uma pessoa negra e como as pessoas do mundo tratavam as pessoas negras, mas eu nunca tive tanto... acho que, até tão, muito nova... não sei, eu tinha essa consciência de classe, que tinha pessoas que, de repente, estavam numa situação muito melhor que a minha, mas que tinham as pessoas em situação muito pior que a minha, mas estudando numa escola particular eu acho que isso era, eu até sabia, mas eu não me relacionava diretamente com essas pessoas, mas quando eu fui estudar ali, na Vila Maria, eu passei, fazia parte do meu dia a dia.
P/1 – Maíra, você conversava sobre isso com os seus pais? Como caiu, assim, a ficha? Não sei se é cair a ficha exatamente, mas como abriu isso?
R – Eu acho que os meus pais sempre estiveram muito... isso é uma coisa que eu acho, um valor que eu carrego muito, dentro de casa a gente sempre teve muito essa coisa de que, se por algum acaso sobrasse, a gente tivesse a mais, a gente tinha que, quase por obrigação, achar alguém que tivesse menos pra compartilhar. Então tudo que a gente tivesse a mais, a gente tinha que compartilhar. Eu sempre tive isso pra mim, mas eu acho que é muito de estar muito próximo, de ter um convívio e entender que independente da classe social, está todo mundo, todos nós somos pessoas e que temos pensamentos e que pode ter um monte de coisa em comum, que pode ter um monte de coisas que não são comuns, mas eu percebi, por exemplo, só pra você entender como foi esse processo: minha mãe ficou tão preocupada na época, porque a minha mãe trabalhava com tecnologia, ela trabalhava, quando ela era mais nova, nessa época, na Ericsson e o meu pai trabalhava na Bayer, ele era auditor na Bayer e minha mãe era na Ericsson. Os dois acabaram perdendo o emprego e a minha mãe e o meu pai começaram a empreender, montaram uma confecção naquela época, quando aconteceu isso. Só que aí, quando a gente teve que mudar de escola, minha mãe achou por bem ir dar aula nessa escola nova que a gente ia mudar, então ela conseguiu dar um jeito de arrumar um emprego lá, ela não dava aula nem pra mim, nem pra minha irmã diretamente, mas ela estava na escola, porque ela achava que era um ambiente que era muito diferente daquele que a gente tinha convivido. E isso fazia com que a gente conversasse bastante, porque a minha mãe sempre provocou muito esse diálogo entre nós. A gente, só pra você entender, em casa meu pai adora ler, minha mãe também sempre gostou, mas meu pai gosta muito e meu pai faz leitura dinâmica, então ele é dessas pessoas que lê muitos livros, uma quantidade absurda de livros e quando eu era criança, a gente tinha esse costume de ler, a gente lia todos os mesmos livros e discutia e era uma coisa que a gente fazia em casa. Então essa coisa de conversar, discutir e falar sobre o que pensar, era uma prática, uma coisa que já acontecia na minha casa e eu acho que essa coisa da minha mãe ir trabalhar nessa escola que a gente foi, mudou, que eu e a minha irmã fomos estudar e depois de ter esse negócio de conversar sobre as coisas que a gente via ali naquele ambiente, ajudou também, não sei, não foi uma experiência traumática, mas eu entendi que eu estava mudando de realidade, porque eu estava num lugar que as pessoas estavam discutindo, pensando e todo mundo na escola que eu estudava, particular, estava pensando quando que ia pra Disney, entendeu? E aí eu fui pra um ambiente que as pessoas não estavam vivendo essa realidade.
P/1 – E você ficou nessa escola até quanto tempo?
R – Eu estudei um ano nessa escola, depois eu estudei... porque, na verdade, eu saí, na verdade eu fiquei até a quinta, o final acho que da quinta série na escola particular, aí eu fui pra sexta e estudei a sexta série nessa escola, aí eu mudei, aí eu fui pra um outro Sesi e aí eu fiz a sétima e oitava e aí depois eu fui pro Senai.
P/1 – E como foi no Senai?
R – Nossa, o Senai, pra mim, foi um universo completamente diferente. Primeiro porque era um lugar que tinha uma quantidade de gente que eu nunca tinha visto na minha vida, porque a minha escola era um lugar, sei lá, que tinha não sei se cem crianças, não sei (risos) nem se chegava a cem, mas tudo bem, tinha uma quantidade lá de crianças, mas essas pessoas muito mais velhas... Então, foi um... e aí você tinha essa história que você ficava andando, indo pra sala de aula porque, na verdade, não era o professor que ia na sua sala, mas você que ia nas salas que estavam acontecendo, então foi uma mudança muito grande, pra mim, de realidades, e fora que eu fui estudar, eu fazia Artes Gráficas, as pessoas ficam fantasiando que o mercado gráfico, a indústria gráfica é só o designer, então é só o computador, mas na verdade não, eu fui ver a parte industrial, então eu tinha os equipamentos, as máquinas, as impressoras. Então no começo foi, sabe aquela coisa? "Nossa, será que um dia eu vou conseguir mexer nisso? Fazer isso? E não sei o quê". E é muito engraçado que, pra mim, o Senai é uma coisa que eu carrego até hoje, porque eu casei, meu ex-marido eu conheci lá, meus amigos até hoje, os meus melhores amigos são de lá, dessa época. Então o Senai tem uma presença muito forte na minha vida, ele moldou a Maíra que eu sou hoje, eu acho, assim. Muito forte, muito, muito forte, muito forte. E foi um período muito intenso.
P/1 – E você começou a trabalhar nessa época?
R – Na verdade, como eu fazia o colegial técnico integral, eu não trabalhava, eu só estudava, eu estudava o dia inteiro. Eu chegava no Senai às sete e saía de lá às quatro, cinco da tarde. E como o Senai era longe, porque agora tem um metrô perto da minha casa, tem metrô, tudo mais, naquela época não tinha. Então eu pegava esse ônibus, que demorava horas até chegar na minha casa, então era esse percurso bem longo pra chegar em casa. Então eu estudei... eu só comecei a trabalhar quando eu tinha... quando eu terminei o Senai, que eu já tinha, eu acho que eu tinha dezoito ou bem perto, foi em 2000. Não, eu tinha dezenove.
P/1 – E como vocês se divertiam? O que vocês gostavam de fazer?
R – Nossa! Ah, o pessoal do Senai foi a primeira vez que eu viajei sem meus pais, que a gente viajou em grupos da escola, foi bem legal, a gente foi pra praia, a gente gostava bastante, a gente ia na casa, muito, um dos outros, ia muito. Eu lembro que, como a gente estava lá, naquela época, foi logo que abriu o Shopping Tatuapé e a gente ia muito pro Shopping Tatuapé, no cinema. Então de quarta-feira a gente ia bastante no cinema no shopping, então eu lembro da gente indo pro shopping e fazia muita coisa em turma, esse grupo, um monte de gente mais ou menos da mesma idade, fazendo coisas assim. Então lembro muito disso, de ir no shopping, dessa coisa dessa viagem, da gente ir na casa um dos outros.
P/1 – E foi nessa época que você começou a namorar. Como foi esse momento?
R – Gente, muito engraçado, bem que é engraçado, que eu fico pensando, eu lembro quando eu era criança, que a minha mãe falava que eu só ia namorar quando eu tivesse vinte anos, sei lá, e eu lembro que quando eu era bem pequena, quando eu tinha quatorze eu arrumei um namorado e aí era um menino da igreja, eu fico pensando, que pensa numa coisa mais boba (risos), era aquele meu namoro, que o menino tinha medo, eu queria andar de mão dada, ele morria de vergonha. Ele terminou comigo porque ele achava, porque eu queria andar de mão dada, que eu era muito ousada (risos). Então pra você ver que namoro era esse. Mas eu sei que eu tive esse namoradinho aí quando tinha quatorze e aí, depois, quando eu tinha dezesseis a minha madrinha casou com o meu tio, ele morreu já, mas o meu tio tinha um... a minha madrinha tinha um enteado, porque esse meu tio tinha um filho e ele era um pouquinho mais velho que eu, e quando eu tinha dezesseis eu comecei a namorar com ele, mas também um namoro meio bobo, namorei com ele seis meses e aí, depois, quando eu fui pro Senai que, de fato, aí eu comecei a namorar e aí eu namorei com um menino, que aí eu namorei quase uns três anos. E aí foi essa coisa engraçada, porque ele era... ele morava em Poá e morava bem longe da minha casa, mas o Senai que eu estudava ficava na Zona Leste, não era... era Mooca, que é mais Centro do que... mas, de qualquer jeito, tinha essa coisa de ir na casa dele, de passear, de fazer coisas junto, teve essa coisa da minha mãe conhecer a família dele, porque a minha mãe, era muito engraçado, que ela, depois, quando de fato eu comecei a namorar, ela não... ela era ciumenta, eu acho que ela era bem mais ciumenta do que o meu pai, mas pra ela, mais do que tudo, ela queria sempre saber quem eram as pessoas, ou qual era, como era a casa dessa pessoa. Então às vezes ela meio que se convidava. Eu lembro que eu sempre ficava com essa sensação de: "Ai, meu Deus, que horas que eu vou passar vergonha? Porque minha mãe vai dar um jeito de se convidar pra ir na casa do meu namorado". Então não era nem eu ir na casa do meu namorado, minha mãe indo na casa do meu namorado, que eu falava: "Ai, meu Deus, que vergonha, que vergonha" (risos).
