SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Helena Maria Maltez
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Embu, 19/01/2005
Realização Museu da Pessoa
Código SOS_HV035
Transcrito por Thiago de Sá
Revisado por Ana Calderaro
P/1 - Boa noite, Helena.
R - Boa noite.
P/1 - Obrigada por você est...Continuar leitura
SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Helena Maria Maltez
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
Embu, 19/01/2005
Realização Museu da Pessoa
Código SOS_HV035
Transcrito por Thiago de Sá
Revisado por Ana Calderaro
P/1 - Boa noite, Helena.
R - Boa noite.
P/1 - Obrigada por você estar com a gente. Você podia falar seu nome completo, data e local de nascimento?
R - Eu me chamo Helena Maria Maltez, nasci dia onze de junho de 1969, em Rueil-Malmaison, que fica nos arredores de Paris.
P/1 - E você podia contar pra gente como foi isso, nascer em Paris?
R - Meus pais eram professores universitários na época. Aliás, isso foi antes deles serem professores universitários. Eles eram estudantes na USP, em São Paulo, e em 1968 a barra começou a pesar. Meu pai era militante de esquerda na época, minha mãe nem tanto, mas meu pai militava e começou a ficar bem preocupante a situação. Aí eles foram para a França, como muitos naquela época, fazer pós-graduação. Meu pai fazia Física, minha mãe Matemática, então eles foram. Alguns padres franceses ajudaram nessa ida deles para lá. Provavelmente coisas terríveis teriam acontecido, principalmente com meu pai, se ele tivesse ficado aqui. E eu nasci lá. Imagina: Paris, meus pais jovens... Me fizeram! (risos) Então acabei nascendo lá.
P/1 - E eles eram de São Paulo?
R - Meu pai é paraense, de Belém do Pará. Minha mãe é paulista, do interior de São Paulo.
P/1 - E eles foram fazer pós-graduação? Como foi essa ida? Você falou que teve os padres franceses que ajudaram?
R - Eu não sei a história muito em detalhes, mas foi tranquilo, não foi nada muito estressante. Chegou uma hora e eles falaram: "É bom a gente ir." E eles já queriam, na verdade. As coisas foram juntando, eles queriam sair para estudar, seguiram carreira acadêmica os dois. Então as coisas foram juntando e acontecendo.
P/1 - E você não sabe se eles participavam de algum grupo político na época?
R - Não, não sei.
P/1 - E você morou quanto tempo na França?
R - Eu morei até uns três anos e meio, mais ou menos. A primeira língua que eu aprendi a falar foi francês, meus pais tinham medo de ensinar as duas línguas ao mesmo tempo, na época não sabiam se isso ia dar certo. Então eles falavam só francês comigo, passava o dia inteiro na creche. Quando eu tinha uns três anos e meio e a gente veio para o Brasil, eu só falava francês. Francesinha, pretinha desse jeito, toda metida. (risos) Aí a gente veio para o Brasil e foi morar em Belém do Pará. Foi quando meus pais foram contratados pela Universidade Federal do Pará para montar um Núcleo de Geociências lá e daí eu fui para Belém.
P/1 - Você era muito nova, três anos, mas você tem alguma lembrança?
R - Eu não lembro de nada dessa época. Minhas lembranças são um pouco mais tarde, com cinco, seis anos, já morando em Belém. Uma vida normal, meus pais eram professores, trabalhavam muito, estavam montando o Núcleo de Geociências. Isso foi em 1973, mais ou menos. Então, em 1973 pouquíssimas mulheres que trabalhavam eram professoras universitárias. A maior parte das mulheres que trabalhavam nessa época eram ou professoras, principalmente de criança, principalmente primário, ou donas de casa. Então minha mãe era uma mulher — é uma mulher — muito inteligente e muito batalhadora, muito batalhadora mesmo. E, na época, uma lutadora, uma das poucas. Ela conta que na faculdade ela era a única mulher, porque ela fazia Matemática, eram só turmas pequenas e ela era a única mulher. Então eles trabalhavam muito nessa época para montar esse núcleo, a Universidade em Belém estava começando.
P/1 - E você poderia contar um pouquinho da sua infância em Belém?
R - Foi uma infância normal, mudamos algumas vezes de casa, apartamento, aquela coisa. Não foi nada muito excepcional. Morei uma época numa casa que tinha um quintal gigantesco que depois eu descobri que nem era tão gigantesco assim. (risos) Não tinha fim, eu brincava muito em quintal. Eu conto isso porque eu acho que a infância de uma criança que passa num apartamento e da criança que passa numa casa com quintal são diferentes. Então eu fui criança de subir em árvore, de brincar com a molecada. Minha mãe enlouquecia correndo atrás de mim, eu de calcinha correndo na rua, aquela loucura. Eu tive uma infância muito feliz em todos os momentos assim. Em 1977 meus pais resolveram voltar para a França para fazer pós-graduação, para fazer Doutorado, dessa vez. E aí em 1977 a gente voltou pra França e eu vivi de novo no sul da França, em Ramonville-Saint-Agne, que fica bem pertinho de Toulouse. E morei novamente três anos e meio na França, até os onze. Fiz praticamente todo o primário na França, me alfabetizei na França nessa época.
P/1 - E você sentia diferença quando você foi do Brasil para a França, que você já era maiorzinha?
R - Foi muito difícil, porque eu não falava mais francês. Eu tinha esquecido tudo, absolutamente tudo. Eu lembro de cenas de quando eu cheguei ao Brasil, de eu aprendendo a falar português e falava francês, então eu devia ter acabado de chegar, tinha uns três anos e meio, quatro. Eu lembro de um menininho da minha rua que era filho de colegas da universidade dos meus pais, ele chama Andrei, e ele me ensinando português. "Colher", e eu: "colher". (risos) Eu lembro um pouco de cenas assim. E aí eu esqueci francês porque a gente não falava francês em casa. Quando eu voltei para a França eu não sabia falar absolutamente nada e lembro de cenas também, de ser terrível, ir para a escola e não entender nada do que as pessoas falavam. E de novo, ciseau e começar tudo de novo. E minha mãe conta, é engraçado criança, porque eu lembro do sofrimento e depois já lembro de eu falando francês. Então eu acho que foi um processo relativamente rápido. Eu devia também ter no inconsciente uma lembrança da língua. Mas uma coisa que eu acho que é importante é que, nessa época, a minha mãe conta, eu não lembro muito bem, mas ela conta que ela ficou muito angustiada porque eu chorava muito, eu não conseguia falar, não conseguia me comunicar com as pessoas. Deitava no chão e chorava e tal, e aí ela não sabia o que fazer. Então ela pegou e comprou discos em francês para mim e eu ficava o dia inteiro ouvindo música em francês. Então a música faz muito parte da minha vida desde muito sempre. Eu acho que eu sempre cantei desde que eu nasci, sempre gostei de música, desde que eu nasci. Hoje vejo a minha filha caçula fazendo a mesma coisa, dançando e cantando desde que nasceu. E foi a partir da música que eu voltei a aprender a falar francês. Foi a música que me ensinou francês de novo.
P/1 - E você não tem irmãos, tem?
R - Eu tenho um irmão, que é três anos e meio mais novo que eu. Chama-se Rafael.
P/1 - E ele nasceu no Brasil?
R - Ele nasceu no Brasil.
P/1 - E como foi também?
R - Em Belém.
P/1 - Aí quando você voltou você já tinha um companheiro.
R - Essa diferença, três anos e meio, é uma diferença complicada. Normalmente é uma fase que o mais velho tem muito ciúmes. Eu tinha muito ciúme do meu irmão, mas a gente brincava muito porque morava na França. Também, a gente era brasileiro, então acaba também... Então ele faz parte da minha infância. A gente sempre dormiu no mesmo quarto, não tinha essa coisa de dormir em quarto separado. Eu acho que muitos anos depois só é que a gente foi ter quarto separado. Então a gente sempre compartilhou muito as brincadeiras. A gente brigava muito também, eu cobria ele de porrada, coitadinho! (risos) Mas a gente se ama muito, a gente teve uma infância muito junto, a gente está muito junto. Mas ele é completamente diferente de mim, acho que todos os irmãos são completamente diferentes entre si, deve ser mais regra do que exceção. A gente é muito diferente. Hoje ele é juiz. A gente tem coisas em comum, obviamente. Eu acho que, talvez, a maior característica, a mais marcante que a gente tem em comum, é essa coisa da, como é que eu diria, da ética, que é muito do meu pai. Ele tem isso, ele sempre contava para a gente de uma postura muito ética com a vida. E meu irmão seguiu uma carreira completamente diferente da minha. Ele é juiz, mas a paixão dele é defesa do consumidor. Ele é um cara extremamente ético, muito correto. Eu acho que essa coisa é do meu pai, é um traço, uma característica que a gente tem em comum.
P/2 - E nessa segunda fase francesa, você permaneceu lá até quando?
R - Até os onze anos. Eu fiquei até o final da quarta série lá.
P/2 - Aí?
R - Aí a gente voltou para o Brasil, foi para Belém do Pará. Aí foi um choque, porque eu já tinha onze anos e a vida é completamente diferente. Eu fui morar em Belém do Pará, então foi um choque muito forte para mim.
P/2 - Mas dessa vez você já lembrava do português?
R - Sim, aí eu já falava, até porque em casa, na França, nessa segunda vez, a gente só falava em português. Eu falava português, só que tinha sotaque do sul da França,
aquela coisa cantada. (risos) Eu acho que é porque é perto da Itália, o sotaque do sul da França é aquela coisa meio cantada. Eu falava o francês do sul da França e aí mantive o francês também. Então falo francês até hoje, que eu mantive dessa época.
P/2 - E você passou a estudar normalmente em Belém, né?
R - Isso.
P/2 - No que seria o ginásio?
R - Isso, na quinta série. Entrei no meio da quinta série.
P/2 - Você teve dificuldades de se adaptar à estrutura escolar brasileira mais uma vez, uma mudança de novo?
R - Não, nenhuma. Eu sou geminiana, eu tenho uma capacidade de me adaptar e gosto disso. Adoro viajar, eu adoro mudar de ares, eu nunca tive problema com relação a isso.
P/2 - E aí você passou a sua adolescência em Belém?
R - Isso. Eu fiquei até os dezessete anos.
P/2 - E como foi essa fase de adolescência?
