Projeto Conte Sua História
Depoimento de Maria Luísa Alves de Oliveira
Entrevistada por Carol Margiotte e Rafaela Russi
São Paulo, 18/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV 740 _ Maria Luísa Alves de Oliveira
Transcrito por Liliane Custodio
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Maria Luísa Alves de Oliveira
Entrevistada por Carol Margiotte e Rafaela Russi
São Paulo, 18/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV 740 _ Maria Luísa Alves de Oliveira
Transcrito por Liliane Custodio
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Dona Luísa, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje. E para começar, eu quero que a senhora fale seu nome completo.
R – Maria Luísa Alves de Oliveira.
P/1 – O local e a data do nascimento da senhora.
R – Dia dez de dezembro de 1937.
P/1 – Onde a senhora nasceu?
R – Em Capivari, que agora é Vila Consolação.
P/1 – Minas Gerais, não é?
R – Minas Gerais.
P/1 – E a senhora sabe por que os seus pais lhe deram esse nome de Maria Luísa?
R – Do quê?
P/1 – Você sabe por que os pais da senhora deram-lhe esse nome de Maria Luísa?
R – Não sei. Acho que gostaram. Eu tinha muita irmã - somos quatorze - e dez mulheres, tudo encarreiradinha, uma atrás da outra. Foi tanto nome que puseram, chegou no meu, Maria Luísa. Não sei por que.
P/1 – E a senhora sabe o nome de todos os irmãos?
R – Sei quase todos.
P/1 – Tente lembrar para a gente então. Fale para a gente.
R – A primeira é Maria Firmina; o segundo é João Lopes de Souza; depois é José Lopes de Souza; Sebastiana Lopes de Souza; Virgínia Lopes de Souza; Messias Lopes de Souza; Catarina Lopes de Souza; Adalgiza Lopes de Souza; depois eu, Maria Luísa, que era Lopes de Souza e que agora mudou; depois, Maria José Lopes de Souza; e a caçula é Francinete Lopes de Souza. Nome de todos eles. Acho que é só. Já morreu quase tudo. Desse tanto, só temos três. Morreu tudo, só ficaram três. Ficou a Maria Luísa, Adalgiza e Francinete - a Franci.
P/1 – E como era para nascer naquela época?
R – Ah, nascia em casa. Era lugar muito pobre, muito tempo atrás, acho que nascia tudo em casa, na mão de curiosa - parteira curiosa.
P/1 – Os seus pais, ou os seus irmãos, lhe contaram como foi o dia do nascimento da senhora?
R – Não lembro se contou, ou não.
P/1 – Mas a senhora viu o nascimento dos outros irmãos, os mais novos?
R – Não. Não lembro, porque faz muito tempo. Eles já estão todos velhos (risos). Já está tudo velho, lembro muito pouco, sabe, das mais novas. Porque dos mais velhos não lembro não. Tudo velho já, de cem anos para cima.
P/1 – E os nomes dos seus pais?
R – Bom, eu só tenho um pai, que é o pai verdadeiro - era de outra família. Ele tinha outra família e me arrumou fora da casa dele. Então, o pai verdadeiro se chama Ramos Carneiro, e o pai que adotou é Firmino Lopes de Souza, o que criou. Tenho dois pais, mas nunca tive nenhum, porque eles largaram. O pai verdadeiro tinha outra família, o pai que adotou foi embora, deixou a mãe com todos os filhos. E nunca tive nenhum pai, fui criado só com a mãe, com os irmãos. E assim foi.
P/1 – E o nome da mãe da senhora?
R – É Zulmira Caetano de Melo. Que não eram casados, o nome dela era o nome de solteira. Zulmira Caetano de Melo.
P/1 – E como a senhora ficou sabendo do pai verdadeiro, do pai adotivo? Como que...
R – É porque ela contava. A gente já, desde pequeno, ele passava na rua, ela falava: “Olha lá, aquele é seu pai”. Aí a gente via, olhava assim, via que era o pai. Passava outro dia: “Olha lá, seu pai está passando”. Vinha o pai das outras irmãs, ela falava: “Olha lá, aquele é pai da Catarina, pai do Messias”. Que era o pai dos irmãos mais velhos. E assim eu fiquei sabendo. Aí, ela foi embora de Capivari, foi embora para Sorocabana, levou os filhos. Aqueles mais velhos foram se casando e ela foi criando. Tudo nova, aquele bando de menina, de moça. Aparecia casamento, ela falava: “Vou fazer casar, porque o que eu vou ficar fazendo com esse bando de mulher dentro de casa? A troco do quê?”. Não tinha pai, trabalhava muito, vai aparecendo casamento, vai casando, vai indo embora. E assim foi casando tudo. Casaram-se novas as meninas.
P/1 – Mas eu queria que a senhora falasse sobre a sua mãe. O que ela fazia? Como ela era?
R – Era uma pessoa muito boa, cuidava bem das filhas e trabalhava de costurar. Era parteira, pegava aquelas crianças. Parteira curiosa, de muitos anos atrás. E assim ia criando. E as meninas iam crescendo, iam ajudando a trabalhar. Trabalhando para viver, porque vida de pobre... E assim foi.
P/1 – E a senhora chegou a conhecer os seus avós?
R – Só a avó materna eu conheci. Porque já estava bem velha, eu a conheci. Mas o avô, os outros, eu não conheci, já tinha morrido tudo, porque já eram velhos. E eu já era das mais novas daquele bando de filho, já era das mais novas, cresci pouco tempo com a avó. Chamava-se avó... A gente falava avó Barba. Ela se chamava Bárbara. Cresci pouco tempo e a gente foi embora para longe, para Sorocabana, não vi mais. Ela morreu lá para onde ela morava, a gente não viu mais.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse dessa primeira cidade da senhora, onde a senhora passou a infância. Consolação que se chama?
R – É. Agora é Consolação.
P/1 – Antes era?
R – Era Capivari.
P/1 – Capivari.
R – Antiga Capivari.
P/1 – Como era esse lugar em que a senhora morava?
R – Era uma vila pequena, não era muita gente. Uma vila pequena, uma casinha pequena, pobre. A gente vivia ali. Moramos lá até quando eu tinha onze anos. Com onze anos a mãe foi embora e levou as filhas embora para Sorocabana, para adiante de Presidente Prudente. Lá que acabou de criar. Trabalhava na roça, foi trabalhando. E me casei muito nova, moramos um tempo lá, depois viemos embora para São Paulo, vim para cá e aqui estou até hoje.
P/1 – Eu posso ainda falar dessa primeira casa da senhora?
R – Hã?
P/1 – Posso ainda falar da primeira casa da senhora, lá em Consolação? Posso falar sobre esse momento ainda?
R – Pode. Essa casa, depois que a gente foi embora, fomos embora com onze anos de idade, a gente foi de Capivari para Sorocabana. Passou tanto tempo, eu tinha vontade de ir lá, sabe? Eu lembro quando eu era criança, tinha saudade do lugar. Quando foi agora, esses dois meses atrás, a minha menina levou a gente lá, fui lá visitar. Vi a mesma casa em que a gente morou, aquela casinha velha, só que eles descobriram a casa, puseram as telhas lá de um lado, e a casa está lá descoberta. Eu fui lá, falei: “Ah, ali que é a minha casa, onde a gente morava quando era criança. Era ali”. Olhamos a casa, andamos na rua, fomos à casa da minha avó, que a casa dela era a casa grande da cidade pequena. Era a pessoa mais rica - a minha avó, meu pai, era família de gente rica. O casarão dela ainda estava lá, do mesmo jeito, mesmo jeitinho. A gente foi, passou um dia inteiro lá naquela casa, almoçou, passeou. Fomos à casa de um irmão, que era da família do pai. Já morreram também quase todos, só ficaram três da minha família e quatro da dela. Já morreu tudo. Fomos à casa dela, passeamos lá, estivemos no casarão da minha avó, o dia inteiro. À tarde, viemos embora para São Paulo outra vez. Fiquei contente, que só saí de lá com onze anos.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse como era essa casa lá em Capivari, desde a hora de entrar. Como era essa casa desde a porta de entrada?
R – Essa casa era uma casa de três cômodos, tinha uma areazinha assim que a gente entrava para a sala, tinha um quarto, tinha mais um quarto e uma cozinhazinha, bem pequenininha. Casa pequena.
P/1 – E como era a hora de dormir?
R – Dormia quatro meninas numa cama, três na outra, dormia com a mãe, que a mãe não tinha... Sozinha, não tinha marido, dormia umas duas com a mãe. Dormia assim de punhado, tudo numa cama. Três numa cama, quatro na outra, aquelas meninas, turma de menina.
P/1 – E como era a cama?
R – Umas camas velhas, tudo antiga, aqueles colchões cheios de palha, palha de milho, enchia aqueles colchões, dormia ali.
P/1 – E na hora de comer, dona Luísa?
R – Na hora de comer, ela tinha uma panelona de ferro desse tamanho e fogão à lenha. Ela punha fogo naquele fogão e fazia aquela comida naquela panelona de ferro assim e servia para cada menina um pratinho de comida. E assim vivia. Ia pescar. Ela falava: “Vocês estão com fome? Vamos para o rio. Vamos pescar”. Tinha rio assim na beira da cidade, ela punha três, quatro meninas na água para ir andando e tocando o peixe, outra aparando com a peneira. O peixe chegava, que ela levantava... Cada peixe desse tamanho. Pegava aqueles peixes, levava para casa para comer. A gente ia dentro da água assim, pisando e tocando os peixes, tocando, para chegar à peneira. Fazia aqueles peixes, comia, e assim ia a vida.