P/1 – E você se encantou pelas Artes Gráficas e você imaginava, você ficava pensando com o que você queria trabalhar? Como ia ser isso?
R – Quando eu entrei no Senai eu não sabia nem o que era Artes Gráficas porque, na verdade, quem queria fazer Senai era a minha amiga, não era eu. Eu nem sabia o que era, porque a minha amiga que estudava no Sesi comigo queria estudar Artes Gráficas, porque a família dela era uma família de gráficos, só que ela não passou e eu passei e foi assim que eu fui estudar. E aí nisso... só que eu me apaixonei pelo curso e tudo mais e quando eu me formei eu fui trabalhar numa gráfica, mas eu trabalhava, aí eu acabei trabalhando mais com essa parte de designer, aí eu trabalhei numa gráfica, mas ela fazia atendimento a agência de publicidade. Então eu trabalhei, fui fazer estágio lá, depois eu trabalhei numa agência de publicidade mesmo. Aí eu trabalhei, entrei mais pra área industrial e aí eu fui trabalhar: trabalhei numa gráfica, trabalhei com assistência técnica dando suporte pra gráficas e depois eu fui trabalhar no sindicato patronal de indústria gráfica e aí, no sindicato, eu trabalhei quase perto de sete anos. E aí nesse sindicato eu trabalhava muito com desenvolvimento de normas técnicas, então tudo o que era de padrão, de normas, tudo que era pensando nas regras pra indústria gráfica, eu trabalhava definindo isso.
P/1 – E você ficou lá por sete anos?
R – Sim.
P/1 – O que fez você sair?
R – Na verdade, foi muito engraçado. Só pra dar um passo antes: quando eu fiz o Senai, eu estudei, aí eu me formei, fiz estágio e aí eu fui fazer faculdade, aí eu fiz faculdade de Tecnologia Gráfica, que eu esqueci, daí eu acabei mudando, desisti da Medicina completamente (risos) e aí eu fiz a faculdade de Tecnologia Gráfica. Aí quando eu fiz Tecnologia Gráfica, quando eu terminei o meu curso, eu sempre fui uma pessoa, eu sou uma pessoa, dá pra perceber que eu sou tímida e quase não falo (risos), eu sempre fui assim, então eu sempre fui muito falante, todos os lugares que eu chego faço muitos amigos, muitas vezes eu era aquela pessoa que liderava os grupos e então eu era essa pessoa, só que eu percebi em um determinado momento, que eu era uma pessoa que não sabia ficar sozinha, eu tinha muita dificuldade. Como eu nem precisava, se eu quisesse eu nunca estava sozinha, mas eu tinha dificuldade de ficar sozinha e eu tinha, por sinal, uma relação muito difícil, eu acho que eu percebi muito isso quando a minha irmã foi pro convento, porque eu não gostava de ficar na minha casa, eu tinha medo, eu tinha dificuldade de ficar na minha casa sozinha e foi a primeira vez que, de fato, eu me sentia sozinha, porque a minha irmã não estava aqui, meus pais trabalhavam. Então, às vezes, quando eu estava em casa e, se eu estava sozinha... eu sempre estava namorando, coisa assim, então eu ficava pouquíssimo tempo sozinha, mas eu achava que, quando eu ficava sozinha, não era uma coisa, eu não era uma pessoa nem que me via morando sozinha. Então o que eu pensei? Que eu queria fazer alguma coisa pra tentar melhorar essa situação, essa questão de ficar sozinha. E aí o que aconteceu? Quando eu comecei a fazer a faculdade e eu trabalhava e fazia faculdade, eu comecei a pensar em fazer uma... eu não sei nem como que surgiu essa ideia, mas nessa época eu arrumei um amigo na faculdade e a gente conversando, pensou, descobriu que tinha uma pós-graduação na Espanha, que era de Artes Gráficas e aí a gente ficou com essa ideia dessa pós-graduação e foi uma coisa que nos uniu, e no final das contas, depois a gente começou a namorar por conta disso, porque a gente começou como amigo com essa história da pós-graduação, depois a gente começou a namorar e conforme foi passando o curso, eu queria de qualquer jeito ir fazer, tentar fazer alguma coisa fora. A gente percebeu que a pós-graduação a gente nunca ia conseguir fazer, porque o dinheiro a gente nunca ia ter pra fazer essa tal dessa pós-graduação, mas eu decidi que... eu comecei a juntar dinheiro e decidi que, nem que fosse pra fazer um curso, um curso de inglês, qualquer coisa, eu queria ter essa experiência de ir morar fora. E aí eu consegui, no final, juntar dinheiro e meus pais também me ajudaram, então parte foi com o meu dinheiro, parte foi com o dinheiro que os meus pais me ajudaram e eu fui pra Irlanda e eu fiquei seis meses na Irlanda. Então de 2005 pra 2006, eu fui em setembro de 2005, voltei em março de 2006 e fiquei esses seis meses na Irlanda e foi uma experiência incrível porque, primeiro foi muito engraçado, que quando eu cheguei na Irlanda, eu fugia de brasileiro e eu fui pra uma escola e realmente, junto comigo chegaram oitenta alunos do mundo todo, muitos japoneses, chineses, chegaram muitos mexicanos, franceses, alemães, um monte de gente diferente, belgas, um monte de gente e eu era a única brasileira e, quando eu vi, eu era a pessoa que organizava os passeios (risos). Então eu era essa pessoa que organizava, então logo eu fiquei amiga de todo mundo, eu conversava com todo mundo, organizava as coisas, então eu era essa pessoa. Gente, caiu meu brinco, nem vi (risos), mas está bom. Ai, meu Deus. Eu era essa pessoa que organizava os passeios. Aí, o que aconteceu? Nesse meio tempo eu tinha o meu namorado que morava no Brasil e que passou esses seis meses infernizando a minha vida, enquanto eu estava lá na Irlanda, mas eu sei que num determinado... só pra entender: fui em setembro, em dezembro tinha as férias da escola, um ano antes de eu ir pra lá eu tinha conhecido uma italiana que tinha vindo pro Brasil e eu disse pra ela, na época, que eu estava pensando em fazer essa viagem, não sei o que e ela disse pra mim que, se eu fosse pra qualquer lugar da Europa, que eu tinha que ir pra Itália, pra casa dela, aí eu falei: "Tá, Valentina, vamos ver. Se der certo, eu vou". E aí, no final, em dezembro eu fui passar essas três semanas de férias na Itália e aí o meu namorado, na época, que depois virou meu marido e tudo o mais, foi me encontrar lá e a gente passou essas três semanas juntos e, depois disso... mas ele fez tanta confusão! Ele, na época, me pediu em casamento, porque ele queria que eu voltasse pro Brasil. Eu acho que ele me pediu em casamento, porque ele queria me convencer a voltar pro Brasil, mas no final eu fiquei, pra terminar o curso. Só que aí, depois de toda essa confusão eu decidi que eu queria ficar sozinha e aí quando eu voltei da Itália pra Irlanda, eu passei os últimos três meses, até março, sozinha, eu fazia passeios sozinha, eu andava sozinha. O pessoal, no começo, ficou muito bravo comigo, porque eu queria ficar sozinha e não queria mais fazer as atividades, sair junto, não sei o que, mas aí eu comecei a ficar muito sozinha, aí eu ia na biblioteca, eu caminhava e foi a primeira vez que eu tive essa experiência de ficar sozinha, de decidir ir ficar e fazer companhia pra mim mesma, ser essa companhia pra mim e isso, nossa, foi uma das coisas mais importantes que eu fiz pra mim, porque isso me mudou. A partir disso, eu percebi que eu podia escolher as companhias e que, às vezes, eu não precisava ficar com qualquer um, só pra não ficar sozinha, que eu podia ficar sozinha. Então, isso, pra mim, foi muito importante. E aí, a partir disso, quando eu voltei dessa experiência, dessa viagem, aí eu fui trabalhar no sindicato e, no sindicato eles precisavam de uma pessoa que participasse das reuniões internacionais, então eu fui pro sindicato e eu representava o Brasil dentro da ISO. A ISO, o Comitê Técnico Internacional, que pensava, o grupo específico que era o TC 130, que era o que desenvolvia normas técnicas internacionalmente pra área gráfica, eu comecei trabalhando lá no sindicato, fazendo outras atividades, mas num determinado momento eu me tornei uma das representantes do Brasil dentro desse Comitê Internacional e isso fez com que eu viajasse por muitos lugares no mundo e eu hoje já fui pra dezesseis países diferentes e isso fez, além de ter sido uma experiência incrível, eu conheci pessoas maravilhosas, eu estava trabalhando com a cúpula, com a nata da indústria gráfica, então por exemplo: presidente, diretores. A Editora Abril eu conhecia, porque eles iam lá na BTG. Das indústrias, as maiores indústrias gráficas eu trabalhava e lidava com essas pessoas, porque eram as pessoas que ajudavam nesse trabalho de desenvolvimento de normas. Então foi uma coisa que, primeiro, me fez muito ter essa consciência de que eu podia falar com qualquer pessoa, porque qualquer pessoa, não importa se a pessoa é operador ou ele é presidente de uma indústria que tem milhões de funcionários, é uma pessoa e ela precisa ser tratada com respeito e eu também preciso ser tratada com respeito. Então me mostrou muito isso e saber ter essa postura de andar e conversar com pessoas de, às vezes, nível socioeconômico muito diferente do meu. Então eu achei que isso foi uma experiência muito legal, muito, muito enriquecedora e principalmente nesse período eu... a indústria, só pra você entender: nós éramos cem especialistas no mundo todo e só tínhamos cinco mulheres, eu era a única pessoa negra e a única coisa que me trazia sempre essa sensação de tipo: só sou eu, não tem mais ninguém aqui. De não ter pares, sabe, de não ter outras pessoas. E fora que você está nesse universo, que é um universo muito machista e masculino, porque era um universo que era todo feito pra homens. Eu acabei nem falando isso, mas quando eu estudei no Senai. No Senai não tinha o mesmo número de banheiros masculinos do que femininos, porque aquele ambiente não era um ambiente preparado pra mulheres. E aí, toda a minha carreira foi nesse universo, num universo que não estava preparado pra mulheres e, principalmente, eu senti muito isso quando eu estava participando dessas reuniões da ISO, essa sensação de sempre ter que estar muito preparada, de pensar muito no que eu vou falar, porque eu me sentia lá sempre muito insegura, mas eu tinha que parecer segura, e aí no final do dia eu percebia que, meu Deus, como eu estava cansada, que não era só essa questão de ter que falar em inglês, que não era um idioma que eu me sentia super confortável falando, mas que tinha toda essas questões de insegurança. Muitos anos depois eu fui entender, de ser uma mulher negra, de estar num ambiente que não tinham outras pessoas iguais e que eu tinha que ter uma postura muito séria, muito não sei o que, que era tanto, tinha que fazer tanto esforço pra garantir aquilo que era muito cansativo e às vezes aquilo não me permitia simplesmente curtir e aproveitar todas essas experiências da melhor forma.
