Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Getúlio Gomes de Oliveira Júnior
Entrevistado por Márcia Ruiz e Luiz Gustavo Lima
Paracatu, 14/06/2017
KRP_HV22_Getúlio Gomes de Oliveira Júnior
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Liliane Custódio
INÍCIO DA ENTREVISTA
P/1 – Então, Getúli...Continuar leitura
Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Getúlio Gomes de Oliveira Júnior
Entrevistado por Márcia Ruiz e Luiz Gustavo Lima
Paracatu, 14/06/2017
KRP_HV22_Getúlio Gomes de Oliveira Júnior
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Liliane Custódio
INÍCIO DA ENTREVISTA
P/1 – Então, Getúlio, é o bate-papo que a gente fez da outra vez, esquece a câmera.
R – Ah, tá, claro.
P/1 – A gente vai ficar batendo papo, a gente fica aqui olhando um para o outro e a gente vai...
R – Eu tenho que olhar pra você, não tenho que olhar pra ele, não?
P/1 – Não. É pra gente mesmo. Esquece que esse menino existe, ainda mais feio, careca assim (risos). Se fosse uma menina bonita, eu ia falar qual o problema?
R – Acho que eu ia ficar mais nervoso ainda, entendeu? (risos).
P/1 – É (risos). Então assim, é um bate-papo e a gente vai te fazendo algumas perguntas, se tiver alguma pergunta que você não queira responder, tudo bem. Eu vou muito provavelmente retomar algumas perguntas que eu fiz da outra fez, porque ficou muito legal o depoimento, ainda tem que fazer em vídeo, enfim. Mas vamos lá. Boa tarde, eu queria agradecer em nome da Kinross e do Museu da Pessoa a sua participação. E pra início, eu gostaria que você falasse seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Getúlio Gomes de Oliveira Júnior, tenho 37 anos e nasci na cidade de Registro, no Estado de São Paulo, mas a minha família é de uma cidade chamada Cajati (SP).
P/1 – E que dia você nasceu? Dia, mês e ano.
R – Vinte e nove de setembro de 1980.
P/1 – E qual o nome dos seus pais e atividade deles?
R – Meu pai tem o mesmo nome que o meu, fui homenageado, Getúlio Gomes de Oliveira, ao longo da vida, ele foi motorista de caminhão, caminhão rodoviário, depois passou a ser motorista de caminhão fora de estrada, na mineradora que existe na minha cidade. E ele aposentou, mas hoje continua ainda no ramo, tá no trecho, como diz o pessoal da área de mineração, como encarregado, supervisor de obras de mineração. A minha mãe, ela trabalha como pajem na creche municipal da prefeitura lá de Cajati, já trabalha há um bom tempo. Ambos residem em Cajati. A família ainda mora lá.
P/1 – E seus avós por parte de mãe e por parte de pai? Como era o nome deles e o que eles faziam?
R – Vou falar por parte de mãe, que é mais fácil, ainda estão vivos, graça a Deus. A minha avó se chama Rita de Cássia, ela é dona de casa, sempre foi dona de casa, e o meu avô é Orestes Godoi, ele trabalhava no Instituto de Terra do Estado de São Paulo, ele era topógrafo, hoje aposentado. Esse ano, acho que ele já faz uns 80 anos, ou já tem, não sei, mas ele era topógrafo. A minha avó por parte de pai se chama Rosália Gomes, ela sempre foi dona de casa também, já é falecida, e o meu avô mesmo por parte de pai, o pai do meu pai, eu não conheci, se chamava Fausto Pereira de Oliveira, ele morreu quando meu pai tinha acho que três anos. A minha avó se casou novamente, com a pessoa que eu considerei meu avô na época, se chamava Aristeu Gonçalves, ele era aqui... Ele dizia que era daqui de Minas [Gerais], de Diamantina (MG), mas tinha uma história meio nebulosa, a gente nunca soube direito, nunca visitou a família, ninguém nunca conheceu a família dele, mas ele era dono de um bar, tinha um bar lá perto de casa e um campo de futebol. Então ele era dono da bola e do campo e do bar, da cerveja, então ele era ali tudo.
P/1 – E me fala uma coisa, você sabe a origem da sua família?
R – Por parte de mãe, a minha avó materna eu conheço um pouco mais porque a história é um pouco mais interessante. O avô da minha avó, seria o tataravô, o meu tataravô, foi o primeiro prefeito da cidade da minha mãe, da família da minha mãe, que chama Eldorado Paulista, uma cidade pequena ali no Estado de São Paulo, e ele foi o primeiro prefeito da cidade, se chamava Carneiro... Eu esqueci agora o nome dele. Era uma pessoa muito conhecida da cidade, tudo mais, então, tinha uma história bonita. Mas acho que eles eram... Eu não sei de onde eles eram, não. Realmente não conheço. A minha avó... O meu avô por parte de mãe sempre contava a história de que a mãe dele era uma bugre, o pessoal falava lá em São Paulo, ela era uma índia que o pai dele, ou não sei se foi o avô dele, ou foi a avó dele que era bugre, que a pegou no meio do sertão em São Paulo, então tinha um lado indígena ali. Ele gostava de contar essa história, se é verdade, eu não sei. O meu pai falava a história dele, quando era criança, que na verdade eles vieram num navio. Meu pai adorava dizer a história de que eles eram de um navio chamado Violeta, que vieram lá de não sei onde. Mas era história pra criança mesmo, nada realidade.
P/1 – E, Getúlio, você tem irmãos?
R – Eu tenho uma irmã, que mora lá também em Cajati, casada, ela se casou com um boliviano e tem duas filhas, parecem bolivianas, o rosto assim meio indígena, uma gracinha.
P/1 – E ela é mais nova ou mais velha que você?
R – Ela é mais nova. Cinco anos mais nova.
P/1 – E, Getúlio, você falou que sua família é de Cajati, mas você nasceu em Registro?
R – Eu nasci em Registro porque Cajati é uma cidade pequena, é uma cidade de pouco mais talvez de 35, 40 mil habitantes. E na época era ainda um distrito de uma cidade chamada Jacupiranga (SP). Mas Cajati sempre foi maior, ou sempre foi mais importante, por conta da mineração. A cidade cresceu em função da mineração, não existia a cidade. Acho que existia algumas corrutelas, algumas vilas, mas em si não tinha. Então a cidade era um distrito e não tinha recursos. A única cidade que tinha um hospital na época era Registro, um hospital melhor, podemos dizer assim. E é uma cidade perto, a 50 quilômetros, uma cidade maior, uma cidade de imigrantes japoneses, uma cidade bem mais estruturada, eu nasci lá. Mas é pertinho.
P/1 – Você falou que Cajati é uma cidade de mineração.
R – É. Uma cidade de mineração.
P/1 – Na verdade, surge em função da mineradora.
R – Isso.
P/1 – Era mina do quê lá?
R – É uma mina ainda aberta, é uma mina em operação, uma mina de fosfato e também produz calcário. Cajati é considerada, quando você chega à cidade, você vê uma placa de: capital nacional da ração animal. Então ela produz... Ela tem uma mina de fosfato e também produz insumos ali, fertilizantes, ração animal. E a cidade cresceu a redor, tanto que a portaria da mina fica na praça principal da cidade. Então, você tem a praça principal da cidade e a entrada é ali. Na época, até quando a cidade foi emancipada, não tinha estrutura nenhuma, eu lembro que tinha mercado, chamava Gigante o mercado, o mercado era gigante, que pertencia à mineradora. E eles tiraram o supermercado e a prefeitura foi instalada lá. Então ficou na época até ali. Depois a cidade cresceu, mas a cidade realmente ficou muito em função da mineradora lá. Ainda tá em operação. Acho que é a maior mina em São Paulo, tirando calcário, tirando cimenteiras, mas acho que é a maior mina que tem no estado.
P/1 – Getúlio, eu queria que você contasse um pouquinho da infância, o que você lembra? Como era a casa onde você vivia? Conta um pouquinho pra gente.
R – Eu vim de uma família bem simples. A minha avó, quando ficou viúva, ela ficou viúva com três meninos, o meu avô teve um... O pessoal na época fala que teve um ataque cardíaco, que ele teve um mal súbito lá, então a minha avó passou muita dificuldade. Ela teve que dar os filhos, então ela deu pra que era madrinha, amigos ao redor, e meu pai foi criado dessa forma também. Então meu pai logo foi para o trecho, virou caminhoneiro, foi quando ele conheceu minha mãe. Eldorado é uma cidade muito perto de Cajati, acho que são 35, 40 quilômetros. Eles se casaram, viveram em Eldorado nos primeiros anos, depois ele foi pra Cajati, foram morar lá. A minha casa, a gente falava que era tipo uma vilinha ali, porque já era no final da cidade e morava a minha avó com as casas de todos os outros filhos dela, então tava meu pai, com todos os outros tios que moravam ali. Então, a gente cresceu com a família ali, mas era uma casa muito simples na época, passamos muitas dificuldades. Meu pai ficou um tempo desempregado, um bom tempo desempregado, quando eu tava ainda na pré-escola. Eu me lembro disso porque algumas coisas marcaram a infância da gente. Mas meu pai sempre forçou muito pra estudo, então eu sempre tive que estudar, porque apesar de ser uma cidade de mineradora, é uma cidade em que o forte é a banana. A maioria das pessoas vive da banana. A gente chamava de bananal, ainda chama, meu avô tinha um bananal. E a gente sempre tava ali ajudando meu avô, tal, mas eu nunca dei pra isso, eu não conseguia, meus primos todos fortes, grandes, e eu sempre fui mirrado, então, meu avô falou assim: “É, você vai ter que estudar”. Eu sempre estudei. Mas foi uma infância muito boa, tem um rio ali perto de casa, nadando, jogando futebol, uma infância comum numa cidade pequena, sem estrutura.
P/1 – E vamos voltar um pouquinho, com que você brincava? Você falou do rio. Vocês nadavam? Quais outras brincadeiras você gostava de fazer.
R – Ah, a gente brincava muito, gostava muito de jogar bola. Eu sempre jogava bola, porque meus primos eram os donos da bola e meu avô é dono do campo. Eu sempre fui muito ruim, mas eles eram obrigados a me suportar, porque era primo, então se eu contasse pra minha tia, eles iam apanhar, e também porque meu avô era dono do campo, então a gente tinha sempre moral, podia dizer assim. Mas brincava de bolinha de gude, uma época do ano que tinha mais vento a gente soltava muita pipa. Eu não sei como chama aqui, jogava muito taco, que era uma brincadeira que você tem dois tacos, bola, que você joga.
P/2 – Bets.
R – Chama Bets aqui? Tinha um também que chamava malha, que era um disco de metal que você jogava pra frente pra atingir. Eram essas brincadeiras de criança mesmo. Esconde-esconde, pega-pega, fugir da mãe pra nadar no rio, pegar amora, pé de goiaba, manga.
P/1 – E me fale uma coisa, como era a rotina na sua casa? Você saía pra ir pra escola pela manhã, à tarde? Conta um pouquinho pra gente.
R – Normalmente, eu estudei mais de manhã. A minha mãe era telefonista da antiga Telesp [Telecomunicações de São Paulo], então quando ela conheceu o meu pai, ela trabalhava com aquelas de ficar colocando ligações com os cabos, então ela trabalhava na Telesp, antiga Telesp. Quando casou, meu pai que é uma pessoa mais antiga: “Ah, não precisa trabalhar, eu te sustento, tal”. E minha mãe parou de trabalhar. Um tempo depois, acho que eu tinha uns sete, dez anos, minha mãe resolveu ir trabalhar. Quando a cidade emancipou... Foi isso mesmo? Não, eu tinha mais. A cidade emancipou em 93. Foi isso mesmo, foi em 93, então eu tinha 13 anos. A minha mãe resolveu fazer um concurso, eu me lembro disso porque a gente estudava junto pra ela passar, ela tava muito tempo sem estudar, eu tinha 13 anos, então eu tava na escola. E aí ela fez o concurso, trabalhou, passou na prefeitura como pajem. A nossa rotina, eu sempre ajudei em casa, eu e minha irmã sempre nos revezávamos na questão de limpar a casa. A minha mãe sempre ia trabalhar, então ela deixava já a comida pronta, a gente esquentava a comida pra comer. De manhã, tinha aula, então ia pra escola, de tarde a gente normalmente fazia as tarefas, tinha que fazer ou as tarefas de casa, ou as tarefas de escola, e a gente podia normalmente brincar até umas 18, 19 horas. Escurecia, tinha que ir pra casa. A minha mãe tinha... A segunda gravidez dela, a minha irmã faleceu com três meses com pneumonia. Então minha mãe sempre teve bronquite, eu nasci com bronquite, meu avô, o pai dela, tinha. Minha mãe tinha esse negócio com pegar friagem, então davam umas seis, sete horas da noite, a gente entrava pra casa. Mas eu gostava muito de ler. Eu sempre gostei muito de ler, então lá em casa sempre tinha aquelas enciclopédias: Barsa, Edipe, nem sei os nomes mais que chamavam, Trópico, os nomes que tinham lá em casa. Eu sempre gostei muito de ler. Então, a leitura sempre fez muito parte da minha vida. Normalmente, eu passava muito tempo lendo em casa de noite, então era um hábito bastante legal. Mas era a rotina. Minha mãe trabalhava o dia todo na prefeitura, então saía umas sete e meia, sei lá, sete horas da manhã. E a escola era relativamente perto, então a gente ia de bicicleta ou a pé, que ia todo mundo junto, os primos, a gente tinha mais ou menos a mesma faixa etária, eu e meus primos, então a gente ia a pé, na época podia isso. A gente ia a pé pra escola, dava mais ou menos um quilômetro e meio da escola, não era muito longe. Eu estudei até a oitava série na escola, participava da fanfarra lá, eu gostava muito da fanfarra. A gente tocava a fanfarra, participava das festividades na cidade, ou nas cidades vizinhas, concursos, era muito legal. Então, às vezes eu tava na escola de manhã e de tarde a gente ia pra fanfarra. Quase sempre a gente tinha que ir andando tocando até o centro da cidade, fazia as apresentações e os ensaios na praça da cidade e voltava também. Era muito legal. E de noite, em casa com os pais. Meu pai trabalhava de turno, então era muito complicado. Uma semana ele tava de noite, uma semana ele tava de dia, uma semana ele tava de tarde, então, era mais difícil a gente estar com ele. Às vezes, quando ele tava em casa, tinha que descansar também, era muito complicado, principalmente quando ele trabalhava durante a noite, e de dia a gente tinha que ficar quieto, então normalmente a gente saía de casa e ia pra rua brincar, porque tinha que deixá-lo quietinho pra descansar.
P/1 – Você falou que ele era caminhoneiro, ele trabalhava na mina? Ele puxava o minério, é isso?
R – É. Inicialmente, ele era caminhoneiro fora de estrada mesmo, acho que ele trabalhava numa empresa, que nem existe mais, ela chamava Companhia Brasileira de Reflorestamento. Ele era motorista, transportava acho que eucalipto ou pinho, não lembro. Aí ele saiu dessa empresa, foi pra Cajati na época e ficou um tempo desempregado lá, e ele conseguiu emprego numa empreiteira dentro da mineradora. Então ele trabalhava como motorista lá dentro de transporte de minério, transportava o minério ali da área de lavra até a britagem e ficava ali durante as oito horas.