P/1 – Vocês tinham mais alguma outra tarefa para fazer em casa?
R – Não. Ia para a escola. As crianças iam para a escola, ela costurava e fazia ali o servicinho dela, a gente não fazia nada, porque era tudo criança.
P/1 – Não tinha roça?
R – Ia para a roça, trabalhar na roça dos outros. Ela ia trabalhar, assim, apanhar café nos pés de café, puxava assim com a mão, punha na peneira. Ela já ensinava a gente a pegar, a abanar o café. Abanava, enchia o saco, para chegar de tarde, ganhar aquele dinheiro de trabalhar na roça. E assim ia. Levava as meninas todas para trabalhar junto com ela. Trabalhava, chegava à casa, fazia a comidinha e ia dormir. Ia para a escola... Quando ia para a escola, porque era tudo começo de ano, primeiro ano de escola, a gente estudou até um pouquinho. Aí, fomos embora para longe e era muito difícil ir para a escola. Andava o dia inteiro dentro do mato para chegar lá à vila. Só ia trabalhar na roça, não tinha tempo. Só ia para a escola um pouco, quando não tinha colheita de algodão, de café. Aí a gente juntava assim aquelas quatro, cinco meninas da roça e ia para o meio do mato assim, até chegar à vila lá para ir à escola. Ficava lá o dia inteiro estudando, de tarde vinha embora. Todas a pé, pelo meio do mato. E não tivemos tempo de estudar. Eu não tive estudo.
P/1 – Isso já é depois de Capivari, não é?
R – É. Já depois, quando já fomos para Sorocabana.
P/1 – Eu posso ainda voltar para Capivari?
R – Hã?
P/1 – Posso ainda fazer mais perguntas de Capivari?
R – Pode perguntar.
P/1 – Eu queria saber do que a senhora brincava.
R – Brincava com boneca de milho. A boneca não tem aqueles cabelos bonitos, amarelos? A gente brincava com aquilo lá. Ou então as irmãs mais velhas faziam bonequinha de pano e a gente brincava de boneca de pano, conversava com as outras meninas. Eu não tive infância, que eu não tinha tempo de brincar, eu só trabalhava na roça. Quando fomos para lá, a gente trabalhava já na enxada, de colheita de algodão, de café, plantação. Não tinha tempo de brincar. Pouco brincava.
P/1 – E como foi a mudança para Sorocabana?
R – Só pegou... Ela pegou só as filhas e foi embora. Pegou o trem e foi embora para Sorocabana. A gente embarcou lá perto, praticamente em Taubaté, aqueles lados lá, e fomos descer lá em Presidente Prudente; de lá, fomos para dentro do mato, trabalhar lá no meio do mato.
P/1 – Mas a senhora saber por que vocês foram?
R – Porque o lugar era muito pobre, não tinha recurso. Não tinha recurso para viver lá e ela foi embora para Sorocabana. Lá tinha serviço na roça, muita plantação de algodão, de café, lavoura, e foi para lá, não sei por quê.
P/1 – A senhora se lembra dessa viagem?
R – Lembro.
P/1 – O que a senhora via? Como foi a viagem?
R – Foi boa. Pegava aquela estrada, trem antigo, aquela que soltava fumaça, chegava lá, chegava tudo preto de... (risos). Ele ia jogando aquelas faíscas de fogo, queimava toda a roupa da gente. Chegava lá tudo preto de sujeira. Para ir de Capivari até Presidente Prudente gastava cinco dias de viagem. Cinco dias viajando. Chegava em São Paulo, fazia baldeação, ficava parado lá, depois de lá embarcava para ir para lá, a gente gastava cinco dias para ir. Agora, em um dia você vai. De lá, você vai até Presidente Prudente.
P/1 – E como vocês faziam para dormir, para comer durante a viagem?
R – Ela comprava um prato de comida para duas meninas, aquele bando de menina. Aquelas meninas tudo de onze, doze, treze, quatorze anos, ela comprava um prato de comida para duas. Aquele prato raso, com aquele pouquinho de comida que vem. Que agora é tudo com fartura quando você vai comprar, vai comer, é bastante. Duas comiam naquele prato de comida, só. Pagava e ia embora. Tudo com fome, do jeito que ia, e ia embora. Até chegar lá.
P/1 – E para dormir?
R – Na viagem? Dormia tudo dentro do trem, tudo encostadinha lá. O trem indo e a gente dormindo. E a fumaça vindo e entrando para dentro da gente, queimava toda a roupa, de cinza. Chegava tudo preto de encardido, chegava lá aonde a gente ia.
P/1 – E para passar o tempo, vocês brincavam? O que vocês faziam?
R – Não. Brincava nada. Não tinha nada para brincar. Quando estava viajando, na viagem lá, não brincava, ia tudo sentadinha. Aquele trem duro, cadeira dura, ia tudo sentada ali. Chegava lá, não podia andar, de canseira de andar naquele trem duro. Que agora é tudo fofinho, gostoso (risos).
P/1 – (risos).
R – Gostosinho para andar.
P/1 – E como foi chegar? Como foi chegar lá em Sorocabana?
R – Chegava lá, descia do trem e ia embora para dentro daquelas fazendas afora - chegava lá aonde a gente ia. Lá, arrumava casa para morar, serviço para trabalhar e ficava lá. Ela trabalhando e as meninas junto, trabalhando com a mãe.
P/1 – Mas como era a casa onde vocês foram morar?
R – Casa de pau. Tudo casa velha de pau, coberta de tabuinha. Porque eles faziam telha de tabuinha coberta, aquelas casas bem velhas mesmo, fogão à lenha. Era horrível. Era muito feio o lugar.
P/1 – E como foi para a senhora começar a morar nessa casa? O que a senhora pensava sobre essa mudança?
R – Não pensava nada, que não sabia nada na vida, não entendia nada. Tinha padrasto, ela arrumava uns maridos, o padrasto era ruim que só vendo, a gente morria de medo do padrasto. O padrasto era muito bravo, ruim. Às vezes, brigavam de noite. Uma hora, duas horas da madrugada eles brigavam, nós escutávamos brigando, aquela meninada corria tudo pelo mato adentro, e andando pelo meio do mato, ia dormir lá atrás das toras lá, agachadinha, tudo encolhidinha uma atrás da outra, de medo do padrasto. Quando nada, ia para as outras fazendas, longe, ia tudo andando, correndo pelo meio do mato. Chegava lá, pedia pouso na fazenda. Ela chamava: “Dá um pouso para mim com as meninas”. As outras casas, fazendeiros, deixavam a gente entrar e dormia lá, de medo do padrasto. Dormia até o outro dia, no outro dia voltava de novo para casa. E era aquela vida de sofrimento, de correr à noite.
P/1 – Mas por quê? O que ele fazia?
R – Vai saber por que é. E assim foi. Ela foi fazendo casar bem novas as meninas, aparecendo casamento: “Vai. Vai casar”. Por que vai ficar com esse bando de menina? Casava uma com dezesseis anos, casava a outra com quatorze, quinze anos. Eu me casei com treze anos. Eu já me casei com treze anos. Treze anos eu me casei.
P/1 – Antes de a gente falar do casamento, eu queria que a senhora falasse como era trabalhar nesse novo lugar. Como era... Que a senhora ajudava a sua mãe em casa, na roça. Como era? O que a senhora tinha que fazer?
R – Tinha que levantar cedo e ir para a roça trabalhar. Arrumava serviço das outras fazendas, pagava para ir colher o algodão, para ir colher amendoim, para plantar hortelã, plantar tudo. E as meninas trabalhavam, já iam... Uma ia cavoucando o buraco para por o hortelã e a outra ia chegando a terra atrás. Ou então ia plantar. Plantar feijão, plantar as plantas, uma cavava o buraco, a outra jogava a semente, outra... Trabalhavam todas juntas, as meninas, para ela ganhar um dinheiro. Fim de semana recebia um pagamento para comprar comida para as meninas, comprar pano para fazer vestido, e assim ia.
P/1 – E tinha que ter algum cuidado no trabalho?
R – Do quê?
P/1 – De estar na roça, a senhora tinha que ter algum cuidado com algum bicho, com alguma coisa?
R – Ah, tinha. De bicho tinha. Você ia trabalhando assim, pegando umas touceiras de amendoim para bater, você via aqueles rolos de cobra que estavam debaixo assim, aquelas cobras enormes. Quando a gente levantava, que via, saía correndo. Aí, os outros homens que estavam ali por perto vinham e matavam aquelas cobras enormes. Era sertão mesmo. Era mato, lugar de mato. Bicho tinha. Bastante bicho. Aranha, aquelas aranhas feias, aquelas cobras. Cobra era o que mais tinha, porque era sertão, era bem longe, no mato. A gente corria. Quando via o bicho, a gente corria, os outros vinham, os homens, sempre tinha homem assim por perto trabalhando, eles vinham e matavam, a gente continuava trabalhando.
P/1 – Vocês cantavam durante o trabalho?
R – Se cansava?
P/1 – Vocês cantavam? Tinha alguma música que vocês cantavam enquanto vocês trabalhavam?