P/1 – Como foi esse período? Você conversava sobre isso com as outras mulheres? Isso era discutido ou não? Essa questão de…
R – Na verdade, (risos) desculpa. Na verdade, o que a gente fazia? Essas cinco mulheres, a gente sempre se reunia e fazia um jantar num dia que era só nosso, pra gente compartilhar e conversar e tudo mais, porque eram só cinco, né? Mas a gente… eu não tinha tanto essa consciência, naquela época, como eu tenho hoje, eu tinha o estranhamento, mas eu acho que eu não tinha tanto essa consciência, eu não tinha essa consciência.
P/1 – E, Maíra, viagens, o que isso representou na sua vida? Porque viajar e viajar muito pra muitos lugares, você acaba conhecendo outras culturas, outras alimentações, culinárias. Como era isso pra você?
R – É engraçado, porque eu sempre tive uma relação muito complicada com alimento, com a comida, porque a minha mãe é diabética, desde que eu era criança... desde criança não, ela é diabética desde os quatorze e ela é vegetariana desde que eu era criança. E minha mãe sempre levou uma preocupação muito grande com o que eu e a minha irmã comíamos, então na minha casa nós éramos aquelas crianças que comiam brócolis. Eu sonhava com as férias de escola pra comer cachorro-quente na casa da minha tia, porque na minha casa não tinha cachorro-quente, não tinha batata frita, não tinha... chocolate a minha mãe comprava quando ela ia fazer compras, no dia das compras a gente comprava um chocolate e eu sonhava com o chocolate do próximo mês (risos). Porque era isso, a minha mãe era muito regrada pra essa coisa da comida. Então eu sempre fui... eu era uma pessoa que meio que passava mal. Quando eu era criança eu fiquei doente muitas vezes, eu tive cinco vezes pneumonia, então eu era aquela criança, meio, meio doente (risos). Então eu sempre fiquei com medo de passar mal, então no começo eu tinha... foi muito engraçado: quando eu fui pra Irlanda eu passei muita fome, porque eu achava a comida horrível, horrível. Na Irlanda eles tinham muito essa coisa de... pra eles cozinhar era abrir um pacote, colocar no micro-ondas e tirar o pacote do micro-ondas. E pra mim era uma coisa muito estranha, porque eu gostava de cozinhar, eu sabia cozinhar e essa realidade, pra mim, era uma coisa muito... (risos) eu não... nossa, eu passava muito... passei muita fome. Acho que a Irlanda foi o lugar que eu... o período da minha vida que eu fiquei mais magra, esses seis meses. E aí eu fui, quando eu cheguei na Itália, eu acho que eu parecia uma pessoa desesperada, eu comia, comia, comia, que a comida era maravilhosa. E o que eu percebi muito dessa coisa de viajar foi, principalmente morando na Irlanda, na Itália depois... porque em 2011, quando eu saí da BTG, que eu acabei nem falando pra você porque eu saí, eu saí porque eu fui morar na Itália e aí quando eu fui morar na Itália eu percebi muito essa coisa de como eram as pessoas e como era a realidade, a minha realidade, e como essas outras pessoas viviam. Quando eu saí do Brasil a primeira vez e fui pra Irlanda, em 2005, foi um impacto muito grande pra mim, porque ir pra Irlanda, foi a primeira vez... eu sempre fui uma pessoa super nacionalista, eu era muito aquela pessoa apaixonada pelo Brasil e que super brasileira e, se falasse mal do Brasil, eu quase te batia (risos). Era essa pessoa. E quando eu fui pra Irlanda, eu olhei e falei: "Meu Deus, como eu sou um país desenvolvido, subdesenvolvido, como eu sou subdesenvolvida", porque eu vi umas coisas que eu nunca tinha visto na vida, tudo muito tecnológico, muito moderno, uma coisa... sabe coisa que você ficava assim, você olhava: "Ah", eu era essa pessoa assim, olhando pra essa realidade, essas coisas todas muito diferentes, coisas que eu nunca nem tinha imaginado na vida. Então pra mim a Irlanda foi muito isso. E esse processo de aprender um novo idioma, conviver com outras... com alunos de outros países. Eu conversei durante... passava muito tempo com os mexicanos, então foi uma experiência bem legal. Então, foi isso, pra mim, a Irlanda. Aí depois, quando eu fui pra Itália, nesse meio tempo, pra mim a Itália era um lugar muito bonito, mas foi diferente, porque eu tinha uma amiga que estava meio que conduzindo essa viagem. Eu tive só uma sensação porque, na Irlanda, os irlandeses eram muito simpáticos. Se você se perdia, pedia indicação, as pessoas na rua te ajudavam muito. Na Itália eu percebi que as pessoas não eram tão solícitas, então foi a primeira sensação que eu tive de pessoas que não eram muito solícitas. Mas depois eu tive a possibilidade, eu fui pros Estados Unidos, eu fui pra China, eu fui pra Indonésia, eu fui pra vários países diferentes na Europa e aí eu percebi muito essa coisa da cultura e de você ver como as pessoas entendem a realidade, o que significa ser bonito ou sucesso, como é muito diferente essas percepções. E eu adorava experimentar comida. Depois desse primeiro momento que eu tinha medo, porque eu achava que eu podia passar mal, que eu podia ficar doente e não sei o que, eu comecei a ser aquela que queria experimentar tudo, testar tudo e tentar tudo e eu era muito assim: sempre ia muito ávida pra aproveitar aquela experiência, conhecer as pessoas, tentar visitar um lugar, alguma coisa mais característica daquele espaço, pra vivenciar muito aquilo. E pra mim eu acho que foi absurdamente enriquecedor, absurdamente enriquecedor. Conheci muita gente incrível, aprendi muitas coisas e melhorei meu paladar, descobri novos sabores.
P/1 – E como foi essa decisão de morar na Itália, mesmo? E por que Itália? O que você estava buscando?