P/1 – E essa mina, você conseguia perceber o impacto que ela causava na comunidade, no entorno? Qual era o impacto que você percebia?
R – O impacto que a gente via era porque a gente queria estar lá. Por exemplo, os meus tios trabalhavam... Era interessante que os meus tios trabalhavam na mineradora. Um tio em especial trabalhava na mineradora mesmo, então era visível a diferença, a questão da qualidade de vida que eles tinham. A questão, por exemplo, todo final de ano eles ganhavam brinquedo, ganhava aquela cesta que vinham aquelas coisas gostosas, que a gente nunca tinha. Meu pai trabalhava na empreiteira. Mas, a gente via a diferença, porque a mineradora criou uma vila. Tinha uma vila dos funcionários, que é uma vila maravilhosa. Eu entrei poucas vezes, mas as poucas vezes que eu [fui,] vi, realmente, uma vida muito bonita e organizada, os filhos deles estudavam num colégio particular; não tinha muito contato, digamos assim. Pra nós, a gente via as pessoas, mas não tinha contato algum, porque realmente a diferença, tanto social, quanto...
P/1 – De espaço?
R – É, eles moravam num local, que era no centro da cidade, a gente já morava mais longe do centro. A gente só ia ao centro quando precisava, quando ia fazer compra do mês, que fazia a compra do mês. A compra de durante a semana tinha aquela vilinha, aquela mercearia que você pagava na nota, fazia ali a caderneta. Mas era realmente diferente. A questão do impacto que a gente via na cidade, como criança, a gente não via muito, a gente até aproveitava às vezes algumas coisas, por exemplo, a minha casa ficava relativamente perto da área de... Na época chamava bota fora, uma pilha de estéril, então a gente ia muito brincar lá, ficar escorregando, quando os vigilantes não corriam atrás da gente, a gente ia brincar, escorregava, fazia as coisas lá. Mas assim, não era muito visível a questão... A gente via mineração todo dia porque a portaria dela ficava no centro da cidade, e os melhores empregos eram lá. Meu pai trabalhava na empreiteira, então o salário já era um pouco menor. Outros familiares meus trabalhavam na roça com o meu avô, na banana, o que a gente chamava de bananal. A questão de impacto, por exemplo, na época o desmonte, que era todo dia de tarde, então davam umas três, ou cinco horas da tarde, agora eu não lembro mais, mas a gente via aquela vibração, o ruído, mas nada além disso, não.
P/1 – E me fale uma coisa, eu queria que você falasse um pouquinho da escola. Você falou que uma coisa que a sal família cobrava muito era a questão da escola. Qual a sua primeira lembrança da escola e qual foi a primeira escola que você estudou?
R – Eu entrei na antiga pré-escola, antigamente a gente tinha... Antes de criar essas mudanças, que agora acho que a pré-escola é o primeiro ano, eu acho, mas entrei na pré-escola. A escola, eu lembro, ela tava ainda em construção, porque a gente estudou o primeiro semestre, a gente estudou na Igreja Batista. A Igreja Batista tinha umas salas, a gente fazia as aulas lá e, no segundo semestre, a gente entrou pra escola. Fomos a primeira turma a estudar no prezinho, a gente chamava de prezinho, inclusive é de frente onde minha mãe trabalhava na creche. Na época, ela não trabalhava ainda nessa creche, mas era do lado. E depois eu estudei da primeira série até a oitava numa escola chamada Victorio Zanon, era uma escola de primeira a oitava só, mas era uma escola muito boa, a diretora era a dona Cida, muito rígida, muito dura, então a gente tinha muito medo dela, eu sempre tive pavor dela. Quando falava que dona Cida ia conversar com a gente, a gente se borrava de medo mesmo, que ela era muito brava. Hoje tá até minha amiguinha no Facebook, é até engraçado. Eu me lembro de algumas coisas, por exemplo, quando comecei a ir pra escola, que a minha mãe fez pra mim uma bolsa de calça jeans, porque não tinha dinheiro pra fazer uma mochila, então ela fez pra mim uma mochila de calça jeans pra ir pra escola num primeiro momento, eu me lembro dessa mochila que ela fez pra mim. E lembro muito de ir com os colegas a pé pra escola, a gente ia brincando pra estudar. Estudei lá até a oitava série, acho que foi a melhor fase pra mim. E tinha a questão da fanfarra, que eu amava tocar na fanfarra, então eu entrei muito cedo e fiquei muitos anos na fanfarra tocando. Era uma forma de a gente viajar. A gente tocava em cidades ao redor, então foi a primeira vez que eu fui a São Paulo, foi pela fanfarra, a gente ia a cidades perto ali participar, então era muito legal. No segundo ano, quando a gente passava para o primeiro ano, a gente ia para uma escola maior, chamava Cajatão. Eu não lembro o nome dela direito, a gente a chamava Cajatão, que ficava no centro da cidade. Eu estudei o primeiro ano lá. E o segundo e o terceiro, meu pai conseguiu me colocar na escola particular, que a escola chamava Colégio Valribeira, que era o colégio onde estudava toda a elite da cidade. O que eu tenho de lembrança maior de lá foi que quando meu pai comprou os livros pra mim, que tinha que comprar os livros, eu fui fazer o segundo ano, eu me lembro do livro de Química, porque era um livro volume único para os três anos. E eu lembro assim, eu falei para o meu pai e mostrei: “Pai, a gente...”. Eu estudei um ano, eu estudei poucas páginas. Quando eu entrei para o segundo ano, eles já estavam na metade do livro, então assim, eu perdi tudo. A gente via a diferença de qualidade do ensino. Mas eu não posso reclamar do ensino que eu tive, principalmente da primeira à oitava, que foi muito bom, a escola era muito boa, e a questão da sopa, era muito gostosa a sopa, que a gente tinha todo dia lá a sopa. Eu lembro quando terminava assim a... A gente fazia o lanche, que normalmente era sopa, aquele macarrão com buraquinho assim, quadradinho, cortadinho. E eu lembro que quando a gente voltava pra casa, o carro da prefeitura passava na rua e a gente ficava com uma panela, porque eles iam parando nas casas pra quem quisesse pegar sopa que sobrava ali. A prefeitura já fazia com certa fartura, porque sabiam que as famílias eram mais carentes, então ele ia passando e a gente ficava lá esperando pra pegar a sopa também, então a gente comia muita sopa lá em casa (risos).
P/1 – E me fale uma coisa, Getúlio, você falou da fanfarra, o que você tocava na fanfarra? E o que te interessou? Como você entrou na fanfarra?
R – Eu entrei na fanfarra foi... A minha tia fazia parte do pessoal de frente da fanfarra. A minha tia era muito bonita, ela é muito bonita, não sei se vai aparecer isso, eu tenho que falar que ela é muito bonita ainda, mas é sim. E ela era a parte que ficava dançando ali e tal. E o meu primo, que é um ano mais velho que eu, acho que ele tava na época, e eles abriram uma seleção e eu queria tocar corneta, era doido pra tocar corneta. Mas eu não tinha fôlego, porque eu sempre tive problema de renite, tal, aí eu não consegui. E na época o instrutor me mandou fazer o teste tocando surdo. Era um instrumento redondo, que você colocava aqui na cintura e tocava aqui com a baqueta, eu comecei ali. E eu gostei muito porque era uma forma de aproveitar mais o tempo também, porque como a minha mãe não deixava a gente ficar muito pra fora de casa de noite, e o ensaio normalmente era cinco horas da tarde, ia até seis, sete horas da noite, então era uma forma que eu tinha de ficar na rua também. Que aí saía da fanfarra, aproveitava, já ia pra casa dos amigos ali pra ficar brincando: “Ah, onde você tava?” “Eu tava na fanfarra”. Então, era uma forma também de enganar um pouco ela. Mas eu gostava muito, porque chamava muita atenção na escola. A dona Cida, a diretora, ela gostava muito da fanfarra, tinha muito orgulho dela. Então a gente tinha certo privilégio assim: “Ah, toca na fanfarra”. E sempre quando a gente tinha as apresentações, usava aquele uniforme bonito, então era destaque. E eu fiz muitas amizades lá também. Então assim, acho que uma coisa levou a outra também. Então eu gostava muito da fanfarra, realmente acho que pra mim foi uma grande perda. Quando a gente mudou pra outra escola, a gente teve que sair da fanfarra também, foi muito ruim. A outra escola tinha fanfarra, era concorrente, mas eu não quis participar porque era concorrente. Então eu gostava tanto da outra... A cidade, eu acho interessante, aqui em Paracatu não tem isso, mas tinha essa concorrência muito grande das fanfarras, uma concorrendo com a outra, disputa de quem era melhor, realmente existia muito isso. Eu gostava muito. Eu sempre gostei de música, gostei muito, tanto que depois eu aprendi a tocar violão, quando eu tava em Ouro Preto (MG), e a minha esposa toca teclado, então assim, a música sempre esteve presente.
P/1 – E me fale uma coisa, Getúlio, você comentou um pouquinho dessa questão da fanfarra, que tinha uniforme. Você tinha uniforme na escola também, ou não?
R – Lá na Escola Zanon, na Victorio Zanon, não tinha uniforme, não. Não tinha, não. Que eu lembre, não. Acho que só tinha uniforme... Não, tinha sim. Tinha. Tinha uniforme, porque a gente inclusive tirava aquela foto, que você fazia assim, com a carinha aqui, que você podia estar resfriado, podia estar quebrado, você tinha que tirar aquele dia aquela foto horrorosa. Não, tinha sim. Tinha uniforme também.
P/1 – E como era esse uniforme? Descreva pra mim.
R – Nossa, não fala isso, não. Meu Deus do céu. (risos) Eu acho que ele era vermelho e branco, eu acho. Eu acho que ele era vermelho, a bermuda vermelha e a camisa branca. Se eu estiver mentindo, me perdoem os colegas lá da Victorio Zanon, mas eu acho que era isso mesmo.
P/1 – E você comentou do...
R – O do Victorio Zanon. O do Valribeira eu lembrava, porque foi o último ano, já tava mais velho, eu lembro, era verde, branco, com bermuda verde, faixinha verde. Esse eu lembro ainda.
P/1 – E como era o uniforme da fanfarra? Que você falou que era tão bonito, como era esse uniforme?
R – Ah, inicialmente era feio, era um uniforme meio amarelado. Depois a escola trocou, a prefeitura deu pra gente um uniforme bonito. Era um uniforme vermelho, tinha aquele chapéu na cabeça, a gente usava aquela sapatilha branca, o cinto aqui amarrado. Aquele chapéu grosso, quadrado, parece daqueles soldados franceses, aquele redondo, que tinha um amarrado aqui na gola. Era muito legal. Usava luvas pra tocar, passava mal, era quente, cheguei a quase desmaiar na apresentação uma vez, na cidade lá. Mas era um uniforme bonitinho sim. Esses dias até encontrei algumas colegas lá que tocavam. Mandaram os vídeos pra gente, minha mulher morreu de rir, que eu tava até chorando vendo, falava: “Ah, eu to lá, tocando lá!”. Foi muito legal.
P/1 – E o que vocês tocavam? Você lembra? Que tipo de músicas eram?
R – Eram sempre músicas da época. A música que eu mais lembro que a gente tocava, que eu gostava de tocar, era a música daquela do Airton Senna, aquela música do Airton Senna quando ele ganhava. A gente sempre tocava essa música lá. Mas eram normalmente músicas que estavam tocando na época, que estavam fazendo sucesso. E tinha os passinhos pra gente tocar. A gente andava e parava num lugar, fazia aqueles passinhos e tal. Esses dias mesmo eu mostrei para o meu filho o passinho que a gente fazia pra poder virar, tava aqui, pra virar pra lá e tal. Mas eram normalmente músicas que estavam tocando. Eu lembro muito da música do Airton Senna, não sei por que. Sempre me marcou essa música assim, era fácil de tocar, gostosa de tocar, então...
P/1 – Você falou que seu pai conseguiu a bolsa na escola...
R – Ele não conseguiu bolsa, não. Ele pagava mesmo. Era no dinheiro. Na verdade, o meu pai queria me colocar no primeiro ano lá, porque realmente o ensino na época no Cajatão não era muito bom e era uma escola mais perigosa e tal. A Victorio Zanon era uma escola muito tranquila, porque era uma escola de bairro, e dona Cida era muito brava, então era difícil a gente fazer coisa errada lá. O Cajatão já era mais complicado porque recebia alunos de toda a cidade. Todos os estudantes do ensino médio faziam lá. Meu pai queria colocar no primeiro ano, não conseguiu. Inclusive, tinha até um amigo nosso, que o pai dele queria que o filho estudasse lá, falou até que queria ajudar meu pai a pagar, mas meu pai não teve jeito. Eu entrei no segundo ano lá. Foi bastante difícil, porque foi muito puxado pra ele, na época, a questão de custo, realmente foi muito alto, foi um esforço bastante grande lá em casa. A gente passou bastantes privações pra poder eu estudar lá. A questão financeira realmente apertou bastante. Mas meu pai sabia o que tinha que fazer. Na época, meu pai queria que eu fosse médico, então ele botou na cabeça que eu ia ser médico, eu falei: “Ah, então tenho que estudar pra isso”. Mas ele sabia que o ensino público não ia ter condição alguma de passar numa faculdade federal. Minha mãe já trabalhava, a gente tinha casa própria, tinha um fusquinha na época, que ele comprou, então... Mas foi um arrocho lá em casa.
P/1 – E como foi passar por todo esse processo de arrocho aí e não fazer Medicina? Como você escolheu a sua profissão?
R – Graças a Deus. Assim, meu pai sempre quis que eu fizesse Medicina. Eu lembro que, na verdade, eu acho que eu também acho que de certo modo o incentivei nisso, porque uma vez teve uma redação na escola, eu não lembro quantos anos eu tinha, mas que era pra gente escrever sobre as profissões, o que a gente queria ser, e eu falei que queria ser médico. E a redação até ganhou um prêmio na escola como a melhor redação. Aí eles colocaram no quadro, que tinha um quadro de aviso perto da entrada da secretaria. Na época, ainda faziam aquelas cópias de mimeógrafos, então colocou lá. Então, eu acho que eu alimentei um pouco esse ego dele de ter um filho médico. E meu pai, coitado, nunca estudou. Meu pai conta que ele fugiu da escola no terceiro ano do primário. Mas meu pai sempre foi uma pessoa muita culta, ele gostava muito de ler, ler, gostava muito de ler. Ele sempre gostou muito de ler e ele me trouxe isso da leitura, jornal. Meu pai sempre foi uma pessoa muito politizada. E ele sempre, como meu avô também era, o sogro dele também era, e meu avô, ele era na época... Os dois eram concorrentes na época da ditadura ainda, acho que meu pai era Arena [Aliança Renovadora Nacional], e meu avô era MDB [Movimento Democrático Brasileiro]. Arena acho que era contrária, MDB era situação... Não. MDB acho que era contrária, Arena era situação. Então meu avô era Arena, meu pai MDB. Os dois sempre foram contra. Depois meu avô era Fleury [Luiz Antônio Fleury Filho, ex-governador do Estado], lá em São Paulo, que acho que Fleury, meu pai era Maluf [Paulo Maluf, ex-prefeito da cidade de São Paulo e ex-governador do Estado]. Sempre foi assim. Meu avô PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira], meu pai virou petista [integrante do Partido dos Trabalhadores]. Hoje ele é petista, eu não sou petista. Meu pai sempre procurava ler muito e tal. Nem sei o que eu tava falando mais... (risos).