R - Foi bárbaro, Belém é uma cidade muito interessante. Eu nunca estudei Psicologia, mas a sensação que eu tenho é que até os sete anos se forma uma coisa da estrutura moral, ética, de valores da criança. Depois dos sete, você cria os valores culturais, talvez. Eu estou inventando isso agora, porque eu nunca li isso em lugar nenhum. (risos) É a sensação que eu tenho com relação a minha história. É que aí você cria um pouco os valores culturais, porque é a hora que você se socializa mais intensamente e tem os grupos. Então eu morei dos onze até os dezessete anos, passei minha adolescência, primeira fase da adolescência, em Belém do Pará, que é uma cidade extremamente interessante, que tem uma vida cultural muito ativa. Hoje não sei como está, mas naquela época Belém era muito longe, então espetáculos, essas coisas, raramente iam do sul do país para Belém. Então se criava muita coisa local, uma cultura local muito rica. Belém tem dezenas de grupos de teatros locais praticamente profissionais muito bons, muita música, muitas manifestações culturais locais, então isso é muito rico. Eu tive uma adolescência normal, mas muito gostosa. Todas as crises da adolescência, dos catorze, chorava, teve tudo, eu fui uma adolescente muito normal.
P/2 - E aos dezessete anos?
R - Aos dezessete meus pais voltaram para França, para fazer pós-doutorado, porque eles continuaram a carreira acadêmica na universidade e aí voltaram. E eu fiquei um tempo lá sozinha. Eu comecei a fazer faculdade de Agronomia em Belém, fiz um ano, aos dezessete anos. Eu sempre fui muito boa aluna na escola, então passei super bem no vestibular, não precisei estudar muito. E minha família, meus pais eram professores universitários, então era uma família de intelectuais. Minha casa sempre teve livro para tudo quanto é lado, a gente sempre teve. Eu com sete anos, oito anos, íamos ao Louvre, meus pais sempre me levaram em museus, sempre estimularam muito, eu sempre ganhei muito livro de presente, então isso sempre foi uma coisa que fez parte da minha vida. E meu pai ciseau, eu acho que isso é importante dizer, são essas coisas que a gente até acaba esquecendo, e na hora que conta a história da gente a gente relembra. Apesar de ser físico e trabalhar com Geofísica e tal, ele tinha uma veia ambientalista muito forte. Minha mãe já não, minha mãe é mais tecnológica, ela trabalha com informática. Eu tenho foto minha pequenininha, estou com aqueles cartões perfurados. Então além de ser mulher e trabalhar numa época em que isso não acontecia, ela trabalhava com coisa de ponta, com informática, computação e tal. Ninguém sabia o que era isso na época. Eu quando era adolescente, em Belém, já tinha computador, esse PC 286, sei lá. Eu não lembro.
P/2 - PC 286.
R - Já tinha em casa. XT teve em casa. Ninguém sabia dessas coisas, então sempre foi muito presente. Meu pai, não. Meu pai tinha uma coisa, uma veia ambientalista muito forte. Eu lembro que, uma época, ele quis criar o Partido Verde em Belém, alguma coisa assim. Tinha uns panfletinhos em casa de Partido Verde e eu ainda não estava muito ligada na coisa ambiental, mas para mim surgiu muito do meu pai. Ele escrevia artigos no jornal, tinha uma coluna de meio ambiente no Liberal, que é o jornal de Belém do Pará, e lembro, por exemplo, a primeira vez que eu ouvi falar na questão do amianto. Meu pai que falou na questão da poluição de recursos hídricos. Meu pai escreveu no jornal sobre essas coisas e foi daí que foi surgindo um pouco do meu interesse pela questão ambiental.
P/2 - E por que o interesse pela carreira de Engenharia Agronômica?
R - Vocês não vão acreditar. São duas coisas: primeiro porque eu tive meu primeiro namorado aos catorze anos. Se um dia ele ver esse vídeo... Bernardo, músico, ele tocava violão, então a influência era forte na minha vida. Meu primeiro namorado aos catorze anos, a gente namorou um tempão, um mês! (risos) Aí, aquele namoro assim... E o Bernardo, nesse um mês, a gente conversava muito. Ele falou que queria ser agrônomo, eu achei aquilo o máximo. (risos) Mas aí eu decidi fazer Agronomia também, quer dizer, foi a primeira abordagem. Mas eu realmente decidi fazer Agronomia quando eu fiz uma viagem, com a minha mãe, de Belém do Pará para São Paulo, de ônibus, uma viagem de dois dias, um dia e meio. Eu fui olhando de um lado, do outro, de um lado, do outro, e aquele monte de nada. Porque é pastagem aquela região desmatada no sul do Pará. Ali a BR é nada de um lado, nada do outro. E a minha angústia era muito maior com a questão social, com a questão da fome. Eu adolescente com catorze, quinze anos, participava de grupo de jovens da Igreja Católica por influência desse meu namorado. (risos) Ele teve uma influência tão grande na minha vida, acho que ele não imagina. E eu participava de grupo de jovens. Aliás, o conheci num grupo de jovens. Então minha preocupação maior era com a questão mais social, a questão da pobreza, da fome, isso me comovia muito. E eu olhei de um lado para o outro da estrada e falei: "Gente, com tanta terra, porque tem gente passando fome nesse país? Como que pode? Tem água, tem sol, tem terra, tem tudo e como é que tem gente passando fome?" Eu fiquei inconformada com aquilo e eu fui fazer Agronomia para tentar entender isso, como é que as pessoas podiam passar fome num país rico como o nosso.
P/2 - E como foram esses anos?
R - Aí eu fiz um ano de faculdade em Belém e foi muito interessante. Eu sempre fui uma aluna muito questionadora e Belém é uma faculdade que não fica junto com a Universidade Federal do Pará, é uma faculdade autônoma, uma autarquia federal que se chama FCAP, Faculdade de Ciências Agrárias do Pará, extremamente tradicional, extremamente arcaica. E na época, então, de um tradicionalismo e de um arcaísmo pesado, aquela estrutura completamente antiquada. Fiquei um ano lá e eu acho que o que eu mais lembro dessa época é do coral, é da música. (risos) Quando eu comecei, eu cantava de vez em quando em alguns lugares e cantava no coral. Meus amigos surgiram muito dessa história do coral e foi quando eu também comecei a me interessar mais por essa questão um pouco mais ambiental. E aí, em 1987, mas logo no começo de 1987... A gente demora um pouquinho porque começa a lembrar, que coisa! Eu tinha esquecido dessas coisas. Logo que eu entrei na faculdade, em Belém, eu já comecei a me interessar por essa coisa do movimento estudantil, mas sempre um pouco mais pelo viés político. Mas na FCAP, no começo, eles fazem uma semana que é de várias palestras, temas para os alunos que estão entrando, e eu decidi fazer um curso que era de tração animal. Imagina que coisa mais antiga, tração animal, mas é mais por essa questão da sustentabilidade, porque fugiu um pouco da Revolução Verde. E eu fui fazer esse negócio. Foi quando eu comecei a me interessar por uma agricultura mais sustentável, que usasse menos insumo. Então, na verdade é bem de começo isso, logo no primeiro ano de faculdade eu me interessei por essa questão. E aí eu conheci logo no começo um rapaz que era da FEAB, que é a Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil, para divulgar que ia acontecer o EBAA, que é o Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa. O terceiro EBAA, que foi em 1987 em Cuiabá, foi um evento histórico do movimento da agroecologia, da agricultura alternativa. Foram cerca de três mil pessoas participando desse evento, estavam todos os grandes mestres lá: Pinheiro Machado, Ana Primavesi, o Cavaler. Todos os grandes mestres daquela época estavam lá, o pessoal da agricultura biodinâmica. Ele foi divulgar esse evento na faculdade e eu já fiquei meio ligada nele também, a gente começou a namorar, inclusive, nessa época. Então me aproximou à essa coisa do movimento de agricultura alternativa e eu comecei a participar de Centro Acadêmico também. E aí eu fui para o EBAA e foi meu primeiro contato com toda essa história da agricultura alternativa. Eu fui para namorar, na verdade, com esse moço, mas também tive esse contato com a agricultura alternativa nesse momento. Eu estou falando tudo isso porque o meu viés, hoje, se eu estou no movimento ambientalista e trabalho com a questão ambiental, começou com uma preocupação de adolescente com a questão da pobreza, social e depois com a agroecologia. Eu acho que é exatamente por isso o papel que eu tenho, num momento como esse, ao me encontrar com o movimento, participar do movimento ambientalista e colocar na plenária as discussões que eu estava colocando hoje. Porque nessa época o movimento ambientalista era completamente dissociado, era um movimento. O movimento da agroecologia era um outro movimento. O movimento social, da luta pela terra, era um outro movimento. Três movimentos que não se falavam e quase que se odiavam porque lutavam por coisas diferentes, não entendiam. E isso caminha até quase hoje, eu acho que hoje está começando a mudar esse cenário, mas, para mim, falando agora para vocês isso, está fazendo muito sentido um pouco dessa minha história.
P/1 - Isso foi em 1987?
R - Em 1987.
P/1 - Lá em Belém?
R - Lá em Belém.
P/1 - Você falou de alguns movimentos. Tinha bastante nessa época? Você conhecia outros?
R - Eu não conhecia o movimento ambientalista que estava acontecendo aqui no sul. Meu contato era basicamente com o movimento da agroecologia e o pessoal do Centro Acadêmico, que era muito voltado para a questão da luta da terra, dos sem-terra. Morria gente, agricultor no Bico do Papagaio adoidado, tinha muito essa coisa do movimento mais social. Esse era o contato que eu tinha. Eu não tinha contato com o movimento ambientalista strictu sensu assim.
P/1 - E seu pai continuava escrevendo artigos?
R - Meu pai continuava escrevendo um pouco nessa época.
P/1 - E quando eles foram para a França, você não quis ir por quê?