R – Nossa, essa decisão, na verdade, teve duas situações: uma porque... eu falei então que eu tinha casado, eu fiquei casada até 2011 e nesse período, um pouco antes disso, eu me divorciei. E aí o que aconteceu? Nesse mesmo... eu comecei a participar desse comitê internacional e, nesse comitê, eu conheci um italiano, aí eu o conheci, a gente começou a namorar e, junto com essa coisa, esse namoro, surgiu uma possibilidade de ir trabalhar lá, da gente fazer um projeto juntos. Então eu acabei indo pra Itália, muito porque o tinha conhecido, a gente estava namorando e fazendo esse namoro à distância, ele morando na Itália, eu no Brasil e a gente percebeu que, em algum momento ia ter que mudar e aí na época era mais conveniente que eu fosse, mas eu, depois de ter morado na Irlanda, eu tinha definido pra mim, tinha falado: "Maíra, nunca mais você vai morar em nenhum lugar fora" (risos). Eu tinha decidido, porque eu amo o Brasil e eu sempre ficava nessa, quase como se eu estivesse traindo alguém? (risos) Eu tinha essa sensação. E aí eu sei que... mas de qualquer jeito eu fui pra Itália e na Itália eu fiquei quase quatro anos morando lá. E quando eu fui pra Itália, foi muito interessante porque, diferente da Irlanda, que eu era estudante, eu na Itália fui trabalhar, eu trabalhava e por ter ido pra Irlanda, quando eu fui pra Itália, eu estava muito nessa expectativa de ir pra essa realidade que era super tecnológica, que era maravilhosa, muito melhor do que a minha, e eu descobri a Itália. Para mim a Itália é quase como se eu tivesse voltado no tempo (risos), porque era um lugar que tinha uma realidade, a forma que eles faziam muitas coisas era muito antiga e muito diferente do que eu conhecia e pra mim foi muito estranho no começo, porque eu tinha essa expectativa de Irlanda, de uma coisa muito moderna, muito tecnológica e não era exatamente assim. Os italianos, depois de me iludir algum tempo, eu entendi que eles eram um pouco arcaicos na forma de fazer algumas coisas, do meu ponto de vista, mas a forma, o desenvolvimento humano, o pensamento era incrível, eles eram muito críticos, eram pessoas que todas tinham sempre um ponto de vista, alguma coisa pra dizer em relação a qualquer assunto, todo mundo tinha algum ponto de vista, alguma coisa, alguma ideia, eram muito críticos. As pessoas, mediamente, eram muito cultas, muito cultas. Assim, só pra entender: qualquer pessoa, desde uma pessoa mais simples, a uma pessoa muito, sei lá, educada, muito intelectualizada, eram pessoas que eram mediamente muito cultas, muito mais cultas do que você encontra e vê aqui no Brasil. E era uma coisa que eu falava: "Nossa!" e me deixava muito admirada. Eu gostava bastante, assim, gostava bastante. Foi um período pra mim, eu acho que, pra mim a Itália foi... é muito engraçado, porque foi um período que eu acho que eu tive que lidar e descobrir várias questões que eu ainda nem sabia que eu ainda tinha pra mim, mas muito dessa... eu acho que todo esse desenvolvimento e essa análise crítica que você falou em relação a ser mulher, ser mulher negra, eu fiz muito nesse período que eu estava na Itália, porque eu era tão diferente das outras pessoas que estavam lá que eu muitas vezes me questionava sobre esse meu papel e esse meu lugar no mundo e, além disso, lá foi a primeira vez que eu, de fato, tive essa percepção e essa ideia do que é ser imigrante, porque quando eu fui pra lá eu, como eu tinha, eu era pós graduada, tinha uma série de formações, eu consegui um visto, que era um visto de trabalho, muito, de uma categoria muito elevada, era muito especial, muito particular. Então todo mundo que via o meu visto, lembro que uma vez eu fui num hospital e uma moça disse pra mim assim: "Tá vendo esse visto dela? Quando os italianos acham uma pessoa muito inteligente de outro país, ele faz isso, vai lá e rouba". Então foi isso, foi ela explicando como era o meu visto pra colega dela de trabalho, então esse era o meu visto. Mas eu percebi, uma vez, numa fila de supermercado, duas meninas negras, que eram muito provavelmente de algum país africano, na fila, e elas estavam conversando, eram duas meninas jovenzinhas. Então estavam elas, uma moça italiana, eu atrás dela e aí a fila andou, só que as meninas estavam conversando, distraídas, não viram a fila. Essa moça italiana deu uma cotovelada nas costas de uma delas. Foi uma cena, assim, muito violenta, não foi nem tanto se machucou ou não machucou, mas foi uma coisa muito grosseira, muito grosseira, eu fiquei muito indignada, mas eu percebia que ela nunca faria, muito provavelmente não faria isso comigo, nunca aconteceu uma situação dessas, assim, comigo lá, mas eu vi que aconteciam com elas e eu via principalmente se as pessoas podiam, fossem muçulmanas, aconteciam situações horríveis com elas. Então eu entendi, quando eu estava morando na Itália, que ser imigrante não diz nada, porque imigrante, você pode ser imigrante de classe A, de classe B, de classe C, de classe D, tem muitos tipos de imigrantes, entendeu? E as pessoas, às vezes, tratam algumas de uma forma e não tratam outras de outra. Eu sabia que, por ser mulher, muitas vezes, na minha atividade, no trabalho que eu estava fazendo, os italianos eram muito sexistas, muito racistas e eles me tratavam, eles não davam o devido valor ou peso, sempre tinha que estar muito embasada pra dar as minhas opiniões e tudo mais, mas eu acho que eu conseguia usar estratégias pra conseguir fazer as minhas coisas valerem, mas eu via que, às vezes, tinham outras pessoas que não conseguiam tanto e aquilo me incomodava muito, me incomodava muito, muito. E eu acho que tudo isso e as coisas que eu vim e que eu faço hoje são muito fruto, também, dessa minha experiência lá e de ver essas situações acontecerem.
P/1 – Com o que você trabalhava lá?
R – Eu trabalhava na área gráfica, eu trabalhava fazendo... eu era... o meu ex tinha uma empresa, ele desenvolvia software pra área gráfica e ele prestava serviços para uma indústria, que era uma indústria cerâmica, que vendia máquinas e impressoras pra imprimir em piso cerâmico e eu dava treinamento de implantação desse software. Então foi muito engraçado, porque eu fui pra Itália, mas vim várias vezes pro Brasil dar curso de implantação desse software, eu fui pra China, eu fui pra Bolívia, eu fui pra outros países, fazendo isso.
P/1 – E você tinha alguma expectativa de carreira? Você pretendia continuar lá? Ou você já falava: "Vou voltar pro meu país"? Como que era?
R – Na verdade, eu fui com um acordo muito claro, de que eu ia voltar, porque eu não tinha a menor intenção de ficar. É que, na verdade, a gente entendeu que naquele momento era interessante e foi também pra mim uma experiência interessante, mas eu não tinha a menor intenção de morar pra sempre na Itália.
P/1 – E como foi essa volta?
R – Na verdade foi engraçado porque, primeiro que os meus pais - 2015, que foi o ano que eu voltei, foi um ano muito difícil - primeiro, ficaram doentes, meu pai ficou doente, depois minha mãe ficou doente e a minha avó morreu e aí - a minha avó materna morreu - eu decidi que, pra mim, tinha sido suficiente. Só que nesse meio tempo, antes de eu descobrir que eu queria voltar, que eu ia voltar, eu fui pra lá sem uma data específica. Minha mãe, uma vez, quando eu estava no segundo ano, lá na Itália, entrou em contato comigo e disse que queria comprar um restaurante e eu: "O quê? Comprar restaurante? Que ideia de girico". E a minha mãe é dessas pessoas super criativas, que todo dia tem uma ideia mirabolante diferente. Aí ela falou que queria comprar esse restaurante, aí eu falei: "Ai, meu Deus do céu, lá vem minha mãe". Aí eu comecei a pesquisar, pra persuadi-la a não comprar, desistir. Então eu marquei uma reunião. Eu estava lá, na Itália, marquei pra ela uma reunião aqui em São Paulo, na Associação de Bares e Restaurantes aqui de São Paulo e aí ela foi na reunião e voltou super desesperada achando que era muito trabalho, que horror, não sei o que e compartilhando comigo o que ela tinha visto e eu falei: "Nossa, que interessante!" E aí eu fiquei achando que podia ser uma possibilidade. Aí eu passei esses dois anos, antes de voltar pro Brasil, pesquisando e entendendo essa área de alimentação, porque não era uma área que eu trabalhava, eu não sabia nada da área de alimentação. Aí descobri que tinha corretores em específico pra negócio de alimentação, que vendiam restaurantes que já existiam e aí eu fiz planos pra saber se era melhor abrir um restaurante novo, se era melhor começar um restaurante que já existia. Então eu fiz muitas análises de cenário, que eu sou essa pessoa metódica e das normas e não sei o que, que está sempre pondo tudo no papel. E aí, no final das contas, eu voltei pro Brasil em 2015 e aí, quando eu voltei, eu achei que estava na hora de tirar toda essa ideia, esse pensamento que a gente tinha do papel e foi assim que apareceu a Free Soul Food na minha vida, em março de 2016.
P/1 – E, Maíra, você sabe de onde surgiu essa ideia de comprar um restaurante, da sua mãe? Ela pensava em trabalhar com alimentação?
R – Ah, a gente sempre gostou de cozinhar, porque cozinhar estava muito forte na minha família, era uma coisa que era muito da minha avó materna, muito da minha avó paterna, a gente gostava. A cozinha era um lugar onde a família se reunia. As cozinhas, tanto a cozinha da minha vó, quanto a cozinha da minha casa, era um lugar onde as pessoas estavam, a gente passava muito tempo na cozinha. Então pra gente sempre teve isso, eu sempre gostei de cozinhar, e na época que eu estava na Itália eu também cozinhava, eu fazia coisas, convidava pessoas pra ir em casa pra comer e gostava de experimentar e tudo mais, mas nunca tinha... pensava que um dia, sabe aqueles sonhos assim? Ai, um dia! Mas a minha mãe veio com essa ideia porque o meu pai, depois de um tempo ele começou a trabalhar, gerenciar escritórios de contabilidade e o escritório que ele estava trabalhando, que ele estava gerenciando na época, ele ia almoçar num restaurante e esse restaurante estava à venda e ele comentou com a minha mãe que o restaurante estava à venda e foi daí que ela teve a ideia de comprar.