P/1 – Você tava falando da coisa da Medicina…
R – Então, eu tentei realmente vestibular pra Medicina. Tentei, fiz vestibular igual ele queria, fiz na [Universidade] Federal do Paraná, fiz na Estadual de Londrina, Fiz primeiro em Londrina, eu lembro que eram 125 por vaga, graças a Deus não passei. Fui fazer na federal do Paraná, acho que eram 40 por vaga lá. Mas eu queria fazer História ou Geografia, queria porque queria fazer História ou Geografia. Meu pai falou o seguinte: “Quando você tiver 18 anos, você vai ter que pagar as suas despesas aqui em casa, então se quiser fazer História e Geografia, pode fazer, mas eu não vou pagar nada pra você fazer isso. Eu não quero ter filho professor. O salário é baixo, você não vai ter uma vida boa”. Ele viu que eu não passei em Medicina no primeiro semestre, e ele percebeu realmente, viu que Medicina era difícil mesmo. Eu fui muito mal na prova. Mas fui mal mesmo, eu fiquei desesperado. Na [minha] cidade, tem muita gente de Ouro Preto (MG). Cidade de mineração, tem muita gente de Ouro Preto, aí o pessoal sabia que o filho do seu Getúlio tava tentando vestibular, e um cara falou assim: “Olha, você não quer falar para o seu filho fazer Engenharia de Minas?”. Meu pai falou assim: “Mas ele não quer fazer”. Ele falou: “Eu vou lá e faço a inscrição pra ele. A minha família mora lá, eu faço a inscrição pra ele. Ele só vai ter que fazer o vestibular”. Meu pai chegou um dia lá em casa, falou: “Olha, você vai fazer Engenharia de Minas”. Eu falei: “O que é isso?”. Ele falou assim: “Ah, Engenharia de Minas é o engenheiro que trabalha aqui na mineradora, aqui na...” – a gente chamava na fábrica. “na fábrica.”. Eu falei: “Ah, quem trabalha na fábrica é doutor”. Falou: “Não, é engenheiro. Não é doutor, é engenheiro”. Porque a gente chamava de doutor. Eu falei: “Ah, então tá”. Tinha aquele manual do estudante da Revista acho que Abril, não sei, eu fui procurar saber o que era engenheiro de minas. Eu falei: “Nosso Deus, o que é isso”. Realmente, falei assim: “Interessante”. Mas com eu já tava desesperado pra passar, que eu tinha 17 anos, meu pai falou que se eu não passasse no vestibular, que ele ia começar a cobrar as despesas lá de casa, e eu vi que pra trabalhar no bananal eu não dava conta, que eu não tinha físico pra isso, pra trabalhar, eu falei: “Vou ter que fazer alguma coisa”. Aí eu tentei vestibular de Economia na estadual de Ponta Grossa. Fiz vestibular pra Economia. Que a gente sempre gostava de discutir política, então eu falei: “É uma área que eu acho que vou me interessar”. Fui pra Ouro Preto, fiz vestibular em Ouro Preto, e fui pra fazer em Ponta Grossa. Passei nas duas faculdades. Eu falei: “Ponta Grossa é mais perto” – eram 300 quilômetros, mas era uma estadual e era noturno. Ouro Preto era federal e eu vi que era assim a escola mais antiga do Brasil, Escola de Minas de Ouro Preto, a precursora na área de mineração, não sei o quê, criada por Dom Pedro II, aquela coisa toda, eu fiquei assim: “Pô, legal”. Eu gostava de história, falei: “Poxa, vou morar na cidade histórica. Não vou fazer História, mas eu vou morar numa cidade histórica” – que era Ouro Preto. Aí eu optei por ir pra Ouro Preto. Fui pra uma república, que meu pai escolheu a república com base na voz do estudante. Meu pai ligou pra várias. No manual do vestibular da federal de Ouro Preto tinha a lista das repúblicas com os telefones, aí meu pai ligou pra várias pra eu poder ficar lá pra fazer o vestibular. Meu pai conversou com várias, conversou com uma pessoa em particular, gostou da voz dele, que passou segurança, e meu pai falou assim: “Você vai pra lá”. Aí eu fui pra lá fazer vestibular, passei. E fui pra lá. Eu lembro que quando eu fui pra lá, eu e meu pai éramos muito, assim, uma relação muito distante, distante no sentido que não tinha aquela coisa do carinho, do abraço, meu pai sempre foi mais fechado. Dar presente para o Dia dos Pais era um parto pra mim, porque tinha que dar um abraço nele assim, aquela coisa meio mecânica assim. Não era questão de não gostar, mas era porque não existia essa coisa de abraço, beijo. Ele foi me ajudar a levar as coisas pra Ouro Preto. Nós fomos pra lá, ele ficou na mesma república que eu tinha feito vestibular, que ele foi lá conhecer a pessoa que ele gostou da voz dele, do Val, fazia Farmácia, se formou em Farmácia. Aí fui ficar lá na república, chama Cosa Nostra a república. Fiquei lá, ele ficou uma semana comigo. Em uma semana, eu acho que perdi uns cinco quilos lá. Ele ficou preocupado demais. Porque assim, eu nunca saí de casa. Eu fui sair do estado quando fui fazer vestibular em Londrina. Eu ia no máximo a Curitiba quando a minha avó me chamava pra fazer compra no Carrefour, então tinha um ônibus fretado, que ia todo mundo da cidade, ia lá ao Carrefour, fazer compra lá no Carrefour e no... Chamava Makro, acho que era um mercado de atacado. Então o máximo que eu ia era a Curitiba assim, então eu nunca saí de São Paulo. E quando eu fui pra Ouro Preto, aquele tanto de estudante, ficar sozinho assim, meu pai ficou desesperado, porque eu emagreci. Eu lembro assim, quando eu fui embora, quando ele foi se despedir de mim lá na rodoviária, eu lembro que a gente se abraçou assim, sabe, e eu chorei muito na época. E ele chorou também, porque acho que a questão da distância, e a gente ia ficar longe, assim, a primeira vez que a gente ia ficar longe, e ele sabia que a gente só ia se ver no semestre, nas férias do semestre, porque acho que eram mais de 900 quilômetros, então assim, foi interessante porque quebrou um gelo que havia. O sentimento sempre houve de amor, mas era a questão da proximidade mesmo. Meu pai sempre foi muito mais carinhoso com a minha irmã. A minha irmã foi adotada. A gente sempre a abraçou muito, então meu pai sempre teve muito... Mas eu fui muito sempre ligado mais a minha mãe, de abraçar, beijar e tal. Foi uma coisa muito legal, porque quebrou um gelo que existia assim. Eu fui morar em Ouro Preto lá na república, fiquei lá um semestre batalhando vaga, chamava batalhando vaga, não passei. Não passei, porque eu era muito insubordinado... Eu sempre fui evangélico, então eu não sabia... Eu cheguei lá, foi uma diferença muito grande, a questão de festas, a questão de bebida, coisa normal da juventude, mas que era diferente da minha juventude. Eu cresci num lar evangélico, numa família evangélica, então eu tinha muita dificuldade de adaptação. Fui muito bem recebido, tenho até contato com alguns hoje, tudo mais, mas eles perceberam: “Getúlio, seu lugar não é aqui, não adianta, você não encaixa com a questão da república”. Tentaram até pra eu ficar mais um semestre, mas era um custo muito alto na época. E meu pai, eu lembro assim, ele fez da seguinte forma: como a gente tinha o mesmo nome, ele fez da seguinte maneira, ele deu um cartão pra mim dele, o cartão dele, o cartão era em conta conjunta com a minha mãe, então ele ficou com o cartão da minha mãe e ele me deu o cartão. Ele falou assim: “Olha, esse cartão aqui é o dinheiro da família, então todo mês você vai ver o saldo, quanto entra, quanto sai, então você tem que a partir de agora saber administrar os gastos, porque se você gastar muito aqui, você vai tirar de lá. Então eu não vou te dar uma mesada, você vai administrar de tal forma que a família não venha passar dificuldade”. Aí eu fui morar num alojamento da faculdade, que eram umas quitinetes que morava uma pessoa, que no final a gente colocou um beliche pra morar duas pessoas, aí eu consegui uma vaga lá, porque tinha um colega da igreja que morava lá, tinha uma vaga aberta, fui morar com um colega de Farmácia também, formado em Farmácia, e eu fui morar lá. Foi a primeira experiência que eu tive com a questão de gestão de custo, porque quando eu cheguei lá, o morar falou assim: “Olha, você já tá chegando aqui, tem uma geladeira, tem um fogão, não tem uma televisão. Então pra você morar aqui, você vai ter que comprar uma televisão”. Eu fui lá com ele a Belo Horizonte (MG) e nós fomos comprar uma televisão em BH. Foi a primeira vez que eu fui a BH. E eu comprei a televisão, uma Mitsubishi de 14 polegadas, paguei 330 reais, dividi em três vezes. Meu pai quase pegou o ônibus pra ir lá atrás de mim. Falou: “Você tá louco? A gente ganha 700 reais por mês, você gastou cem reais com uma televisão, ainda tem mais as suas despesas, mais as nossas despesas”. Foi quando eu vi que realmente o dinheiro que tinha na conta era pra todo mundo, não era só pra mim. Mas eu comprei a televisão lá. Ficou comigo até agora. Até o ano passado ela tava aqui em casa essa televisão ainda de lembrança.
P/1 – E qual foi sua primeira impressão quando você chegou a Ouro Preto? Porque assim, você gostava de história, como foi a sua primeira impressão?
R – Foi muito diferente porque realmente o ambiente é muito diferente. Cajati é uma cidade muito pequena e a gente vive no meio da família. Então eu cresci com os meus primos, os avós e tal. Todas as férias eu passava na casa dos meus avós maternos, todas as férias eu passava lá. A minha avó paterna e meu avô paterno moravam do lado de casa, então, a família tava sempre presente. Quando eu fui pra Ouro Preto, eu já sabia que eu ia ficar seis meses em Ouro Preto e só ia pra lá nas férias de julho. E é uma cidade turística, com muitas festas, então era tudo muito fácil lá, digamos assim, a juventude, a questão de bebida, a questão das festas, a questão de tudo, então, foi um choque muito grande. Cidade completamente diferente, cidade grande, relativamente grande, cheio de morro, aquelas casas enormes, aqueles casarões. Eu fiquei: “Gente do céu, onde eu tô aqui?”. E o clima também, o frio, o inverno lá é muito frio, aquela neblina o dia inteiro, aquela coisa assim: eu odiei, queria ir embora. Eu queria ir embora, eu falei que eu ia embora, falei: “Vou transferir pra Federal do Paraná, fica a 150 quilômetros de casa, vou mudar pra Engenharia Florestal, que é possível mudar” – olhei tudo, tudo, tudo. A minha mãe um dia falou: “Mas pra que você vai ficar perto da gente aqui? Aproveite esse momento que você tá longe pra você crescer também, desligar um pouco, ser independente. Aproveite. Você tá sozinho aí, você pode fazer o que quiser” – digamos assim. Ela falou: “Você já tentou gostar da cidade?”. Eu tava batalhando vaga. Eu sofri muito nesse primeiro semestre a questão de batalhar vaga. Porque tem a questão dos trotes e tudo mais. Não é que foi tão forte, acho até que o trote meu foi meio light também, mas eu era, como dizia o pessoal, eu era criado com a avó. Como eu era muito calado, era magrinho, entrei com 17 anos, era o mais novo... Mas no final eu comecei a gostar. Eu dei a chance à cidade. Quando eu dei a chance à cidade, foi que realmente eu gostei, porque aí eu já comecei a fazer amizades com o pessoal da faculdade, tinha o pessoal da igreja, que ficamos muito próximos, a minha esposa, a gente ficou muito amigo, a gente fez uma amizade muito grande eu e ela, tinha os irmãos dela. Então, a cidade foi me abraçando, abraçando, tanto que quando teve uma greve na época lá muito forte, eu fiquei um ano sem ir à casa, porque eu já tava trabalhando na faculdade numa pesquisa, sendo pesquisador lá, bolsista, e dava aula de História para o supletivo, que tinha um programa de supletivo na faculdade. Hoje eu tenho vontade de voltar, pra morar lá. Minha esposa não gosta, que ela é de Mariana, ela acha o clima lá muito frio, a questão de temperatura, ela passava muito mal, ela também tinha bronquite e tal. Mas hoje eu sou apaixonado por Ouro Preto. Se eu pudesse voltar...
P/1 – O que era batalhar pela vaga? Explica pra gente o que era.
R – É porque a gente era calouro, então, a gente não tinha direito a gente ainda não era morador. Não era morador ainda. A gente tava lá pra provar que a gente merecia permanecer na república. Então, tinha uma série de trotes, eles colocavam apelido, eles colocavam uma placa. Eu nem cheguei a usar a placa, por isso que meu trote não foi tão difícil. Eu não era pra ficar lá mesmo. Eles colocavam uma placa na pessoa assim: meu nome é fulano de tal, batalho vaga na república tal. Raspava o cabelo, meu cabelo até que eles rasparam. E aí, por exemplo, de vez em quando, eles pegavam o seu quarto, eles davam o vento: bagunçavam todo o seu quarto. Você chegava da faculdade, tava suas roupas tudo num varalzão de roupa amarrada uma na outra assim. Chegava, aquele tanto de roupa lá. Às vezes escondiam sua roupa, ficava uma semana, você tinha que ficar uma semana com a mesma roupa. Onde tava a sua roupa? Eles escondiam as roupas nas repúblicas, então você tinha que rodar todas as repúblicas pra achar sua bendita roupa. Era muito assim. Hoje a gente ri, na época a gente ficava com raiva. Eu nunca vi os trotes de Ouro Preto como uma coisa pesada. Nunca teve esses trotes pesados que às vezes a gente vê que teve na faculdade em São Paulo, eram mais brincadeiras mesmo, usar a placa. Então o cara, por exemplo, se eram dois estudantes do mesmo curso, que entraram juntos, então às vezes pegava aquelas caixas de bicicleta, aquelas caixas compridas de bicicleta, faziam dois buracos, iam os dois juntos pra faculdade. Tinha que ir o tempo todo, só tirava na hora de entrar na sala de aula. Entrava na sala de aula, tirava a caixa, saía da sala de aula, tinha que botar a caixa os dois. Então, tinha que ir para o banheiro junto, almoçar junto, pra biblioteca junto. Tinha umas coisas muito legais, muito criativas. Hoje eu nem sei se tem mais isso lá. Acho que o politicamente correto é tão chato, que acho que eles tiraram esse negócio também agora.
P/1 – E como foi a faculdade? Conta pra gente como foi cursar o curso de Engenharia de Minas sendo que foi escolhido mais ou menos... Não foi uma escolha inicial sua.
R – Não. Não foi, não. Não.
P/1 – E como foi o curso? Teve algum professor que te marcou?