R - Eu não quis ir porque ao mesmo tempo em que eu tenho uma facilidade em me adaptar, eu sou muito insistente, perseverante, não sei. Então eu não me conformava de parar, porque eles foram no meio do ano, em 1987, eu estava no meio da faculdade e para mim era inconcebível largar o negócio no meio do ano. Eu tenho um pouco disso de querer ir até o fim das coisas, é um traço de personalidade, eu queria ir até o fim daquele ano. Então meus pais foram para a França, eu fiquei em Belém sozinha com minha avó, terminando aquele ano de faculdade, pensando muito no que eu ia fazer. Meus pais queriam que eu fosse para a França com eles até para, quem sabe, tentar fazer faculdade lá, e eu já começava a ter um laço muito forte com o Brasil. Eu não entendia. Principalmente porque as minhas preocupações eram, por um lado, a questão social, a questão da agroecologia. Eu via que, na França... O que eu ia fazer lá? Quer dizer, você é dentista, médico, pode ir a qualquer lugar do mundo. Para mim essas questões estavam tão ligadas à história do Brasil que eu não me via fazendo nada na França. Se eu for fazer Agronomia na França, o que eu vou fazer lá que depois eu vou aplicar aqui? Porque eu nunca pensei em sair de vez. Para mim, eu tinha essa coisa de que eu tinha que ter uma participação, uma contribuição a dar para essas coisas que me intrigavam na época. Então por isso eu não fui para a França, porque eu ficava em conflito. Fora que eu tinha namorado aqui. Vocês vêem que minha história pende para essa questão, inevitavelmente, e que também me segurava um pouco no Brasil. Talvez se ele não existisse na época... Não sei, não dá para saber, mas era uma questão que também me segurava no Brasil. Apesar de que esse namorado morava no Mato Grosso do Sul. A gente namorava a distância, ele era da FEAB, morava no Mato Grosso do Sul.
P/2 - E no curso tinha outras mulheres?
R - Nessa época tinha muito menos do que tem hoje. Hoje as faculdades de Agronomia são quase meio a meio. Nessa época, não. A gente era minoria, muito homem.
P/1 - Antes da gente caminhar mais, eu queria voltar um pouquinho porque você falou uma coisa que me chamou a atenção. Nós não falamos da sua família, dos seus avós. O que eles faziam, como era isso?
R - Eu sei super pouco sobre os meus avós, conheço muito pouco da história da minha família, porque a gente morou muitos anos fora do Brasil. A minha mãe é de São Paulo e a gente morava em Belém, então isso me distanciou muito da minha família. O pouco que eu sei é que meu pai perdeu o pai muito cedo. Meu pai foi muito pobre na infância e minha avó teve que segurar a onda de criar cinco filhos sozinha. Eu não sei exatamente o que ela fazia, eu sei que ele sobreviveu e meus pais são pessoas muito inteligentes. Meu pai é um cara brilhante e inteligente, tanto é que fez uma carreira universitária saindo de uma situação inicial de muita dificuldade. Minha mãe, não. Minha mãe veio de uma família mais tranquila do ponto de vista econômico, viveu no interior de São Paulo e perdeu a mãe muito cedo também. Quando a minha avó morreu ela tinha onze anos de idade, então ela era uma criança, muito novinha. Mas eles, pelo que eu sei da história, minha mãe vivia confortavelmente, tinha uma relação muito forte com meu avô, que eu vi muitas poucas vezes, mas sei histórias muito bonitas a respeito. Minha mãe fala dele como uma pessoa muito especial. Ela fala que ele trabalhou com trem, eu não sei exatamente, mas ele viajava muito de trem. Ela fala de esperá-lo ou de viajar de trem, uma coisa assim, e teve joalheria também, uma época. É o pouco que eu sei da minha história. Sei que ele casou de novo também. Meu avô casou três vezes: a primeira mulher; aí a segunda mulher também morreu; e já na velhice ele casou de novo. Mas eu não sei muita coisa, não.
P/2 - E aí você terminou o seu curso em Belém mesmo?
R - Não. Eu fiz um ano só e aí no final do ano eu fui para a França para decidir o que eu ia fazer da minha vida. Foi depois que eu terminei meu primeiro ano de faculdade que fui para lá. Fiquei um semestre lá, meio em crise, decidindo o que eu ia fazer. Passeei um pouco, fiquei em Paris, não curti o suficiente porque eu estava naquela angústia de saber o que eu queria fazer e decidi voltar para o Brasil. Meus pais ficaram lá, eu voltei e fui morar em Bauru. Eu tentei transferência para algumas universidades, não consegui, apesar de ter um excelente currículo, ter uma dinâmica tão tradicionalista. Como se isso fosse fazer alguma diferença. Só me fez perder um semestre, porque é óbvio que eu ia passar no vestibular. Essas coisas que não dá para entender do sistema. Fazer uma pessoa perder um semestre, ficar ali, ter que pagar cursinho um semestre para fazer vestibular. Mas enfim, a coisa boa disso é que esse semestre que eu fiquei fazendo cursinho... Há males que vêm para o bem, não é? Eu fiquei em Bauru, na casa de tios meus, da irmã da minha mãe. Então foi a oportunidade de viver um semestre com esses tios, que são pessoas maravilhosas, que me ajudaram muito e me ajudam até hoje. São pessoas muito... Sabe aquelas pessoas na vida que você sabe que a hora que der tudo errado, você pega o telefone e fala: "Titia!" E ela falava: "Vem, querida!" Então... A gente precisa ter essas pessoas na vida. E pude conviver com minhas primas também, três primas. Fiz um semestre de cursinho em Bauru e entrei na ESALQ, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, uma unidade da USP que fica em Piracicaba.
P/2 - E aí, como foi?
R - E aí foi maravilhoso. A ESALQ é uma universidade, com todas as limitações que ela tem, altamente tradicional, hoje se abrindo mais porque tem muitos outros cursos, mas na época tinham só os cursos de Engenharia Agronômica, Engenharia Florestal e Economia Doméstica, que se extinguiu nos anos enquanto eu ainda estava na faculdade. Mas foi fantástico porque aí eu fui morar em república. Morei dois anos em república, participei de movimento estudantil, cantei no coral na época da faculdade e aí comecei a fazer vários estágios. A escola é linda, é maravilhosa, é um campus absolutamente lindo. E pelo fato de ficar isolado a gente vive muito aquela comunidade. Mas uma escola, extremamente... Na época, muito tradicional, que trabalhava dentro do sistema de produção agrícola tradicional. É uma escola que fica no meio do grande canavial que é o município de Piracicaba e região, então serve muito a essa questão da cana. O departamento de sucroalcooleiro com muito poder e toda a questão dos agroquímicos, então muito dentro do sistema mas já com uma linha dentro da universidade de pessoas dissidentes, se pode dizer assim. Algumas pessoas muito corajosas dentro da faculdade já tentando trabalhar em outras linhas. E aí eu posso citar o Marcos Sorrentino com a Educação Ambiental, que já era um batalhador lá dentro. Virgílio Viana, o pessoal da Engenharia Florestal, basicamente, e da Botânica dentro da ESALQ, que já puxava outros temas, outros assuntos, e foi por aí que eu fui me interessando. No primeiro ano eu ainda tinha essa relação forte com a agroecologia, então comecei a fazer estágio com controle biológico de pragas, que é mais relacionado à questão da produção agrícola orgânica. Então no primeiro ano de faculdade fiz estágio mais nessa área e depois eu não lembro exatamente como eu me interessei mais por essa questão florestal. Resolvi procurar o professor Virgílio Viana para fazer estágio com ele. Fiz estágio do segundo ano de faculdade até terminar a faculdade com ele, convivendo com colegas que foram referência para mim, como André Tabanez, com os quais eu aprendi muito sobre a floresta tropical. A gente trabalhava com estudo de dinâmica, estrutura e dinâmica de fragmentos florestais da Floresta Estacional Semidecidual, ali da região de Piracicaba. Então minha base de conhecimento científico vem daí.
P/1 - E, nessa época que você estava na faculdade, você falou que participou dos grupos estudantis. Se discutia nesses grupos, já tinha uma preocupação ambiental?
R - Sim, sim, sempre, da questão da sustentabilidade, o viés sempre passava por aí. E nessa época foi quando eu conheci um pouco das atividades do movimento ambientalista. Estudante participa de um monte de seminário, vai para assistir. Eu não lembro, mas era um seminário sobre recursos hídricos que teve aqui em São Paulo, que eu vim, eu sempre me interessava. Foi quando surgiu o consórcio intermunicipal das bacias do Piracicaba e Capivari em Piracicaba, eu ia assistir uns eventos, tudo que acontecia. E tinha o pessoal da SODEMAP [Sociedade para Defesa do Meio Ambiente de Piracicaba] também, que era uma organização não-governamental local lá de Piracicaba. Participei de algumas reuniões, nunca me envolvi muito, mas tentava ouvir um pouco. E nesse evento em São Paulo, de recursos hídricos, foi a primeira vez que eu vi o Mário Mantovani e estava essa galera toda, o Fábio Feldmann. Não sei se o Fábio estava, mas acho que sim. Mas o Mário estava, e aí eu: "Oh, o povo do movimento ambientalista! Ai, é isso que quero ser quando crescer." E aí me filiei a SOS Mata Atlântica e fui afiliada, pelo resto da faculdade, da SOS Mata Atlântica.
P/2 - Isso foi quando?
R - Ai, será que eu vou lembrar? Eu devia estar no segundo ano de faculdade, por aí.
P/2 - Começo da década de 1990.
R - Por 1990, 1991...
P/2 - Foi o primeiro contato que você teve, mas você já tinha ouvido falar?
R - Eu não lembro direito, provavelmente sim. Mas o meu interesse maior era mais. Nessa época eu via assim, acompanhava e tal, mas eu me interessava mais num primeiro momento pela agricultura alternativa e num segundo momento por estudos de florestas, de dinâmica, e não tanto pela militância. Eu devo ter passado alguns abaixo-assinados da SOS, eu fiz algumas coisas assim, mas meu interesse maior era estudar a floresta, era o que mais me interessava.
P/2 - E aí, acabando o curso, a graduação...
R - Aí eu casei.
P/2 - Ah, durante a graduação?
R - No final do segundo ano de faculdade eu casei com aquele mesmo moço que foi falar do EBAA lá em Belém. A gente teve uma relação de nove anos entre namoro e casamento, tudo. Eu tive minha primeira filha no meu último ano de faculdade, que hoje está com onze anos, Cecília.
P/2 - Ele foi para Piracicaba?
R - Não, ele sempre morou em outras cidades. Sempre foi um namoro e casamento à distância, sempre.
P/2 - Você acabou a graduação já casada, com filha e você deu continuidade a essa sua verve de trabalhar com os temas que você tinha trabalhado até então?
R - Aí teve uma pessoa que teve muita influência nesse momento da minha vida que foi o Doutor Paulo Sodero Martins, que infelizmente se foi muito cedo, extremamente cedo. Eu lembro da música da Legião Urbana, "os bons morrem cedo, morrem jovens". E Paulo Sodero foi cedo demais, extremamente jovem. Eu não sei quantos anos ele tinha, acho que cinquenta, cinquenta e poucos, como José Hermógenes, lá da Unicamp, que também foi cedo demais. Foram os mestres da gente. Eu fiz uma disciplina do Sodero que me perturbou profundamente, não sei, se chamava Genética de Populações, mas que era afeita à questão da Evolução, da Genética de Populações. E aquilo me perturbou tremendamente, muito, porque eu tinha até aquele momento estudado a questão da dinâmica da floresta e aí ele me fez ver um universo que eu não sabia que existia e que me fascinou, que é chegar à questão da distribuição da diversidade genética, da evolução das espécies, e aquilo me encantou. Só que ele trabalhava com espécies herbáceas, que eram, na verdade, ferramentas pra ele entender o processo evolutivo e a distribuição da variabilidade genética, fluxo gênico e essas coisas. E eu me interessava mais pela questão da floresta, eu falei: "Mas como é que eu vou fazer para trabalhar com essa coisa dessa genética que eu acho tão interessante, mas com floresta?" E aí eu procurei o Doutor Paulo Kageyama lá na Engenharia Florestal e quis fazer mestrado com ele. E aí eu fiz mestrado com o Paulo, com diversidade genética de Aspidosperma polyneuron, que é uma espécie arbórea da Floresta Estacional Semidecidual.
P/2 - E isso na ESALQ?
R - Eu era matriculada na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Eu fui aluna da Unicamp, mas o Paulo tem essa coisa entre as universidades. O Paulo é credenciado na Unicamp, era meu orientador, mas eu fiz o mestrado pela Unicamp.
P/2 - Mas continuou em Piracicaba?
R - Continuei em Piracicaba, morando em Piracicaba.
P/2 - Explica um pouquinho melhor essa questão dessa genética de populações, do seu tema de mestrado.
R - Porque a ideia é assim, não basta você ter as árvores ali numa floresta, por exemplo, ou num fragmento. Mais do que isso, é fundamental você ter populações viáveis ao longo prazo porque, senão... Ter meia dúzia de árvores ali não resolve se aquela população não tiver diversidade genética suficiente para evoluir ao longo do tempo. Aquilo vai se extinguir de uma forma ou de outra. Fora os processos de reprodução que dependem, o prosseguimento dessas populações depende de ter processos viáveis de reprodução e de regeneração. E eu queria muito trabalhar com essa dinâmica, e a Peroba-rosa, que é o Aspidosperma polyneuron, é uma espécie importante na Floresta Estacional Semidecidual e o Paulo trabalhava nessa época com várias espécies. A gente queria entender como é que funcionava a distribuição da variabilidade genética e a reprodução de diversas espécies com características diferentes no processo de sucessão secundária e na dinâmica da floresta. Para tentar entender como é que funcionava a floresta para você poder intervir de alguma forma e pensar “como é que eu garanto a sustentabilidade dessa floresta no longo prazo, para sempre”? Então a ideia do mestrado era um pouco essa.
P/2 - Do doutorado?
R - Aí eu comecei a fazer doutorado.
P/2 - Você continuou?
R - É, eu comecei a fazer doutorado também com o Paulo, também na Unicamp, e com o Jatobá.
P/2 - E também morando em Piracicaba. Jatobá, Hymenaea courbaril, na Amazônia. Como eu tinha feito um pouco com o Virgílio também, eu estava mais preocupada com a questão do manejo florestal. E a gente discutia muito essa questão do manejo florestal, se é viável, se existe mesmo, como é que é essa história do manejo. Eu queria entender como o manejo afetava as populações de Hymenaea courbaril, o Jatobá, que é uma espécie muito explorada para madeira, nessas diversas formas que ele se apresenta. Como que, perante uma exploração tradicional, o manejo florestal melhora a questão da viabilidade de populações a longo prazo. Comparado também com populações primárias, não-alteradas. Essa era a minha questão.
P/1 - Helena, só voltando um pouquinho. Você chegou a ir para o Rio em 1992?
R - Não, eu não fui para o Rio em 1992. Foi uma pena, porque eu estava tão mais envolvida nessa questão mais da ciência, da floresta. Eu não sei, não aconteceu de eu ir para o Rio. Vários amigos foram. Foi quando eu conheci o Marcos Sorrentino e estava toda aquela mobilização. Acho que uns dois anos depois eu falei: "Ai, eu não fui para o Rio... Todo mundo foi e eu não fui!"
P/1 - Os seus amigos foram, enfim.
R - É, algumas pessoas foram.
P/1 - E como foi, houve uma troca de informação depois que eles voltaram?
R - Não é uma coisa que marcou muito minha vida, não marcou. Acho que eu não poderia contar nada sobre isso, não faz parte da minha história.
P/1 - E nessa década de 1990, você começou a participar de alguma ONG, fazer algum movimento ambientalista, alguma coisa?
R - Não. Participei de algumas reuniões da SODEMAP, muito freela, muito sem compromisso. Era filiada da SOS, mas também muito sem compromisso e não tinha participação.
P/1 - Você falou do seu doutorado, você começou o doutorado em que ano?
R - Em 1995, acho, por aí. Será? Não, não, de jeito nenhum, porque eu me formei em 1994, estou delirando. Eu terminei o mestrado em 1997, 1998 e comecei o doutorado em 1998, 1999, por aí. Não lembro direito.
P/2 - E aí, em 2001, você entrou pra trabalhar na WWF [World Wide Fund for Nature]?
R - Isso.
P/2 - Só que assim, de Piracicaba para a WWF, que é em Brasília... Como foi isso, o que aconteceu nesse meio?
R - Foi fantástico porque chegou uma hora que eu precisava sair de Piracicaba, não tinha mais espaço. Aí apareceu essa vaga e foi engraçado porque, na verdade, eu vi uma vaga da TNC [The Nature Conservancy] e aí eu me candidatei a vaga da TNC, que era pra trabalhar num projeto no entorno do Parque Nacional das Emas, com a questão das propriedades em torno do Parque Nacional das Emas. E fui pra Brasília para fazer a entrevista. Na época foi emocionante, porque na hora que eu cheguei à Brasília, eu falei: "Eu vou morar nessa cidade aqui, eu vou morar aqui." E não deu certo, não fui contratada. Hoje eles devem lamentar profundamente. (risos) Mas é tão impressionante a vida, não sei se outros entrevistados já falaram isso ou se vocês já pensaram sobre isso, mas é muito impressionante a hora que a gente olha para trás e fala: "Gente, como é que pôde dar tudo tão certo, não é?" Não era para eu trabalhar na TNC, eu não teria sido feliz naquele cargo na TNC, não era mesmo, e eu fiquei tão triste quando não deu certo. Mas eu não podia saber que não era pra ser, até porque eu teria aceitado e aí teria aparecido o WWF e eu não teria ido para o WWF. Então foi, realmente, eu acho que fantástico, eu ter tomado essa decisão na viagem. Eu falei: "Eu vou trabalhar, eu vou morar aqui em Brasília!" E aí apareceu essa vaga no WWF muito pouco tempo depois, não sei nem se deu um mês, muito pouco tempo. Não sei nem se eu me candidatei para as duas na época, foi tudo muito junto. E aí eu fui para Brasília para fazer a entrevista para o WWF e foi muito legal, foi muito interessante. Para mim era muito fascinante esse mundo, porque eu recebi bolsa do Natureza e Sociedade, do WWF. E o WWF é conhecido no meio acadêmico por causa do apoio com bolsas para mestrado e doutorado. Isso é muito engraçado porque não é uma linha muito forte dentro da instituição e é a principal forma pela qual as pessoas conhecem o WWF no meio acadêmico. Porque no Brasil existe uma dificuldade muito grande de se conseguir apoio para fazer pós-graduação, pouquíssimas. É o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], que tem bolsas completamente defasadas. E essa bolsa de Natureza e Sociedade, na verdade, não era bolsa para o estudante, era bolsa para realizar a pesquisa, e é dificílimo, não existe quase como você bancar sua pesquisa. Então eu conhecia o WWF por causa da bolsa, antes de entrar. E aí a vaga foi bem muito tempo depois, mas aquilo me fascinava, era um mundo absolutamente glamouroso pra mim. Eu olhava, falava: "Nossa, trabalhar no WWF, que coisa glamourosa!" Eu acho que era bem isso: glamour. Não é uma organização qualquer, aquilo foi, para mim, emocionante. Eu entrar na instituição, ser entrevistada. E no dia que eu fui fazer a entrevista aconteceram duas coisas interessantes. Uma, que estava tendo uma reunião para discutir uma campanha, acho que tinha a ver com código florestal na época. E eu tive que ficar esperando um momento que eles foram conversar sobre a minha entrevista e tal, aí falaram: "Se você quiser ficar aí, você fica." Eu entrei lá na sala, fiquei olhando e estava, justamente nessa reunião, a Adriana do ISA [Instituto Socioambiental], o Ulisses lá do WWF, o pessoal de campanha das principais instituições, da Amigos da Terra. Então estavam todos aqueles caras e eu olhava aquelas discussões, uma galera super fera que eu olhava. Gente, que coisa legal! E claro que eu dei um pitaco lá, porque eu não podia resistir. Eu não lembro o que eu falei, alguma coisa eu falei, mas eu nunca imaginei que um dia a Adriana, lá do ISA, que falava aquelas coisas daquele jeito, um dia fosse ser minha colega e os filhos da gente iriam brincar juntos. Para mim era tudo muito glamouroso, era muito bárbaro. E aí, no mesmo dia, eles estavam precisando tanto de alguém para entrar nesse projeto, que algumas horas depois — eu acho que eu devo ter ido bem na entrevista —, na mesma hora me chamaram. O Leonardo Lacerda, que era o Superintendente de Conservação e o Luis Paulo Ferraz, que era o Coordenador do Programa Mata Atlântica, me chamaram na sala do Leonardo e falaram assim: "Quando você pode começar a trabalhar?" Eu falei: "Amanhã." "Dia primeiro de maio, pode ser?" A entrevista deve ter sido uma semana antes e eu falei: "Tudo bem." "Então dia primeiro de maio a gente vai marcar a tua passagem, você vai para Bahia. Você vai começar a trabalhar no WWF." Eu falei: "Tudo bem!" Aí eu voltei para Piracicaba já com tudo acertado, eu ia trabalhar no WWF.
P/2 - E era vaga pra quê?
R - Para trabalhar como técnico no Programa Mata Atlântica junto com o Luis Paulo, que era o coordenador do Programa.