P/1 – Então me conta como foi começar a estruturar a Free Soul Food? E como vocês escolheram esse nome?
R – Então, foi muito engraçado. A gente passou esses dois anos fazendo, montando plano de negócios e tudo mais. Aí quando eu voltei a gente resolveu tirar do papel e colocar, de fato, isso em prática. Então a gente foi procurar um lugar pra poder abrir e tudo mais e, na verdade, esse tempo, que foi de novembro, que eu voltei... de 2015 até março foi, de fato, o tempo que a gente demorou pra achar esse espaço pra poder abrir a Free Soul. E aí quando a gente chegou, achou o espaço e tudo mais, pra abrir a empresa, conseguiu alugar um lugar e foi abrir e tudo mais, a gente... na verdade a Free Soul ia ser uma empresa de três mulheres, então era eu, minha mãe e uma amiga nossa, que é a Fabíola. Só que a Fabíola, no meio do caminho, desistiu e aí ficamos só nós duas. Mas era engraçado que a Fabíola, na época, o ex-marido dela era designer e ele estava ajudando a gente a pensar no nome porque, na verdade, a gente primeiro ia colocar como AB alimentação, porque era de Amélia e Benedita, que é o nome das minhas avós, depois a gente pensou em Maná, Maná das Minas, sei lá, a gente pensou em vários nomes e aí ele viu, ele veio com essa ideia do Soul Free, porque a gente queria pensar eu sou... nesse processo todo, que eu acabei esquecendo de falar, quando eu fui pra Itália eu me descobri intolerante à lactose e foi um período muito difícil pra mim, porque eu passava muito mal e eu tive que lidar, aprender a lidar com a minha alimentação e a gente pensava muito nessas pessoas que tinham problemas alimentares e a gente queria pensar numa alimentação que proporcionasse saúde, fosse mais do que atender só pessoas que tivessem problemas de alimentação, mas que focasse muito no alimento como um aliado pra conseguir saúde, então essa era a nossa ideia. E aí o que aconteceu? A gente foi lá, conseguiu, ele deu essa ideia do Soul Free, porque era... a gente tinha até pensado numa linha que era Free Glúten, Free Lactose, por isso que ia ser esse Soul Free, só que a gente achou que Soul Free ia virar sofri e aí a gente falou: “Não, então vamos fazer Free Soul e aí ficou Free Soul. E era até engraçado, porque no começo a gente não queria, de jeito nenhum, o nome em inglês, de jeito nenhum, mas a gente ficou completamente apaixonada pelo Soul Free... pelo Free Soul e aí ficou Free Soul Food. Foi assim.
P/1 – E aí vocês desistiram de comprar e [escolheram] montar um?
R – Sim. Na verdade, a gente não montou um restaurante, a gente montou um delivery de alimentação saudável. Começou como um delivery de alimentação saudável, só que a gente sempre teve… a minha mãe, durante muito tempo, até por conta de virar vegetariana, ela fez vários cursos na Umapaz, que é essa universidade livre que tinha, aconteciam as aulas lá no Ibirapuera, sobre alimentação. Então ela estudou alimentação viva, estudou muita coisa e a gente pensava muito nesse alimento como aliado, um alimento que não gerasse tanto resíduo, que você aproveitasse casca, semente, tudo e principalmente que respeitasse o meio ambiente, então usasse embalagens que fossem biodegradáveis. Então, a gente, desde o começo, pensava muito nisso. E como a gente pensava, trazia muito forte esses valores ambientais e também pensava muito nessas questões sociais, porque nós éramos mulheres, mulheres negras e a gente pensava - e eu vim muito impactada e sensibilizada pela causa do imigrante, depois de vivenciar tudo o que eu vi na Itália - muito como eram essas outras mulheres aqui no Brasil e tudo mais. Aí a minha mãe teve a ideia, uma vez, de contratar, quando a gente estava aumentando o volume de trabalho uma angolana que apareceu na nossa comunidade, assim, surgiu na nossa vida meio que do nada, a Domingas e aí no começo eu fiquei meio assim, mas no final das contas a minha mãe me convenceu e a gente acabou contratando a Domingas e foi, nossa, a coisa mais maravilhosa na nossa vida. Primeiro porque a gente percebeu o quanto a Domingas conseguiu se empoderar e ficar muito mais autônoma, a partir de trabalhar lá com a gente, de conseguir conhecer a cidade, de uma série de coisas. E depois, o quanto a Domingas também contribuiu na construção da empresa, de dar ideias, de trazer novos sabores e quanto ela contribuía, porque os imigrantes vêm com essa força, essa vontade de querer fazer e de não faltar. E como pra gente era complicado porque, quando, às vezes você... no segmento de alimentação tem muito esse problema de rotatividade, então pra gente era importante ter uma pessoa que estivesse lá, presente de corpo e alma e querendo trabalhar, fazendo as coisas, sabe? Então foi excelente, porque a gente conseguiu contribuir pra ela e ela também conseguiu contribuir. E a partir dessas nossas ideias e um jeito que a gente queria fazer, a gente descobriu, percebeu que as empresas nos descobriram e começaram a contratar e convidar a gente pra participar de eventos corporativos. Então a gente começou a oferecer coffee breaks pra elas. Não era o que a gente queria fazer, porque a gente queria, estava pensando em atender pessoa física, mas foi assim que a gente acabou entrando no universo jurídico e aí a gente praticamente virou um buffet corporativo e a gente, atualmente, quase 80% da nossa atividade está focada no mundo corporativo.
P/1 – Mas, Maíra, um pouquinho antes, você lembra quais foram os primeiros pedidos? Como era a preparação da comida? Vocês que cozinhavam? Como foi pensar os pratos? Como foi esse momento?
R – Nossa, foi um momento de muita pesquisa. A gente pegou, fez contato, a gente tinha uma nutricionista que nos ajudava nesse processo. Então era uma nutricionista que é amiga da família, mas era uma pessoa que tinha essa mesma ideia nossa em relação a alimentação e tudo mais. A gente levou muita amostra, testou bastante com outras nutricionistas pra poder validar o produto e pensar nessa coisa do cardápio, então a gente fez muito isso. E no começo o que a gente fez? A minha mãe praticamente fazia a comida e tudo mais e eu fazia as outras coisas. Então eu divulgava, tirava foto, entregava e a gente, desde o começo, até por causa dessa minha veia gráfica, eu pensava sempre muito na estética e no design, tinha que ser bonito. Então a gente começou desde sempre com o Instagram, com o site e fazendo com o folheto coisas que fossem muito visuais e muito bonitas. Então foi assim que a gente começou.
P/1 – E como foi essa experiência de trabalhar com a sua mãe? Foi uma novidade?
R – Foi, foi uma novidade e olha, é muito engraçado, porque a minha relação com a minha mãe sempre foi muito boa, mas essa coisa de trabalhar com ela trouxe muita complexidade, a gente passou de uma relação que era muito boa, pra uma relação que ficou um tempo muito ruim, mas que hoje a gente conseguiu encontrar um equilíbrio, de saber distribuir as atividades. O que uma faz, o que a outra faz, porque eu acho que tem muito essa coisa, às vezes, de entender esse papel de mãe e de filha, entendeu? Porque aí você deixa de... eu não sou a filha ou ela não é a mãe, nós somos sócias naquele espaço, naquele ambiente, e isso é muito difícil, tanto pra ela, quanto pra mim, de entender esses limites, o limite de cada uma naquilo ali.
P/1 – E como foi o começo dos eventos? Você lembra o primeiro? Quais foram, como você se sentiu? Tem alguma história marcante?
R – Nossa, eu sempre me sentia muito insegura porque, como eu sou essa pessoa que tô sempre refletindo, sou muito reflexiva, penso muito, sou meio perfeccionista, era uma coisa que eu nunca tinha feito, nunca tinha feito. Então sabe quando você fica com aquela coisa: "Ai meu Deus, está tudo errado, vai dar tudo errado". Eu ficava muito nervosa, muito nervosa. O primeiro, primeiro... na verdade, foi muito engraçado, porque a gente foi contratada pra fazer um evento, que era um evento social, que era de uma ONG chamada Dúdú Badé, que era umas meninas que trabalham com essa questão da alimentação, mas pra contar histórias pra criança, levando muito esse contexto do povo africano através da alimentação e eles fizeram, eles conseguiram uma verba da prefeitura e eles iam fazer um... ai, meu Deus, era uma... eu sei que era uma coisa de uma semana que a gente tinha que entregar comida, e no último dia a gente fornecia, montava mesmo o catering e a gente passou muito tempo fazendo, estabelecendo cardápio e não sei o que, mas foi muito engraçado, porque elas contrataram a gente muito tempo antes, de fato, do evento acontecer, então a gente foi fazendo toda a análise pra fazer esse evento pra elas, mas nesse meio tempo, antes de fazer o delas a gente acabou fazendo o das empresas bem antes. A gente começou, acho que o nosso primeiro, de fato, foi um evento que a gente fez pra um programa por acesso, era um programa de aceleração, que era... que eu lembro até que aconteceu na Paulista, mas eu sei que a gente acabou fazendo isso e aí depois a gente começou a fazer pra ONG. A gente já fez pra Oxfam; a gente já fez evento pra IBM; pra HP; a gente já fez pra Natura; pra Avon; a gente tem feito muita coisa pro pessoal da Amaro; pra LOG; pra XP, agora esse ano a gente tem feito bastante coisa pra XP; pra Globo. Então é isso. Ah, eu nem falei pra você que, nesse meio tempo, de tudo isso, que a gente já ganhou cinco prêmios.