R – Assim, o curso pra mim, os primeiros anos foi a base normal, então a gente tinha aula num prédio que se chama ICEB, que é o Instituto de Ciências Exatas e Biológicas. Todo mundo que entrava de Engenharia, Matemática, Biologia, ficava no mesmo prédio, então a gente tinha as disciplinas até o quarto, quinto período, era tudo igual, praticamente. A gente estudava com todo mundo, com o pessoal de Minas, de Civil, de Metalurgia, de Geologia, todo mundo. Com o tempo, eu fui gostando. Eu sempre gostei de exatas. Mas eu queria fazer História e meu pai queria que fosse Medicina (risos). Mas eu sempre gostei um pouco de exatas. E mineração tinha um legal que é a questão do campo. A gente tinha muita aula de campo pra fazer a questão de pesquisa, as visitas técnicas. Eu falo assim que eu não gostei de primeira, eu fui me apaixonando pelo curso. Os professores eram muito bons também, tinha pessoas maravilhosas lá. Um professor que eu lembro muito, muito inteligente, chamava... Chama, ele é vivo ainda, José Aurélio, professor José Aurélio. E ele era uma pessoa muito inteligente, inteligentíssima assim. Ele ora escrevia com a mão direita, ora escrevia com a mão esquerda. E ele era muito legal, que às vezes a gente tava no corredor, ele vinha correndo e dava aquela deslizada no corredor assim, sabe? Ele me marcou bastante. Eu lembro que ele fazia da seguinte forma pra gente não colar, ele dava um papelzinho pra gente e a gente podia colocar tudo que a gente quisesse naquele papelzinho, dos dois lados, qualquer tamanho que a gente quisesse, mas tinha que escrever à mão. Quando chegava na hora da prova, ele pegava o papelzinho, ele olhava o papelzinho. Não podia ser impresso, não podia ser colado. Ele dava um papelzinho pra cada um, então tinha um formato exato, um padrão pra todo mundo, então cada um escrevia com a menor letra possível, com a caneta de ponta mais fina possível, todas as fórmulas, tudo, e a gente podia levar isso pra prova. Era a cola que ele chamava: “Vocês podem colar do jeito que vocês quiserem com isso aqui”. Mas a gente nunca conseguia tirar nota boa, porque realmente eram muito difíceis as disciplinas dele (risos). Mas assim, eu tive muito bons professores lá. A faculdade realmente é muito boa.
P/1 – Ele dava aula do quê, esse José Aurélio?
R – Ele dava aula de Tratamento de Minérios, que foi a disciplina que eu mais gostei. Era Tratamento I, II e III. Foi quando eu realmente percebi que eu queria na parte de tratamento de minério, de beneficiamento. Nós, como engenheiro de minas, podemos trabalhar ou na mina, na lavra, ou no beneficiamento. Foi quando eu comecei a ter aula ali com ele que eu vi que realmente eu queria trabalhar com o beneficiamento. Foi o que me marcou realmente, digamos assim, deu a direção pra área que eu queria trabalhar. Tanto que depois, eu fiz pesquisa com um professor lá na parte de tratamento de minérios, o meu primeiro estágio foi na Samarco [Mineração S.A.] dentro da parte de tratamento de minérios. Eu só fiz um estágio na mina pra saber que eu não queria mesmo mina. Fiz um estágio numa empresa em Lavras (MG), fiquei um mês lá fazendo estágio dentro da área de mina, de operação de mina, pra justamente saber que eu não queria trabalhar com aquilo mais. Pra depois falar assim: “Ah, mas eu não tentei”. Eu tentei e não gostei.
P/1 – Essa mina que você foi fazer o estágio era mina do quê?
R – Era mina de calcário. Tava abrindo uma mina. Eu não sei se ainda hoje pertence, mas pertencia a Camargo Corrêa. Ficava numa cidade pequenininha chamada Ijaci (MG), uma cidade de sete mil habitantes, nem isso acho que tinha. Mas ela ficava muito perto de Lavras, era uma coisa de dez quilômetros de Lavras, cinco quilômetros. Era muito perto de Lavras. Lavras é uma cidade maravilhosa. A gente ficou, tinha uma república lá dos funcionários, nós ficamos lá em Ijaci. Pra mim não foi bom, não. Não gostei, não. Porque a gente trabalhava de sete da manhã, até sete da noite, de segunda a sábado, era muito puxado. Domingo eu só dormia. Eu ficava o dia inteiro dormindo. E tinha muito mosquito, muito mosquito. Nossa, era pernilongo demais lá. Eu não gostei. Juntou tudo. Mas era legal porque eu fiz estágio numa empresa chamada Fagundes, Construtora Fagundes, que era um pessoal do Sul. Era muita gente do Sul, então todo dia de tarde paravam os caminhões, eles paravam os caminhões assim, ficavam todos ali os caminhões parados em fila, e eles paravam pra tomar o chimarrão. Era legal essa interação. Ficava todo mundo ali tomando, passando chimarrão um para o outro, conversando e tal. Era todo mundo de fora, todo mundo era gaúcho, então eles contando as experiências deles lá do Sul, as histórias e tal. Era até muito legal. Fazia aqueles churrascos gaúcho e tal. Foi uma experiência boa.
P/1 – E, Getúlio, você falou que quando você sai da república, da Cosa Nostra, que eu achei ótima.
R – Cosa Nostra. Cosa Nostra.
P/1 – E como era? Você foi morar dentro do...
R – Era um alojamento. Pensa numa... Era um prédio até bonito, o prédio tinha um formato de uma roldana, aquelas rodas dentadas, então embaixo ficava o refeitório da faculdade, o restaurante, no meio ficava a imprensa da faculdade, algumas secretarias e tal, e em cima ficavam, nas roldanas, naqueles dentes da roldana, digamos assim, ficavam as quitinetes. Era uma quitinete pequena assim. A minha esposa tinha pavor de lá. Pavor, pavor. Eu adorava lá. Era pequenininho. Eu morava com um cara de Farmácia, morei até ele se formar. Ele é de Linhares (ES), chama Gamaliel. Infelizmente, eu perdi o contato dele. Mas ele era de Farmácia, estudante de Farmácia, ele também era evangélico, de outra igreja, mas ele conhecia todo mundo, da igreja que eu frequentava, aí falou que eu podia morar com ele, então a gente tinha uma relação muito boa. Ele era um pouco genioso, ele que mandava, porque ele era o morador mais velho, mas nunca tive problema também. Como ele estudava muito, Farmácia é um curso bastante difícil, ele ficava com raiva de mim, porque Minas não é curso tão difícil quanto Farmácia, digamos assim, na questão de disciplinas. Então ele ficava muito na biblioteca, e eu ficava muito dormindo às vezes. Ele ficava com raiva por causa disso, que ele chegava, eu tava dormindo de tarde. E ele estudando aqueles livros lá de reações químicas, interações biológicas e tudo mais, e eu dormindo na faculdade lá. (risos) Mas tinha uma relação muito boa. De noite então, quando ele tava na biblioteca estudando, eu costumava às vezes ir pra igreja, ficava com o pessoal da igreja, ou tava na biblioteca também, estudando. Então, a gente tinha pouco contato. Mais era o final de semana. E final de semana, normalmente eu ia pra casa da minha sogra. Eu ia pra lá. Eu não namorava a minha esposa ainda, mas a gente era muito amigo, então minha sogra me adotou. Dava sexta-feira, eu ia pra lá, dormia lá sexta pra sábado, sábado pra domingo, domingo de manhã que eu voltava pra Ouro Preto.
P/1 – E você ia pra Mariana todo final de semana então praticamente?
R – Todo. Todo. E depois que eu comecei a namorar, ia mais ainda. Só não ia quando, às vezes, ficava estudando, ou tinha que fazer alguma coisa, que minha esposa, até hoje ele se lembra disso, que ela morre de raiva, falando que eu a trocava por algumas coisas. Mas, quase todo final de semana, eu ia pra Mariana. É muito perto, são dez quilômetros de distância. É uma descida, Ouro Preto é no alto, Mariana é embaixo, era rapidinho.
P/1 – E tua esposa também estudava em Ouro Preto?
R – A minha esposa era moradora de Mariana. Ela era gaveteira, como diz o pessoal lá, era moradora de Mariana, o pai dela trabalhava lá, ele tinha uma empresa de engenharia, ele foi pra construção da Samarco, ele trabalhou na construção da Samarco, depois ele abriu uma empresa dele de construção civil, ele fazia projetos de casas, essas coisas, e a minha sogra trabalhava na Secretaria Estadual de Educação em Ouro Preto. Ela era estudante na época. Quando eu fui pra lá, nós temos a mesma idade, quando eu fui pra lá, ela tinha acho que saído do ensino médio e tava tentando vestibular pra Nutrição. Ela queria fazer Nutrição. Não passou em Nutrição, depois ela tentou Biologia. Aí ela passou em Biologia? Não. Sei que no final das contas, ela trabalhava lá como professora. Tinha aquela questão do Magistério, ela se formou no Magistério e ela dava aula lá nas escolas de ensino infantil. Mas ela era professora, mas ela queria fazer faculdade de Nutrição. Aí não passou. E eu sempre pegando no pé dela pra fazer Letras. Ouro Preto tem um curso muito bom de Letras. E ela sempre dava aula, eu falei: “Você dá aula, você é professora, gosta” – na época ela gostava de dar aula – “Por que você não faz Letras?”. Aí ela fez Letras, passou em Letras, mas infelizmente não terminou, porque nós nos casamos e ela com medo de ficar solteira, pra não ficar encalhada, eu falava isso com ela, ela casou e largou o curso. Largou o curso e fez aqui em Paracatu Pedagogia. Fez Pedagogia. Mas ela, coitada, veio pra cá trabalhar, ela trabalhava na prefeitura, realmente as escolas aqui de bairro são muito perigosas, ela realmente perdeu a crença, como diz o povo, na educação, aí ela desistiu. Hoje ela tá cuidando da família, dona de casa.
P/1 – E me fale uma coisa, Getúlio, eu queria que você contasse um pouco quanto tempo você fez o curso. E você citou alguns estágios. Você começou a fazer estágio a partir de que...
R – Eu comecei a fazer tarde o estágio, porque eu fiz o curso em cinco anos, me formei no tempo normal de curso lá em Ouro Preto. Os primeiros dois anos e meio realmente era curso normal e tal. Aí surgiu uma vaga, chamava Escritório Piloto dos Estudantes de Ouro Preto, que era um grupo de alunos que dava aula. Tinha curso de mestre de obras, carpintaria, instalações elétricas e tinha supletivo. Aí eu dava aula de História e Geografia pra comunidade. Eu adorava, porque dava aula pra aquelas senhoras, aqueles senhores, um pessoal mais de idade. Era um curso preparatório para o supletivo. A gente preparava as pessoas pra depois fazerem a prova do Estado, que é aquela prova pra conseguir o diploma. E eu me dediquei a isso também. Não era tão fácil conseguir estágio lá, porque as mineradoras todas ali já absorviam os estudantes mesmo. E tinha muito também de “fulano que é conhecido de ciclano, beltrano, tal”. Porque muito dos estudantes lá eram irmãos de pessoas que já trabalhavam, tinham tios. E eu realmente fui fazer estágio quando eu vi que eu era obrigado a fazer estágio. Eu gostava muito da pesquisa. Eu trabalhava dentro do laboratório, que gostava muito do laboratório. E assim, o problema é o seguinte, o estágio tinha que ser estágio nas férias. Eu tinha que escolher: ou eu fazia o estágio, ou ia pra casa dos meus pais. Na maioria das vezes, eu optei por visitar os meus pais. Então eu fiz somente dois estágios, fiz um no final do curso. O primeiro estágio, eu fiz, eu tava no sétimo período, acho, sétimo para o oitavo, e o último estágio, eu fiz, tava no nono para o décimo. O primeiro estágio eu fiz na Samarco, na área de britagem, e o segundo estágio eu fiz na Fagundes, lá em Lavras, eu fiz acho que do nono para o décimo. Foi entre o nono e o décimo.
P/1 – E o que é estágio na britagem? Explica pra gente o que é britagem.
R – A britagem é o primeiro estágio, que a gente fala, da cominuição. Primeiro estágio da moagem, da redução de tamanho das partículas. Porque você tem a mina, e se o minério for muito duro, você faz ali, você fragmenta o material com explosivos. Se não for, a própria carregadeira mesmo, ela consegue carregar o material. Então a britagem, normalmente tem alguns equipamentos que você reduz um pouco o tamanho das partículas minerais. É um processo a seco, normalmente são grandes equipamentos. E a Samarco, ela tinha muitas correias transportadoras, então eu fiquei muito focado nas correias. As correias transportadoras são aquelas correias que transportam o minério. Então o material saía da britagem, e pra ele chegar até a próxima etapa, ele tinha muitos jogos de correias. Eu fiz estágio ali acompanhando o sistema de medição, checagem das balanças, eu fazia apontamento das horas de operação, das falhas, onde teve as falhas, os desgastes. Não foi um trabalho de longo prazo, foi só um mês. Foi muito curto, mas foi muito bom pra mim, porque a primeira vez que eu tive contato realmente com a indústria e a Samarco sempre foi o sonho de qualquer engenheiro de minas que trabalha lá, sempre foi o sonho de qualquer um que trabalha lá, eles sempre estavam na vanguarda de desenvolvimento, a questão de salário, a questão de ambiente de trabalho. Mas eu fiquei na britagem mesmo lá, que é a primeira etapa de beneficiamento.
P/1 – E essa mina era de...
R – É uma mina de ferro. Samarco é aquela mineradora que infelizmente teve aquela barragem que teve aquele rompimento, mas ela é uma mineradora de ferro.
P/1 – Então, Getúlio, eu queria eu você falasse um pouco, você falou que fez esses dois estágios e se formou. E aí o que você fez? Voltou pra Cajati?