R – Ah, os outros cantavam. Eu mesma nunca fui de cantar. Eu nunca gostei de cantar. Nunca cantava, nunca dançava. Nem quando eu estou sozinha dentro de casa, eu não danço e não canto. Nunca. O meu era só trabalhar, fazer serviço, costurar, fazer tricô, fazer crochê, mas cantar, não cantava não. Nunca cantei. As outras meninas cantavam lá, inventavam as modinhas e cantavam. Eu não. Nunca cantei. Dançar, nunca gostei de dançar. Os outros, às vezes estão dentro de casa, estão dançando, dançam, cantam. Eu não. Eu sou diferente dos outros.
P/1 – E como vocês comemoravam o fim da colheita, o fim da roça?
R – Ah, os patrões faziam a festa naquelas... Fazia tulha, onde guardavam os mantimentos. Você já ouviu falar? Que é onde eles guardam os cafés, os milhos que eles colhem, tem aquelas casas bem grandes de palha (? 00:23:05). Faziam a festa e a turma ia para lá. Os que sabiam tocar, tocavam, cantavam; as outras iam lá, dançavam, as meninas. Eu não, não gostava. Ia por ir, porque todos iam, mas chegava lá, ficava apreciando. A festa que tinha era isso. Andava pelo meio do mato, chegava lá, ia à festinha dos caipiras.
P/1 – E dona Luísa, a senhora pensava em querer ser alguma coisa quando crescesse?
R – Ah, a gente pensa muita coisa boa, que quer viver bem na vida, que quer ser coisa, mas vai saber. Pensava. Pensava que um dia a gente ia crescer, ia casar, ir embora para um lugar longe. Sempre pensava nisso.
P/1 – E, dona Luísa, nessa época que a gente chama de adolescência, a gente muda de criança para adolescente e o corpo começa a mudar. A mãe da senhora conversava com a senhora sobre essas mudanças no corpo? Sobre ficar mocinha?
R – Nunca falava nada, não. A gente já sabia que ia ficar mocinha, fazendo uns vestidinhos bonitinhos, umas roupinhas bonitinhas. Não falava.
P/1 – Mas como vocês ficavam sabendo?
R – As outras meninas falavam. As outras meninas, as outras coleguinhas falavam. A mãe quase não comentava. Era muita menina, ela trabalhava muito, quase não tinha tempo para sentar e conversar.
P/1 – E como foi quando a senhora ficou mocinha?
R – Se eu falar para você, eu nunca fui moça. Eu nunca fui mocinha. Fui menina; de menina, eu passei para mulher, porque eu casei. Eu nunca fui moça. Até quando eu casei, eu nunca fui moça. Nenhuma vez eu tive menstruação. Não menstruava, porque era muito nova. Era muito novinha. Eu me casei com treze anos, nem tinha ficado moça. Depois casei, da primeira, segunda menstruação que veio, eu já fiquei grávida do primeiro filho.
P/2 – Nossa.
R – Nunca fui moça.
P/1 – E como foi essa decisão da sua mãe de casar a senhora?
R – A gente morava num rancho, e chovia muito dentro daquele rancho. E aquele bando de menina, dormiam todas no chão... E aquela chuvarada. E estava chovendo muito nessa época. Aí, o meu marido, que agora já morreu, ele passava... O caminho dele era assim, na beira do rancho em que a minha mãe morava. E tinha chovido muito, ela pôs todas as roupas, as coisas para fora, para enxugar. Ele passou, viu, falou assim: “Oh, dona Zulmira, a senhora não quer ir trabalhar para mim? Vai trabalhar para mim, que eu dou serviço para você, você mora lá na minha casa”. Que a casa dele era casona grande, de fazenda, e ele era solteiro - tinha dezoito anos - e morava sozinho. Ele falava: “Vai morar lá com as meninas e você trabalha para mim na roça, com as meninas”. Ela já juntou a mudança e foi, levou a meninada tudo para lá, para morar lá. Ele ficou numa parte da casa e ela, com as meninas, na outra. Ia tudo trabalhar para a roça, trabalhava, eu já era menina assim, mas era trabalhadeira, gostava de criação, gostava de fazer o serviço, enfim. E ele tinha aquele bando de galinha, cabrito, porco, sabe, planta dele. Eu gostava. As angolas amanheciam todas com a perninha encolhida assim, eu ia lá, pegava a cinza quente, passava, enrolava nas perninhas das angolas, dali a pouco estavam todas andando. E ele era noivo com outra moça. Era noivo de aliança. Ele olhava assim, falava: “Essa menina cuida das criações, gosta de trabalhar na roça”. Ia trabalhar, trabalhava mais do que todas as meninas. Catava algodão, abanava café, chegava em casa, ia tratar das galinhas. As galinhas estavam chocando lá, tirava os pintinhos, eu ia lá tirar, por lá. Aí desmanchou o noivado com a noiva e perguntou para mim: “Menina, você não quer se casar comigo?”. Eu falei: “Se a minha mãe deixar, eu caso. Pede para a minha mãe”. Mas brincadeira, pensei, porque era menina. “Ah, é? Se a sua mãe deixar, você se casa comigo?” Correu do serviço, ele foi lá: “Oh, dona Zulmira, me deixa casar com a sua filha, com a Luísa”. “Uai, pergunta para ela. Se ela quiser, pode casar”. Ele voltou lá: “Olha, a sua mãe falou que você pode se casar comigo”. “É? Está bom”. Eu falei: “Caso”. Vendo aquele bando de menina tudo da casa, muda para cá, muda para lá... No outro dia, ele foi à cidade, foi lá, comprou a aliança e trouxe. Desmanchou o casamento com a noiva, com um mês foi à cidade, marcou o casamento e me casei com ele. Casei e vivi bem a vida inteira. Você já pensou? Com treze anos. Com dez meses de casado, nasceu o primeiro filho. Dez meses.
P/1 – Qual o nome do seu esposo?
R – José Alves de Oliveira.
P/1 – E como foi o casamento?
R – Ah, foi bonito. Um casamento bonito, padrinho, convidado, comida. Eles faziam comida lá na roça, faziam aquelas vasilhadas de comida. Fizeram baile, dançaram. Foi bonito. Muito bonito.
P/1 – E vocês foram morar aonde?
R – Ele fez uma casinha lá no fundo da fazenda, a minha mãe ficou naquela casa grande, e fomos morar lá para baixo, perto de um rio, numa casinha pequena lá. E fomos morar lá quando nos casamos.
P/1 – E como foram os primeiros dias de casados? Como foi para a senhora conhecer esse dia a dia de casal?
R – O primeiro dia, os primeiros dias de casados, se falar, ninguém acredita. Eu quando casei, namorava, não pegava na mão. Porque a gente era pobre, tudo, mas não era de pegar na mão, não era de beijar, não. Era ali, ele lá sentado e a gente aqui. Aí casei. Dia do casamento, casou, tudo. Eu tive uma irmã que ela teve uma criança na... Acho que foi bem nos dias do casamento, e foi lá para casa. Eu fiquei oito dias casada, não dormia com o marido não, dormia junto com as minhas irmãs e ele dormia lá no quarto dele. Não era essa de casar e já ir dormir junto. Como agora não, que nem casa, já está tudo dormindo junto. Oito dias, sem mentira. Eu ia dormir com as minhas irmãs, ele dormia lá. Depois que a minha irmã foi embora com aquele neném novinho, que desocupou a minha cama, aí que eu fui dormir com o marido. Você já pensou? Oito dias, sem mentira. Aí que eu fui dormir com o meu marido. Não era essa... Como agora, que vão para hotel, viajam, tudo. Lá não.
P/1 – E como foi esse dia, depois de oito dias que a senhora casou, que foi dormir com ele?
R – Ah, foi bem. A gente se sentiu bem. Fui para o quarto dele. Não era essa de antes já ir dormir com o marido. Nem a gente era acostumado a abraçar, beijar os namorados, não. Elas respeitavam muito. Ela criou aquele bando de menina, mas foi tudo... Ela avisava: “Não é para ficar abraçando o namorado, não é para estar perto de homem”. Porque a gente tinha medo até dos lugares em que morava. Como agora, que tem estuprador, essas “coisaiada” toda. E assim foi bem...
P/1 – E como foi essa vida de casada? Esse comecinho da vida de casada?
R – Bem. Foi bem. Ele era uma pessoa muito boa. E ele era acostumado a morar sozinho, fazia comida direitinho. A gente usava torrar café, ele fazia, ensinava. Matava os frangos. E ele foi ensinando, porque eu era nova, não sabia fazer comida, não sabia muito, então ele ensinava a fazer comida, torrar os cafés. E foi indo. E fui aprendendo o serviço. Quando fui para a minha casa, já fui para casa com quatro empregados. Tinha quatro empregados. Eu tinha treze anos, já tinha quatro empregados que ajudavam na fazenda. Eu tinha que fazer comida, fazer o café para os empregados. Porque eles ajudavam na roça, ajudavam na casa e eu tinha que fazer comida, lavar a louça, ajudar a cuidar dos empregados. E assim foi.
P/1 – E a senhora continuou indo para a casa da sua mãe? Como era essa relação com a sua mãe?
R – Do quê?
R – Depois que a senhora se casou, a senhora continuou frequentando a casa dela?
R – Ia. Frequentava a casa dela. A gente trabalhava o dia inteiro, à noite ia um pouquinho à casa dela. Ou ela vinha passear, as outras irmãs mais novas vinham passear na casa da irmã. E assim ia.