P/1 – Quer contar deles?
R – Sim. Olha, o primeiro que a gente ganhou foi um prêmio que a gente ganhou em 2018, é um selo da prefeitura de São Paulo pelas nossas ações com imigrantes, por contratar mulheres imigrantes e esse programa que a gente faz de capacitação e valorização da mulher imigrante. Depois, em 2019, a gente ganhou esse mesmo selo, só que na categoria de mulheres e também de imigrantes. Já participamos de um programa de aceleração do Mercado Livre, que a gente ganhou a etapa aqui do Brasil e representou o Brasil na Argentina, com os outros países da América Latina, e recebemos uma menção honrosa lá. A gente participou agora em 2021 de um collab, então a gente fez um projeto em conjunto com uma nutricionista, que é doutoranda lá na USP e mais uma ONG chamada Prato Verde Sustentável, que pensa nessas hortas urbanas pela cidade de São Paulo. A gente apresentou um projeto pra um... é como se fosse um grupo internacional que chama Thought for Food. É esse comitê, esse grupo que eles estão pensando como propor soluções pra alimentar um mundo com dez bilhões de pessoas até 2050. Então essa ideia deles era um projeto, agora era plataforma deles pra 2021, criar iniciativas, projetos que pensassem nisso e nós fomos um dos ganhadores desse programa e foi muito legal, porque tiveram mais de mil projetos inscritos de mais de cento e vinte países, mais de cinco mil pessoas inscritas e nós fomos um dos ganhadores. Então pra gente foi um motivo de muito orgulho.
P/1 – E, pelo que eu entendi, essa primeira contratação foi meio sem querer, assim: calhou de ser a Domingas... Domingas?
R – Domingas.
P/1 – Quando vocês falaram: "Tá, então acho que agora a gente vai contratar mais mulheres e vão ser mulheres imigrantes"? Como foi esse clique?
R – Foi a partir da experiência com a Domingas, porque foi uma experiência incrível, foi maravilhoso, porque a gente já estava contratando pessoas naquele momento, só que a gente contratava e a pessoa ficava e dava um monte de problema, a gente contratou em vários perfis: pessoas conhecidas, pessoas desconhecidas que tinham experiência, pessoas que eram recém-formadas. A gente contratou várias e o que deu certo pra gente foram as imigrantes. Quando a gente contratou a Domingas, a gente falou: “Não acredito!" E foi a partir daí. Nossas funcionárias, hoje, a maioria são imigrantes. E a gente tem até uma parceria, a gente está agora ocupando um espaço que chama Casa da Luz... não. Ai meu Deus, fugiu. Casa na Luz, que é essa casa, que é um projeto social da Igreja Metodista. A gente não tem uma relação, nenhuma relação com a Igreja Metodista, mas eles fazem esse projeto social que é a Casa na Luz e eles atendem mulheres imigrantes capacitando pra essa questão gastronômica. Então a ideia era que a gente montasse a cozinha pra eles, compartilhasse essa cozinha, porque elas treinam lá na cozinha e depois elas trabalham nos nossos eventos.
P/1 – E como é essa experiência de poder trocar, desde vivências, até desafios, dificuldades e receitas com essas mulheres, com culturas e costumes tão diferentes, muitas vezes?
R – É maravilhoso, é maravilhoso. Eu sempre falo que, pra mim, é muito engraçado: eu percebo que muitas delas, agora não necessariamente é esse perfil, mas eu via antes, no começo, que elas chegavam muito temerosas, elas sempre acabam chegando muito temerosas, mas do começo também a gente contratava muito mulheres que eram recém chegadas no Brasil, então chegavam muito temerosas, não sabiam como que era, e toda vez que eu percebia que elas começavam, estavam no ponto, elas começavam a me questionar e duvidar das coisas que eu falava, aí eu falava: "Agora elas estão, agora está pronta". Porque é muito legal, porque a nossa ideia é ter esse ambiente, esse espaço seguro que a gente possa trocar e trocar não sou eu falando e você obedecer e fazer o que eu quero, e sim a gente ir trocando. Então eu falo o que eu acho, como que tem que ser e você fala pra mim que não concorda, que acha que tem que ser de outro jeito e a gente tem esse ambiente de troca e compartilhamento. E eu acho, eu percebo sempre, quando eu as vejo me desafiando, eu internamente sinto assim: “Ai meu Deus, eu não acredito, é a hora”. É isso, eu acho muito isso. E a gente até sabe que a Free Soul muitas vezes não vai ser o lugar que elas vão ficar pra sempre, que vai ser um lugar de passagem, mas que a gente vai fazer parte desse processo de fortalecimento delas e é isso que a gente quer.
P/1 – E tem alguma história marcante com alguma dessas mulheres?
R – Eu acho que pra gente tem muito a história da Gertrudes. A Gertrudes é uma haitiana que, no Haiti, pelo que ela contava, ela amava a cultura brasileira, não sei o que, estudou Português lá, quando o pessoal, os militares brasileiros foram lá pro Haiti, pra ajudar, dar o apoio, suporte, quando aconteceu toda a questão lá do desastre. Aí ela veio pro Brasil, mas ela era enfermeira, mas ela veio pro Brasil e não tinha trabalho e acabou indo trabalhar na Free Soul, na cozinha e tudo mais e aí ela passou esse processo, ficou com a gente acho que mais de um ano e aí depois ela conseguiu uma bolsa de estudos pra fazer, terminar de fazer a faculdade dela em Brasília e aí ela foi pra Brasília, terminou de fazer Enfermagem e hoje ela trabalha na Santa Casa. E pra gente é incrível isso, de fazer parte desse processo e ela sempre dá notícias, entra em contato, fala como que está e pra gente é maravilhoso fazer parte desse processo. Tem ela, mas tem uma outra coisa... tem a Katerin, que a Katerin é um presente de Deus, a Katerin trabalha lá com a gente e a Katerin fala que ela nem sabia, ela achava que ela não sabia cozinhar e, a partir dessa experiência com a Free Soul ela agora vive fazendo coisas na casa dela e o que eu acho mais legal da Katerin é que ela mudou a alimentação na casa dela por ver a gente fazendo as coisas, fazendo o nosso molho de tomate, fazendo os nossos pães, fazendo o nosso bolo e aí ela faz, faz na Free Soul, mas faz na casa dela, pra família dela também e eu acho isso incrível, porque não é só dar saúde pro cliente, mas pra gente também.
P/1 – E, ao longo desses anos… que ano que vocês tiraram do papel mesmo, o projeto?
R – Ele começou em 2016.
P/1 – E, ao longo desses anos, [vocês foram] cada vez mais se profissionalizando, quais foram os maiores desafios que vocês tiveram que enfrentar?
R – Nossa! Olha, eu acho que o maior desafio que a gente teve que enfrentar, em 2019 a gente teve uma oportunidade muito boa, muito boa, que a gente ganhou uma licitação pra administrar dois pontos dentro de uma empresa muito grande e foi quando a gente cresceu muito e aconteceram muitas coisas muito boas, em 2019. Mas pra conseguir tirar esse projeto do papel, a gente foi, teve que bater na porta do Banco pra tentar um empréstimo, um investimento, pra conseguir implantar essas coisas. A gente foi em cinco instituições diferentes, mesmo tendo o projeto, o contrato assinado, a gente não conseguiu um real e eu acho que, nesses momentos, você vê a força... infelizmente essa sociedade que olha pra você como mulher, como negra e te define, e define o que você não pode fazer. E a gente conseguiu fazer, a trancos e barrancos, mas eu sempre falo que a gente conseguiu fazer, mas foi um processo muito prejudicado por não ter conseguido esse valor, que nem era um valor absurdo, inicial, que a gente podia ter tido um retorno, contratado muito mais gente, feito com muito mais tranquilidade, se tivesse conseguido. Então eu acho que, sempre, essa coisa de acesso a crédito e a gente sabe, existem estatísticas, o Sebrae fala, traz esses dados, de quanto é mais difícil acessar crédito mulheres e pessoas negras.
P/1 – E os maiores aprendizados ao longo dessa trajetória?