R – O que aconteceu? Cajati, assim, foi na época que tava começando a ter aquela coisa de e-mail, internet. E lá em casa, os meus pais não tinham telefone, ninguém tinha telefone lá perto de casa. Tinha um orelhão em frente ao bar do meu avô. Então, quando eu queria conversar com a minha mãe, quando eu ligava pra minha mãe, eu ligava uma vez por semana para os meus pais, eu ligava pra aquele orelhão. Ligava lá, meu avô atendia e gritava: “Fulano, ciclano, quer falar com você”. Tanto que quando minha irmã conheceu o marido dela, eles se conheceram, ele tava se apresentando naquelas festividades que aqueles bolivianos tocam aquelas músicas andinas, aquela coisa, tava todo paramentado e tal, foi quando eles se conheceram, numa praia. Aí pra falar com ela tinha que ser por orelhão, então ligava para meu avô: “Ah, fulano, tal”. Eu falei: “Se eu for pra Cajati, eu vou ficar deslocado do mundo, porque não tem telefone, não tem internet, não tem computador. Como eu vou fazer pra conseguir um emprego?”. Então, na época eu conversei com a minha sogra, que na época ainda não era a minha... Não, já era minha sogra, a gente já tava namorando. Eu conversei com a minha sogra, e eu tinha que sair do alojamento, porque se formou, o alojamento tinha que abrir vaga pra alguém, nada mais justo. Eu conversei com a minha sogra, a minha sogra deixou ficar na casa dela. Mas eu comecei a participar de processos seletivos. O processo da Kinross, na época era RPM... Era Rio Tinto [Mineração] ainda. A vaga era pra Rio Tinto, que era a proprietária da RPM. Eles abriram um processo seletivo pra três vagas, era um projeto programa trainee. Eram três vagas: era um pra trabalhar no beneficiamento; um pra trabalhar na área de planejamento de lavra; e um pra trabalhar em barragem. Então, abriu um processo seletivo pra fazer em Belo Horizonte, o processo seletivo era em Belo Horizonte, e eu participei desse processo, já próximo a formar. Mas eu já tava desesperado, desesperado. Na faculdade, tinha aqueles quadros de vagas, de oportunidades, tinha vaga em tudo quanto era lugar. E eu comecei a ligar, mandar o currículo, mas currículo de quê? Não tinha nada. Aí eu participei desse processo, participei do processo seletivo da Votorantim aqui que era pra trabalhar, na verdade, na Votorantim em Vazante (MG). Participei de todos os processos seletivos. Não passei na Votorantim, mas eu participei do processo seletivo aqui e passei. Eu me formei na faculdade... Eu consegui emprego aqui no dia... Eu assinei minha carteira no dia 22 de abril de 2003, e eu me formei, a festa de formatura, eu acho que foi mais ou menos entre março e abril, porque teve aquelas questões de greve, então teve atraso, atrasou tudo. Eu só lembro o seguinte, quando eu me formei, eu já tava empregado, eu já tinha recebido a proposta da Kinross. Eu lembro até que eu tava na casa da minha esposa, na casa dela, quando a moça me ligou falando que eu tinha passado. Eu fiquei desesperado de felicidade. A pior coisa foi gritar falando meu salário, aí que ela quis casar mesmo, não teve jeito, não (risos). Porque eu dava aula em Ouro Preto, eu ganhava cem reais. Eu ganhava cem reais por mês dando aula à noite, eu ganhava mais 50 reais fazendo pesquisa, porque era uma bolsa de cem reais, e a gente dividia, eu e um colega meu, e meu pai mandava pra mim mais 50 reais. Então eu tinha 200 reais por mês e eu ganhava bolsa de alimentação, que era aluno carente, então eu ganhava bolsa de alimentação, meia refeição, não era inteira, era parcial, então eu só tinha direito a uma refeição, ou almoço, ou jantar. Eu tinha uma refeição e morava no alojamento. Então, era uma coisa bem regrada. Quando eu recebi a proposta, que eles falaram pra mim... Eu lembro até hoje o número. Se você me perguntar hoje quanto eu ganho, eu não sei, pergunta pra minha esposa, ela sabe, ela sabe exatamente quanto eu ganho, ela que controla. Se você perguntar quanto eu ganho, eu não sei, eu falo que acho que é mais ou menos isso. Ela que faz a gestão lá de casa. Muito bem. E aí: dois, 330. E falei: “Gente, eu saí de 200 reais pra dez vezes mais”. Eu saí gritando dentro de casa, da casa dela, falando: “Eu tô rico. Eu tô rico”. Ela não falou nada, só, digamos assim, três meses... Foi o quê? Eu vim pra cá em abril. Abril, maio, junho, julho, em julho eu já tava noivo. Eu nem aproveitei o meu dinheiro, não teve jeito. Porque eu lembro que aí nós começamos... Eu ia de 15 em 15 dias. Tipo assim, fiquei noivo em julho, já marcou o casamento pra janeiro do ano seguinte, e eu ia de 15 em 15 dias, de 15 em 15 dias eu tinha que trazer as coisas. Trazia varão, trazia cobertor, coisa de enxoval. O cara ficava doidinho, ficava morrendo de rir. Um dia, eu tava na mão assim aquelas balancinhas de cozinha, que ela falou que eu tinha que levar na mão pra não quebrar. Sabe aquelas balancinhas de cozinha? O cara olhou, falou assim: “Pra que essa balancinha de cozinha?”. Eu falei: “Eu também não faço a menor ideia, minha mulher mandou levar. Minha noiva mandou levar”. Mas assim, eu acho que fui o primeiro da turma que consegui emprego realmente. Aí eu vim pra cá. Vim pra cá, eu cheguei aqui, fiquei um tempo num hotel, a empresa pagou pra mim umas duas semanas de hotel. Aí fui morar numa quitinete. Uns meses depois, a minha sogra já veio com a minha esposa aqui pra olhar casa pra mim já. Já vieram olhar casa entendeu? Em janeiro, quando eu casei, já tinha uns dois, três meses, que já tava com casa alugada, tudo já, tava tudo pronto já. Ela rolou e rodou.
P/1 – Quem pediu em casamento quem?
R – Ela. Ela morre de raiva até hoje. Por isso que a gente não assiste filme romântico lá em casa, eu não gosto de assistir filme romântico. Eu criei antipatia por filme romântico, porque ela começa a comparar as coisas. Aquele cara que vai de joelhos, pede assim: “Você quer se casar comigo?”. Ela fica morrendo de raiva que não teve nada disso. Ela chegou pra mim: “Você não vai me pedir em casamento, não? Nós já estamos há três anos namorando”. Eu falei: “É bom, né? Vamos casar então”. Eu falei assim: “Chama seu pai então aí”. Chamou o pai dela, falei: “Olha, nós vamos nos casar”. Ele falou: “Beleza. Boa sorte”. Falou comigo assim ainda. Então foi ela que pediu em casamento. Não vou nem falar mais nada, não, porque senão vai me comprometer depois (risos).
P/1 – (risos) E me fale uma coisa, qual foi sua primeira impressão aqui de quando você fez o processo seletivo, você falou que fez em BH.
R – Não, foi em BH. Eu só vim pra cá pra fazer a entrevista mesmo. Teve uma entrevista no site. Como na minha eram duas vagas, era uma vaga pra tratamento e uma vaga pra planejamento de lavra, então eu fiz entrevista com o gestor da área de lavra, o gestor da área de beneficiamento, fiz com uma pessoa dos recursos humanos e fiz também com o gerente geral. Fiz quatro entrevistas. E na época foi muito bom, porque eles me perguntaram qual área, falaram: “Olha, você já chegou até aqui, tem duas vagas, você pode trabalhar em planejamento de lavra, ou você pode trabalhar em beneficiamento”. Ele falou: “Você pode escolher qual você quer. Não quer dizer que você vá pra ela, mas se você puder escolher, qual você quer”. Na época eu fui sincero, falei assim: “Eu tô desempregado, pra mim qualquer coisa... Eu me formei em Engenharia de Minas, eu posso trabalhar em qualquer área, eu tenho capacidade pra isso. Fiz estágio nessas duas áreas e tenho condições”. Eu falei: “Se eu puder escolher, eu gostaria de trabalhar com o beneficiamento”. E graças a Deus eles me chamaram pra trabalhar com o beneficiamento. Inclusive, pra lavra também foi chamada uma moça de Ouro Preto também, que preferiu trabalhar em lavras. Mas graças a Deus que eles me escolheram pra beneficiamento.
P/1 – E o que você foi fazer como engenheiro trainee em beneficiamento? O que era isso?
R – Pois é, eu vim pra fazer a entrevista... Na verdade, eu nem conhecia a cidade. Eu cheguei aqui, a gente pegava o ônibus da Sertaneja, então ele chegava a Paracatu cedo. Ele chegou cedo, eu já fui fazer a entrevista, e ia voltar de noite. Eu fiz a entrevista durante o dia, esperei um ônibus pra voltar, que acho que tinha um ônibus 11 horas da noite, foi 11 horas da noite acho que peguei o ônibus, porque eu lembro que eu fui à igreja ainda. Fui conhecer o pessoal lá. Eu não conhecia a cidade. Fiquei no hotel aqui e não conheci. Fui realmente conhecer quando eu vim pra cá. Eu gostei muito da cidade na época, eu falava pra minha esposa que... Foi na época daquela febre da Banda Calypso. Falei: “Carol, tem uma banda aqui que toca umas músicas, e tudo quanto é lugar...” – e tem muito churrasquinho aqui – “Tudo quando é churrasquinho toca essa tal de Banda Calypso e um tal de Moranguinho do Nordeste”. Moranguinho do Nordeste. Lembro até hoje dessa música, Moranguinho do Nordeste. E na época a Calypso não tinha despontado no Brasil ainda. E eu achava muito bonito o céu aqui em Paracatu de noite. Aqui como é muito seco, então o céu é sempre estrelado, a lua é muito grande. Eu sempre achei muito bonita a lua aqui em Paracatu, não sei por quê. Mas eu me acostumei muito fácil com a cidade. Eu não tenho essa questão, em qualquer lugar eu me adapto muito bem. Tendo uma televisão, na época um vídeo cassete, que ainda tinha, e uma locadora, pra mim qualquer coisa. Que eu sou apaixonado por filme... Mas eu me adaptei muito bem à cidade.
P/1 – E você falou que foi morar em uma quitinete. Onde era essa quitinete?
R – A quitinete ficava em... Tinha uma praça que tinha uma barriguda centenária, que eles depois até a derrubaram, mas era uma pracinha no centro da cidade, ficava em cima do antigo posto dos Correios, era uma quitinete assim, uma coisa horrorosa de feia. Eu não sei até hoje por que eu escolhi aquele lugar, não sei. Devia estar muito doido. Porque era muito feio. Era uma quitinete que o cara... Era uma sala comercial, que ele colocou uma divisória de gesso pra fazer o quarto, tinha uma cozinha... Não era uma cozinha, tinha uma pia, um fogão, e a janela dava pra um buraco no prédio. Era horrível. Horrível. Eu fiquei lá acho que uns... Eu fiquei lá de abril até outubro, mais ou menos, foi quando a minha esposa, a minha esposa escolheu a casa que a gente ia morar. Aí eu mudei pra lá já. Mas era muito ruim. Muito ruim. Não gostei de lá, não.
P/1 – E me fale uma coisa, Getúlio, você veio como trainee e era engenheiro trainee em beneficiamento. O que era ser engenheiro trainee em beneficiamento?
R – Eu vim pra cá pra trabalhar com laboratório. Era pra trabalhar com um projeto chamado de geometalurgia, que era um projeto pra gente entender o comportamento do minério antes de ele entrar na planta. Quer dizer, pra determinadas áreas, eu mais ou menos saber o comportamento metalúrgico daquele material, ou seja, saber naquela área o quanto de ouro eu vou recuperar. Então eu vim pra trabalhar nesse projeto específico, dentro do laboratório. Eu acho que foi isso também que chamou atenção quando eu fui selecionado, porque eu já trabalhava em laboratório de beneficiamento dentro da faculdade, então eu já tinha experiência com os equipamentos de laboratório, a questão de qualidade, a questão de operação. Eu vim pra trabalhar dentro do laboratório, mas ligado à área de beneficiamento. Então eu ficava mais dentro do laboratório do que das plantas. Mas eu lembro o seguinte, quando eu vim pra cá, eu não conheci meu chefe, porque, na verdade, quem me entrevistou foi o gerente, e abaixo do gerente tinha um chefe de departamento. Não foi ele que me entrevistou. Eu acho que na época ele ficou um pouco mordido por causa disso. A gente tem até hoje um bom relacionamento, ele já não tá mais aqui na Kinross, mas eu lembro que eu fui conhecê-lo duas semanas depois que eu cheguei. Porque eu cheguei na primeira semana, fiz o introdutório de segurança, aquela semana de integração, os treinamentos de saúde, segurança e meio ambiente. E depois ele só chegou o seguinte: “Prazer, me chamo...” – o nome dele é Armando – “Chamo-me Armando. Você vai agora pra planta, vai ficar uma semana planta. Depois que você ficar lá, conhecendo a planta, num turno, quero que você vá pra um turno, a gente vem e conversa”. Mas pra mim foi legal, porque na primeira semana eu fui pra planta e foi quando eu realmente a conheci, vi a questão... Eu ficava seguindo as tubulações: essa aqui sai daqui, vai pra cá. Bomba. Decorei os nomes dos equipamentos, a disposição, então pra mim foi bom. Depois dessas duas semanas que eu fui realmente trabalhar na área lá. Eu lembro que meu primeiro e-mail, eu demorei duas horas pra escrever o e-mail, morrendo de medo de o que eu ia escrever no e-mail, aquela coisa. Mas foi muito bom. Eu fui bem. Eu tive bons tutores. O Armando foi uma pessoa muito boa, me ensinou muito. Ele tinha uma engenheira na época, chamava Natália, uma engenheira química, ela que me ensinou a ser organizado. Que ele era extremamente bagunçado, e ela extremamente organizada. Ela que me ensinou essa questão de todo dia chegar de manhã, fazer todo um mapa do que vai ser feito, as reuniões, o que tem que entregar e tal. Eu tenho todos os cadernos desde que eu comecei. Todo dia eu faço uma agenda. Então se você for olhar assim: “Getúlio, o que você fez no dia tal há cinco anos?”. Eu vou lá, eu tenho até hoje o caderno, eu abro pra você: “Olha, nesse dia eu tive essas atividades, essas reuniões, eu fiz isso e tal”. Eu tenho até hoje guardado todos eles.
P/1 – E me fale uma coisa, Getúlio, quando você foi nessa primeira semana de mina, o que você percebeu de diferente da primeira mina que você trabalhou, de estágio, e daqui?
R – Ah, o tamanho. O tamanho na época. Nossa, era muito grande. Hoje é pequena. Engraçado isso, como é a questão... A gente vê quando a gente era menino, vê que as coisas parecem tão grandes, depois você cresce, você vê que é tão pequeno. Quando eu vim pra cá, me espantou o tamanho da mina, da empresa. E Paracatu na época já era a maior mina do Brasil de ouro. A planta era muito grande. Hoje a planta é pequena, porque a gente tem uma planta que é três vezes maior que ela. Então é engraçada essa questão do tamanho. Mas pra mim marcou muito. E ela era uma planta já antiga, quando eu vim pra cá, 14 anos atrás, ela tinha 15, 16 anos de operação. Era uma planta muito velha, digamos assim, os equipamentos antigos, tinha muito transbordo, muito material acumulado. O aspecto em si não era bom, mas o que eu gostava era do cheiro. Adorava o cheiro quando eu ia lá em cima, tinha aquele cheiro dos reagentes que eram adicionados no processo, e tinha alguns álcoois, então o cheiro era muito gostoso. Ninguém gosta, mas eu gosto daquele cheiro, até hoje. Eu gostava de ir lá em cima, no topo da planta, e lá ficava olhando, que lá de cima você a vida toda, de cima pra baixo, e marcou muito. E eram poucos engenheiros na época. No beneficiamento só tinha eu de engenheiro, então eu falava assim: “Poxa, eu to aqui dentro. Eu faço parte de uma equipe. E cheio de...”. Na época de gringo. Você vê assim: “Pô, pertencia ao Grupo Rio Tinto, que era a maior mineradora do mundo”. Você ia lá à sala do gerente geral, tinha uma série de troféus, tinha uma espada, que eles ganhavam de um prêmio de segurança, uma espada, parecia aquelas espadas de espadachim, aquelas espadas inglesas de cavaleiro. E cheio de troféus, de fotos antigas. Eu falei: “Gente, isso aqui é uma história, é uma coisa inacreditável”. Eu não conseguia acreditar que eu fazia parte daquilo.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho, como você explica o processo... Porque quando você fala de laboratório, a sensação que me vem, de uma pessoa leiga, é que ali é o microcosmo do macrocosmo.
R – Isso. Exatamente.
P/1 – O que é esse processo quando você fala do processo de minério? Então como se dá o processo e qual é esse processo? Eu queria que você explicasse pra gente.