P/1 – Eu me esqueci de perguntar uma coisa sobre o casamento da senhora. Como foi o vestido que a senhora usou?
R – Ah, um padrinho de casamento deu o pano, foi à cidade... Que a gente chama padrinho para o casamento. Ele mandou ir à loja, comprar o pano de seda branco. Ela foi comigo, eu escolhi o pano, levei, eu fiz o vestido de casamento. Aquela máquina assim, sabe? Põe assim e faz assim, manivela. Ela cortou o vestido e me ensinou, e eu costurei aquele vestidão de noiva todo bonito. Usava aquelas combinações por baixo do vestido, costurava. Fiz tudo. Eu que fiz a roupa de casamento, e ficou bonito. E vesti. No dia do casamento, eu estava toda bonita. Um homem que trabalhava aqui em São Paulo, ele ia para lá, levava as coisas para vender, ele levou aquela grinalda bonita, levou o buquê. Porque onde morava não tinha, não tinha nada, era só mato, só apanhava mato. Levou o buquê para mim, levou a coroa de pôr na cabeça, e me vesti de noiva. Ficou bonito, com o vestido que eu fiz, eu com treze anos. Eu mesma sentei lá na máquina, ela cortou o pano e eu costurei o vestido. Um sutiãzinho fiz de pano. Eu peguei e fiz. Eu que fazia tudo. Minha mãe cortava o pano, falava, ensinava, e eu fiz. E ficou bonito. E assim que fez.
P/1 – E como foi descobrir a primeira gravidez?
R – Ah, descobri porque ficava grávida, não tinha médico para ir, porque era sertão, era muito longe. Veio a menstruação uma vez só, duas vezes, depois não veio mais, aí começava a vomitar, ficava enjoada, não podia sentir cheiro de café, cheiro de comida. As outras mulheres falavam: “Ah, está grávida. Vai ver que está grávida”. Quando vi, a barriga foi crescendo. E nunca fui ao médico. Nunca fui, porque era longe, não tinha médico para ir. Morava no meio do mato. No meio do mato. As outras mulheres falavam: “Ah, vai ver que está grávida. Está vomitando, está enjoada”. Aí que descobrimos.
P/1 – E as outras mulheres mandavam a senhora fazer alguma coisa durante a gravidez, ou não fazer alguma coisa durante a gravidez? Qual era a recomendação durante a gravidez?
R – Não mandavam nada. Era uma vizinha lá num lugar, outra noutro, a mãe. Falavam: “Está grávida, tal”. Eu já estava engordando a barriga. Quando foi para nascer o primeiro filho, eu fiquei quatro dias doente, passando mal. Não porque muito nova, engordei muito, aquela baita daquela criança, você já pensou? Treze anos e dez meses. Aquela criança não nascia, não nascia, e não tinha recurso para pegar e levar para um médico para fazer uma cesárea, para tratar. Quase morri para ter o primeiro filho, de ruim. Quatro dias ruim. Não sei nem como...
P/1 – O que a senhora sentia?
R – Mais dor. Tinha dor para ter a criança, a criança grandona, não nascia. Eu era muito magrinha, assim magrinha, pequenininha, e aquela barrigona. Que se fosse aqui, eles corriam para o hospital, já fazia uma cesárea na hora, ficava bem. Aí foi um filho atrás do outro. Sempre atrás do outro. Eu sou mais velha do que o filho mais velho só treze anos, treze anos e dez meses. Tive nove filhos. Quando veio para São Paulo, os outros mais novos, aí ia para o hospital. Já ia para o hospital, já era mais fácil.
P/1 – Mas a senhora teve quantos?
R – Nove.
P/1 – Não, lá no...
R – Lá na roça, três. Nasceram três para lá. Quando foram os outros, já foram aqui em São Paulo. Que de Sorocabana, viemos para São Paulo.
P/1 – E como chama o primeiro filho?
R – José Alves de Oliveira. Até já morreu. Já morreu.
P/1 – E como foi esse começo da maternidade? Como foi esse comecinho de ter o primeiro filho?
R – Como foi para ter?
P/1 – Como foi ter o primeiro filho? Quem ajudava a senhora?
R – A mãe, as outras irmãs mais novas ajudavam. A mãe era a parteira curiosa, foi que nasceu aquele menino, aí ajudava a cuidar, as outras irmãs mais novas
ajudavam. E mesmo assim eu ia para a roça trabalhar, levava a criança junto, punha num caixote e ia trabalhar. Além de cuidar da casa, dos empregados, ainda trabalhava na roça e cuidava da criança. Punha a criança num caixote e ia puxando assim pela roça, pela fila de algodão, colhendo algodão, trabalhando. Na hora de vir embora, eu pegava a criança e vinha embora para casa, vinha fazer janta para os empregados.
P/1 – E o segundo?
R – O segundo também, a mesma coisa. Uma menina. A mesma coisa. Eu trabalhava na roça, as irmãs ajudavam a cuidar, a mãe às vezes ajudava, e trabalhando. O terceiro, a mesma coisa.
P/1 – Mas qual o nome da segunda?
R – A segunda é Maria de Lurdes Alves de Oliveira. Depois o terceiro é Osvaldo Alves de Oliveira, um menino. Que nasceram lá na roça.
P/1 – E como foi essa decisão de se mudar para São Paulo?
R – Que a vida lá era muito difícil, trabalhava muito, e muito ruim: “Ah, vamos embora para São Paulo. Vamos embora para São Paulo”. De lá, viemos embora para cá. Aqui a gente pôde cuidar melhor dos nossos filhos, trabalhar. O marido foi trabalhar, eu ainda trabalhava também, ia para as casas de família fazer limpeza, lavar roupa. E a mãe, as outras, ajudavam a cuidar das crianças. Depois não trabalhei mais.
P/1 – Mas conta para a gente como foi se organizar para vir para São Paulo. O que vocês levaram dessa casa antiga para São Paulo? Organizou a mala, o que vocês levaram de lá para trazer para a viagem?
R – De vir para São Paulo? Só a roupa. Só a mala de roupa, não trazia nada. Só os filhos e as malas de roupa, não tinha nada. Lá, o que tinha lá, ficou tudo para lá, para a fazenda, aquelas camas velhas, aqueles móveis velhos. Ficou tudo. Só pusemos as roupas nas malas, e os filhos. E viemos embora.
P/1 – Dona Luísa, a gente estava falando da vinda da senhora para São Paulo. E eu queria saber quem veio para essa viagem.
R – Quem veio foi meu cunhado. Meu cunhado foi buscar a minha mãe com aquele bando de filho, um cunhado daquelas irmãs mais velhas. Ele tinha os irmãos dele lá em Minas também - morreram o pai e a mãe, ficaram os irmãos, ficaram três irmãos lá em Minas. Ele foi buscar os irmãos dele, pegou minha mãe com as meninas e trouxe embora quando veio de Minas para Sorocabana. Vieram três irmãos dele e a minha mãe com aquele bando de menina, que só tinha menina.
P/1 – Mas da vez que veio para São Paulo, quem veio junto?
R – Veio ele com os três irmãos dele, a mulher e o filho, e a minha mãe com o bando de menina dela, a turma de menina. Vieram os três, veio... Quer ver? Virgínia, Maria, Luísa, França, Maria, vieram cinco da minha mãe, e ele veio com três irmãos dele, do meu cunhado.
P/1 – Como vocês vieram para cá? Do quê?
R – De trem. Pegava o trem. Vinha até um lugar, parece que é Bragança, e depois pegava o trem e ia embora.
P/1 – E como foi a viagem, dessa vez com filho? Da senhora com os seus filhos? Como foi fazer essa viagem?
R – Com filho?
P/1 – Que a senhora já tinha três filhos.
R – Ah, quando viemos de Sorocabana?
R – Isso.
R – Viemos embora. Pegamos o trem lá e as malas e viemos embora para São Paulo. Chegamos aqui, até alugamos casa, lugar, ficamos morando aí com os filhos.
P/1 – E como foi chegar em São Paulo? O que a senhora sentiu quando chegou em São Paulo?
R – A gente estranhou. Quem é do mato, chega aqui, acha diferente, estranho. Já tinha um irmão que morava aqui, viemos para a casa dele, aí fomos arrumar casa para morar. A minha mãe foi morar com as meninas dela numa casa, e meu marido arrumou casa para mim, com os filhos, e para ele. E fomos vivendo.
P/1 – Onde?
R – Em Itaberaba. Já ouviu falar em Itaberaba? Freguesia do Ó, vocês já ouviram falar? Então, tem Freguesia do Ó, Itaberaba e Brasilândia. É entre Brasilândia e Freguesia do Ó. A gente mora lá até agora.
P/1 – E como era esse comecinho? Como era essa casa para a qual vocês foram se mudar?
R – Ah, casa alugada, um cômodo de casa. Só num cômodo. Não tinha fogão, tinha aquelas trempas assim, punha carvão para pegar fogo para fazer comida. Era uma vida muito sofrida, muito triste. E assim que foi até trabalhar e fazer a vida aqui. Era aquela vida. Depois que foi comprar um fogãozinho de querosene, depois que foi comprar um fogão a gás. E assim a vida era difícil. Para criar aqueles filhos, deixava os filhos com a mãe, ia trabalhar, outro dia era ela que ia trabalhar, outra ficava com as crianças, e assim fomos vivendo. Logo ele trabalhou bem, ficou mais bem de vida, ele tinha bar, tinha mercado, trabalhava, já ganhava a vida, comprou casa. E fomos levando a vida.
P/1 – E a senhora chegou a trabalhar?
R – Aqui em São Paulo eu trabalhava. Aqui em São Paulo eu trabalhava um pouco. No começo, logo quando chegamos, eu trabalhava. Trabalhava em casa de família. Ajudava em casa de família - lavar roupa, ajudar a passar roupa, limpar a casa - para ganhar o dia de serviço. Depois que ele melhorou de vida, que ele comprou bar, comprou quitanda, padaria, aí eu não trabalhava, só cuidava dos filhos. Ele trabalhava bem, eu só cuidava da casa.
P/1 – E quais os outros filhos que a senhora teve em São Paulo? Os outros filhos que a senhora teve aqui em São Paulo já.
R – Quantos eu tive aqui?
P/1 – É.
R – Então, eu tenho nove. Aqui nasceram a Vera, Aparecida, Luís, Marisa e Fernanda. Nasceram mais cinco. Cinco, seis, sete, oito, nove. Depois que eu estava aqui, já nasceram mais cinco.
P/1 – E como era para ficar todo mundo junto em casa?
R – Ficava. Tinha o quarto das meninas, dormiam as meninas numa cama, os meninos dormiam em outra cama, e a gente morava ali naquela vida de pobre. Não era fácil, não. Era difícil.
P/1 – Em que momentos a senhora ia visitar a sua mãe?
R – Logo que chegamos aqui em São Paulo, passou pouco tempo a minha mãe morreu. Ficaram só uns irmãos - uns irmãos mais velhos. Logo que a gente mudou, pouco tempo deu AVC nela, ela morreu. Ficaram só os irmãos mais velhos, aquele bando de irmão. Aos poucos, foi morrendo um por um. Os irmãos foram morrendo todos, ficamos só três.
P/1 – E em que momentos que a família toda se reunia?
R – Quando tinha um casamento de um irmão, aí reunia toda a família. Quando casava uma menina, quando fazia uma festinha de um aniversário, aí reunia toda a família.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse de alguma das casas em que a senhora chegou a trabalhar.
R – Eu trabalhei na rua Turiassu e na rua Traipu, ali nas Perdizes. Ali que eu trabalhava. Uma patroa chamava dona Clélia, que acho que nem existe mais, e na outra casa, a patroa chamava Inês. Eu fazia o dia de serviço numa casa, outro dia eu ia à outra casa trabalhar. E eram muito boas as patroas, ajudavam muito a gente. Quando a gente logo chegou aqui em São Paulo, trabalhava e elas sempre eram muito boas para a gente.
P/1 – E a senhora chegou a fazer alguma amizade na rua da senhora, no bairro da senhora?
R – Fazia amizade com os vizinhos. Os vizinhos, onde a gente morava, eram muito bons. Morei quase cinquenta anos só numa rua, aí era conhecida dos vizinhos, todo mundo, aquelas crianças que iam nascendo já eram conhecidas da gente. E era muito bom onde eu morava. Morei bastante tempo numa rua, e faz três anos que mudei para outra rua, para outra casa. Mudamos só eu e uma filha velhona, a gente mora sozinha numa casa agora. Morei muito tempo. Os vizinhos também são muito bons. Muito bem.
P/1 – O que a senhora fazia para se divertir nessa época ainda? Ainda quando tinha os filhos pequenos.
R – Não tinha nada, só via televisão. Só ver televisão. Sempre tive televisão, só via televisão para divertir. Não tem divertimento nenhum. Porque aqui antes, muitos anos atrás, ainda eles faziam um bailinho, dançavam, as moças, as pessoas dançavam. Mas depois, com o tempo, não pôde mais, porque eles vão dançar, fazer uma brincadeira, já aparece gente para arrumar briga, já sai todo mundo correndo, então agora não tem mais. Agora só televisão. Vê televisão, ou então passeia. Vai para chácara, vai para os passeios. Para divertir assim, não faz mais nada. Só quando faz aniversário. Os filhos fazem aniversário, a gente faz aniversário, vem a família, vem tudo, faz um bolo e conversa, pronto, não tem mais nada.
P/1 – E como foi a decisão do seu esposo de abrir comércio?
R – Porque acho que dava mais negócio para ele, trabalhava, ganhava mais. Ele trabalhava de comércio e ganhava o dinheirinho dele melhor.
P/1 – O que ele tinha?
R – Tinha empório. Sabe aquele empório? Quitanda, quitandinha, onde vendia frutas, as coisas dele. E assim foi. Trabalhou um tempo, depois largou tudo, foi crescendo, mercado grande, as coisas todas grandes, aí já o que era menor já não dava mais. Aí ele largou mão. Deixou, foi trabalhar numa firma.
Você se lembra da Santa Marina, que tinha a Santa Marina? Fábrica de vidro. Trabalhou um tempo, já logo depois ficou doente logo, morreu. Ele morreu novo.
P/1 – O que aconteceu com ele?
R – Acho que deu problema de diabetes, no estômago. Ele não gostava muito de ir ao médico, foi ficando doente, ficando doente, acho que deu um problema nele lá, morreu. Levantou da cama, caiu morto. Morreu.
P/1 – E a senhora?
R – Fiquei com os filhos, com o resto dos filhos, todos pequenos. Foram casando os meninos, os mais velhos foram casando, fiquei com a Fernanda e mais dois - uma moça mais velhona, a Fernanda e um mais velho que ela. Logo ela se casou também, fiquei...
P/1 – Mas, dona Luísa, como foi esse dia em que a senhora acordou e o “seu” José se levantou e caiu?
R – Levantou... Ele cuidava bem de mim e eu também cuidava bem dele. Ele levantava da cama, ele ia tomar banho, eu já dava o chinelo, já dava a toalha, já dava a roupa. Ele sentava lá, eu já corria, dava o chinelo para ele, ele calçava. Cuidava dele muito bem. De noite, se ele levantasse da cama, fosse ao banheiro, eu levantava atrás e ia atrás dele, acompanhava, passava o rodo no banheiro, ia para lá. Ele já estava doente, levantou de noite, sabe, levantou da cama e foi para o banheiro. Aí eu levantei e fui atrás. Chegou lá no banheiro, ele abriu a boca para vomitar, vomitou sangue. Aí, eu corri gritando os meninos. Os filhos, que estavam dormindo, levantaram-se todos e ele já caiu lá. Meu filho o catou, o segurou, e gritando, tudo. E gritando, e os vizinhos já vieram, tudo, aí já morreu na hora. Pegamos, levamos para o hospital, mas já estava morto. Chegou lá, que entregou lá, foram ver, eles falaram: “Ah, morreu, morreu”. Acho que estourou o estômago que foi. Morreu.
P/1 – E como foi depois disso?
R – Como?
P/1 – O que mudou na vida da senhora depois disso?
R – Não, os filhos trabalhavam, os filhos já estavam todos trabalhando e continuaram sozinhos, sem o pai. Trabalhou... Foi casando um, casou o outro, casaram todos. E tenho só dois filhos sem casar - um rapaz e uma moça - mas já está velhona, ela não quer casar; não casa. Diz que casa... Diz que marido dá trabalho, criança dá trabalho... Ela não gosta de criança. E o rapaz sempre tem uma namorada, uma coisa ou outra, mora para lá sozinho. E eu moro sozinha com ela, numa casa.
P/1 – Mas como foi para a senhora o falecimento do esposo da senhora? O que mudou no dia a dia sem a presença dele? Como foi continuar depois sem ele?
R – Continuava. Os filhos achavam muito a falta do pai, e eu também, não é? Porque quando morre o pai, os filhos já não respeitam muito bem. E assim vai, mas deu para aguentar. Aí se casaram e foi cada um para a sua casa. Vive tudo muito bem, os genros são muito bons, as noras são muito boas, e assim era.
P/1 – A senhora chegou a procurar emprego depois do...
R – Não. Não. Em casa, e até agora eu ainda faço artesanato, costuro, faço uma sacolinha bonita, vendo, faço um tapetinho, um aventalzinho bonito. E não procurei emprego mais não. Só os filhos que trabalhavam para lá e lá ficaram. Tem um filho que com doze anos, desde doze anos ele entrou a trabalhar, era molequinho, muito arteiro, muito levado, mas com doze anos já começou a trabalhar. Aquele menino trabalhava, ele ganhava uma caixinha, ele comprava um pacotinho de doce, trazia para os outros irmãos, ganhava mais um pouquinho, ele trazia um pacote de arroz, e foi trabalhando. Faz cinquenta anos que ele trabalha, ele nunca parou um mês de trabalhar, só tira férias. E trabalha... Trabalhou. Aquele trabalhou a vida inteira, ajudou a criar os irmãos, ajudou a criar o pai, que depois o pai ficou doente, tinha convênio dele, eu tinha filho, ia para o convênio dele. Então ele criou toda uma família, e trabalhando. Casou, criou os filhos dele. E faz treze, quatorze anos que se aposentou, e ainda trabalha. Então, aquele menino foi a vida inteira... Trabalhava e ajudava a cuidar dos irmãos. Trabalha até hoje. E agora há pouco, três, quatro anos, depois que ele comprou casa para ele, se acomodou, ele comprou uma casa muito bonita, eu fui morar com a minha menina, um sobrado lindo, lindo, lindo. E me dá de tudo. Tudo que eu preciso, ele me dá. O que precisa, ele dá. Ele trabalha até hoje. E era o mais arteiro que tinha, o que mais deu trabalho. Eu batia nele. Ele fazia arte, eu batia nele, pegava e batia a cabeça dele na parede, de tanto que ele fugia de mim. Dizia que ia tomar banho, dizia que ia nadar na lagoa, ele ia à poça de barro. Chegava lá, deixava na poça de barro, quando ele chegava em casa, aquele shortinho, tudo, tudo cheio de barro: “Aonde você foi, menino?” “Ah, mãe eu fui nadar na lagoa”. Lá longe. Fugia. É longe. Nadar. Dizia que ia nadar. Nadava no barro. Chegava cheio de barro, eu pegava o chinelo, mas eu batia, mas eu batia nele, que só vendo uma coisa. Eu falei: “É muito arteiro, vou pôr para trabalhar”. Porque se você o larga na rua, o que ia virar? Já arrumei esse serviço no mercado para ele, ele foi trabalhar ali na frente da Caixa ali. Que usava aquele tempo. Trabalhava ali, começou a trabalhar, e até hoje o homem trabalha, faz mais de cinquenta anos. Já está velho que só vendo e está trabalhando. Comprou carro, trabalhou de táxi. Agora ele trabalha de motorista particular, só para uma pessoa, e ainda está trabalhando. Comprou uma bela de uma casa para mim, eu fui morar lá com a menina. Estou lá.
P/1 – Esse, qual filho é?
R – Ele se chama Osvaldo. Osvaldo. Cuidava de mim como uma criança. Muito bom, muito apegado com os irmãos, com a família, criou os filhos dele muito bem. Só criou três filhos, já casaram, se formaram. Uma é psicóloga; outro é advogado - delegado - outro é advogado. Tudo bem, casou tudo, e tudo está acomodadinho. E ele ainda está trabalhando. É o que ajuda. Qualquer coisa: “Ah, chama meu irmão. Ah, chama meu irmão”. Tudo ele. Tudo que acontece, vai atrás dele. Coitado, está cansado da casa dele. E está bom. A gente o quer muito bem, a família o quer muito bem, e a mulher e os filhos dele, todo mundo o quer muito bem. Está lá ainda.
P/1 – Se a senhora quiser contar para a gente, tá? Se não quiser contar, não tem problema. A senhora chegou a contar que tem um filho da senhora que faleceu. Se a senhora puder contar para a gente o que aconteceu.
R – O que aconteceu com ele? Olha, esse filho mais velho... Porque ele foi o primeiro, acho que ele era muito bajulado, ele não gostava muito de trabalhar não, ele era folgado. Os outros foram trabalhando e ele era mais sossegado. Aí, casou logo, casou, teve aquele bando de filha, ele só teve mulher - ele teve seis filhas - depois adotou mais uma criança, mais uma menina. Criou aquele bando de mulher. Bebia, fumava, tudo. De repente, deu acho que infarto, sentou lá no carro e morreu, assim, sozinho lá, sentadinho. Ele sentou no banco do carro lá na vila, que ele morava em Caucaia do Alto. Morreu lá sentado e ficou. Era véspera de Carnaval, está fazendo acho que seis anos. Uma turma conhecida falou para as meninas dele: “Olha, teu pai está lá dormindo dentro do carro, lá na vila”. “Ah, deixa. Acho que ele está bêbado. Deixe-o lá”. Ele ficou o dia inteirinho sentado, acho que já madrugada. Porque ele sentou ali, ficou o dia inteiro. Chegou de noite, o povão estava todo chegando para o Carnaval na praça, para dançar, aí um homem falou: “Mas esse cara está aí desde cedo, o dia inteirinho dormindo. O que será?”. Diz que chamou o guarda, falou: “Esse homem está aí desde cedo do mesmo jeito, não sai do lugar”. O guarda bateu lá, bateu, nada. Falou: “Esse cara está é morto aí”. Quando abriu o carro, estava morto. Ainda era um sol tão quente, tão quente, o carro o queimou todo assim, que queimou, estava saindo a pele. E ele lá sentado. Foi lá: “Oh, menina...” – para a mulher dele – “Olha, seu pai está lá. Está morto lá”. Que elas foram lá, ele estava morto, sentado lá. Está fazendo seis anos. Fez agora no Carnaval. Aí ficou. As filhas cresceram, casaram-se todas, foram todas embora, ficou só a mulher. Agora a mulher ficou sozinha também, morando lá, ainda mora lá.
P/1 – E como a senhora recebeu a notícia?
R – Nossa, quando foi madrugada que foram falar para mim. Ele tinha passado o dia inteiro no sol, até à noite. Quando foram avisar para mim, era madrugada. Que vieram, que telefonaram e foram me avisar que já tinha morrido. Já o tinham levado para o hospital, tanto que foi lá... Quando chegou lá, já chegou no caixão, morto. Foi muito triste, deu muita dó. Mas estava mais velho do que eu. Porque eu sou só treze anos mais velha que ele, ele estava velho já também. Velho que só vendo. E bebia, fumava, e aquela vida de... Estava velho também assim, igual a mim. A minha foto com ele - nós dois - ele está mais velho. E assim estava.
P/1 – A sua filha, a Fernanda, ela pediu para que a senhora contasse a história do Joaquim.
R – (risos) Ela quer saber a história do Joaquim? Esse eu tinha onze anos quando a gente viajou, que veio de Minas, que o cunhado veio com os irmãos, veio ele. E ele tinha... Eu tinha onze, ele tinha doze anos, aquele menino de calça curta, feio, pobre, sabe? E eu também, aquela menina descalça, nunca tinha posto um sapato no pé, tudo com o pé no chão, tudo feio, encardido. Tudo com a coberta nas costas. Quando eu olho, aquele menino mais feio, encorujadinho, ele tinha doze anos, eu tinha onze. Viajamos, fomos embora juntos para lá, para Sorocabana. Aí fomos para a casa do cunhado - que era irmão dele - a minha mãe com as meninas, fomos, e acostumada ali, junto com os meninos. Acho que quando se gosta de alguém, a primeira vez que você olha, o cupido acho que já flecha o coração. Aí, gostava daquele menino. Fazia tudo junto, ia trabalhar junto. E namorava, sabe? Começamos a namorar, mas era assim, só de olhar, de vista. Quando estava já com onze anos, doze anos, até treze anos, namorava assim de longe. Ele é irmão do meu cunhado, que é casado com a minha irmã mais velha. E eu da mulher dele. Como é? Eu tenho dois cunhados casados com duas irmãs. E era acostumado junto. Nossa, gostava demais dele. E era um bem... Trabalhava junto, passeava, ia passear junto. Mas era criança, muito nova, não podia casar. E nem um namoro de verdade eu não podia, era só um namorinho de criança. Tivemos que sair de uma fazenda, ir embora para outra fazenda, aí ele ficou naquela fazenda. A gente foi embora para outro lugar, mais longe ainda, ele falou: “Eu vou embora trabalhar com o meu irmão, quando eu tiver idade de casar, eu venho para casar”. “Ah, está bom”. Foi lá, visitou a gente, entrou naquela jardineira que levava o povo, em cima da jardineira andando, foi embora. Ele foi trabalhar para lá para o Paraná e a gente morava para o lado de Alfredo Marcondes, para adiante de Presidente Prudente. E nessa época que ele foi trabalhar para pegar idade, para voltar para casar, demorou acho que um ano, dois anos, foi onde apareceu o meu marido, que era da fazenda, que eu me casei. Eu casei, quando ele voltou eu já tinha dois filhos. Quando ele voltou, pegou idade de casar, que ele tinha acho que dezoito, dezessete, dezoito anos, que ele veio do Paraná para Alfredo Marcondes, eu já estava com duas crianças - um menino assim e uma menina pequena. Aí, já era casada. Aquele moço bonito que só vendo. Quando ele voltou, eu já tinha duas crianças. Esteve lá, conversou, tudo, e foi embora. Casou de novo e eu fiquei com os filhos, com as crianças, e vivi muito bem. Depois ele se casou, depois veio morar junto. Ele morava em Presidente Prudente e a gente morava aqui em São Paulo. Passou bastante tempo. Já tinha passado uns cinco, seis anos. E a família dele, os irmãos, moravam lá para perto da gente. Que a gente mora na Freguesia do Ó. Um dia, cedo, eu escutando o rádio, aquele radinho que tocava... Você lembra que o Zé Bettio falava no rádio? Vocês nunca viram? Não lembram? Que ele falava. De madrugada tinha o programa do Zé Bettio. O Zé Bettio falando lá, falava, falava: “Olha, no Hotel Saturno, tem um rapaz que está procurando os irmãos dele, um chama Lázaro Domingo, outro chama Benedito Domingo Pereira. E ele é Joaquim Domingo Pereira, está procurando os irmãos dele aqui, tá? E ele está no Hotel Saturno”.
“Nossa, não é que é o...”. A gente o chamava de Quinzinho, ele chama Joaquim. “Olha, escutei lá...”. Tornava de novo o Zé Bettio a falar: “Ele está aqui no Hotel Saturno, está procurando”. Levantei, fui lá... Meu cunhado morava assim para longe: “Olha, Dito, o seu irmão está lá no Hotel Saturno, está chamando você e o Lázaro, e dando o nome dele, acho que é ele. Vai lá ver”. Ele pegou, foi lá, era ele. Tinha que eu escutar o homem procurando. Ele foi lá e ele veio. Ele já tinha se casado, já tinha os filhos dele, veio morar para perto da gente. Morou lá um tempão. Foi a vida assim, não deu para casar. Mas até hoje eu penso nesse namorado. Eu estranho a noite em que eu não sonho com ele. A noite em que eu não sonho com ele, eu falo: “Nossa, hoje eu não sonhei com o Joaquim”. Eu estranho. A vida inteira eu sonhei com ele e ele era aquele menino bonito, naquele tempo. Agora está velho, feio também.
P/1 – (risos).
R – (risos) Agora ele está velho, feio, cabeça branca. Porque você vê eu, estou velha, mais nova do que ele. Por um pouco eu fiquei viúva. Quando eu fiquei viúva, ele apareceu de novo. Ele já tinha casado e os filhos também todos grandes. Aquele homem já mais velho. Mas eu não quis mais, porque eu tinha aqueles filhos pequenos, fiquei viúva, com a Fernanda, os outros novos, eu falei: “E eu vou arrumar mais encrenca para a vida? Não quero mais, não”. Mas era amigo, conhecido da gente. E ele foi embora para o Paraná. Sumiu, nunca mais a gente soube. Mas a vida inteira eu me lembrei desse namorado, que era namoradinho de criança, e ainda sonho com ele. O dia em que eu não sonho, eu estranho. Eu falo para a minha menina: “Nossa, hoje eu não sonhei com o Joaquim”. Mas sonho que ele é novo, bonito, que ele está assim em algum lugar, que eu o vejo bonito, não o vejo velho (risos). Eu falo. Mas nunca sai da cabeça. Você já pensou que vida? Com onze anos. Eu tinha foto com ele, já tiramos foto juntos, dois caipiras assim bonitos, porque gostava, era namoradinho, amigo, onze anos, você acha que pode? Depois largamos. Não deu para esperar, porque a minha mãe tinha aquele bando de filha, aquela meninada, a gente morava para aqueles mundos, então falava assim: “Vai ficar tudo solteira fazendo o quê?”. O povo falava, falava mal das moças. A gente nem devia e o povo falava. As mulheres tinham ciúme, as outras moças tinham ciúme dos namorados. Ela falava: “Vai aparecendo casamento, vai casando, vai indo embora”. Apareceu esse meu marido, que morava sozinho, tinha fazenda, e era uma pessoa muito boa, pediu casamento, falei: “Ah, vou casar. O outro foi embora, que fique para lá”.
P/1 – Dona Luísa, e quando o Joaquim apareceu para buscar a senhora para casar, o que a senhora sentiu?
R – Nossa Senhora, quase morri do coração. Quase morri de sentimento. Quando o vi, abraçamos, beijamos. E abraçava as crianças, pegava as crianças e abraçava. Ele se acostumou perto assim, mas ele queria muito bem às minhas crianças. Junto assim, mas sempre respeitou a família. Nunca fez nada errado, porque respeitava muito. E o meu marido era uma pessoa muito boa, o povo gostava muito dele, o respeitava muito. Mas eu falei: “Depois de velha ir com os filhos, aí é ruim”. Ele tinha aquele bando de filho dele, e eu tinha os meus. Aí arrumar encrenca, não quis mais saber.
P/1 – E o que acontece quando a senhora sonha com ele?
R – Nossa, eu sonho pela vida inteira. Toda noite eu sonho com aquele namorado, com aquele... Bem que eu queria ele. Sonho todo dia. Sonho que o vejo, chego a um lugar junto com ele. Mas sonho novo. Velho, nunca sonhei não. Porque deve estar velho, deve estar feio (risos). Acho que agora deve estar um velho feio que não tem jeito. E faz muito tempo que a gente não sabe mais notícia dele, vai saber se até já não morreu.
P/1 – E se a senhora o encontrasse, o que a senhora falaria para ele?
R – Acho que não falaria nada. Eu só ia falar bom dia, boa tarde. A gente pega na mão, abraça, tudo, mas é ele para lá e eu para cá. Está tudo velho demais. Que gente muito velha também não tem graça mais (risos). Não tem graça. Mas você viu que tem gente com quase cem anos que ainda está casando, arrumando casamento e casando? Mas é muito feio. Eu acho feio.
P/1 – E a senhora teve algum namorado depois?
R – Não. Nunca tive namorado. Era só esse e meu marido. Nunca fui de namorar um rapaz, namorar outro. A vida inteira eu fui esquisita, diferente dos outros. Eu não gosto. Não ia a baile. Meu marido dançava a noite inteira, eu ia lá para o quarto, ia dormir lá quietinha. Ia dormir lá até amanhecer o dia. Ele dançava e dançava com aquelas mulheres, com aquelas moças. Nunca tive... Não sei se... Eu gostava dele que gostava, que era uma boa pessoa, mas acho que não tinha aquele amor verdadeiro por ele, porque eu não tinha ciúme dele. Ele podia abraçar as moças, podia beijar assim perto de mim, eu não tinha ciúme. Então quer dizer que a vida, assim, acho que pensava assim, acho que não tinha aquele amor por ele, de sentir ciúme dele. Eu ia dormir, ele dançava a noite inteira com as moças. E do outro, quando eu era criança, eu tinha ciúme dele. E eu tinha uma amiga - uma amiga do coração - quando, às vezes, para fazer ciúme para mim, que ele paquerava a amiga, eu quase morria de ciúme. Até hoje, se eu visse, eu teria ciúme dele com a amiga. Tinha uma amiga do coração, ela ia namorar meu namorado? Meu namorado, que era menino, Nossa, eu quase morria de ciúme. É a coisa mais triste do mundo, é o ciúme. Um dia, eu fui para casa de uma amiga, cheguei lá, o encontrei jogando baralho com a amiga. Uma jogando baralho com a outra e ele com essa amiga, jogando. Menina do céu, eu quase morri. Mas eu senti um ciúme tão grande, tão grande, que eu virei para trás, fui embora chorando, chorando, de tanto ciúme de vê-lo jogando baralho com a minha amiga. E queria bem à amiga, mas eu queria um bem a ela que só vendo, e ela paquerava o meu namorado. Ah, eu quase morri. Até hoje eu sonho com ela e sonho com ele, tenho ciúme dela com o meu namorado. Nossa, mas é triste, viu? Você ter ciúme do namorado. Eu falo para os meus meninos assim: a coisa mais triste do mundo é o ciúme. A pessoa ter ciúme do marido, trair, como aconteceu com uma menina minha... Mas como dói. Não tem doença mais triste no mundo do que ver seu namorado, seu marido, com outra pessoa. Eu falo que é a doença que não tem cura. E assim vai. E hoje, quando eu sonho com o meu namorado antigo também, sinto ciúme dele. E do meu marido, eu não tinha ciúme. Ele conversava com as outras moças, ia para o baile. Ele falava assim: “Ah, hoje eu vou dançar lá (Brandino? 01:14:40)”. Tinha um bailão assim na vila, que a mulherada ia toda dançar lá. Ele falava: “Hoje eu vou dançar lá no (Brandino? 01:14:49)”. “Vai, pode ir, vai”. Arrumava a roupa dele, ele vestia arrumado, ia dançar, dançava a noite inteira, eu deitava e dormia a noite inteira (risos). Quando ele chegava do baile, chegava... Ou ia dormir, ou ia trabalhar, eu não reclamava. Eu não sentia ciúme dele. E queria bem a ele. Mas queria um bem a ele que só vendo. Foi uma boa pessoa, mas um pai tão bom, um marido tão bom, e nós vivíamos a vida de... Mas nunca briguei com ele, nem sentia ciúme por causa de outra moça assim. Já pensou? Que engraçado (risos). Que vida, não é? E assim foi a vida.
P/1 – E como foi ser avó?
R – De avó? Nossa, sou uma avó coruja. Eu quase morro por causa dos netos. Nossa, adoro os netos. Ajudei a criar aqueles mais velhos. E ajudava a criar melhor do que os meus. Os meus, de vez em quando, eu dava um tapinha. Mas os netos, Nossa Senhora, criava assim... Ainda tenho um neto pequeno, de um filho solteiro, agora está com onze anos, ajudei a criar desde pequeno. Nossa, eu morro por causa daquele neto. De todos eles. Todos eles. Gosto demais dos netos e eles são muito bons para mim, também. Os netos, Nossa, me trazem assim...
P/1 – São quantos?
R – Hã?
P/1 – São quantos?
R – Quantos? Acho que são uns vinte e oito netos, acho que uns vinte bisnetos, e tataraneto. Tataraneto, tem acho que uns três ou quatro tataranetos.
P/1 – Nem vou perguntar o nome de todos.
R – Acho que nem lembro o nome de todos, de tanto que tem. Tem tanto neto, tataraneto e bisneto, Nossa, você precisa ver. E quero bem a todos eles. Nossa, como quero bem.
P/1 – E, dona Luísa, dá para juntar a família toda?
R – Ah, dificilmente junta. Bem difícil. Quando tinha o pai, juntava todos os Natais. Assim... Festa... Juntava. Depois que meu marido morreu, diminuiu um pouco. Vai para lá... Mas se puser todo mundo num lugar, não cabe. Quando faz uma festa, um aniversário, vamos supor, da Laura, um aniversário do outro, vai pôr bufê, só a família enche. Enche que não cabe. Só a família enche aquele bufê inteirinho, aquela... Em casa, nem cabe. Uma casa não cabe tudo. De filho, neto, genro, marido das netas, e os filhos deles, não cabe tudo, de tanto que vai. De vez em quando, eles juntam lá e enche. A minha casa é grande, esse tempo lá, que eu fiz aniversário, vieram todos, mas encheu, encheu, encheu tudo. É assim.
P/1 – Eu tenho umas perguntas ainda para fazer para a senhora, a gente está quase acabando, mas antes, Paulo e Rafa... Tem alguma, Rafa? Só se tiver mesmo.
P/2 – Eu queria saber se...
P/1 – Chega bem pertinho.
P/2 – Quando a senhora recebeu o pedido de casamento, a senhora pensava muito no Joaquim, se ele apareceria a qualquer momento para pedir a senhora em casamento também? Ou se a senhora pensava em como teria sido se tivesse casado com ele.
R – Se tivesse casado com o Joaquim?
P/2 – É.
R – Ah, decerto... Vai saber que jeito, se ele ia respeitar bem, ia se dar bem. Porque as minhas irmãs que se casaram com os irmãos dele se deram bem, viveram bem, depois morreram, pouco tempo morreu outro irmão dele. Vai saber se ia dar certo. Só sei que esse que eu me casei com ele, me respeitou muito bem. Agora, ele, eu não sei. Gostava naquela época, depois vai saber o que daria. Mas gostaria muito de ter namorado e me casado com ele. Se fosse um lugar de conforto, que pudesse ter esperado, mas não deu para esperar, porque o lugar que a gente morava era muito difícil a vida. E, se casasse, ia viver a vida, porque os maridos iam cuidar das mulheres; foi bem melhor. Não dava. Vai saber.
P/1 – Dona Luísa, eu tenho mais umas perguntas, mas antes, tem alguma história que a senhora falta contar para a gente, que a senhora ainda não contou? Tem mais alguma?
R – Do quê?
P/1 – Tem mais alguma história que faltou a senhora contar para a gente?
R – O que mais eu poderia contar? Ah, acho que não tem mais nada. A vida é tão difícil. Só sei que agora vivo bem, fiquei velha, meus filhos cuidam bem, todos eles cuidam bem de mim. Esse filho que eu tenho, ele cuida muito bem, quero muito bem a ele, é muito bom, só vendo. Para a gente, para os irmãos. E quero bem à minha nora, aos meus netos, porque eles cuidam bem de mim. E não tem mais nada, todos vivem bem. Eles são muito bons, todos eles cuidam bem de mim. Vivo bem.
P/1 – Eu tenho mais duas perguntas para a senhora. A primeira é: como foi para a senhora hoje vir contar a sua história? O que a senhora achou de hoje?
R – Ah, achei bom. Gostoso. Eu achei gostoso. Porque fico lá dentro de casa, só cuidando de casa e vendo televisão. Gosto muito de ver televisão, aí fico o dia inteiro lá vendo televisão. É gostoso. É bom.
P/1 – Qual foi a primeira televisão que a senhora teve?
R – Nossa, a primeira televisão era uma televisão de pau assim, pezinho no chão, aí as crianças sentavam na frente, ficavam segurando, que ela mudava toda hora assim, toda hora. Mas era um trabalho, menina (risos). Era a coisa mais difícil, de tão ruim que era - branco e preto. As crianças gostavam. Depois daquela, comprou outra. Assim... Foi boa também. E foi mudando. E agora eu tenho uma televisão desse tamanho, que eu vejo os artistas todos, que é a coisa mais linda do mundo, e está bom. Mas a primeira, vou te falar... Você, acho que nem conheceu. Você nunca viu na revista umas televisões de pau, de caixa, uma caixa bem grande assim, branco e preto? Depois é que saiu a televisão colorida.
P/1 – Posso fazer a última pergunta para a senhora?
R – Pode (risos).
P/1 – Pode mesmo? (risos).
R – Pode.
P/1 – Se tiver mais alguma coisa que a senhora queira contar para a gente, que lembrou, pode contar também. Tem mais alguma coisa?
R – Ah, acho que não lembro, não. Se tiver... Tanta coisa na minha vida, que não sei, que eu nem lembro. Tanta coisa. Sempre foi boa. Graças a Deus, a minha vida foi boa a vida inteira. Tenho saúde, trabalho bem, criei meus filhos bem, e vamos lá.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse para a gente quais são seus sonhos, além do Joaquim.
R – Meus sonhos? O meu sonho agora está difícil porque já estou velha. Eu acho que o meu sonho é ganhar na Mega-Sena (risos). É ganhar na Mega-Sena e dar tudo de bom para os meus filhos e para os meus netos. E no mais... Porque eu tenho de tudo. Tudo que é bom eu tenho. Tenho a vida boa, os filhos bem, os genros são muito bons. Tudo bom. Então, quer dizer que eu tenho uma vida muito… (risos). Uma vida boa. E tudo de bom.
P/1 – Mas o que a senhora faria se ganhasse na Mega-Sena?
R – Ah, se eu ganhasse na Mega-Sena, veja o que eu iria fazer: acho que iria comprar uma casa para alguma neta que não tenha. O que eu iria fazer? Acho que eu iria viajar. Iria gastar com os netos, porque comigo... Já moro numa casa boa, muito bonita, tenho tudo o que é bom. Só não aprendi a dirigir porque meu marido era muito bem de vida, tinha caminhão, tinha motorista particular. Tinha carro pequeno, tinha motorista particular e eu andava na vida de princesa. Era para cortar cabelo dos filhos, o barbeiro vinha em casa. Era para cortar o cabelo, fazer minha unha, a cabeleireira vinha em casa, tudo de bom. E ele pagava tudo. Então, ele falava assim para mim: “Por que você vai aprender a dirigir? Se eu tenho carro, eu posso pagar motorista. Não precisa você aprender a dirigir”. E nisso ficava. Aí foi, foi. Depois vendeu tudo e ficou quase sem nada. Quando eu ia tirar carta para aprender a dirigir, comprar carro, eu estava grávida do menino. Eu falava: “Não vou poder tirar carta, porque eu estou grávida”. Porque eles não deixavam mulher grávida tirar carta. Ele falava assim: “Mas você, com tanto filho, precisa tirar carta? Quando você precisar sair, os filhos dirigem. A gente compra carro, os filhos dirigem e levam, não precisa você dirigir”. Está bom. O filho pequeno: “Mãe, quando eu crescer, eu levo você para todo lugar que você precisar, porque eu vou dirigir”. Foi a época que ele tirou carta. O outro era a mesma coisa, mesma coisa. Quando foi um dia desses, um neto novo assim também: “Avó, eu quando crescer, eu vou tirar carta, eu levo você para todo lado”. “Para com essa cantiga, que eu escuto há muito tempo. Há muito tempo eu escuto isso de tudo quanto é filho. Porque aí eles crescem, a hora que eles crescem, eles me levam para todo lugar”. Eu falei: “Eles levam as mulheres deles, levam as namoradas, eles vão trabalhar, e eles usam o carro deles, eles não podem estar comigo a toda hora, aí eu não posso sair de casa”. Eu saio de ônibus, vou de lotação. Uma vez que eles me levam, para qualquer lugar que podem, eles levam. Porque um trabalha, outro trabalha, e eu quero ir ao mercado lá, eu pego e vou com o carrinho e venho puxando. E venho puxando o carrinho, porque eu não vou tirá-lo do emprego, lá do lugar. Uma está dentro da sala de aula, está dando aula; o outro está lá para adiante. Tem quatro táxis - o genro, o neto, os filhos têm táxi, mas você liga, um está lá num canto, outro está lá para outro canto, não tem como. Aí eu vou de lotação, compro, trago e venho embora. E assim levo a vida boa. Está bom. Ou então, eu chamo um táxi, vou. Agora tem o Uber, que é tão bom, gostoso para a gente andar (risos).
P/1 – (risos).
R – E faço assim. Não aprendi. Ele falava: “Não, por que vai aprender a dirigir, se eu posso comprar carro, como eu comprei para os filhos? Comprei carro”. Podia comprar para eu dirigir, mas não podia dirigir; os filhos, que são novos, que aproveitam a vida. E assim vai.
P/1 – Eu queria agradecer demais.
R – Hã?
P/1 – Eu queria agradecer demais a senhora por ter vindo.
R – Está bom.
P/1 – Foi uma delícia ouvir a senhora hoje.
R – Está bom (risos).
P/1 – Muito obrigada.
R – Nada.
FINAL DA ENTREVISTA
Dúvidas em grafia de nomes e trechos:
Que é onde eles guardam os cafés, os milhos que eles colhem, tem aquelas casas bem grandes de palha (? 00:23:05), faziam a festa e a turma ia para lá. – Página 7
Ele falava assim: “Ah, hoje eu vou dançar lá (Brandino? 01:14:40)”. Tinha um bailão assim na vila, que a mulherada ia tudo dançar lá. Ele falava: “Hoje eu vou dançar lá no (Brandino? 01:14:49)” “Vai. Pode ir. Vai”. Arrumava a roupa dele, ele vestia arrumado, ia dançar, dançava a noite inteira, eu deitava e dormia a noite inteira (risos). – Página 19Recolher