R – Olha, os aprendizados eu acho, assim, que se eu pudesse dar dica pra alguém, é fortalecer as suas redes, porque empreender é muito sozinho, é um processo muito solitário, que às vezes você tem muita dúvida, você não sabe tudo, não consegue prever todos os problemas e eu acho que, às vezes, saber pedir ajuda, sabe: "Não sei isso, você pode me ajudar? Você sabe?" E eu acho que a gente saber, descobrir e aprender fazendo as coisas em parceria... pra gente, assim, só pra você entender: quando a gente entrou na área de alimentação, eu não era da alimentação, eu era gráfica, minha mãe trabalhava com tecnologia, deu aula durante muito tempo, a gente não conhecia desse mercado. Aí a gente foi até o Sebrae, bateu na porta, apresentou o nosso plano de negócios e contou muito com a ajuda do Sebrae, nesse sentido, e foi muito legal, porque nos dois primeiros anos da empresa a gente descobriu que o Sebrae tinha um grupo setorial chamado... primeiro era Receita de Sucesso, depois era AFL, que era Alimentação Fora do Lar, que era um grupo de empresários, todos da área de alimentação, todos da Zona Norte e a gente entrou pra esse grupo e ali a gente descobriu fornecedores, a gente ganhou tanto, tanto. Só pra vocês entenderem: teve uma época, quando entrou Uber Eats chegou na nossa região, o Uber Eats entrou em contato comigo pra saber se eu não queria fazer parte da plataforma. Me ofereceram condições que eram indecentes. Eu peguei, falei pra eles, achei absurdo tudo, mas falei: "Olha, eu faço parte de um grupo com outras trinta empresas, todos da área de alimentação, todos aqui da Zona Norte. Se eu falar com eles e eles quiserem entrar, vocês dão condições melhores?" "Sim, sim". E aí eu falei, apresentei pro grupo, o grupo achou interessante, nós entramos em... não lembro, acho que foram quinze empresas e eles fizeram condições que eram muito melhores. A gente conseguiu isso com o Uber, uma outra pessoa lá conseguiu fazer uma negociação com PagSeguro, a gente teve uma redução em conjunto, em quase 60% de valor da taxa de cartão de crédito. Então é sempre pensar assim que, às vezes, sozinho você pode ir bem ou até ir longe, mas muito mais, com mais dificuldade. Você tenta fazer as coisas em conjunto, pode ir muito mais longe, consegue compartilhar, dividir, descobrir, aprender. Então eu acho que essa coisa de fortalecimento e pensar em rede é fundamental. Eu faço tudo em rede, tudo eu já vou pensando em parceiros, como eu consigo conectar e fazer coisas em conjunto.
P/1 – E, Maíra, enquanto você estava pensando, você e sua mãe pensando em como desenvolver a Free Soul, como estava você, internamente? Você estava se sentindo realizada? Foi uma questão você mudar de área? Como você estava?
R – Pra mim... ai, que engraçado, ninguém nunca me perguntou isso (risos). Mas, pra mim, olha, foi uma questão mudar de área, porque o que acontece? Eu vim, vou fazer quarenta anos e eu praticamente casei duas vezes e principalmente nesse segundo casamento, quando eu fui pra Itália e mudei e fiz muitas coisas, quando não deu certo, eu estava muito com essa sensação, sabe, de que eu queria fazer tudo diferente, queria tentar alguma coisa muito nova e eu acho que, de uma certa forma, eu penso, pra mim esse processo de voltar pro Brasil foi um processo muito difícil, não porque eu não quisesse, porque eu queria. Nunca quis, nem queria, na verdade, sair do Brasil, acabei saindo porque eu achei que era necessário, era importante naquele momento, mas voltar foi, pra mim, muito difícil, porque tinha a ver com uma série de questões que eu estava vivendo: tinha essa questão do término, tinham muitas questões e, pra mim, eu sempre falo que a Free Soul, de uma certa forma, me resgatou enquanto pessoa. Enquanto eu ajudava essas pessoas, eu fui me ajudando, elas foram me ajudando e me fortalecendo enquanto mulher, enquanto, sabe, o meu papel na sociedade, enquanto pessoa. E eu acho que... é engraçado que eu acho que elas fizeram mais por mim do que eu por elas, porque eu acho que eu me... sabe os pedaços que eu deixei ao longo do caminho? Eu consegui completar de uma forma que agora eu sou uma coisa muito mais interessante do que eu era. Foi muito assim, pra mim.
P/1 – E como é o seu dia a dia hoje?
R – Ah, eu nunca trabalhei tanto na minha vida (risos), nunca trabalhei tanto. Eu acho assim, que foi muito engraçado: eu já passei por várias fases, de uma fase de trabalhar de uma forma muito insana e de não cuidar de mim e de, de repente me perceber não comendo direito, não me alimentando, não fazendo nada. E hoje em dia eu tento achar um equilíbrio. Entender que, se eu, Maíra, não tô bem, eu não consigo dar conta e ajudar a Katerin, a Janete, a Macinda, a Ariana, a Kyrage, as outras pessoas que compõe e me ajudam nesse processo. Então eu tento sempre, penso aqui na minha água e eu tô tentando sempre beber água, fazer atividade física. Agora... teve uma época que eu fiz boxe, agora eu tô fazendo pilates. Então sempre tentar estar em dia, achar coisas que sejam boas e que me façam bem e que eu consiga encontrar um pouco de cuidar da minha saúde mental, cuidar do meu físico, então de me alimentar e fazer atividade física e balancear, não me perder. Quando eu percebo que eu tô trabalhando o tempo todo, dar uma diminuída, saber que eu preciso fazer outras coisas, assistir TV, olhar pro teto, sair, andar, pra poder ser criativa, pra poder buscar soluções, pra fazer coisas, senão eu não tenho energia.
P/1 – E hoje, quais são as atividades que você mais gosta de fazer, assim, nessa rotina?
R – Ai, eu gosto, eu gosto bastante... eu, a pandemia foi super desafiadora, não precisa nem dizer todas as questões, mas uma coisa que eu acho que ela trouxe de bom pra mim foi a possibilidade de fazer cursos e treinamentos, eu fiz muito curso e aí consegui trocar e conhecer muita gente, eu gosto bastante quando eu tenho a possibilidade de fazer isso. Gosto muito disso e gosto muito de pensar em projetos novos. Eu acho que agora a gente está num momento que a Free Soul tem andado mais sozinha, consegue acontecer. Hoje as meninas estão lá trabalhando, eu tô aqui fazendo essa entrevista com você. Então, isso, pra mim, é uma coisa que me dá muita satisfação, de saber que elas conseguem, que dá pra fazer isso, que eu tenho um pouco de tempo pra mim. Então, esses tempos, às vezes, que eu tenho pra fazer outras coisas, é uma coisa que me dá muita satisfação e eu gosto muito de estar em contato com o cliente, sabe, de saber o que ele quer, de ouvir o que ele tem pra dizer, que eu acho que traz muito insight pra pensar em produtos novos e coisas novas pra Free Soul.
P/1 – E você faz outras atividades? Você é embaixadora do “Ela faz História”, né? Como que foi isso, assim? Como surgiu essa história, essa ideia?
R – Nossa! Eu acho muito engraçado que parte das satisfações pessoais que eu tenho, esses prêmios todos que eu ganhei, porque eu fico pensando que são cinco anos, eu passei quinze anos trabalhando na área gráfica, são cinco anos que eu trabalho e empreendo e ter todos esses prêmios, pra mim, é muita, muita satisfação. Mas esse processo, na verdade, a gente começou a fazer esse trabalho todo com Facebook, de uso da ferramenta e quando o Facebook, em 2019, convidou, me convidou pra ser membro fundador da Rede de Líderes, pra mim foi uma satisfação muito grande porque, sabe, um reconhecimento, uma empresa muito grande, que eles estavam procurando pequenas empresas que fossem exemplos positivos do uso da ferramenta. Então eu achei isso muito legal, da Free Soul ter sido convidada e, a partir desse convite que aí surgiu o “Ela faz Histórias”. Eu acabei de fazer um projeto, participar de um projeto, o Facebook lançou uma série de programas chamado “Boost My Business”, que é o Impulsione com o Facebook. Eles pegaram, convidaram a Preta Gil e gravaram o uso de ferramentas com algumas empresas e eu, além de ser uma das histórias, eu sou a história que dá, que inaugura o programa. Então pra mim foi muito legal. Eu acho assim, que às vezes eu me sinto muito insegura: "Ai meu Deus, será que eu tô fazendo certo? Será que eu tô no caminho?" E essas coisas, de uma certa forma, sabe, vai validar aquilo que eu faço, então pra mim é fantástico.
P/1 – E a pandemia, como afetou os negócios e até questões pessoais também?
R – Nossa! A pandemia tem sido... olha, foi, principalmente no ano passado, muito difícil, porque primeiro que a Free Soul veio dessa coisa. Eu falei de ter participado desse processo com o Mercado Livre e a gente estava pensando, vindo nessa coisa de crescer, querer crescer, querer crescer e pensar numa forma de escalar o negócio e de estar em outros espaços e tinha projetado, feito parcerias, tinha feito um projeto bem grande e que, quando era pra sair do papel, em maio de 2020 e com a pandemia, precisava, o projeto contava com que as empresas fossem ainda empresa e as pessoas estivessem indo aos seus escritórios. E aí não existindo esse ambiente mais, o projeto foi todo por água abaixo. Então primeiro desapegar de uma coisa que você gastou tanto tempo pensando e entender que aquela realidade não existe mais e se conformar, então foi difícil. Depois a gente estava mudando de espaço. A gente, em fevereiro de 2020, mudou pra um espaço novo e ia fazer uma reforma que ia durar quinze dias e ia começar em março e essa reforma de quinze dias durou quatro meses (risos). Então a gente ficou quatro meses parado. E pensar o que fazer com as funcionárias, com todo mundo nesses quatro meses. Então foi muito difícil (risos). E aí tive que pensar em formas, fiz pesquisa com cliente e eu acho que eu usei muito de uma coisa que eu acho que empreendedor, empresário precisa ser resiliente, tem que trabalhar, saber ser resiliente e nem sempre é fácil ser resiliente. Então eu sei que foi isso. Para gente foi muito complicado e a gente estava trabalhando até ali num formato de eventos, que a gente fazia eventos pra cem a trezentas pessoas e aí a gente se viu, se deparou com uma realidade de eventos pra dez, vinte e aí a gente teve que se reformular e entender como atender nesse novo cenário e eu acho que a gente foi construindo e uma coisa que eu percebi nesse processo de ouvir cada vez mais as minhas funcionárias, as sugestões que elas tinham, as coisas que elas achavam que podiam ser interessantes e a gente foi fazendo muito em conjunto, sabe, a muitas mãos e eu comecei a entender que eu, graças a Deus, não precisava trazer todas as soluções e que a gente podia pensar em conjunto e isso tirou um certo peso de mim, porque às vezes eu tinha dia que eu não sabia nem a pergunta, quanto mais a resposta (risos). E aí saber que eu podia contar com elas também, pra pensar junto. E foi maravilhoso, assim. Está sendo difícil ainda, porque a gente não voltou nem ao patamar que a gente estava em 2019, mas eu acho que a gente está sobrevivendo. Já é uma vantagem, né?
P/1 – E pensando no papel da culinária na sua vida, que acaba estando presente desde a sua infância, desde as suas avós, como você pensa hoje, assim? Você não imaginava estar trabalhando com isso, mas como você se sente hoje em dia, podendo oferecer alimento com uma ótima qualidade, proporcionar encontros, alimentação? O ato de comer também representa encontros de pessoas, de famílias. Como você pensa isso? Você já parou pra pensar, assim?
R – Eu penso muito nessa questão do nosso papel social, eu penso sempre como que... o que é Maíra? Ou quem somos? O que a gente faz? Qual é o nosso papel dentro da sociedade? E eu penso sempre que... eu acredito muito numa transformação social, eu quero uma sociedade mais igualitária, onde mulheres ganhem os mesmos salários do que homens, que elas não precisem trabalhar tanto tempo a mais, numa sociedade que seja muito mais justa. E eu fico pensando que é muito engraçado, que hoje eu penso que o alimento, de uma certa forma, me permite participar e usar isso, o alimento, como um mecanismo de transformação social. Até porque eu acredito muito, eu penso, sou uma ativista contra o nutricídio, que o nutricídio é você pensar em morte de pessoas sistematizada, de uma forma sistemática, por conta da alimentação. Então é você convencer uma pessoa com pouco acesso, que não tem muito recurso, que [acha que] comer alimentos que sejam ultra processados vão ser melhores pra ela e aí eu venho: "Não, você tem que pensar que, pra você conseguir ter saúde, você tem que se alimentar melhor, então pensar em alimento de verdade: fruta, verdura, coisas que sejam de verdade. Então eu acho que é óbvio que o alimento traz essa sensação de bem-estar e do conforto e eu penso muito no comfort food, nesse alimento que te abraça, mas eu também penso no alimento como uma questão social, de que você também tem direito a uma alimentação de qualidade, que você precisa disso pra poder evoluir, crescer, estudar. Pra gente construir um país melhor, as pessoas têm que ter acesso ao mínimo, que é uma alimentação de qualidade. E eu acho que a gente pensa muito nessa questão de democratizar a alimentação, então trazer o acesso, trazer informação. Então, lá nos nossos canais Instagram, Facebook, no LinkedIn, falo muito sobre essa questão do acesso à alimentação. E pensar, desconstruir de que ultra processados ou alimentos lotados, cheios de gordura trans ou açúcar, sódio, são bons pra você e que vão te trazer mais saúde. Não.
P/1 – E o que significa, pra você, ter um negócio que valoriza questões de gênero, que fala sobre isso, sobre raça, sobre imigração, sobre meio ambiente, sobre alimentação saudável, sem desperdício, inclusão? Isso também vai além de um negócio, é uma posição. O que isso significa pra você?
R – Pra mim, é a única forma de fazer. Eu não conseguiria ver, fazer, empreender ou fazer as coisas de uma outra forma. É muito engraçado que eu descobri, depois de muito tempo que eu já estava empreendendo, que eu era uma empreendedora social. Eu nem sabia o que era isso. Não sabia nada de economia circular, ou de economia criativa ou de nada desses termos lindos, eu só achava que as coisas tinham que ser feitas desse jeito e eu fazia do jeito que eu acreditava que era pra ser feito. Só isso, simples assim.
P/1 – E o que é ser uma mulher negra empreendedora?
R – Olha, é desafiador, mas o que eu acho muito legal é toda vez que eu vejo outras pessoas se inspirando na minha história, sabe? Porque eu percebo que, durante muito tempo, os exemplos positivos que eu tinha pra mim, de mulheres, de mulheres negras, eram dentro da minha própria família e era muito ruim você não ver, não ter a possibilidade de ver na TV, ou ter outros exemplos, porque limita muito o seu crescimento, as suas possibilidades. Se você não pode nem sonhar, porque você não tem referência, fica muito difícil, limita. Então, eu acho, agora, eu percebo, primeiro que a partir do momento que eu comecei a empreender, eu comecei a descobrir muitas mulheres muito incríveis, que eu desconhecia. Então, pra mim, eu nunca vou deixar de falar da Adriana Barbosa, que pra mim é um exemplo, a idealizadora, a criadora da Feira Preta. Eu a acho um ser humano incrível, uma pessoa maravilhosa e um super exemplo pra mim e eu acho maravilhoso que nós possamos ter mais exemplos, mais exemplos, pra outras meninas e que elas possam sonhar, sabe?
P/1 – E o que a Free Soul Food representa na sua história?
R – Ela, a Free Soul Food, me salvou (risos). Eu acho que ela salvou de um peso, de um momento que eu estava me sentindo muito perdida, que eu não sabia exatamente o que fazer e ela me salvou. É isso que eu acho, ela me salvou.
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos, hoje em dia?
R – Ah, eu quero ser muito grande, quero que a Free Soul esteja em muitos lugares e eu quero que a gente continue pensando e se fortalecendo, pensando a Free Soul em muitos lugares, fortalecendo uma rede feminina, gerando emprego e, sabe, muitas mulheres pensando, criando e fazendo juntas. É isso.
P/1 – A gente está encaminhando pro fim, mas eu gostaria de saber se você quer acrescentar alguma coisa, falar de algum episódio que eu não tenha instigado, deixar alguma mensagem.
R – Ai, eu não sei, eu acho que eu falei tanto, né? (risos). Eu nem sei se era mais ou menos isso que você esperava. Ai meu Deus.
P/1 – Muito além.
R – Ah, que bom! (risos). Eu fico pensando assim: se eu pudesse dar uma mensagem, eu fico pensando que, às vezes, ser mulher, ser uma mulher negra é muito desafiador. Às vezes a gente se sente sozinha, às vezes a gente sente muito o mundo pesando nas costas, mas que a gente possa se fortalecer. E eu sempre penso, toda vez que pra mim está difícil, eu lembro muito dessa frase, dessa... eu não vou citar a frase exatamente, que a... eu acho que é a Angela... puts grila, agora fugiu, eu ia pesquisar no meu celular, mas meu celular está parado ali, eu esqueci agora, porque é uma frase, basicamente a ideia... agora eu esqueci a autora, o nome da autora, eu sei que é uma escritora super famosa, americana. É que eu tô com o não sei o que Angelus... eu esqueci agora, mas a frase, de qualquer jeito, é assim: "Nós hoje somos o sonho dos nossos antepassados". Então quando a gente pensa, toda vez, no povo negro que foi escravizado, eles sonhavam com uma Maíra empreendendo, com uma Adriana Barbosa fazendo as coisas, com todas essas pessoas que estão fazendo, com as coisas que a gente faz hoje. Então toda vez que eu penso que está difícil, que não é fácil, mas eu lembro que teve muita gente antes que construiu essa estrada por onde eu percorro hoje. E aí eu acho que não que faça ficar fácil, mas fortalece e dá energia pra gente seguir adiante, porque eu acredito que as gerações que virão vão fazer coisas ainda mais incríveis e eu tô criando, pavimentando esse percurso pra elas também. Então eu acho que é isso.
P/1 – E como foi, pra você, ter participado, ter relembrado um pouco da sua história, ter dividido com a gente hoje?
R – Ai, eu tô... eu adorei o processo, eu adorei o processo todo porque... de conseguir, de buscar essas fotos, de conversar com as pessoas pra poder relembrar e tudo mais. E, ai, é gostoso pensar em tudo o que já aconteceu, que às vezes eu fico pensando que eu acho que eu fiz muita coisa, muita coisa e às vezes eu não tenho nem essa percepção, de tudo o que eu fiz.
P/1 – Maíra, que delícia de tarde! Muito obrigada, foi muito gostoso, obrigada mesmo por ter topado participar e, quando estiver tudo pronto, a gente te manda, acho que vai ser muito especial.Recolher