R – A gente, assim, aqui em Paracatu, eu falo o seguinte, que Deus foi generoso com Paracatu, mas ao mesmo tempo ele nos deixou um desafio, quer dizer, não nos deu nada de mão beijada. Porque eles nos deu um teor muito baixo, que é um ponto realmente desafiador, mas ele nos deu na época uma mina com uma reserva muito grande, tanto que ela tá até hoje em operação, já faz 30 anos, e tem mais ainda uns 15 anos de vida, 15, 20 anos, e nos deu um material muito macio. Ou seja, a gente conseguia trabalhar. Pra justificar o teor ser muito baixo, a gente precisa movimentar muito material pra produzir a mesma quantidade que minas menores produzem com volumes bem menores de material processado. O nosso processo era o seguinte, a mina tem os caminhões, carregadeiras, os equipamentos, eles transportam esse material pra britagem, onde a gente reduz o tamanho das partículas. Esse material é transportado via correia pra uma etapa seguinte chamada moagem. A moagem é a primeira etapa em que existe o contato com a água. É um tubo grande, um tubo grande, um cilindro enorme, maior que essa sala aqui, ele fica girando, existem bolas, que são esferas metálicas dentro dela. Quando o minério entra junto com a água, vira uma polpa, aquela polpa, e ali, aquele cilindro tá girando, as bolas estão ali o tempo todo caindo, então existe um processo de cominuição, de fragmentação. Então reduz o tamanho das partículas. No nosso caso, por exemplo, a gente reduz de mais ou menos 14 milímetros, o tamanho de uma partícula, se for pegar, por exemplo, a planta um como exemplo, e reduz pra mais ou menos um tamanho final de 200 micrômetros. A primeira etapa então é a britagem, a segunda etapa é de moagem, depois que eu faço a moagem desse material, esse material, a gente chama de classificação. O processo se chama classificação, o equipamento se chama hidrociclone, é um cilindro em que a polpa entra com uma velocidade tal que cria um vórtice, como se fosse um ciclone mesmo, de tal maneira que as partículas grosseiras, elas vão para o fundo, e quando elas vão para fundo, elas voltam para o moinho pra ser moído novamente. E fica em circuito fechado. Quando o material tá pra chegar ao fundo desse cilindro que tá girando no ciclone, ele tem uma restrição de saída, aí essa restrição de saída faz com que se crie outro ciclone, no sentido contrário. Então tem um ciclone nas paredes externas, onde o material grosseiro tá passando, e tem um ciclone que vai no sentido contrário, com as partículas finas, aí essas partículas finas vão pra etapa seguinte, que é a etapa de flotação, que é um processo onde tem um tanque grade em agitação, onde se entra ou o ar forçado, com compressor, ou então ar natural, ele entra por uma diferença de pressão. Então entra o ar, quando esse ar entra, esse agitador, essa hélice agitação, quebra esse ar em microbolhas, isso dentro do tanque agitação. A partícula tá toda molhada, ela tá em polpa. A gente adiciona reagentes que faz com que essa partícula, que normalmente é hidrofílica, ou seja, ela gosta de água, se pegar aqui uma terra, jogar água, ela molha. Quando você recolhe, você torna essa partícula hidrofóbica, ela tem aversão à água. Como tem um monte de bolha subindo. A bolha é muito maior que a partícula, o tamanho da bolha é muito maior que da partícula. Quando essa partícula encosta na bolha, ela adere a bolha pra uma interação química e essa bolha sobe com essa partícula pra cima. E lá em cima ela é coletada. Aí eu gero um concentrado. Então, pra você ter uma ideia, a gente sai de mais ou menos 0,4 gramas por toneladas, que é o nosso minério, e a gente enriquece, nessa primeira etapa, pra mais ou menos entre dez a 15 gramas por tonelada. Então a gente tem uma razão de enriquecimento muito alta, eu saio de 0,4 gramas, pra dez a 15. A etapa seguinte é a etapa de lixiviação, onde, novamente, são tanques em agitação, até esse presente momento, ou ouro continua sendo o que ele é, o ouro no estado sólido, como, por exemplo, essa minha aliança, que tá no estado sólido. Só que esse ouro tá associado a alguma partícula, então eu tenho, por exemplo, uma partícula aqui, o ouro tá aqui encapsulado, ou ele tá aqui preso, tem uma superfície à mostra, mas o ouro tá ali, eu não o tirei ainda. A forma de nós tiramos esse ouro é solubilizando-o, ou seja, tirando-o do estado sólido, jogando-o para o estado líquido, fazendo com que o ouro saia do estado sólido para o estado líquido. E a melhor forma econômica, ambiental, de se fazê-lo é adicionando cianeto. Então, o cianeto tem a seguinte propriedade, o cianeto em contato com o oxigênio, reage com o ouro e o transforma do estado sólido para o estado líquido. Dentro desses tanques a gente adiciona carvão ativado. O carvão se parece com um grão de arroz, mais ou menos o mesmo tamanho de um grão de arroz, negro, é um grão negro, ele é feito de casca de coco, só que é casca de coco da Ásia. O nosso coco não gera um carvão de qualidade, então normalmente é feito na Ásia. Esse carvão é muito poroso. Carvão é leve. Se pegar um pedaço de carvão pra churrasco, você vê que ele é leve. Esse carvão tem muitos poros, microporos, poros microscópicos, então ele atua como uma esponja. Na hora que esse ouro está lá naquele tanque em agitação, todo solubilizado, no estado líquido, na hora que o carvão entra em contato com essa polpa, o carvão, a gente fala que ele “adsorve”, ele cria uma ligação com o ouro, o ouro entra nesses microporos. Eu pego esse carvão, tiro desses tanques, levo pra etapa seguinte, onde é feito um processo onde eu removo o ouro desse carvão. Esse carvão volta para o circuito novamente depois, a gente falando assim em termos bem simples, existem algumas etapas no meio delas, mas tentando simplificar ao máximo. Esse ouro, a gente manda depois pra etapa de fundição, onde eu gero aquelas barras, aquelas barras de mais ou menos 20, ou 30 quilos, que são nossas barras aí.
P/1 – Deixe-me te perguntar uma coisa. O processo de remover o ouro do carvão, você faz isso como? É um processo químico?
R – É um processo químico. É um processo químico. É um cilindro num tanque grande, ele trabalhava com determinada pressão, a uma determinada temperatura, e a gente adiciona nele uma solução com PH, um determinado PH, e essa solução fica passando nesse carvão. O carvão fica paradinho lá dentro desse tanque, e na hora que eu passo essa solução por dentro desse tanque, a solução sai aqui de baixo, sobe aqui, cai em cima do tanque... Não, o contrário. De baixo, sobe, passa e fica ali, e aí vai removendo o ouro daquele carvão. Eu pego essa solução, levo essa solução que tem ouro para uma etapa seguinte, são células eletrolíticas, uma célula onde eu faço uma descarga positiva e negativa, existem ali umas chapas metálicas, onde o ouro adere essas chapas. Ali o ouro já passou novamente para o estado sólido. Eu pego esse material, essa lama, podemos dizer assim, levo para aqueles fornos que vocês veem, que ficam ali em ebulição, depois derrama, aqueles desenhos, aquelas imagens do ouro sendo derramado ali naquelas lingoteiras.
P/1 – Então assim, esse processo todo que você nos descreveu, ele é feito dentro do processo de beneficiamento da...
R – Eu não aprendi isso, não. Como engenheiro de minas, a gente aprende até... O engenheiro de minas, ele não muda o estado do bem mineral. O engenheiro de minas trabalha na pesquisa mineral, a lavra mineral, ao beneficiamento mineral. O ouro continua sendo ouro saindo da pesquisa, passando na mina, indo para o beneficiamento, continua sendo o ouro que ele é. A etapa seguinte, de metalurgia, é uma área que normalmente quem trabalha é o engenheiro metalurgista, que mexe com essa questão de transformar um bem mineral em algo, num ferro, num aço, numa liga. Então eu fui aprender aqui. Eu aprendi a trabalhar com metalurgia, a hidrometalurgia, no caso, que é essa específica. Na metalurgia, ela chama hidrometalurgia porque a gente trabalha com tanques em polpa. Eu fui aprender aqui.
P/1 – E o que você faz? Qual o seu trabalho dentro do laboratório? O que você agrega de valor a esse processo todo que você descreveu de uma análise do micro para o macro?
R – Eu sempre trabalhei ligado aos laboratórios. Eu comecei como engenheiro trainee, depois eu passei pra engenheiro pleno, pra engenheiro sênior, passei pra chefe de departamento, e hoje estou como gerente de desenvolvimento tecnológico. Então eu sempre trabalhei com os laboratórios dando suporte à operação. Eu sempre falo o seguinte, dou o seguinte exemplo: é como se você faz um bolo, alguém faz o bolo, mas alguém cria a receita. Então, o processo cria a receita, a operação faz o bolo. Então o nosso trabalho é o seguinte, é a gente sempre explorar ao máximo a capacidade do sistema, ou seja, a gente consegue recuperar mais o ouro? A gente consegue aumentar mais a alimentação do minério, ou seja, a quantidade de minério alimentado na planta? Tem algum equipamento, alguma tecnologia que estão despontando no mercado que podem ser aplicados aqui? Então o nosso trabalho é desenvolver opções para as plantas. Então a gente trabalha muito ligado à operação. A gente não é operação, mas a gente é ligado à operação. É uma área ingrata, podemos dizer assim, porque às vezes a pessoa fala assim: “Ah, mas você tá cobrando algo que você não faz, porque você não é operação, você não sabe bem o que é, você não tá lá no dia a dia”. Mas acaba que a gente tá lá no dia a dia, porque a gente precisa entender. Quando tem problema, a gente precisar dar a solução, suportá-los. Como a gente consegue transferir do microcosmo para o macrocosmo? A gente faz uma série de testes, reproduz o que tá acontecendo na planta e sempre dá informações pra planta: olha, esse minério tá com esse problema; esse minério se você fizer dessa forma, você vai maximizar a questão do ouro: “Ah, nós estamos com problema nessa área, nós vamos pegar algumas amostras, vamos levar para o laboratório, vamos entender o que tá acontecendo; ah, vamos fazer uma campanha de trabalho dentro das plantas e ver o que tá acontecendo, por que tá com esse problema”. E como os projetos também. Todos os projetos que estão aqui dentro de operações, de alguma maneira passaram pelo laboratório. De alguma maneira, eles passaram pelo laboratório. O próprio projeto de expansão começou em laboratório, numa escala de laboratório, para uma escala piloto, pra entregar para o acionista, falar assim: “É possível fazer uma planta desse tamanho”.
P/1 – Eu vou voltar um pouquinho antes de a gente começar a falar da segunda planta. Então, por exemplo, dentro de todo processo, e aí eu tô falando desde a lavra, até o beneficiamento, depois o processo metalúrgico também pra chegar à barra de ouro, pelo que você tava falando, ele de alguma forma é reproduzido dentro do laboratório. O que uma mina como essa trouxe pra vocês em termos de desafios conforme foi se desenvolvendo o trabalho? E aí eu to perguntando nos três processos, na lavra e no beneficiamento. O que tem de diferença na profundidade da mina, ou no lugar onde vocês extraem a lavra? Eu queria que você explicasse um pouco. Ou se ela é uniforme.
R – A mina não é uniforme. Tanto não é uniforme que, por exemplo, ontem aqui foi feriado na cidade, e aí eu aproveitei e fui a Brasília, fomos a Brasília, passamos o dia e Brasília, e hoje de manhã, por exemplo, eu tinha marcado com o meu chefe de não vir trabalhar na primeira hora do dia, eu ia voltar aqui por volta das dez, porque eu tinha que levar meu carro pra fazer uma documentação lá junto com a Polícia Civil. E o meu chefe me ligou, falou: “Você tá precisando vir aqui, a gente tá com algum problema”. Então, a gente foi direto pra mina. Até tô meio sujo hoje porque a gente passou a manhã lá dentro da mina. O minério não é uniforme, tem surpresas, digamos assim. O que a gente tenta fazer cada vez mais é nos antecipar a essas surpresas, e a melhor forma é a questão de conhecer mais o minério. O minério vai evoluindo com o tempo, conforme a mina vai aprofundando, a gente tem algumas vantagens com o minério mais profundo, porque a questão da confiabilidade do teor é maior, a uniformidade é maior. Mas tem outros desafios, como a dureza também é maior, a gente tá ficando cada vez mais próximo da comunidade, então a questão de ruído, poeira, desmonte, a vibração é cada vez mais presente. Se a gente for olhar como era a empresa há 14 anos, quando eu vim pra cá, e a empresa hoje é completamente diferente. Os desafios mudaram, as pessoas mudaram também, grande parte delas mudou, e os desafios realmente são diferentes. Quando eu vim pra cá, a empresa pertencia a um grupo muito grande e ela era muito pequena dentro do grupo, respondia por muito pouco dentro do faturamento, então a pressão externa era muito pequena. A pressão maior era nós internos mesmo de querer fazer cada vez o melhor. Hoje é um pouco o contrário, quer dizer, a Paracatu responde por um valor considerável dentro do faturamento da empresa, do Grupo Kinross. Paracatu, o tamanho dela é extremamente impactante na performance do grupo como um todo. Então, a questão da pressão externa é muito maior, a presença do corporativo aqui, ela se faz de uma forma muito mais clara, incisiva, direta, do que era no passado. Então isso vai mudando realmente. E por conta dessas próprias mudanças que muitos também optaram por sair. Eu falo o seguinte, pra mim, como processo, é difícil a gente encontrar no mercado uma empresa que nos dê tantas opções. Eu sempre gosto de dar o seguinte exemplo, eu nunca tive o meu orçamento cortado. Tudo aquilo que eu pedi de melhorias, de investimento, a empresa sempre, sempre, sempre foi aberta. Fazer um contrato com um consultor, mandar uma amostra pra fora, comprar um equipamento, isso tudo a empresa sempre foi muito aberta. Por quê? Porque sempre precisou trabalhar em desenvolvimento. Sempre a empresa precisou se reescrever, se reinventar. E o laboratório é parte essencial disso. Eu tenho dificuldade de ver no mercado, principalmente no mercado nacional, alguma empresa que talvez conseguisse suprir esse desafio, digamos assim, diário. De certo modo é ruim também, que cansa, meu cabelo tá branco já por conta disso. Mas o desafio realmente pra nós mexemos bastante com a empresa no dia a dia.
P/1 – Você colocou uma coisa que pra mim trouxe uma questão de surpresa até, porque assim, o que você falou, o engenheiro de minas, ele não trabalha, pelo menos, ou ele não estuda o processo de transformação desse minério, mas lá dentro do laboratório você foi obrigado a aprender isso pra poder pensar.
R – Sim. Exatamente.
P/1 – E aí me vem uma pergunta. Como é feito tudo... Por exemplo, o rejeito, a gente sabe que o rejeito pode ser melhor aproveitado.
R – E nós estamos aproveitando.
P/1 – E também tem uma questão do impacto.
R – Sim.
P/1 – Então a questão do cianeto. Eu queria que você falasse um pouquinho de como vocês trabalham pra mitigar o impacto... Basta estar vivo que a gente já tá trazendo impacto.
R – Exatamente.
P/1 – Mas, enfim, como vocês desenvolveram esse trabalho de mitigar esse impacto?