P/2 - E o que é esse programa dentro da WWF?
R - Não tinha, na verdade não era um programa, chamava programa, mas não tinha, era uma série de projetos que o WWF apoiava. Na época o mico-leão dourado, o Projeto Iúna em torno da Reserva Biológica de Iúna, assentamentos em parceria, apoiando o Jupará, uma organização local. Estava se desenhando um projeto com ecoturismo no Vale do Ribeira, junto com Vita Civilis, e também estava começando uma proposta para trabalhar em Murici. O primeiro contrato com a Jaqueline estava sendo discutido naquela época, porque tinham recursos. Mas era um problema muito pequenininho com um orçamento muito pequeno, que não tinha uma estratégia e os projetos muito antigos — eram os primeiros projetos do WWF. Mico-leão Dourado foi o primeiro projeto apoiado pelo WWF, foi justamente na Mata Atlântica, o projeto é da década de 1970. Mas era um projeto que a gente apoiava e a gente era financiador deste projeto. Lá em Iúna também, com o Jupará, a gente era financiador no projeto lá, um projeto da década de 1980. Em 1980 o WWF comprou terra na região de Iúna, já tinha uma coisa lá, apoiou o IESB [Instituto de Ensino Superior de Brasília] nessa época. E nessa época apoiava o Jupará, mas também era praticamente financiador. Não era um projeto construído junto, completamente diferente da abordagem que a gente tem hoje no programa.
P/1 - Aí você foi aceita. Você tinha uma semana...
R - Para fazer as malas.
P/1 - E como foi isso? essa sua mudança de Piracicaba, Brasília, uma coisa tão rápida e você ia pra Bahia logo depois.
R - É, foi genial. Essas mudanças que a vida dá... E nessa época eu já tinha me separado do meu primeiro marido e já morava, fazia uns cinco anos que eu já vivia com outra pessoa, e aí a gente tinha que decidir: "E agora, vai para Brasília, o que vai fazer?" E aí eu fui para Brasília e depois o Maurício foi para Brasília também, eu fui em maio e ele foi em julho. E foi isso, foi tudo muito rápido, aquela seca de Brasília de maio, aquele pôr do sol maravilhoso em maio. Brasília é linda em maio, ainda não está muito seco e aquele céu...
P/1 - E quando você mudou, uma semana depois você tinha que estar na Bahia, já. Como foi essa sensação de você chegar à Bahia já num projeto?
R - Eu acho que foi gostoso, é um desafio. "Será que eu dou conta, esse negócio de trabalhar numa ONG como WWF e as coisas aqui na Bahia?" E um projeto complicado, complicadíssimo ali no sul da Bahia com Jupará, um desafio gigantesco de tentar manter aquela relação com o Jupará e com aqueles projetos. É um projeto belíssimo com assentamentos de reforma agrária, mas com uma relação muito difícil com a instituição, então a gente tinha que resgatar isso, tentar de alguma forma lidar com essas coisas para o projeto. Então foi um desafio enorme, mas eu fiquei: "Gente, eu vou viajar para caramba, vou conhecer um monte de projetos!" Tem uma coisa que eu não contei antes que talvez seja interessante, importante. Eu, num determinado momento, fui parecerista do PDA [Subprograma Projetos Demonstrativos]. Eu estava em Piracicaba ainda e eu era parecerista do PDA, que é aquele componente do PPG7, o Programa Piloto para Proteção de Florestas Tropicais, um componente que trata de projetos demonstrativos, projetos de desenvolvimento sustentável, e eu fui parecerista. E como parecerista do PDA eu fui visitar alguns projetos, fui fazer monitoria de alguns projetos do PDA. Aquilo para mim foi muito importante na minha vida, porque foi quando eu percebi o que eu queria fazer da minha vida profissional. Foi naquele momento. Porque pesquisa eu achava fantástico. Em um determinado momento da minha vida eu achava super interessante e me deu hoje a bagagem para poder discutir temas ambientais com bases científicas. Isso é muito importante para mim, eu não venho de uma história só de militância nem de nada, eu venho de um conhecimento que eu continuei estudando de como funciona a floresta, de como funciona os ecossistemas naturais, uma bagagem imprescindível para a minha vida mesmo que no movimento ambientalista. Porque também eu sou militante por consequência, eu sou uma gestora de projetos, é outra coisa. E nessa visita de projetos do PDA eu visitei projetos na Mata Atlântica que basicamente trabalhavam com comunidades, com agrofloresta, foi quando eu decidi o que eu queria fazer. Eu sabia que naquele momento eu não queria estar executando projetos no campo, eu achava que era muito difícil, um desafio muito grande esse negócio de ficar no campo e eu achava que eu ia me entediar, não sei, não era exatamente o que eu queria fazer naquele momento. E não queria mais fazer pesquisa também. O que eu queria naquele momento era poder conseguir viabilizar projetos bacanas. Quando eu andei no PDA, eu falei: "Meu, a gente precisa arrumar grana, a gente precisa arrumar as condições todas, técnicas, estratégias para essas iniciativas funcionarem, darem certo. É isso que eu quero fazer da minha vida profissional." E quando o WWF apareceu, eu falei: "Tudo de bom! É isso que eu quero fazer da minha vida profissional, eu quero poder estar em um lugar onde eu possa influenciar e ajudar esses processos." Essa é uma coisa, então o WWF veio no esteio dessa história. E tem uma outra coisa importantíssima também que aconteceu nesses anos que eu estava em Piracicaba. Em 1996 começou em Piracicaba, e aí novamente, no caso ai meu namorado, eu já tinha me separado e era o meu companheiro da época, em 1996. A gente estava começando a namorar, acho que era a segunda semana de namoro e ele falou: "Helena, eu estou indo num mutirão." "Mas o que é isso cara, que mutirão, que onda é essa?" "Num mutirão agroflorestal." E estava tendo uma reunião em Piracicaba de pessoas desse mutirão agroflorestal e ele foi ao tal do mutirão agroflorestal, no Vale do Ribeira, e voltou com a mão toda arrebentada, cheia de calos. "Mas que história é essa de mutirão agroflorestal?" Era um grupo, surgiu com agrônomos, amigos da Universidade Rural do Rio de Janeiro. Uma parte dessas pessoas estava fazendo mestrado em Piracicaba, que eram a Denise, a Potô, a Patrícia Vaz, e que conheciam o trabalho do Ernest Goethe, que é um suíço, é um mestre, é o nosso mestre. Sabe que eu penso, às vezes, assim. Sabe essas pessoas que conheceram Goethe, falei: "Gente, um dia eu vou falar que conheci o Ernest!" O Ernest é um ser de luz, um ser iluminado, uma figura brilhante que vê muito além daquilo que a gente é capaz de ver. Essas pessoas começaram a se inspirar no trabalho do Ernest e queriam aprender sobre esses temas agroflorestais biodiversos, com alta biodiversidade, que são orientados pela Associação Secundária que é a forma, não sei nem se o Ernest chama assim, mas que é um pouco do trabalho como o Ernest trabalha, que é observar a floresta e, a partir disso, construir florestas produtivas, que tem uma dinâmica e uma riqueza que incorporem em cada vez mais quantidade e qualidade de vida os sistemas complexos. E o Maurício voltou do mutirão: "Helena, meu Deus!" Os meus companheiros me influenciaram profundamente. No primeiro lá eu decidi fazer Agronomia, no segundo me levou para o EBAA e o Maurício que me trouxe essa coisa do mutirão, da agrofloresta. Falou: "Helena!" Absolutamente fascinado. A gente conversando muito sobre isso e essas pessoas se tornaram minha amigas, minhas irmãs de vida, a Denise, a Potô, o Rodrigo, e aí eu me envolvi. Eu fui ao terceiro mutirão agroflorestal, fui junto com ele para Cananéia, numa propriedade de um agricultor lá em Cananéia e simplesmente aquilo é revolucionário, transformou minha vida porque o mutirão agroflorestal não é só técnica, ele não é só recuperação, ele é um grupo de pessoas que acreditam num outro mundo. Sabe "Um outro mundo é possível"? Eles inventaram aquela história muito depois da gente, eles são mutirônicos e não sabem, o pessoal do Fórum Social Mundial, porque a gente já falava disso em 1996, no mutirão. Então é um grupo de pessoas muito especiais que estão ali por pura generosidade, ninguém está ali pra ganhar dinheiro, por interesse nenhum, pessoal, de poder, de nada. Estão ali porque acreditam que tem sua contribuição a dar para uma sustentabilidade planetária, para fazer deste planeta um lugar melhor. E os encontros do mutirão tinham um pouco de técnica de manejo. A gente queria manejar, pegar o facão, aprender a afiar o facão, manejar a floresta, cortar, aprender a podar, aprender a coisa toda de como o Ernest conseguia. A gente sonhava em querer ver a floresta como o Ernest via. Imagina! E aí teve gente do mutirão que trabalhou muito, hoje a Patrícia e a Potô, essas duas pessoas e a Denise. A Denise mora na fazenda, trabalhando e manejando agrofloresta. A Patrícia conseguiu finalmente comprar um sítio, está manejando o sítio. E a Simara, que está lá na Oca, em Alto Paraíso, manejando áreas lindas. Então algumas pessoas foram para essa coisa de manejar, aprender e evoluíram muito mais do que eu. Eu acho lindo, eu acho que falar de inveja seria cruel, porque é um sentimento tão ruim, e eu acho lindo, mas eu gostaria de poder evoluir como elas, só que eu escolhi outro caminho. Eu não escolhi o caminho de estudar o sistema, de evoluir, o meu caminho era o de fazer com que outras pessoas aprendessem esse sistema. Eu quero viabilizar projetos em que comunidades, agricultores, aprendam esse sistema e façam lá porque eu não vou ser capaz, é muito difícil para mim. Eu não vou ser capaz de manejar isso tudo, eu não dou muito conta. Eu quero entender como eles funcionam, mas eu quero é a agrofloresta em um mundo. Eu quero ainda fazer a minha agroflorestinha, ainda chego lá! Mas, profissionalmente, meu papel, eu senti que era muito mais isso, era fazer com que isso pudesse acontecer. Eu fui para o WWF para isso, porque eu acredito que eu posso influenciar nesse processo de agroflorestar o mundo. E a gente continua nessa comunidade de irmãos do mutirão agroflorestal que foi se profissionalizando, virou uma rede e os encontros. Metade do encontro era a técnica, outra metade era essa harmonia, então é quase uma religião. Porque tem que ir muito além, você pensar num mundo melhor não é só... Enfim, mas a gente foi se profissionalizando também, essas pessoas manejando e a gente foi se espalhando pelo Brasil. Eu fui pro WWF para Brasília. Potô ficou lá na Fazenda São Luís, perto de Ribeirão Preto. A Patrícia foi para são Lourenço de Minas. A Fabiana foi para o Acre, para o Ceará, Mato Grosso. A gente foi se espalhando e virou uma rede de pessoas comprometidas com o mutirão agroflorestal, com o agroflorestar a Terra, com agroflorestar o mundo. Importante, o mutirão agroflorestal é sempre a arte, a música, a música permeando o tempo todo o trabalho e a gente cantando junto. compondo junto e fazendo música, muita música, todos seres de luz. A Lílian que foi para o Espírito Santo e trabalhou com os agricultores, também aprendeu muito. Essas pessoas aprenderam tecnicamente, avançaram muito. E a gente hoje forma uma rede e constituiu uma ONG formal, eu faço parte do conselho dessa ONG, que é a ONG Mutirão Agroflorestal e a gente quer implementar projetos também, fortalecer projetos. A gente sente que o nosso papel também é muito de formação, de capacitação, a gente está discutindo um pouco o que seria a nossa missão. Porque nesses encontros, nesses mutirões agroflorestais, que eram encontros mensais ou bimensais que gente praticava e que, depois que eu fui a Brasília, continuaram acontecendo, não fui mais indo, eu me conectava de outra forma com esse grupo. Mas continuaram acontecendo e como a gente foi para diversos lugares, eles aconteceram em diferentes lugares também e mudou um pouco o formato. Nesses mutirões eles tinham três momentos, a coisa da técnica, de manejar, a coisa mais espiritual da irmandade, do querer um mundo melhor e a coisa da gente desenvolver até ferramentas, metodologias de educação ambiental. A gente via muito a nossa prática de dinâmicas, como é que a gente ensina, como é que a gente aprende, então a gente também ia muito por esse viés e é isso. Ai, como eu falo, não é? Eu falo mais que os outros?
P/2 - Não.
P/1 - Não sei se você quer começar falando um pouco do que a gente falou?
R - É uma pergunta difícil, porque realmente é o que eu falei para o Fábio e ele hoje usou contra mim na reunião. Existem milhares de iniciativas e o movimento. A gente está aqui e fica achando que é isso. E não é. Isso é um pedacinho, existem milhares de iniciativas diferentes ao redor do país, milhares de pequenos grupos trabalhando com enormes dificuldades, mas tem muita gente boa e muita gente fazendo coisas interessantes. Eu não sei, eu acho que a gente costuma comunicar para nós mesmos, esse é o primeiro problema. A gente faz o boletim para a gente mesmo, a gente não consegue espaço de mídia. A questão ambiental é marginal na mídia, quando ela aparece é muito difícil você conseguir pautar, extremamente difícil. Quando ela aparece, aparece lá no pé da página de ciência. A questão ambiental não passa na discussão dos principais temas do país, não passa na editoria de economia. Então você tem ali no pé da página de ciência falando de um problema ambiental e na segunda página sai falando da hidrelétrica. Não tem nenhuma relação uma coisa com a outra. Então não passa pela questão econômica, pela questão do desenvolvimento, pela questão da violência. Nada disso é visto, é analisado na mídia aos olhos ou sob uma perspectiva da questão ambiental. A gente não é mais marginalizado, quer dizer, há quinze anos atrás falavam em meio ambiente era… Sabe? "Que coisa!" (risos) Era coisa de bicho-grilo, gente do macrô… (risos)
R - Era coisa de que você não tinha o menor respeito de ninguém. Hoje não! Você fala que trabalha no WWF e que trabalha com meio ambiente, as pessoas respeitam, até ficam curiosas: "Nossa, o que você faz?" E é mérito, sem dúvida nenhuma, das organizações que fizeram isso. E a SOS tem papel inquestionável sobre como ela fez a sociedade falar, ouvir com naturalidade ou se preocupar. De alguma forma a questão ambiental não é mais um tabu, uma questão marginal para as pessoas. As pessoas alguma vez já ouviram falar de uma maneira geral. Mas na mídia, na discussão dos rumos do país, ainda é... A questão do desenvolvimento, ela ainda é atônica. Acho que passa muito por isso, essas milhares iniciativas que existem, elas não conseguem espaço, elas são conhecidas ali onde elas trabalham, localmente. E a questão da sobrevivência ainda é, no nosso país, uma questão crucial. Quando você vai às áreas rurais, a questão da sobrevivência ainda está em primeiro lugar, a gente ainda tem desafios. A gente fala: "Você não pode... A gente quer acabar com o uso de agrotóxico, de sistemas de produção com químicos." “Mas e aí, faz o quê?” Boom! Temos que desenvolver sistemas ainda, a gente ainda está desenvolvendo, em processo de desenvolver sistemas de produção sustentável, a gente não sabe o que é isso ainda. Sabe produzir orgânicos? Sabe. Mas é sustentável? Tem diversidade? A gente ainda está no meio da história, tem muita coisa para fazer ainda.
P/2 - Helena, a WWF, ela...
R - É o WWF.
P/2 - O?
R - WWF é menino!
P/2 - É no masculino que a gente se refere?
R - É. (risos)
P/2 - O WWF... Ele mantém projetos, desenvolve projetos ou já desenvolveu projetos junto com a SOS?
R - Sim! E aí é muito interessante. O WWF é uma rede de organizações não-governamentais. É uma rede planetária cuja sede... Eu não vou lembrar direito de que ano é o WWF, mas é tipo da década de 1950, 1960. É uma das primeiras organizações ambientalistas do planeta, cuja sede é na Suíça, em Gland. O secretariado internacional do WWF fica em Gland. Mas é uma rede de organizações independentes, autônomas e atua em 96 países, sejam com escritórios, projetos, programas, ou com organizações nacionais. Tem três formas, o WWF tem basicamente três formas de atuar. Três ou quatro? Falando eu vou lembrando. [Três formas] de atuar num determinado país. A primeira forma é ter uma organização nacional, e o Brasil passou por quase todas, então a primeira forma é uma organização nacional. Um exemplo hoje é o WWF Brasil, mas na década de 1980 o WWF Estados Unidos, por exemplo, era uma organização nacional. O que isso significa? Tem um estatuto próprio, tem um Conselho próprio, é independente, arrecada, é autônoma. Um segundo tipo de atuação do WWF é um escritório. Então o WWF pode ter um escritório em outro país. O WWF Estados Unidos, por exemplo, na década de 1980 criou um escritório no Brasil que mais tarde foi amadurecendo, e os técnicos resolveram criar uma ONG brasileira, com Conselho próprio. Então o segundo tipo é um escritório. Hoje, por exemplo, no Paraguai tem um escritório do WWF Estados Unidos. Tem um terceiro tipo que é um projeto. Um WWF qualquer pode ter um projeto em um país onde não exista WWF, que foi como começou no Brasil. Na década de 1970 o WWF Estados Unidos apoiava um projeto aqui de conservação do mico-leão dourado, no Brasil, mas era só um projeto. Só mandava o dinheiro, vinha um técnico de vez em quando ou ficava um tempo, mas era um projeto do escritório WWF Estados Unidos, e hoje tem muitos países que têm. O quarto tipo são organizações associadas ao WWF. Então uma organização que usa a marca WWF, usa no bom sentido, mas adota ou negocia a marca WWF e com isso faz parte dessa rede internacional, que discute estratégias de conservação planetária. Por exemplo, a Fundação Vida Silvestre Argentina, que é uma associada da Rede WWF. O Brasil passou por três desses tipos: então primeiro foi um projeto, teve projeto do WWF Estados Unidos no Brasil; depois foi incrementando, tendo muitos projetos, então se criou um escritório do WWF no Brasil. E aí eu lembro que foi o primeiro contato que eu tive, antes mesmo de ter a bolsa Natureza e Sociedade. Uma vez eu vi uma palestra na USP do... Quem era na época? O escritório tinha três pessoas nessa época, não vou me lembrar que ano foi, 1990 e bolinha. Eu vi uma palestra sobre o que era o WWF na época, na USP, numa salinha de aula da USP. Quem era na época que era? Enfim, uma pena não lembrar. E viveu essa situação, foi um projeto, depois virou um escritório e em 1996 foi criada a organização brasileira, a Organização Nacional WWF Brasil.
P/2 - E a relação do WWF com a SOS?
R - Ah, é verdade! Desculpa! Nessa história... Por que eu estou contando tudo isso? Durante essa história, à medida que foi tendo diferentes tipos de atuação, também a forma do WWF trabalhar era diferente no Brasil. Então em um primeiro momento financiava projetos no Brasil, ainda como escritório dos Estados Unidos. Então a maior parte das organizações que existem hoje, uma grande parte delas, em algum momento, recebeu financiamento do WWF. A Associação Mico-Leão Dourado é diferente porque ela foi criada, inclusive, no âmbito. O WWF chegou uma época, achou que era importante e os técnicos que trabalhavam no projeto também achavam importante ter uma organização própria que coordenasse as ações de conservação do mico-leão dourado. Mas outras organizações que existiam, às vezes o primeiro financiamento, quando as pessoas resolvem criá-la precisam de um primeiro financiamento para começar. Muitos desses primeiros financiamentos foram dados pelo WWF para as primeiras. E é a situação da SOS Mata Atlântica, acho que um dos primeiros fundos, vinte mil, trinta mil dólares, não sei quanto foi, mas o que a SOS teve foram fundos do WWF. Na época, que nem sei se tinha escritório no Brasil, mas bem no começo. É o caso do Ipê que, se não me engano, bem no começo recebeu apoio. Da SPVS [Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental]. Eu já ouvi essa história várias vezes quando eu conheci: "A gente já recebeu, lá no começo da nossa história." Acho que a SPVS, se bobear, a Fundação O Boticário… Depois se eu estiver enganada... (risos) Mas todas essas grandes organizações, as organizações hoje que atuam no Brasil, uma grande parte delas, lá no comecinho, já recebeu apoio do WWF, o IESB também. Só que algumas delas receberam esse apoio e tudo bem, e outras se tornaram parceiras em muitas ações e é o caso da SOS, que durante a história dela em muitos momentos teve parceria como WWF. Como estou no WWF desde 2001 eu não saberia dizer, mas tenho certeza que entre esses primeiros apoios em 2001, certamente houve projetos comuns, em parceria. Eu não vou saber citar, mas os recentes, depois de eu entrar... A gente tem trabalhado com a SOS desde ações mais políticas, como a questão do Desmatamento Zero via rede, em que a gente está ali lutando junto, até projetos mesmo, como Água e Floresta na Mata Atlântica, que até hoje é em parceria com o WWF. Então tem ações conjuntas, a gente está sempre interagindo e trabalhando junto, não só a SOS. A gente, basicamente, o WWF tem uma equipe pequena, a gente trabalha via parceria, a gente não faz nenhuma ação, nenhum projeto é desenvolvido só pela gente, isso não existe, todas as nossas ações são com parceria.
P/2 - Helena, você hoje é coordenadora do Programa de Mata Atlântica do WWF?
R - Brasil, isso.
P/2 - Eu queria que você dissesse as perspectivas para a Mata Atlântica.
R - Eu estava falando que, primeiro, eu acho que tem muita coisa para ser feita, sem dúvida, a gente está no meio do caminho. A gente avançou muito e a gente trabalhou esses dias também em avaliação, avançou muito. Hoje as pessoas sabem o que é Mata Atlântica, muitas sabem que estão na Mata Atlântica e já olham para a floresta com outro olhar, já percebem que a água está começando a escassear ou está com a qualidade muito ruim. Então essas questões todas estão fazendo as pessoas pensarem sobre a questão ambiental. A SOS teve um papel preponderante nisso, mas a situação é dramática para questão ambiental, de uma maneira geral, e para a Mata Atlântica em uma situação específica. Por quê? Porque hoje o Brasil privilegia uma política desenvolvimentista e ainda está discutindo muito pouco, de verdade, a questão da sustentabilidade, a questão ambiental de maneira séria, como um componente realmente sério. Quer dizer, é sempre um paliativo. "Ah, não, a gente está preocupado com a questão ambiental." Mas é um paliativo e não uma questão realmente de política transversal. E a Marina Silva, que merece toda a nossa admiração e recebeu todo o nosso apoio, de toda a comunidade ambientalista desde que entrou no Ministério e muito antes. A gente está acreditando, fora o ser que ela é, não sei se vocês já ouviram a Marina falar, não tem nem o que dizer, mas essa política de transversalidade que ela está lutando para implementar é justamente para isso. Porque não adianta eu ter o Ministério ali tendo projetos na área ambiental, esse tema tem que ser transversal. Quando eu discuto infra-estrutura, tenho que discutir infra-estrutura à luz do impacto, das ações de mitigação, da sustentabilidade a longo prazo. Se eu discuto agricultura, tem que ser sob essa perspectiva. Então tem que permear todos os programas de governo e tem sido a luta da Marina, eu acho que ela tem avançado, ainda que timidamente, mas vamos por aí. Então há muito que se fazer. A Mata Atlântica só tem 7%, desses 7%, a maior parte está muito degradada já, está ali de cima a cobertura florestal, mas está muito degradada, muito explorada e não é visto pela comunidade internacional como uma prioridade. De maneira geral, talvez, às vezes, nos discursos, mas não em termos realmente de ação e de recursos, diferentemente da Amazônia. E é onde as pessoas vivem. Quer dizer, tinha que ser uma prioridade. Mas eu acordei em 2005 extremamente otimista, ninguém vai abalar meu otimismo e eu acho que a gente vai daqui só para melhor porque o pior do que está não pode. Acho que a gente chegou num limite no ano passado, em dezembro do ano passado a gente chegou no limite. Daqui para frente a gente tem que falar de recuperação, até porque tem essas milhares de iniciativas que foram sendo construídas e agora está na hora de fazer elas se fortalecerem e virarem. Agora, para isso, do quê a gente precisa? A gente precisa convencer a sociedade de que não adianta estar sensibilizado com a Mata Atlântica, tem que financiar projetos. Quando eu falo sociedade, são as empresas, é a comunidade internacional, são as pessoas. Financiar porque é caro, custa dinheiro você recuperar, desenvolver projeto sustentável. Precisa financiar a recuperação, a manutenção da Mata Atlântica. E a gente precisa agregar esforços, a gente tem que realmente acabar com a história dos projetos individuais, agregar isso. Cada instituição tem sua missão, não dá pra trabalhar junto o tempo todo obviamente, mas a gente tem que se ajudar, ser mais generoso. Também não dá mais pro movimento ambientalista trabalhar achando que esses três movimentos que eu falei pra vocês, o social, o ambiental, o da agroecologia vão ter que trabalhar juntos. E o meu programa eu quero puxar com isso, incentivar as outras organizações a fazer isso, quero trabalhar isso. Só consigo trabalhar dessa forma porque minha história de vida, contei pra vocês, vem muito da preocupação com a pobreza, com a coisa da agroecologia e da agrofloresta, do Ernest, então eu não sei trabalhar de outro jeito, é isso que eu sonho. É muito louco porque eu venho da coisa da pobreza, da agroecologia, do Ernest, a coisa da agrofloresta, da dinâmica da floresta, e da coisa da genética, então eu tenho essa multiplicidade de sentimentos. Eu acho importante ter áreas de floresta intocadas, tem lugares em que eu falo isso e sou massacrada, mas tem que ter. Se você quiser que as espécies continuem evoluindo, manter populações e árvores, algumas áreas vão ter que estar ali para manter aquelas espécies e tal. Mas tem os outros 93% para recuperar, criar florestas dinâmicas e pensar como é que isso se desenha na paisagem, na conectividade. E para recuperar, para manejar, para intervir, para construir. Eu sonho com metade da área de domínio da Mata Atlântica sob a forma florestal, sob diversos tipos de manejo. Não vai ser tudo floresta primária, eu vou ter ali os 10% de floresta mais primária, preservada e em que não se mexe tanto porque, os bichinhos, se você está lá no meio andando, já altera a dinâmica da floresta. Mas eu sou preservacionista, eu acho que é importante, as pessoas só vão conservarem se elas recuperarem, usarem, se aquilo trouxer benefício de serviços ambientais, benefícios de bem. Mas cabe tudo isso, tem que caber tudo isso, então há o planejamento da paisagem pensando em caber tudo isso. Isso tudo só vai acontecer se o movimento ambientalista, o movimento da agroecologia e o movimento social andarem, trabalharem juntos. E aí aqui um evento como esse tem que crescer para isso. A gente está aqui conversando, trazendo quem já trabalhava no movimento ambientalista, agora é hora de trazer. O próximo tem que ter o pessoal do movimento social, tem que ter MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], tem que ter o pessoal da agroecologia, senão a gente não vai conseguir se a gente não trabalhar assim.
P/1 - Helena, você estava falando e você viu uma coisa que eu achei super interessante, que a gente vê muito isso. A Mata Atlântica não é uma mata conhecida fora, na comunidade internacional, muito pouco, e a Amazônia tem uma dimensão além fronteiras. Por que você acha que acontece isso?
R - A história de ocupação da Mata Atlântica é mais antiga, é de 1500. Quer dizer, já começou pela Mata Atlântica e foi muito rápida, no afã de expansão e de produção de cana e tudo, então foi muito rápido, rapidamente virou muito pouco. A Amazônia ficou lá e agora é que está indo, tanto é que os índices de desmatamento aumentaram. Agora é que está indo para a Amazônia, mas ainda sobrou aquela coisa grandona. Se você olha no planeta, olha nos mapas, aparece. Então eu acho que tem um pouco desse fator histórico que fez com que a Amazônia... Eu acho que eu não sei. Sem dúvida, essa coisa da dimensão influencia tremendamente. Eu não sei também se, em alguns momentos históricos importantes, figuras como Chico Mendes foram lá para fora. A gente acha que a Mata Atlântica é mais caseira. A gente tem grandes figuras do movimento ambientalista na Mata Atlântica, mas elas nunca foram lá para fora, talvez. Não sei, posso estar falando bobagem, mas o Capobianco, que é uma referência, e o Mário Mantovani nunca foram lá pra fora. Tiveram visibilidade lá fora, não porque eles não quiseram, mas pela conjuntura. O Chico Mendes foi, a Marina foi, isso deu uma visibilidade grande também. Eu acho que talvez influenciou o fato — não sei se eu estou delirando — de que o estudo, a questão científica na Mata Atlântica também foi mais caseira. Quem estudou a Mata Atlântica sabe, tem muito estudo, conhece-se muito, sim. A população não conhece, mas é uma floresta mais estudada. Tem centenas de milhares de estudos, sabe-se muita coisa da Mata Atlântica, distribuição de espécies, diversidade. Porque as universidades paulistas, que são muito boas, fizeram muita pesquisa, o Instituto de Botânica, uma coisa caseira. Na Amazônia, não. Quem faz pesquisa é a Universidade da Flórida, são os pesquisadores de fora. O IPAN [Instituto de Pesquisa Avançadas da Navegação], o INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], o INPA [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia], um monte de pesquisador estrangeiro. Então muita gente de fora vai e volta mostrando um pouco da riqueza da Amazônia. Não sei, talvez isso tenha influenciado. A gente na Mata Atlântica, quando vieram pesquisadores, o Brown, o Benson, eles vieram e ficaram. Talvez isso tenha influenciado. Você vê, na época de Carajás, aquelas coisas, os escândalos, os grandes crimes ambientais, quando eles aconteceram na Amazônia, eles aconteceram numa história recente. O Projeto Jarí, Carajás e Tucuruí tiveram um impacto de mídia e de visibilidade até fora do Brasil. Enquanto que na Mata Atlântica o grande desastre já tinha acontecido, então também não tinha grandes eventos para você divulgar. "Ó, aconteceu uma grande tragédia ambiental na Mata Atlântica." Não, já tinha acontecido. Na Amazônia, essas tragédias já aconteceram na modernidade e foram divulgadas lá fora. Aqui, talvez isso também tenha influenciado. Eu acho que são vários fatores, mas, sem dúvida, a Amazônia é — e talvez essa seja a maior razão — a o grande depositário de madeira, de metais preciosos, de minerais, de água, de biodiversidade, de genes... É o grande depositário que está lá da humanidade. A Mata Atlântica já... Você vai explorar a Mata Atlântica? Não tem mais nada, aquilo é depositário, está todo mundo preocupado com aquilo. Aí que mora o perigo.
P/2 - Helena, nesses dezoito anos da SOS, ela desenvolveu “n” campanhas, não é?
R - É.
P/2 - Eu queria saber se alguma te marcou de maneira especial ou que você tenha se envolvido?
R - Eu nunca me envolvi na verdade, mas, sem dúvida, eu estava em Piracicaba e ouvi falar. Eu lembro, teve uma história dos lençóis na janela, eu acho que todo mundo lembra essa história. A coisa do Núcleo Pró Tietê, quando apareceu e que eu lembro que promoveu aquela coisa: "Fotografe o rio Tietê". Eu fui na primeira lá em Piracicaba, fotografar o rio Piracicaba. Eu fui, é verdade. Mas também uma coisa super pontual, foi uma tarde que eu fui lá fotografar o rio Piracicaba, mas lembro dessa história de "Fotografe o Rio Tietê." Lembro quando criaram o logo "Estão desmatando..."
P/2 - "Estão tirando o verde da nossa terra."
R - Lembro um pouco dessa história, mas eu acho que são as três histórias um pouco mais que eu lembre.
P/2 - E se você, analisando o movimento ambientalista, a questão ambiental no país desde que você se envolveu e até um pouco antes de fora que você acompanhava, fazendo um balanço de esse movimento, do tratamento da questão ambiental, qual seria o saldo em sua opinião?
R - Eu acho que é um pouco o que eu já falei. Eu acho que a gente está num impasse. Você vê o movimento ambientalista, já teve muito mais palavras. Acho que a gente está num impasse e eu acho que esse impasse é causado por essa questão que eu falei, outras questões se colocam. Porque num primeiro momento mobilizou você só falar de preservação, hoje isso não mobiliza mais. Acho que a gente vai ter que falar da questão social, da questão da produção sustentável, da agroecologia. E a gente está num momento de virada para isso, a gente tem que fazer isso, esse é meu saldo. Acho que a gente teve, sem dúvida, um grande avanço, acho que não dá para piorar mais, apesar de que quando acontece barra grande a gente fala: "Nossa, ainda pode piorar!" Aquela florestona toda desaparecer, é inadmissível. Isso é absolutamente inadmissível nos dias de hoje. Mas enfim, a sensação que dá é que não dá pra piorar muito mais e que agora a gente tem que melhorar. Ir para frente, só pra frente e melhorar revendo a forma de atuação.
P/1- E Helena, o que você espera da SOS Mata Atlântica, daqui para frente, nos próximos dez anos?
R - É uma pergunta super difícil, porque eu trabalho numa organização também, então eu não sei. Eu acho que ela tem um papel tão crucial, tão importante para a Mata Atlântica. Eu acho que a SOS deve continuar tendo esse papel e deve focar suas ações. Eu acho que ela tem que pensar muito bem em qual vai ser a estratégia que ela vai ter para conseguir. Ela é tão importante nessa questão da mobilização, de dar visibilidade para a Mata Atlântica, de discutir quando, por exemplo, a SOS participa. Ah, outra coisa junto com o WWF, essa coisa do turismo sustentável. O WWF liderou um pouco essa discussão do turismo sustentável e a SOS também, então tem um trabalho conjunto. Acho que a SOS tem um papel na formulação de políticas públicas, na questão das campanhas, que é muito importante. Então eu acho que ela tem que pensar muito bem em como ela consegue focar para não ficar. E não só ela, para todas as organizações pensarem onde elas podem dar a contribuição delas, de fato, muito boa. Porque também esse é o motivo porque a gente deu uma desmobilizada, porque todas as organizações querem trabalhar com tudo. Não dá para você fazer campanha, fazer política pública, estar na mídia, fazer projeto de campo, fazer capacitação, discutir critério. Não dá para fazer tudo, então você tem que ter um escopo de projeto. Não que você não tenha que fazer alguma coisa só, mas tem algumas linhas de ação em que você foca seus esforços para realmente... E aí usar, ter parceria para conseguir outras coisas, prestigiar os teus colegas que trabalham com as outras coisas. E a gente juntos. Isso que eu espero da SOS, que ela consiga amadurecer, encontrar qual é o papel dela, fazer isso muito bem feito e que aí seja sempre minha parceria do meu programa da Mata Atlântica do WWF Brasil. Seja minha parceira em algumas ações conjuntas, outras que eu vou contribuir para fazer, que não é bem a praia dela, mas que ela vai poder de alguma forma colher os frutos. Eu quero colher os frutos de coisas que eu não vou fazer porque eu não vou focar em tudo. E que a gente consiga com isso. A SOS, o WWF, todas as organizações, irem compondo um mosaico com algumas interações, algumas intersecções, algumas coisas mais específicas. Porque se ficar todo mundo em cima de um lugar só querendo fazer a mesma coisa, além de não dar certo, ficar uma coisa meio, a gente vai deixar um monte de coisa descoberta. Então eu acho que esse é o grande desafio das organizações. Como é que a gente consegue se distribuir, fazer tudo, cada uma sendo muito boa na estratégia que adotar, no foco que adotar. Mas a SOS é do coração, tem um papel muito importante.
P/1 - Nós estamos chegando ao fim. Helena, pelo que você já falou, você começou o seu depoimento falando da importância da questão ambiental, como foi isso na sua vida, como foi acontecendo? Eu queria que você desse um fechamento. Qual o peso que tem isso na sua vida, se seria diferente, se você queria ter outra coisa, fazer outra coisa.
R - Jamais! Talvez cantar! (risos) Mas mais ainda do que talvez cantar, eu quero cantar para mobilizar. Eu estou achando fascinante trabalhar com o MST, por diversos motivos. Um deles é porque a arte faz parte do dia a dia do MST, e eu sinto que a arte e a música são um canal de comunicação, de educação, de troca e de aproximação fascinante, é uma ferramenta de trabalho. Até o canto, eu quero trazer ele como ferramenta de trabalho, apesar de que eu adoro cantar música de amor também, de fossa. Mas não, eu adoro o que eu faço. Talvez com o tempo eu mude um pouco o escopo, a organização, foque mais em uma coisa ou outra, mas eu adoro. E eu adoro a organização onde eu trabalho, eu acho que nesse momento eu estou no lugar onde eu quero estar, até porque eu acho que eu ainda tenho contribuições a dar. Eu acho que quando eu achar que naquele lugar, naquela instituição, fazendo aquela coisa, eu não tiver mais contribuição a dar, eu vou talvez trabalhar com outra coisa. Mas sempre na questão ambiental. Mas sob essa perspectiva que eu estou destacando o tempo todo, que é a questão de sociedades sustentáveis numa paisagem sustentável. Eu acho que o resumo é um pouco esse. O meu sonho, a minha utopia é: sociedades felizes culturalmente e mentalmente em paisagens conectadas, em paisagens que permitem o fluxo da vida, a continuidade da vida a longo prazo para sempre. E eu quero a minha vida inteira... Eu quero ficar bem velhinha, sabe essas velhinhas? Eu olho assim para o Doutor Adelmar Coimbra Filho, eu olho pro Almirante Ibsen, eu olho para o Doutor Paulo Nogueira Neto e falo: "Gente, é isso que eu quero." Sabe, acho que o dia que eu parar, não vai mais ter graça viver. Eu quero trabalhar com essa utopia, a construção dessa paisagem bonita, com gente, com floresta, com bicho. E quero cantar o resto da minha vida. São as duas coisas que eu quero fazer o resto da minha vida até eu ficar velhinha.
P/1 - Helena, você gostaria de falar alguma coisa que nós não perguntamos, que você quer dar um destaque maior?
R - Ai gente, eu falei tanto. Eu acho que eu gostaria, sim, de falar uma coisa. Eu acho que... Eu não sei como falar isso, mas eu acho que é importante, que é sobre criança, que é sobre geração, que a transformação... Uma vez ouvi isso e eu acho que é verdade: eu acho que ter filhos é uma chance de transformar o mundo. Não que todo mundo tenha que ter filho, absolutamente. Eu acho que é uma coisa que é necessária ou não é. E para mim sempre foi necessário. Eu tenho duas filhas que são… Eu acho que a minha vida são essas coisas, são a minha profissão, o meu trabalho, a minha contribuição, a música, minhas filhas — que são o maior presente que eu já recebi. São dois seres de luz maravilhosos e, tudo, muito do que eu faço é porque eu quero deixar um mundo para elas melhor e são as chances que a gente tem de transformar o mundo. Então eu acho assim que, uma coisa que eu gostaria, acho que se eu não trabalhasse com meio ambiente, eu trabalharia com criança, talvez, para questão ambiental. (risos) Não sei, mas eu acho que se cada pai, cada mãe, cada educador mais do que cada pai, cada mãe. Cada educador visse seu papel como um papel de educador e olhasse para seu filho e pensasse assim: "Sabe por que antigamente a gente falava de catástrofe ou de fim de mundo?" E era uma coisa distante. Hoje você fala de mudança climática, a gente está falando de quatro graus, um e meio, de mudanças muito radicais no planeta. E isso meus filhos vão ver, não é para daqui dez gerações, isso é para 2050. As previsões, minhas filhas vão viver isso, vão viver esse mundo, então já é uma coisa para amanhã. Então acho que é olhar para eles e falar assim: "Nossa, que mundo eu quero deixar pra eles?" E aí ir fazendo as pequenas construções, é no dia a dia, fazer ela olhar o passarinho, falar: "Você quer ter passarinho existindo ainda daqui cinquenta anos?" E aí, nas pequenas condutas... São as pequenas condutas que conduzem para uma participação, uma ação proativa na questão ambiental, elas começam com respeito. E eu acho que a gente tem que ser um educador para o respeito das pessoas com elas, com os amigos, com os parentes, com os outros, com a vida, e aí vem o respeito por tudo que nos rodeia. Não necessariamente elas vão ser ambientalistas, não sei se vão ser, pode ser que não, mas que elas tenham respeito pelos outros seres todos, pelas pessoas. E é no dia-a-dia que se constrói isso. Então acho que é isso que eu gostaria de dizer. A transformação pode se dar por aí. E eu me preocupo muito quando eu vejo uma geração que está meio sem pai nem mãe. Eu vejo na escola da minha filha, nos diversos lugares. Os adultos não estão olhando para os filhos com o devido cuidado. Tem um monte de teorias da educação, tudo muito evoluído, mas lá dentro de casa eles estão muito preocupados com os próprios umbigos e estão olhando muito pouco para as suas crianças de verdade, isso é uma coisa que me preocupa. Enfim, acho que é isso.
P/1 - Obrigada, Helena, por você ter vindo, te agradecemos muito.
R - Por nada, obrigada a vocês.Recolher