R – A primeira coisa que precisa entender é o seguinte, a empresa hoje divide o rejeito em dois materiais bastante distintos e pra cada um há um tratamento específico: 98% mais ou menos do que a gente retira da mina vai pra uma barragem. No caso, a nossa a nossa barragem é em Eustáquio, nossa barragem em Santo Antônio. Então, nessa barragem tem toda uma questão de controle ambiental, mas é uma barragem que inclusive a própria água que ela fica ali estocada, a gente fala que é água classe dois, aquela água que não serve pra consumo humano, mas é uma água que serve pra recreação. É uma água de uma qualidade às vezes superior à água de rio, por exemplo. Com relação a esse material, especificamente falando, hoje, por exemplo, nós temos um projeto de reprocessamento desse material, que começou, inclusive, dentro do laboratório. Tem um projeto chamado PSAT, que me inglês chama Processing Santo Antônio Tailings, ou Processamento do Rejeito da Barragem de Santo Antônio. Então a gente parte da barragem hoje, a gente tá retomando esse material. Nós estamos dando uma nova oportunidade de recuperação. E indo muito bem até, podendo dizer que tá realmente superando as expectativas. É um projeto que começou mais ou menos em 2000... Nós estamos em 2017, 2016, começou em 2014 pra 2015. Algumas amostras que foram coletadas, vimos que deu resultado, eu fui até à África do Sul conhecer algumas minas que tinham processo semelhante. E agora tá em operação. Desde o ano passado tá em operação. Estamos fazendo isso e também estamos fazendo na barragem nova, a Barragem Eustáquio, também estamos recuperando uma parte do rejeito. O outro rejeito, que responde a 2%, é um rejeito que é um pouco mais perigoso, então ele fica estocado em tanques revestidos. Então a área de deposição desse material, ele fica num tanque recoberto com geomembrana, uma membrana que impede a percolação, o vazamento, o material sair dali e ter contato com o meio ambiente.
P/1 – Com o lençol freático.
R – Com o lençol freático. Pra esse material, por exemplo, nós estamos já fazendo testes pra recuperar esse material novamente, ou recuperar o ouro ali presente, ou recuperar ali os metais presentes, e talvez dar um destino econômico, seja vender o enxofre, por exemplo, para o mercado de ácido sulfúrico, e tentar recuperar o ouro também. Hoje, a empresa tá olhando pra esses dois lados. Pra esse material que responde pra 2%, por exemplo, nós já estamos fazendo testes em escala piloto, que é uma escala maior que escala de laboratório, vai ficar pronto agora esse mês a planta, a gente deve mês que vem já rodar. E é um projeto que se der certo, a gente vai realmente mitigar ao máximo a questão de geração de resíduo aqui interno.
P/1 – E quando você fala recuperar, por exemplo, o rejeito, ele tem que passar pelo processo de novo.
R – Isso.
P/1 – E tentar recuperar mais ouro, porque tecnicamente houve um avanço.
R – Exato. O volume da barragem, ele não muda propriamente, não. Ele não muda. O volume continua aquela mesma quantidade. O que muda é a qualidade do material despejado lá. Como eu peguei esse material e passei novamente na planta, então, por exemplo, o teor de enxofre é menor, o teor de arsênio é menor, uma série de elementos que eu preciso trabalhar em determinadas faixas pra estar de acordo com a legislação, eu vou trabalhar cada vez com valores menores e menores. Quer dizer, eu vou estar cada vez mais distante daquilo que me pede a legislação. Ou seja, eu vou conseguir mitigar e mostrar para o órgão ambiental que a minha barragem, em termos de qualidade e de gestão de efluentes, ela tá muito, muito à frente.
P/1 – E com relação, por exemplo, ao outro rejeito, que é o de 2%, que você fala que é extremamente perigoso, que é o que tá com cianeto.
R – Isso. Exatamente.
P/1 – Esse processo de laboratório, a ideia é que vocês tratem esse material?
R – Isso. A ideia é, num primeiro momento, construir uma nova planta específica pra ela, a gente tem até alguns equipamentos que talvez eles possam ser utilizados nesse projeto, mas a ideia é simplesmente construir uma nova planta, uma planta bem menor, obviamente, o volume é bem menor, mas uma nova planta pra tentar seja recuperar o ouro, ou seja recuperar alguns metais, em particular o enxofre. Se a gente conseguir retirar o enxofre dali, a gente vai poder vender isso para o mercado e gerar, inclusive, uma receita pra companhia.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco, eu vou voltar um pouquinho lá atrás, como se deu a ideia da ampliação da planta, ou seja, a planta dois, que você participou do processo todo, desde pesquisa, até o processo de implantação da própria planta.
R – Sim.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouco o que foi esse projeto, como ele aconteceu.
R – Eu cheguei aqui em 2003, a parte de testes piloto já havia sido finalizada. Quando eu cheguei, a discussão era em relação à viabilidade econômica ou não do projeto. Tanto que era um projeto de 32 milhões de toneladas, quando a Rio Tinto fez a aquisição de Paracatu, ela reavaliou o projeto e aumentou pra 41 milhões de toneladas. Eu não acompanhei os testes piloto. Eu vi os relatórios, li os relatórios, tudo mais, mas não acompanhei. O que eu acompanhei foi todo o processo de construção. A questão de aquisição de equipamentos, tipo de equipamento, tamanho de equipamentos, fluxograma, balanço de massa, eu participei dessa parte até o final, até o startup e a operação dela. Mas assim, eu não peguei desde o início lá. Começou acho que provavelmente em 2001, 2002, eu acho.
P/1 – Você falou que trabalhou em laboratório, você sempre trabalhou dentro de laboratório. O pensar essa planta dois, o que envolveu, em termos de laboratório, o processo? O que vocês tiveram que pensar? Era em termos de equipamentos que vocês deveriam comprar, ou era em termos do próprio processo em si, o que poderia ser melhorado?
R – Sim e não. Sim em questão de avaliação de equipamentos, equipamentos mais modernos, aquilo que a gente pode dizer que é o estado da arte de beneficiamento. Mas não no sentido de que a rota de processo, ou seja, a forma de beneficiar o material, ela foi muito parecida, partiu-se da premissa de que poderia ser parecido ao que já existia na planta um. Se você pegar o fluxograma da planta um e colocar da planta dois, você vai ver que é muito parecido. Mudam-se os equipamentos, muda o tamanho, muda a tecnologia, mas a forma de recuperar o ouro é mais ou menos parecida. O que basicamente nós fizemos foi fazer uma planta grande, uma planta maior. Mas aí entra o desafio do tamanho, o desafio do tipo do equipamento, eram equipamentos maiores, muitos equipamentos foram os maiores do mundo na época, isso tudo entra como impacto.
P/1 – E tecnologicamente falando, uma coisa em detrimento da outra, você percebe que houve uma mudança da planta um pra planta dois em termos tecnológicos?
R – Ah, não, totalmente. A planta dois é muito mais automatizada, é uma planta... Os equipamentos são mais recentes naquilo que existe de equipamentos potenciais, ou de equipamentos modernos. Apesar de serem os mesmos, praticamente, mas a planta dois é realmente... Não vou dizer infinitamente mais tecnológica, porque muita coisa a gente começou a fazer lá embaixo também. Ou muita coisa que já existia lá de uma forma mais rudimentar, mas com o surgimento de certas tecnologias, a gente conseguiu já tê-las aqui na planta dois. E hoje a gente tá levando isso pra planta um também. Mas a diferença realmente é... Se você for às duas plantas, você vai ver que realmente o fator de escala é muito grande também. As duas plantas são muito diferentes em termos de tamanho.
P/2 – Eu fiquei pensando nesses equipamentos, eles são trazidos de fora? De onde vêm? Ou se tem alguma mecânica, uma oficina, pra manutenção deles.
R – Não, todos os equipamentos nossos foram comprados, seja nacionalmente, seja extremante também. Veio equipamento de tudo quanto é lugar: dos Estados Unidos, da China, o Chile, alguns equipamentos nacionais também, todos eles... A questão de manutenção é manutenção interna nossa. Às vezes, a gente precisa de um ou ouro especialista por conta daquela expertise naquele assunto específico. Mas a questão de manutenção, engenharia de manutenção, preventiva, corretiva, preditiva, são todas feitas aqui dentro com equipe nossa de Paracatu, time nosso. Por isso que ela cresceu também, tem muitos engenheiros, muitos departamentos, muitos gerentes. Realmente a empresa ficou muito maior.
P/1 – Em termos da planta dois, pelo que você tá colocando, o que mudou foi em termos de processar o maior número de material.
R – É isso mesmo. Tá certo. Processar o maior número de material.
P/1 – E isso se deu por quê? Porque vocês começaram a encontrar uma.., A rigidez, ou a dureza do material foi maior? Foi exatamente por causa disso?
R – Isso. Porque o que acontece? A expectativa de vida da mina tava caindo, porque com a maior dureza do material, a planta tinha dificuldade de processar a mesma quantidade de minério para aquele mesmo teor. Então se via já que a empresa tava caminhando pra um fechamento, que, inclusive, provavelmente seria 2016 ou 2017, diga-se de passagem. A mudança para o projeto de expansão, como foi chamado na época, Projeto de Expansão 3, foi justamente por uma questão de sobrevivência, pra que a gente pudesse... Eu tinha uma quantidade de minério presente na mina econômico, mas que ele se tornava não econômico devido ao fator de escala, devido à quantidade processada anualmente. Então pra gente tornar o projeto econômico, eu precisaria aumentar a capacidade processada.
P/1 – E essa exposição, quando a gente fala em termos de processamento, mas também você fala de expansão da mina enquanto tamanho.
R – Isso. Exatamente. A mina aumentou, abriu. Os equipamentos da mina foram equipamentos maiores. Eram equipamentos menores, dobrou o tamanho dos equipamentos, comprou equipamentos que são os maiores do mundo, então assim, mudou completamente. A mina aumentou o número de pessoas, tudo, tudo, tudo.
P/1 – A mina de Paracatu é que tipo de mina? Ela é uma mina de céu aberto?
R – É uma mina de céu aberto. Inicialmente uma lavra por encosta, porque, palavra mais simples, mas era um barranco, digamos assim, a gente ia lavrando o morro, descendo o morro, então qualquer pessoa que visse de fora, via aqueles degraus agora e tal. E tá indo agora pra uma mina de cava, ela tá abrindo uma cava, ou seja, tá abrindo um buraco, podemos dizer assim. Mas é uma mina a céu aberto, com desmonte por explosivos, porque o minério foi endurecendo ao longo do tempo. Até o projeto de expansão, a gente não usava explosivos, então passamos a usar explosivos depois que aumentou o volume processado.
P/1 – E esse explosivo, o que me impacta muito, assim, eu percebo que é um tum (risos). É uma coisa... O que isso significa em termos de volume de movimentação? Porque assim, pelo que eu tô entendendo, é assim, você dinamita pra poder quebrar em pedaços menores.
R – Isso. Isso.
P/1 – E qual o volume de movimentação desse material?
R – A gente movimenta hoje, de minério a gente movimenta mais ou menos entre 120, até 160, 170 mil toneladas por dia. Então eu preciso desmontar por explosivo essa quantidade. E também tem uma quantidade que vai aumentando ano a ano de estéril, que é o material que não tem ouro, mas eu preciso também desmontá-lo pra poder abrir a mina. Então às vezes pra eu acessar aquele minério nesse determinado local, eu tenho que tirar o estéril que tá aqui em cima. Então hoje o volume desmontado é muito grande.
FINAL DA PARTE 1
P/1 – A gente falou do aumento, na verdade, a planta dois surge num momento de reolhar a necessidade, a possibilidade de aproveitar melhor a mina, senão ela impactar no fechamento da própria... O fechamento da operação aqui no Brasil, pelo menos. E também ela surge por uma questão tecnológica, que era a questão da dureza do minério. Eu queria que você falasse um pouquinho se vocês também, desde o laboratório, pensam no impacto desse processo todo em relação à questão da comunidade, porque aqui é uma característica muito peculiar de a mina estar dentro da cidade.
R – Sim. Assim, o nosso foco lá é a questão do beneficiamento. O nosso foco é a questão de maximizar a receita da empresa, seja através de aumentar a recuperação, como seja também através do aumento da taxa. Pra nós aqui, o que nós fazemos hoje que impacta positivamente dentro da comunidade, que talvez não seja perceptível pela comunidade, seria a questão do tratamento dos rejeitos. Porque quanto mais ambientalmente melhor eu deixar o rejeito, melhor será pra posteridade, ou seja, o custo de fechamento será melhor, a qualidade daquilo que ficou disposto ao longo dos anos, daqui a 50, cem anos, vai ser bem melhor. Quer dizer, o impacto nas gerações futuras da comunidade de Paracatu, o impacto vai ser bem menor. Questão de ruído, a questão de vibração, isso a gente não trabalha muito nisso porque realmente é uma questão de desenvolvimento de mina. É questão de mina. A quantidade de desmonte, ela é proporcional à dureza do minério e a necessidade de fragmentá-lo. E a questão de ruído, de poeira, é uma questão realmente bastante complicada pra se trabalhar. Então a empresa tem uma série de ações mitigadoras, mas que querendo ou não sempre ainda deixa aquela sensação de que a mina continua sendo muito próxima da comunidade. A nossa vizinhança, quem passa de carro já vê ali a questão da proximidade.
P/1 – Eu vou pedir pra você voltar um pouquinho lá quando você entrou. Como era a empresa quando você entrou, mesmo em termos daquilo que a empresa oferecia pra você em termos de trabalho, em termos de tecnologia da época, e também de segurança? E com a entrada Kinross, o que mudou?
R – Assim, a empresa mudou a questão da cultura dela. Mudou muito, tanto que muitas pessoas não se adaptaram a essa mudança, e o mercado também na época tava muito bom, o mercado tava extremamente positivo, aberto, então muita gente saiu. Em termos de questão de saúde, segurança e meio ambiente, na verdade eu posso dizer que a Kinross aprendeu muito com a Paracatu. Paracatu já era uma empresa, na época, de 15, 16 anos de idade, vinda de um grupo extremamente grande, que é o Grupo Rio Tinto. A Kinross era uma empresa recente, pequena, tava deixando de ser uma empresa júnior para uma empresa maior dentro da área de ouro. Na parte de segurança, principalmente, a Kinross aprendeu bastante conosco. Agora, muita coisa mudou, a questão da dinâmica, a questão da velocidade das coisas, as mudanças, a rotina. Mudou. Eu sempre brinco que eu poderia pleitear para o governo pegar meu fundo de garantia também, porque eu trabalhei em duas empresas, e realmente são distintas a forma de trabalhar como era e a forma de trabalhar como agora. Não dá pra falar quem é melhor e quem é pior, porque a gente sempre olha muito pra trás, aquele saudosismo. Você nunca olha... Se você voltar lá atrás, você vai lembrar uma série de coisa que você passou, que, pô, brincadeira. Mas, eu vejo que o ambiente hoje é um ambiente mais desafiador. A dinâmica é muito maior. Antes as coisas aconteciam, mas tinham uma velocidade um pouco menor, porque o impacto aqui era menor, então havia necessidade de fazer tanta coisa com tão pouco tempo. Agora, aqui mudou, a questão de o fato de aqui ser extremamente importante, então qualquer impacto, ele afeta de uma forma muito característica, muito forte a performance da companhia como um todo. Mas a questão de segurança, saúde e meio ambiente, a empresa aqui sempre privou pela questão do respeito às normas e sempre deu condições de trabalho. Isso realmente eu não posso reclamar, não.
P/1 – Quando a gente fala, por exemplo, na questão das barragens, como se dá o processo da barragem? É na movimentação do rejeito e aí vocês vão levando o rejeito pra essa barragem? Como é esse processo? Explica um pouco pra gente.
R – O nosso processo é o seguinte, a empresa tá no topo do morro e a barragem no pé do morro. Então se você for olhar para o mapa, você vai ver que a barragem tá num lugar mais baixo que a planta. Então hoje o rejeito nosso é descarregado por gravidade. Ele vai por gravidade, são caixas e tubos, canaletas, tubos grandes, que o material escoa por gravidade, tem algumas caixas durante esse processo pra quebrar um pouco a velocidade, porque a altura é muito grande, o volume é muito grande, a velocidade é muito alta. Mas é um ponto bastante complicado, que a gente tem a questão de acesso de invasores, os garimpeiros e tudo mais, tentando também recuperar uma parte do material ali presente. Mas a disposição é bastante convencional de barragem, descarrega aqui, aqui tá crista da barragem, tá ali onde fica os taludes, não é um processo muito distinto, não.
P/1 – Eu vou te fazer uma pergunta, por exemplo, como você dentro do laboratório, a questão da tradição do garimpo, aquela coisa da bateia, isso também dentro do laboratório vocês utilizam, ou não, ou já não mais?
R – Não. Na época a gente até utilizava bateia, a gente até bateava também, pegava aquela bateia, ficava ali fazendo aquele processo quando existia dentro da nossa área, dentro da planta, no processo final de apuração do ouro existia uma etapa que precisava batear, mas isso foi muito tempo atrás. A gente hoje utiliza equipamentos que simulam o mesmo trabalho, mas de uma forma muito mais efetiva. Então assim, a gente não aplica essa tecnologia. O que a gente tá fazendo hoje dentro do laboratório é tentar entender o que fazer pra que a quantidade de ouro perdida seja cada vez menor, porque quando menor for, menor vai ser a atratividade desse material para o garimpeiro, quer dizer, menos interesse ele vai ter, porque mais energia ele vai precisar gastar pra poder recuperar uma quantidade X de ouro, que no final talvez seja não econômica pra ele do ponto de vista daquilo que ele gastou e tudo mais, dos riscos que ele tá correndo, porque ele tá adentrando numa propriedade particular. E tem uma série de riscos ali.
P/1 – O ano que vem você completa 15 anos, é isso?
R – É. Quinze anos.
P/1 – Como é 15 anos de trabalho pra uma empresa? E assim, a única empresa, teoricamente, no sentido de você ter trabalhado depois de formado.
R – É engraçado isso, porque tem poucas pessoas que têm nessa mesma fase, esse mesmo tempo que eu de nível profissional pra cima, que eu falo de engenheiros pra cima, e tem até um colega que a gente se chama por dinossauro. Eu o chamo de dinossauro, ele me chama também de dinossauro. E, assim, quando eu olho para o mercado e para os colegas que estão lá fora, fica aquela sensação de que talvez a gente tenha tomado decisão errada. “Ah, poderia estar no mercado, ah, poderia estar...” Mas eu prefiro olhar da seguinte maneira, se nós olharmos tudo aquilo que a Kinross passou ao longo desses anos todos, a gente vê que a empresa tá se reinventando cada vez mais. Por exemplo, em 14 anos de operação, eu peguei uma construção de um projeto que foi gasto mais de 600 milhões de dólares, numa planta de 41 milhões de toneladas. Talvez apenas a Vale do Brasil construiu uma planta tão grande quanto. Então, isso já veio para o meu currículo. Eu tive a oportunidade de participar de um projeto de reprocessamento do rejeito, que é algo que hoje tá se tornando uma realidade em muitas empresas, estão viabilizando isso. E eu não precisei ir para o mercado pra aprender isso, nós desenvolvemos aqui. E a gente tem uma liberdade muito grande, então eu lido com o meio ambiente, eu lido com a planta, eu lido com a mecânica, eu tenho contato direto com o vice-presidente em Toronto. O nosso vice-presidente regional sabe o meu nome, não porque eu seja alguém importante, mas porque a empresa é importante. O que nós fazemos é importante. Eu sempre brinco da seguinte forma, assim como todo muçulmano tem que ir pra Meca uma vez na vida dele, o engenheiro de minas, talvez uma vez na vida dele vai ter que trabalhar na Vale. Em algum momento ele vai trabalhar na Vale, porque a Vale é muito grande. Mas eu falo que o meu momento não chegou ainda, não. A cidade é muito boa, tem seus problemas, a questão, mas a cidade é muito boa, eu fiz muitas amizades aqui. O fato de a gente ser grande para o grupo faz com que a gente tenha muito contato com os mais diversos níveis estratégicos da empresa. Eu trabalho com números extremamente confidenciais, então eu trabalho com o fechamento de produção, então todo mês quem valida todo número de ouro apurado, a quantidade perdida, quantidade recuperada, quantidade que tá no inventário dentro dos tanques, isso todo passa pelo meu crivo. Pode ser também uma visão um pouco míope, mas eu não consigo ver que o mercado hoje tenha algo desse tipo pra mim, desse nível pra mim. E assim, eu vejo que quando a gente conversa com as pessoas, muitas pessoas se arrependem de terem saído daqui também. Aqui tem muitos problemas, tem muitos defeitos, a gente pode listar uma série deles, mas é aquela velha história, o copo tá meio cheio, meio vazio, eu sempre prefiro ver que o copo tá meio cheio. Eu sempre prefiro ver aquilo que a gente tem de bom aqui. A empresa realmente num ponto é diferenciada, que é a questão de mudança. Aqui muda muito rápido as coisas. Cansa às vezes, estressa às vezes, mas, ao mesmo tempo, te faz pensar cada vez mais diferente, fora da caixa. Quer dizer, tem uma coisa, aí daqui a pouco alguém te ligou: olha, mudou. Pô, mas se mudou, o que eu tenho que fazer? Não, vamos reunir, vamos pensar, espere aí, mas não é bem assim, chama fulano. Então, por exemplo, hoje a gente tava na mina, tava o diretor, tava o gerente da mina, o gerente da planta, o chefe da área, o engenheiro... Quer dizer, deu um problema, tava todo mundo ali em meia hora, todo mundo se reuniu, foi lá, viu, tomou decisão e já mudou. Talvez uma empresa maior, ou então uma empresa diferente, as coisas sejam mais burocráticas, então não sei.
P/1 – Eu queria que você falasse de algum momento que você viveu na empresa que você acha importante contar pra gente. O que você acha que eu não perguntei, ou que você acha que teria alguma coisa importante que você poderia falar com a gente?
R – Ah, eu acho que um ponto pra mim que foi muito legal foi quando, num determinado momento, a minha esposa engravidou. Eu tava fazendo um mestrado pela empresa, a empresa me deu a oportunidade de fazer um MBA [Masters in Business Administration] também, então tudo aconteceu junto, e ao mesmo tempo, assim, eu tive muito suporte da empresa, apoio, quando a minha esposa tava grávida, a questão do relacionamento. Eu falo assim, a minha história aqui dentro é uma história contada por etapas. Talvez assim, alguns possam ter atingido a mesma posição que eu de uma forma muito mais rápida, mas eu falo assim, que pra mim as mudanças foram muito naturais, foram acontecendo. A gente planeja, obviamente, tem anseios, tem desejos, tem sonhos, mas eu vi que a empresa foi dando oportunidades. Ela foi ali te preparando. Eu falo que eu me considero uma prata da casa, mas, ao mesmo tempo, eu fui forjado também pela própria empresa. Então a empresa, de certo modo, ela forjou aquilo que eu sou. E eu vejo hoje que a gente não deve nada àquilo que o mercado precisa, então o background, a base que a gente recebeu aqui é algo que a gente pode levar pra qualquer lugar. Tanto que quando a gente fala que trabalha aqui, as pessoas ficam, isso é orgulho pra gente: “Pô, trabalha na Kinross. Lá é grande? A questão da produção, o desafio com a comunidade”. Isso tudo chama atenção. Quando você fala que trabalha aqui, todo mundo... A área de mineração, em particular, que é uma área relativamente pequena, a gente conhece as pessoas. Quem passou aqui já tá lá, depois mudou pra cá, que veio pra cá, se conheceu. Quer dizer, o mundo da mineração é pequeno. E quando a gente fala do mundo da mineração, Paracatu tá ali no top, digamos assim. Tem outras empresas que disputam com ela a questão de primazia de ser o que é, mas ela tá ali entre os tops mesmo.
P/1 – Você falou que a sua esposa ficou grávida, você tem quantos filhos? E todos eles nasceram aqui em Paracatu?
R – Eu tenho um filho atualmente, ele nasceu em Belo Horizonte, tem sete anos. A minha esposa tá grávida novamente, de uma menina, vai nascer agora dia dez de julho, e vai nascer em Patos de Minas (MG). O grande problema de Paracatu é a questão de saúde. A saúde aqui não é das melhores, então como a gente pra família procura sempre o melhor, meu primeiro filho nasceu em Belo Horizonte, porque a minha sogra morava ali em Mariana, quer dizer, a questão da família, agora a gente optou por, como agora tem o menino que tá na escola, ele já tá maior, então a gente optou, pra não ter tanta ruptura, ela vai nascer em Patos, que é aqui perto, são 160 quilômetros. Então já tá pra vir, já tá próximo.
P/1 – Então, pra finalizar... Aliás, eu vou fazer duas perguntas: primeiro, qual é seu sonho hoje?
R – Meu sonho? Profissional, ou qualquer?
P/1 – Qualquer.
R – Ah, não, assim, a minha preocupação hoje é dar uma qualidade de vida pra família, pra minha esposa e para o meu filho. E eu vejo assim, que a empresa tem me proporcionado isso. Às vezes, a questão da pressão, às vezes a questão o estresse, mas é algo que a gente consegue administrar e graças a Deus muito bem. Eu acho que o meu sonho é ter condições de trabalhar, ter condição de dar uma condição cada vez melhor pra minha família, dentro de valores que a gente entende que são importantes. Ao mesmo tempo, fazer a diferença aqui dentro, ou aqui dentro, ou fora também, com certeza, mas acho que o meu maior sonho é continuar desenvolvendo pessoas, continuar fazendo a diferença. Eu acredito que eu to numa área que é estratégica pra empresa. A área que eu trabalho é estratégica, eu talvez seja estratégico, mas a área que eu trabalho é estratégica. O meu sonho é que o que eu faço aqui dentro, esse laboratório, ou essa área específica, ela seja uma referência. Seja para o grupo, mas para o mercado também. Quando as pessoas olharem em desenvolvimento, em pesquisa, em processo, olhem para Paracatu, pra aquilo que nós fazemos, não o que eu faço, mas aquilo que a equipe faz, aquilo que as pessoas que estão trabalhando comigo e estão ao longo desses anos todos aí. Acho que esse é o maior.
P/1 – E qual a importância da Kinross promover um projeto com base ouvindo as pessoas, base da memória oral e ouvindo as pessoas que fazem parte da empresa?
R – Eu acho extremamente necessário, importante, porque eu acredito que isso deveria ser feito até de uma forma mais sistemática ao longo de um tempo. São 30 anos. Recentemente, o pessoal criou um grupo no WhatsApp de pessoas que trabalharam aqui quando ainda era RPM. Até eu passei para uma funcionária, até falei com a comunicação e falei até pra procurar a Cláudia, a Claudinha secretária, falei assim: “Olha, procura a Cláudia que ela tá dentro do grupo”. Tem fotos ali de pessoas que a gente nem imaginava, momentos da empresa que já se foram e que é bom serem resgatados. Até esses dias eu brinquei com a Cláudia mesmo, que essa sala que a gente tinha ali na entrada da gerência geral, onde tinha todos esses troféus, eu não sei nem onde estão mais esses troféus, deve estar em algum lugar, em alguma sala, em algum local, mas a gente não tem mais. Quer dizer, precisa procurar essas pessoas que já passaram por aqui e resgatar um pouco daquilo que é. O que nos fez ser o que nós somos hoje? São 30 anos de operação. É uma mina madura e uma mina que tem mais aí 15 anos talvez. Imagina daqui 20 anos alguém vir aqui pra fazer a mesma coisa, mas contar uma história de 50 anos. É meio século dentro de uma cidade, que tem uma cidade histórica e que tem um impacto muito grande na vida das pessoas aqui dentro. Eu fiquei até satisfeito quando se lembraram de mim: “pô, o Getúlio também tá ali”. Aí que eu parei pra pensar, pô, realmente é muito tempo. O dia a dia vai... Eu só lembro que a gente tem muito tempo quando me perguntam: “Quanto tempo você tem aqui?”. Eu falo: “Ah, espera aí, 14 anos, 15 anos”. É muita coisa. Mas eu acho que foi uma das melhores ideias que se teve... Eu não digo resgatar, eu falo que preservar. Eu acho que preservar uma linda história, uma história de sucesso até hoje. Por mais que tenha a questão de comunidade, por mais que tenha a questão do teor, mas a empresa continua sendo econômica e gerando resultado pra companhia. E acho que isso é legal. Isso aqui não é uma empresa pública que tá em prejuízo. Não, é uma empresa que gera resultado, gera receita, e transforma pessoas, vidas, movimenta a cidade.
P/1 – Eu queria agradecer em nome da Kinross e do Museu da Pessoa a sua participação, Getúlio. Muito obrigada.
R – Eu que agradeço.
P/2 – Deixe-me fazer uma última pergunta, Getúlio?
R – Sim.
P/2 – Na verdade, eu vou pedir pra você repetir uma coisa. Teve uma hora que você falou um negócio legal, que você tava contando que tem preocupações com a comunidade, de mitigar alguns problemas, tudo. E uma coisa que você disse, você falou: “Bom, o meio ambiente e a segurança foi algo que a empresa sempre prezou e tal”. Só que acho que nas palavras ficou o sentido contrário.
R – Ah, tá.
P/1 – Então eu vou pedir pra você refalar isso, pode ser? Só uma breve...
R – Não, claro. O que eu falei é o seguinte, algo que se preservou ao longo da história da empresa, sendo RPM, passando à Kinross, foi a questão de realmente saúde, segurança e meio ambiente. A Kinross aprendeu muito com Paracatu, porque Paracatu sempre foi referência em saúde e segurança, sempre, sempre. Inclusive, dentro do Grupo Rio Tinto, a RPM, no caso, Paracatu sempre ganhou prêmios de segurança. Existem competições, nas quais Paracatu sempre ganhou dentro de um grupo que tinha mais de 50 unidades no mundo inteiro: na Ásia, na Oceania, na Austrália ali, e a gente ganhou dessas empresas todas. Quando a Kinross adquiriu Paracatu, ela aprendeu muito, porque a Kinross era uma empresa pequena, uma empresa nova, criando a sua própria história, então Paracatu pôde contribuir de uma forma muito positiva a questão de saúde, segurança, os procedimentos, a cultura, a forma de gerir a segurança, a forma de tratar as pessoas, a importância que se dá à segurança, o valor que é a questão do meio ambiente, a questão de manter o funcionário num ambiente saudável, num ambiente seguro, num ambiente em que ele se sinta satisfeito.
P/2 – Tá ótimo.
P/1 – Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTARecolher