P/1 - Bem, então acho que a gente pode começar, Osmar.
Primeiro vou aproveitar já para fazer esse registro, agradecer mais uma vez a sua disponibilidade. Para a gente começar eu vou pedir que você se apresente, falando seu nome completo, a data e o local de seu nascimento.
R - Sim, eu que agradeço a oportunidade de conversarmos. Meu nome é Osmar Veronese. Eu sou natural de Viadutos, Rio Grande do Sul, que é uma cidadezinha ao norte no estado. Nasci em dezenove de fevereiro de 1965, o ano da última grande nevasca do Sul do brasil.
P/1 - Olha só. Então já temos história aí. E quais os nomes dos seus pais, Osmar?
R - Meu pai se chama Armando Veronese e minha mãe, Alcida Mariane Veronese.
P/1 – Você pode contar a história, a origem da sua família, como foi que eles se conheceram?
R - Na verdade, ambos moravam na mesma cidade. Eram pessoas, pequenos agricultores os dois. Obviamente, são descendentes de italianos, vieram nos tempos da guerra, [de] dificuldade europeia.
Nas colônias ali, eles começaram na região da Serra Gaúcha. Depois migraram para a região de Erechim, que era Marcelino Ramos, e Viadutos - é uma cidade entre Erechim e Marcelino Ramos, próxima do Rio Uruguai ali no norte do estado, como pequenos agricultores.
Não tem muitos detalhes do encontro deles, mas sei que eles contavam muitas histórias dos namoros. Falavam que era uma coisa extremamente simples, rudimentar, muito diferente da época de liberdade que nós temos hoje. As visitas [de] finais de semana… Eles se conheceram, e aí o pai ia a cavalo namorar a mãe. Viviam distantes cerca de dez quilômetros um do outro, na época.
P/1 - Eles viviam então numa mesma região - não sei se dá para chamar de uma colônia, né? Eles eram colonos, trabalhavam com agricultura, nesse momento que eles se conhecem?
R - Isso, na mesma região, ou seja, na encosta do Uruguai. Ali é uma região bastante dobrada, quebrada, tanto que o nome Viadutos decorre dos viadutos da...
Continuar leituraP/1 - Bem, então acho que a gente pode começar, Osmar.
Primeiro vou aproveitar já para fazer esse registro, agradecer mais uma vez a sua disponibilidade. Para a gente começar eu vou pedir que você se apresente, falando seu nome completo, a data e o local de seu nascimento.
R - Sim, eu que agradeço a oportunidade de conversarmos. Meu nome é Osmar Veronese. Eu sou natural de Viadutos, Rio Grande do Sul, que é uma cidadezinha ao norte no estado. Nasci em dezenove de fevereiro de 1965, o ano da última grande nevasca do Sul do brasil.
P/1 - Olha só. Então já temos história aí. E quais os nomes dos seus pais, Osmar?
R - Meu pai se chama Armando Veronese e minha mãe, Alcida Mariane Veronese.
P/1 – Você pode contar a história, a origem da sua família, como foi que eles se conheceram?
R - Na verdade, ambos moravam na mesma cidade. Eram pessoas, pequenos agricultores os dois. Obviamente, são descendentes de italianos, vieram nos tempos da guerra, [de] dificuldade europeia.
Nas colônias ali, eles começaram na região da Serra Gaúcha. Depois migraram para a região de Erechim, que era Marcelino Ramos, e Viadutos - é uma cidade entre Erechim e Marcelino Ramos, próxima do Rio Uruguai ali no norte do estado, como pequenos agricultores.
Não tem muitos detalhes do encontro deles, mas sei que eles contavam muitas histórias dos namoros. Falavam que era uma coisa extremamente simples, rudimentar, muito diferente da época de liberdade que nós temos hoje. As visitas [de] finais de semana… Eles se conheceram, e aí o pai ia a cavalo namorar a mãe. Viviam distantes cerca de dez quilômetros um do outro, na época.
P/1 - Eles viviam então numa mesma região - não sei se dá para chamar de uma colônia, né? Eles eram colonos, trabalhavam com agricultura, nesse momento que eles se conhecem?
R - Isso, na mesma região, ou seja, na encosta do Uruguai. Ali é uma região bastante dobrada, quebrada, tanto que o nome Viadutos decorre dos viadutos da ferrovia que vem, então tem toda uma identificação. O nome da minha cidade, onde eu nasci, é o nome dado em razão dos viadutos que até hoje existem lá, que são os viadutos ligados à ferrovia que ligou Mafra, Passo Fundo, ligou mais adiante, mas foi Mafra, Erechim, Passo Fundo. Ali que era a ferrovia que ainda hoje liga São Paulo, fica em direção à São Paulo. Claro que é toda a Ferrovia do Contestado, aí tem toda a guerra, mas ali, na verdade, ela foi abandonada nos últimos tempos - nessa região do Contestado, especialmente.
Nessa região eles nasceram. Eles, na verdade, têm toda a vida ali, eles moravam próximos. Na verdade, quando [se] fala colônia, para o ponto de vista da colonização, sim; do ponto de vista da pequena agricultura, colônia é 25 hectares, 25 hectares é um pedacinho de terra. Era o ideal de todos os filhos de pequenos agricultores terem quando se casavam, quando saíam, então eles falavam: "Ah, tendo uma colônia o sujeito se defende na vida." Então já tem dupla significação, a ideia de colônia.
P/1 - Você falou que ambos são de origem italiana e vêm para o Brasil nesse contexto de guerras, Primeira e Segunda Guerra. Você sabe um pouco, eles contaram histórias? Não sei se você teve contato com avós.
R - Tive contato mais com a minha avó materna e com os meus avós paternos. Como boa parte das famílias italianas, extremamente machistas, patriarcais, o que me passaram foi muito mais a história do meu pai, meu pai conheço um pouco mais. Eu me lembro do vô Emílio, por exemplo, que ele falava muito; era o meu bisavô. O meu avô - Generoso Veronese, o nome dele, que nasceu lá na região, meu pai Armando, e eu tô nessa sequência aí, já também deixando a sequência implantada. Então conheço muito mais as histórias do vô Emílio. [Meu] pai falava que ele teria vindo com oito, nove anos, da Itália; tem alguma coisa escrito.
Da parte materna eu sei só que meu avô materno morreu meio folgado numa valeta, porque ele gostava muito de uma cachaça e aí foi uma situação trágica. [Ele era] extremamente jovem. Eu não conheci ele, parece que era superjovem, deixou a avó com todos os filhos jovens ainda, crianças, e ela acabou criando eles na lavoura eles - a vó Olímpia, que acabou vivendo com a gente depois. Nessas andanças da vida, a mãe e o pai acabaram acolhendo ela.
Ela viveu conosco até falecer. Eu já tinha saído de casa quando ela faleceu. Faz, seguramente uns vinte... Faz 25 anos que ela faleceu já, a avó materna.
E a minha avó paterna, ela é uma história interessante, porque ela também viveu do lado da casa do pai até o final da vida. O vô faleceu antes, vinte e poucos anos antes também, e ela viveu até os 101 anos. Eu até estava viajando para a Europa na época e a minha irmã diz: “Olha, a vó não tá nada bem." (risos) A minha irmã entrou no quarto assim: "Vó, como é que tá?" "Ah, tô bem, eu já pedi para o meu Jesus que vem me buscar, eu já vivi que chega." O médico foi lá, olhou, disse: "O que ela tem?" "Ah, ela não tem nada, tá parando." E Jesus atendeu, de noite buscou ela. (risos)
Ela faleceu, a gente não conseguiu nem participar do velório, [do] enterro dela, porque a gente estava viajando, mas enfim, acho que foi uma coisa, uma passagem tranquila, aquelas coisas que...
Pareceu interessante, os acontecimentos dessas passagens que são duras e muitas vezes… Dessa vez foi um pedido da própria pessoa, foi uma coisa preparada; acho que faz parte do tempo histórico também, de despedida, e ela conseguiu fazer isso bem.
P/1 - E depois que seus pais se casaram, eles se estabeleceram em Viadutos? Eles continuaram vivendo em Viadutos ou eles foram já migrando, se deslocando para outras partes?
R - Eles continuaram em Viadutos. Na verdade, eles viviam a três quilômetros da cidade. Era o percurso que a gente fazia inclusive para frequentar a escola pública que a gente fez, eram três quilômetros de caminhada próximo da cidade.
Eles eram pequenos agricultores, sempre foram. O pai até hoje tem a tenda ainda, pequeno agricultor; o pai tem uma aposentadoria de segurado especial. Sempre foi no mesmo lugar; ampliou, comprou mais uns pedacinhos de terra, mas um pouco mais de uma colônia.
O pai - uma coisa interessante também - nunca teve máquinas, ou seja, a forma de produção nossa... É claro que depois arrendou com o tempo, mas era no arado de boi, na foice, na enxada. Era meio na força manual, trabalho manual mesmo, a gente fazia toda a produção. Claro que depois ampliou e hoje a tecnologia chegou para todo mundo.
Ele nunca comprou um trator, por exemplo. Eu vi muitas vezes as pessoas negociando trator, mas nunca chegava o tal do trator lá em casa, porque ele tinha um pouco de medo - investimento, aquelas coisas todas que fazem parte também de um passado que me lembro bem das conversas. O pessoal no Banco do Brasil visitava lá; era o grande banco da época, o fomento da agricultura.
P/1 - O seu pai teve essa dedicação de uma vida ao trabalho rural, agrícola. A sua mãe também participava desse trabalho?
R - Sim, ela participava. Era muito mais do lar, como eles diziam na época; ela fazia eventualmente alguns trabalhos, acompanhava também na lavoura, mas ela era mais que coordenava a filharada. Nós éramos cinco e aí tinha que dar uma coordenada - alimentação, aquelas coisas todas que envolvem muito… Especialmente em uma família muito tradicional, acaba sobrando mais para mulher fazer esses serviços.
Claro que no final da vida, há uns vinte anos já, eles moram na cidade. A minha mãe é falecida há seis anos e meu pai continua a vida. Ele tem 87 anos, ___________. Não tenho ido lá em razão da pandemia, mas ele tem boa memória. Decaiu muito em razão de algumas perdas que ele não conseguiu digerir adequadamente - perda da mãe, perda da avó, que morava do lado. Ele perdeu dois filhos, dois irmãos meus acabaram… Um irmão mais velho e uma irmã mais velha acabaram falecendo também, e essas coisas impactam sempre a vida de qualquer pai. E ele sofreu muito isso, talvez não... Ele meio que se entregou, porque ele tinha muita vitalidade, era uma pessoa para [passar] mais vinte anos tranquilo, e hoje eu não vejo mais toda essa potência dele, digamos assim, de vida que ele já teve.
P/1 - Osmar, você mencionou que você tem mais outros quatro irmãos, teve outros quatro irmãos. Dessa sequência de irmãos, você seria...
R - Eu sou o quarto.
P/1 - Nessa escada, o quarto?
R - É, eu tenho.... Eu tinha o Genuir, que era o mais velho, que fez administração rural e trabalhou com fumageiros. Na verdade, ele era técnico de fiscalização de produção de fumo; acabou falecendo de câncer aos cinquenta anos, comemorava cinquenta anos.
Minha irmã Clarice, que era segunda na sequência, foi professora de educação física. Pensa [em] alguém que se cuidava. Faleceu aos cinquenta anos de um AVC hemorrágico, de uma hora para outra, sem... Trabalhou o dia todo e de noite aconteceu isso.
Tem a Claire, que é também mais velha que eu; é gerente do Banrisul em Viadutos hoje, foi em vários lugares. Eu, aqui em Santo Ângelo, e a minha outra irmã que também trabalha como supervisora de crédito rural no Banrisul, em Caxias do Sul, que é a Cleonice. Ou seja, essa turma toda.
P/1 - E qual é a lembrança que você tem da casa onde passou a infância? Como essa casa era, como era o entorno?
R - Perfeito. Na verdade, tive duas casas. A primeira [era] um casarão gigante, aquela casa de madeira gigantesca, aquelas que você faz a casa e faz um anexo, todo junto, que serve para guardar a farinha. Acho que os italianos vieram muito com fome na cabeça da Europa e daí eles estocavam tudo que aparecia, tem toda uma fama de pão-duro por causa dessa trajetória histórica também.
A nossa casa inicial era uma casa gigantesca, com um porão alto, grande. Eu me lembro muito que brincava lá. Era uma casa sem energia elétrica, na verdade era... A gente fazia aquelas.... Aqueles... Matava, digamos, um porco, fazia banha, fervia, e isso servia para preservar o alimento também. Tinha uma série de técnicas que, com uma série de facilidades que a gente tem hoje, nós perdemos muito; era todo um conhecimento tradicional que a gente acaba deixando de lado em razão de outras facilidades que temos hoje.
Era uma casa muito grande, eu me lembro até hoje, e sobre a casa passava uma corrente d'água. Tinha um porão, onde se guardava também os vinhos do pai, me lembro que ele fazia sempre. Era de chão batido, mas era uma casa extremamente grande, de madeira.
Depois nós fizemos uma casa nova, mais acima, porque lá foi considerado muito a umidade, [tinha] muita umidade. Essa outra casa tinha o porão. Está ainda construída, embora abandonada. Hoje a tapera, sabe como é. Foi porão de material e a casa também [era] de madeira. Casa relativamente grande, com madeiras boas.
Nós permanecemos durante todo o tempo… O pai e a mãe moraram lá até vinte anos atrás, quando vieram para cidade. Trocaram o campo pela cidade e essa casa ficou abandonada.
Lá hoje tem meu cunhado e minha irmã, que moram em Viadutos, que visitam [a casa] de vez em quando, fazem alguma manutenção, mas por amor, porque não se sabe exatamente o que fazer. Lá onde viveram todos, nesse lugar, hoje não tem mais ninguém. Só tem o espaço físico lá e a lavoura, alguma criação de gado, pouca coisa que ainda existe lá. Mas era um espaço...
P/1 - Então ainda segue... Desculpe, eu ia só perguntar, ainda segue sendo uma propriedade da família, né? Mesmo não tendo esse...
R - Segue sendo. Inclusive, quando a mãe faleceu, essa metade da herança acabou ficando com a minha irmã, que cuidou do pai. Todo mundo acabou perdendo para eles lá. Minha irmã, Claire, essa que é gerente do Banrisul, é casada com um policial militar aposentado - aposentado jovem, porque policial militar aposenta jovem; tem em torno de cinquenta anos hoje, faz alguns anos que já se aposentou na função. Então continua na família, sim, a gente... Fizemos questão, inclusive.
Tem toda uma história, a gente tem que criar amor pelas coisas. Acho que o ser humano é um ser local. Na antiguidade, a pior pena que você dava para alguém era o desterro, mandar ele pra outro lugar; rompia tudo que é relação simbólica, relação real também, obviamente. Essa pena era a morte do sujeito, a pena de morte simbólica. Imagina começar a vida em outro lugar, com línguas diferentes.
Era uma pena, hoje banida na maioria dos... Banida legalmente ao menos [em] tratados internacionais no mundo. Provavelmente algum país ainda faça de alguma forma, mas enfim.
A gente é local, a gente tem amor pelas coisas da terra, de uma pessoa que se identifica. Essas lembranças da infância… No fundo, a gente acaba gostando de qualquer lugar. Pode ser o lugar que alguém chega lá e diz: "Putz, mas quem gosta disso?" Bom, tenho toda minha vida, tem uma identidade, como é que eu não vou gostar disso, né?
P/1 - Osmar, como era a região onde você morava? Porque pelo que você fala, era a parte rural. Como era esse entorno? Como era o entorno da sua casa, essa parte onde vocês moravam?
R - Nós tínhamos a moradia, era próximo de um potreiro que a gente chamava, onde criava o gado. Tinha morros muito fortes, era muito muito dobrada. Claramente, depois do morro sempre tem um espaço de lavoura, que era um lugar mais plano, então o normal era criar gado nos morros e plantar nos lugares mais planos.
Nos últimos anos tudo virou lavoura, os morros viraram lavoura. O pessoal tá emparelhando os morros, tem máquinas pesadas que fazem esse trabalho. Tem máquinas hoje preparadas para quase subir morros plantando, então como economicamente acaba rendendo mais. Boa parte da propriedade que tinha gramado, que tinha outro tipo de plantação, acabou virando lavoura. Claro que tem ainda as ____, banhado, tem rios que passam lá nessa propriedade, mas era uma região de serra, uma região extremamente dobrada.
A gente tinha muito, em razão disso, as brincadeiras de carrinho de lomba, de... Até hoje me lembro, tinha um coqueiro que ficava numa descida; a gente pegava uma folha e de vez em quando caía aquela folha e quase matava alguém, mas todo mundo continuava, porque não se tem noção de finitude numa época da vida. (risos) Então a gente ______ dessa forma assim naquele terreno dobrado, extremamente dobrado, com marcas também, que marcavam... Que ainda marcam aquela região, em termos de vegetação.
P/1 - E quais eram suas brincadeiras de infância? Você se lembra de brincadeiras também com seus irmãos? Quais eram as brincadeiras favoritas?
R - Acho que todo mundo lembra da infância. A infância é um período que a gente tem a eterna ilusão de que vai voltar um dia, obviamente sem voltar; acaba visitando, eu acho, em algumas atitudes.
Nós tínhamos, a gente brincava... A brincadeira favorita, principal, eram os jogos, jogo de futebol. Inclusive tinha semana, sem noção da vida depois, quando se crescia… A gente viajava de comunidade em comunidade, em caminhões abertos, para ir jogar futebol. Jogo de futebol sempre tinha, sempre teve um campinho perto de casa. Os vizinhos se reuniam, era normalmente nos fins de semana, então às vezes sábado à tarde já começava a jogar, e quando... No domingo, inclusive, se viajava para jogar futebol.
Mas também a gente tinha… Nós gostávamos de carrinho de lomba, sempre tinha carrinho de lomba, tinha aquelas... Tinha os coqueiros; de vez em quando eles têm uma palma grande, que você se senta dentro e desliza. A gente brincava muito disso, isso de pegar nas folhas de coqueiro e andar também. E tudo que é tipo de brincadeira de moleque, aquelas brincadeiras simples do interior que a gente fazia nos galpões, no paiol, que a gente chamava lá. A gente brincava muito assim, mas aí com jogos, futebol, que era o principal ali naquele tempo, especialmente envolvendo os rapazes - as meninas raramente brincavam de futebol junto com a gente.
Enfim, acho que eram essas as brincadeiras. Provavelmente tem outras que eu passei batido, mas as que mais marcaram, seguramente, foram essas.
P/1 - E quais eram os momentos de reuniões familiares, que era comum a família toda se reunir?
R - Como era uma família, assim... Durante um tempo, ao menos inicial, quando eu era menino e quando todos ainda permaneciam em casa, a gente fazia todas as refeições, menos meio-dia, sempre juntos. Sentavam à mesa. [No] fim de semana também saía sempre um churrasco de reunião familiar, então o pai e a mãe controlavam muito isso.
Aquela gritaria toda, e família italiana, tem rádio, tem gritando um pra cá, outro pra lá, sabe? Mas ali sempre tinha essa tradição de se sentar à mesa, de almoçar, de jantar também. Claro que isso com o tempo vai se perdendo total, porque um viaja, fica pra fora, mas esse era um momento que tinha união, de conversas familiares.
Também tinha algumas situações, nos primeiros tempos, ao menos, em épocas de dia de chuva, por exemplo, que você não podia trabalhar na lavoura fora. E aí tinha alguma atividade, tipo descascar milho com a mão ou com a máquina. Tem uma brincadeira que eles diziam: "Depois que inventaram uma máquina de debulhar milho, nada mais me admira", quer dizer, nós vivemos essa época. (risos) Nós debulhávamos com a mão, depois veio a máquina de debulhar milho.
Eu até tenho uma máquina dessas restaurada aqui em Santo Ângelo. Trouxe, tá no porão aqui, restaurei ela, tá a coisa mais bonita. Era a máquina originária lá, deve ter uns... Vou dizer nada, mas uns cinquenta anos aquela máquina tem já, se não tiver mais. Que eu me lembre, desde que eu nasci eu me lembro que ela existia, aquela máquina. A gente debulhava esse milho com a máquina, tirava, obviamente ficava, e aquilo também acabava sendo uma reunião familiar. O espaço era extremamente grande em razão de armazenar milho em casa - milho com palha, digamos - aí a gente aproveitava também para brincadeiras de esconde-esconde, de subir e descer, de jogar futebol dentro daquele espaço quando não tinha muita produção. Enfim, essas coisas também serviam para reunião familiar.
(PAUSA)
P/1 - Eu ia te perguntar se quando criança você tinha um sonho do que queria ser quando crescesse.
R - Pois é, toda criança tem sonhos, né? Eu sonhava em ser astronauta. Desisti já desse sonho, obviamente. Dependendo muito do tempo, do momento, eu me lembro que mudei muito de profissão nessa caminhada.
Eu lembro uma época que chegou um primo meu lá. Conversava, falava muitas vantagens de ser motorista de caminhão. Cheguei a pensar em ser motorista de caminhão. Depois o pai queria que eu ficasse na agricultura como o último filho homem, digamos, para tocar a lavoura; chegou a me fazer uma proposta quando fui sair para estudar. Depois que eu voltei do estudo, eu disse: “Deixa eu viver um pouco a vida, experimentar ela. Depois, se for o caso, se eu entender que tem que voltar para tocar a lavoura, eu volto”, mas acabei nunca voltando.
Tem até uma música que quando a gente abre as asas, nunca mais; acabei voando um destino próprio, acho que esse é o destino da... Essa forma, de que a gente vai desligando de alguns laços, e enfim, fiz minha trajetória.
Eu pensei em ser astronauta; gostava muito de geografia, estudar os astros… Essa era minha matéria preferida, inclusive, gostava demais, pegava... E com muita dificuldade, porque na verdade tivemos uma enciclopédia em casa e mais nada. Ou seja, os livros, os contatos que a gente tinha, Macunaíma, fui conhecer com uma professora falando.
Eu me lembro que eu li... Eu li o livro todo de... Na verdade, de literatura, até quando eu terminei o segundo grau tinha lido um livro. [Tinha tido] alguns contatos com outros livros. Era [a história de] um menino, João, que era um menino de uma favela e tal, e que a ética, quando a polícia foi lá, ela resistiu, morreu atirando e tal. [Tinha] dificuldade de acesso na época, porque era um estilo assim: o importante era trabalhar, estudar, cada um se virar do jeito da... Eu acho que essas faltas acabam incentivando de alguma forma a gente a buscar depois, então depois acabei lendo bastante coisa, mas no começo era muito limitado esse estilo de vida nosso, do interior.
(PAUSA)
P/1 - Osmar, você mencionou no começo que fazia um trajeto de aproximadamente três quilômetros para ir para escola a pé. Queria que você contasse quais são as suas primeiras lembranças da escola e que você falasse também um pouco de como era feito esse trajeto. Como era a escola que você frequentou?
R - Eu fiz tanto o primeiro grau como o segundo grau lá em Viadutos, eram escolas públicas. Eu me lembro até hoje do primeiro dia de aula, que eu cheguei era... Na verdade começava no primeiro ano; não tinha o pré, a gente vivia no meio da roça. Então cheguei no primeiro ano lá, não conhecia ninguém; [era] extremamente tímido, eu fugia das pessoas para não cumprimentar ninguém.
Eu me lembro que fiquei perto de uma pilastra do colégio, até hoje me lembro, parado, olhando, observando. Disse: “E agora, o que eu faço com esse monstro aqui?” Porque era uma novidade muito grande, era um impacto muito grande para quem sempre viveu na roça.
Depois a gente começava... Eu comecei a frequentar normalmente, aí rapidamente também ia me integrando. Comecei na escola pública lá, ainda hoje existe em Viadutos essa escola. Fiz todo o primário na época e depois o segundo grau, que era o ensino secundário.
(PAUSA)
P/1 - Osmar, eu vou pedir então para você falar das suas lembranças da escola. Você estava contando um pouco da escola, que foi a escola onde você fez a sua formação. Enfim, relembrar um pouco essas primeiras lembranças de escola.
R - Eu sempre estudei em escola pública. A gente sempre morou no interior, eram três quilômetros de ida e três quilômetros de volta, todos os dias, que a gente caminhava. Sempre a pé, porque não tinha carro, nós não tínhamos carro durante... Só bem mais tarde, depois o pai comprou um Corcel 1, e cinquenta anos depois o pai vai lá e compra um... Era um carro da Ford, não me lembro; era um desses 1.0, e eu perguntei para ele assim: "Por que, pai? Porque esse carro, zero?" "Não, porque eu tinha sonho de comprar um carro zero, que eu nunca tinha comprado. É porque é da Ford, né?" Eu digo: "Ah tá, entendi." (risos) Tem toda a tradição de filiação a uma marca, aquelas coisas que ele repetia.
Mas a minha a minha ligação com a escola… Ela sempre foi escola pública, eu fazia esse trajeto sempre caminhando, de dia. Era durante as tardes, no início, depois, de manhã, também fiz alguns anos.
Era... Eu me lembro sempre do primeiro dia de aula, que eu cheguei e foi uma situação inusitada. Eu tinha muita vergonha, tinha muita timidez, fiquei do lado de uma pilastra assim, até hoje me lembro - a pilastra tá lá, se eu chegar eu sei onde que é - pra tentar mapear a situação: “Como é que eu me insiro nesse troço?” Mas muito ingenuamente, muito... Digamos, essa questão primeira, pensando no lugar. Claro que depois, rapidamente eu fui integrando.
As mais diversas brincadeiras a gente fazia também. Até hoje me lembro que tive uma briga no colégio com um outro menino, uma briga física e tal. Foi a única briga que eu fiz nessa parte da parte da vida, as outras encrencas seguramente não foram tão importantes, porque é essa que eu me lembro do que aconteceu.
Fui para o colégio, continuei na escola pública. Fiz o segundo grau lá, que é ensino secundário hoje, e que era ligado à agricultura. Não chegava nem a ser técnico agrícola, era um auxiliar de técnico agrícola, alguma coisa assim. Era um segundo grau que tinha em Viadutos, que eu acabei fazendo. Isso foi 1982, nessa escola pública - João Orso, se eu não me engano, [era] o nome da escola.
Depois eu resolvi isso aí para estudar... Digo: “Agora eu vou estudar, vou ter uma experiência fora, pra depois eu ver o que eu faço da vida, sabe?”
Uma das coisas que o pai sempre teve - era mais ele que falava isso, [mas] obviamente a mãe apoiava nesse processo - era que todos os filhos iam ter uma faculdade ao menos, mesmo morando no interior. [Pra] todos eles a gente vai bancar uma faculdade, todos efetivamente fizeram. A Maria fez duas faculdades, inclusive, depois.
Essa questão de estudo sempre foi uma coisa muito incentivada por eles, até porque eles tinham a quarta série, os dois. Chegava na quarta série, não tinham nada, então acho que foi uma falta para eles que eles projetaram pra gente. “Não, vocês ao menos vão estudar um pouco.” Eu acho que foi uma coisa interessante, foi boa, o que eles fizeram para incentivar essa nossa formação. Inclusive bancaram o processo de formação, que foi, na maioria dos casos, todos privados.
P/1 - Osmar, nesse período de escola, essa primeira fase escolar, você tem lembrança de algum professor ou professora que tenha te marcado, que tenha tido uma importância na sua formação?
R - Tem, tem vários professores que marcaram, por motivos diversos. Eu sempre me lembro de uma professora de português, que é a Talisses Fredo, lembro o nome dela. Uma vez eu estava... Fazia os temas daquele jeito, gurizão e tal; levava, fazia, dava uma matada. Hoje eu sei o que é isso, porque eu dou aula há bastante tempo (risos).
Um dia, eu fazendo uma ‘matação’ no meio da aula lá, dei um rolex, e ela chegou. Deu uma volta, ela chegou e sentou do meu lado [e] disse assim: "Olha aqui, eu sei que você tem muito mais potencial do que você tá fazendo aqui. Tu tá me enrolando, eu tô vendo." Eu digo "Ah, tá."
Pensa naquele choque do bem, "puf". Foi bem e tal, e até hoje me lembro daquilo dela, falo para ela quando eu encontro: “Joia, me lembro da situação.”
Eu também gostava muito de uma professora de geografia, até porque era a matéria que eu mais estudava, talvez tivesse uma sintonia em razão disso. Eu me lembro de algumas irmãs que marcaram, muito acolhedoras nessa relação com as crianças.
Alguns diretores… Até esses dias cheguei em Viadutos, teve um diretor no colégio, que era o diretor do segundo grau. Era extremamente duro, todo moralista, uma figuraça. Tem um episódio que eu estava na... Eu peguei uma caneta que borrou e estava pintando o chão (risos), pintando a calçada. Eu não tinha nada que fazer isso. Ele chegou e botou o pé dele em cima da minha mão; eu não vi que era ele, troquei a mão e pintei o sapato dele. (risos) Quando eu olhei, aí tive essa surpresa.
Nós tínhamos também uma turma depois que se formou, do pessoal que ia da roça para cidade, e a gente começou a fazer aquelas brincadeiras de criança, um pouco... Criança não, já de adolescente, um pouco rebelde. Então tivemos uma série de episódios, penso assim, que até hoje rende conversas quando se vai para lá. Por exemplo, teve... A gente entrava e soltava gado na lavoura, de vez em quando, a gente rolava pneu para baixo das estações, a gente... Isso tudo era, a gente fazia gritos, fazia uma série de episódios meio que para incomodar, sei lá, para chamar atenção, para ser importante. Enfim, aquelas brincadeiras. Nós tínhamos uma esquina onde a gente se despedia, no interior, e era na frente da casa de um sujeito que reclamava muito do nosso estilo de vida, aí a gente fazia uma roda de música de vez em quando, fazia umas batidas nas pedras com um ferro e tal. (risos) Até hoje ele tá lá, perdeu muito cabelo por causa disso, porque a gente fazia toda noite, já que incomodava, e ele não gostava; ele reclamava, ele vinha, então a gente acabava repetindo as situações todas.
Tem uma série de episódios assim, interessantes de... A gente arrancava tábuas de leite. O pessoal deixava leite, arrancava e derrubava só para sacanear, aquelas coisas que...
Todo esse período, na verdade, a gente ia de noite, o segundo grau fiz pela parte da noite. Teve uma época muito dura assim, porque às vezes eu ia jogar sinuca depois da aula. Chegava em casa tarde, [às] cinco da manhã tinha que levar [por] uns quinhentos metros um tarro de leite daqueles de trinta litros. (risos) Era uma desgraça, primeiro porque eu estava dormindo, e segundo que levar aquele peso lá era uma coisa assim muito, muito dura. Mas não tinha conversa, tinha que levar, fazia parte da normalidade viver daquela forma.
Foi um período bastante difícil. Até o último ano eu fiz sozinho pela noite. Eu me lembro que tinha alguns medos de vez em quando, tinha noite completamente fechada, [de] você andar meio errando a estrada, mas enfim, faz parte do processo. É um passado que não me traumatizou; ao contrário, acho que aprendi muita coisa naquele processo de formação.
Foi escola pública, todas as dificuldades, e tem sim, tem vários diretores, me lembro uma vez que eu cheguei com a... Com a kichute, na época era kichute que a gente levava, que marcou muito tempo. (risos) Eu todo cheio de barro, não tinha batido direito, cheguei lá o diretor me ergueu na orelha, _______, me mandou limpar. (risos) Hoje cairia o mundo contra o diretor, na época ele me deixou quase sem orelha. Tem umas coisas assim que eu lembro, mas bem tranquilo do ponto de vista, nada de traumatizante, digamos assim. A gente sabia deslizar nesses processos todos de enfrentamento.
P/1 - Osmar, você falou que o seu segundo grau você fez já numa outra escola e tinha um foco no... Não era um técnico, mas tinha relação com agronomia. Como foi?
(PAUSA)
P/1 - Eu estava te perguntando sobre a sua entrada no segundo grau, e era um ensino focado na agronomia. Queria que você lembrasse um pouco de como foi esse segundo grau, porque já é a sua adolescência também. Era focado principalmente para meninos, para homens, ou também mulheres participavam desse ensino?
R - Não, na verdade era focado para meninos. Meninas também participavam, embora tivesse magistério, mas era em outra cidade que faziam. Ali todos faziam essa formação ligada à agropecuária, dizendo assim - agricultura, pequena agricultura, no fundo.
Foi um período que a gente estudou um pouco sobre técnicas agrícolas. Tinha uma horta grande que a gente seguidamente ia fazer algumas experiências lá, durante esse período de segundo grau. Era um ensino mais voltado ao preenchimento desse segundo grau e com alguma formação técnica, então as cadeiras básicas, as disciplinas básicas, a gente passava e tinha esse olhar técnico, agrícola. Enfim, é uma região agrícola, faz parte um pouco da história de toda a região e eu acabei fazendo isso.
Eu terminei o segundo grau e [durante] seis meses a gente podia ficar em sertão, na época, que é uma escola agrícola, aí saia com o título de técnico agrícola. Acabei não fazendo isso porque ingressei em faculdade e aí foi para outro, mas tinha pensado, estava no horizonte, tanto que também depois esteve no horizonte a possibilidade de fazer agronomia, que é uma coisa que marca grande parte da geração que vem da roça.
Acabei fazendo vestibular em Pelotas, na Universidade Federal; quase passei, infelizmente não passei, hoje, olhando para trás… Acabei caminhando por outras vias a partir daí, mas sempre tem esse amor pela roça. Sempre se fala: "Olha, a gente sai da roça, mas a roça nunca sai da gente", então de alguma forma eu tenho meu pé sim na agricultura. Os conhecimentos a gente não perde, minimamente como funcionam as coisas de lá.
P/1 - Você tinha mencionado ainda antes da entrevista que seu caminho foi se dirigindo… Você fez um tecnólogo em cooperativismo, que tem alguma relação também, imagino, com esse universo. Eu queria que você falasse então como foi esse processo de chegar nessa carreira, de ir moldando esse caminho.
R - Quando terminei a faculdade lá, quer dizer, o segundo grau, o ensino médio, eu acabei fazendo vestibular para letras em Erechim e para esse tecnólogo em Cooperativismo em Ijuí, que dá uns trezentos quilômetros de onde eu vivia lá. Eu acabei passando nesse tecnólogo e cursando o tecnólogo, que é [de] três anos. Era um ensino integral, de manhã, de tarde, na Unijuí, na época. Unijuí era uma faculdade bastante intensa; continua até hoje com as suas crises, mas é uma faculdade diferenciada aqui no Sul.
Então eu fiz essa formação, que é uma formação voltada ao estudo das cooperativas de produção agrícola. Na época se falava cooperativas tritícolas, porque o trigo era o carro-chefe; hoje talvez fosse sojícolas, porque a soja tem puxado a produção. Fiz essa formação, fiz um estágio depois na Cotrirosa, em Santa Rosa, que é próximo de onde nós moramos, ou seja, 55 quilômetros daqui, e não só fiz o estágio como trabalhei mais cinco meses e meio - no total foram nove meses e meio.
Como queria fazer a revolução na cooperativa, eles me demitiram. Foi a segunda decepção com gosto extremamente doce depois, para efeito de futuro, porque talvez até hoje estivesse trabalhando lá como comunicador da cooperativa. Mas eu tinha uma marca extremamente tímida e ainda hoje tenho ela. Eu fiz a primeira faculdade sem conseguir fazer perguntas para os professores, ou seja, não conseguia estabelecer um diálogo porque eu achava que ia sempre pisar na bola, fazer alguma coisa errada.
Fui para trabalhar nessa cooperativa, na área da comunicação. Eu fazia os programas de rádio deles e eu tinha... Eu escrevia todo o programa de rádio. Eram vinte minutos falando, dava um monte de escrita, e isso foi me ajudando também na desinibição, a pensar em outros caminhos nesse processo.
Quando estava lá, no processo, eu comecei Ciências Contábeis. Fiz uns três meses e digo: “Não, Ciências Contábeis não é comigo não. Tô fora.”
Logo depois, quando eu fui demitido dessa cooperativa, fui convidado pela regional do Sindicato de Trabalhadores Rurais, Associação Regional dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, para prestar assessoria de comunicação para eles, fazer reuniões, debater os temas que eram importantes para os trabalhadores rurais da época. Obviamente, na época e hoje também, eles têm essa associação ainda, esse Sindicato de Trabalhadores Rurais.
Voltei a trabalhar com eles e quando voltei tinha um sujeito que era... Ele tinha um cartório em Tucunduva, onde eu trabalhava, e ele começou a me incentivar assim: "Vamos fazer Direito, vamos fazer Direito." Disse: “Tá, mas o que eu vou fazer com Direito? Eu não quero fazer Direito, tô pensando se vou fazer Ciências Sociais." "Não, faz Direito, abre muitos campos." Até hoje converso com ele de vez em quando, digo: “Que bom que você me incentivou.”
Acabei fazendo Direito, mas assim, meio por... Fiz o vestibular aqui em Santo Ângelo, na antiga Faculdade de Direito de Santo Ângelo. Isso foi em 1987. Fiz minha faculdade assim: eu trabalhava de noite fazendo reuniões nos sindicatos, então fiz minha faculdade mais ou menos, meia boca, mas sempre tive no horizonte: uma hora eu vou sentar pra estudar, depois vou recuperar esse tempo perdido. Tinha que ganhar a vida também, tinha que trabalhar, não dependia mais do pai, [ele] não tinha condições também de ficar todo o tempo mantendo os filhos.
Acabei trabalhando, ganhando a vida nesse processo todo. E aí eu também acabei acompanhando a eleição de Vicente _____, que foi um cara que foi constituinte, ligado ao sindicato dos trabalhadores rurais em Santa Rosa. Foi uma experiência bem interessante. Pena que não avançou muito em estruturação, de trabalho; ele ajudou muito na organização nesse capítulo da seguridade social da Constituição Federal, junto com alguns outros interlocutores lá.
Nesse período eu cheguei a trabalhar um pouco na Câmara dos Deputados, nessa assessoria também; fui pra lá, ficava um mês, dois meses. E por ironia do destino hoje eu dou aula de Direito Constitucional. Na verdade, acabei seguindo um pouco, criei um gosto, gosto muito da vida política. A constituição é um... Digamos, é um produto político-jurídico, digamos, dos mais acabados que tem, talvez o mais importante desses últimos duzentos anos, do ponto de vista de documento.
Criei uma paixão por isso e depois segui caminhos diferentes. Obviamente não fui pra política, de alguma forma todos nós fazemos política, mas não essa política partidária. Gosto, acompanho, olho, mas até por [ter] função hoje no Ministério Público Federal não tenho como opinar. Tenho que ficar mais quieto porque sempre tem uns ruídos de comunicação nessa área, ainda mais na época de paranoia que a gente está vivendo.
P/1 - Osmar, eu vou me permitir voltar um pouquinho, que é nesse momento que você vai fazer o tecnólogo em cooperativismo. Seria sua primeira mudança, né? Você sai de Avenidas e vai morar em Ijuí?
R - Foi de Viadutos.
P/1 - De Viadutos, perdão, eu confundi. Não sei porque eu falei Avenidas, perdão.
R - Sem problema. Tem uma Avenida até lá, é no singular, é uma Avenida só. (risos)
P/1 - (risos) Mas como é que foi essa mudança, como foi sair da casa dos pais, e imagino que morar sozinho ou numa república?
R - Foi uma coisa que eu queria muito, sabe? "Ah, quero sair um pouco da saia da mãe", sempre brincava, e era isso mesmo. Eu não sabia o significado de tudo isso, mas eu falava isso, eu queria mudar.
Foi [com] dezessete para dezoito anos. Eu era bem piazão, perdido. O pai foi uma vez… O pai, o vizinho, que tinha um filho também que foi, acho que foi até o outro, que também nos ajudou a alugar um apartamento - nem era um apartamento, era uma pensão de fundos. Depois eu fui mudando com várias repúblicas - chatô, que a gente chamava - onde a turma morava em quatro, cinco, seis pessoas.
Foi um período muito intenso da vida em Ijuí, foi bonito. A gente estudava bastante, mas também tinha muita diversão, muito entretenimento. Foi outra fase da vida, interessante. [Eu era] ainda muito ingênuo, não tinha maturidade para circular por tudo aquilo, mas estava me formando também; formando em tudo, [ganhando] experiência de vida. Tanto que de vez em quando, em muitas situações, eu saía de Ijuí e pegava carona de caminhoneiro, pegando carona nos trevos, ia pra casa. Foi uma experiência também. (risos) Hoje eu não faria mais, porque eu tenho noção dos riscos dessas situações, mas na época a gente fazia isso, ia embora; enfim, sobrevivemos àquele processo.
Mas foi muito bom, a experiência da convivência com outros estudantes foi muito boa, [tem] uma série de histórias muito interessantes que aconteceram. Uma delas, eu me lembro que tinha um... Se ela escuta, vai ficar furiosa. Tinha um galo de uma vizinha que incomodava sempre nas madrugadas, ele cantava do lado. A vizinha saía, eu dizia: "Vamos matar esse galo, vamos fazer uma galinhada."
Fizemos uma fila, pegamos os milhos e levamos até o banheiro. O galo foi comendo até lá e nunca mais se soube do galo, a vizinha tá até hoje procurando o tal do galo. (risos) São aquelas situações que ficam para ser contadas bem depois, porque na época era um silêncio sobre o tal do galo.
Teve uma série de situações assim, muito ingênuas até, mas formadoras, na medida em que nos colocava diante de desafios, da convivência. Era uma coisa diferente, que eu não tinha vivido, ao menos dessa forma, lá em Viadutos.
P/1 - No momento em que você trabalha no Sindicato de Trabalhadores Rurais, é um momento em que você… Imagino que você não estava em conexão só com a região de Ijuí, mas também com outras realidades de trabalhadores rurais do Rio Grande do Sul, e talvez até de outras partes.
R - Sim, na verdade eu trabalhava na Associação Regional dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Santa Rosa, que dá uns cem quilômetros adiante de Ijuí. Era toda uma região também próxima do Rio Uruguai, mas no noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Essas regionais participam também da FETAG, que era a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul.
Eu também convivi na época com vários movimentos: Movimentos das Margaridas, Movimento das Mulheres da Roça, que tinham posições um pouco diferentes de olhar os movimentos, de olhar a política, mais ligado ou menos ligados a partidos. Embora os pequenos agricultores teoricamente sejam bastante conservadores na sua forma de ser, na sua forma de vida, tinha uma série de movimentos interessantes ali que quebravam um pouco isso e desestabilizavam um pouco a política regional.
Eu li um texto um tempo atrás que eu acho que explica um pouco isso, que na verdade as grandes divergências - era uma grande divergência que tinha na região - se dão muito entre os iguais. As nossas igualdades, às vezes... O bater no sintoma do outro. Acho que essa vida muito igual da roça acabou criando essas divergências por questões políticas, por questões sindicais, normais do processo, mas eu não tenho dúvida de que aquele período histórico, que foi exatamente o período da [Assembleia] Constituinte, [foi] o período mais importante da vida política desses pequenos agricultores, dessas agricultoras daqui da região. Na época o pequeno agricultor tinha direito a meio salário-mínimo de aposentadoria.
Não foi só a aposentadoria. Foi todo o movimento, o pessoal saindo de ônibus daqui a Brasília, pela primeira vez saindo da região, a mulher se empoderando na relação interna com as suas famílias, tendo bloco, passando a fazer negócios. Era uma coisa... Foi uma revolução silenciosa que poucos textos contam.
Eu até fui... Eu tinha uma amiga que fez uma pesquisa sobre isso, que faleceu há pouco tempo, com uma antropóloga do Rio de Janeiro, que é a Beatriz Alasia Heredia, uma argentina que veio estudar… Ela foi expulsa da ditadura argentina e era da Universidade Federal Fluminense. Ela vem estudar exatamente o voto na região, fez uma pesquisa, escreveu com Palmeira um texto sobre isso, que até saiu em francês, se não me engano, sobre esse voto aqui. A gente conversava muito sobre essa característica da região e hoje eu olho para trás assim… Primeiro que esvaziou o campo, por questão de desenvolvimento, mas segundo que a vida no campo nunca mais foi a mesma a partir desse momento constitucional, pós-constituinte, de afirmação de direitos. Acho que houve uma revolução muito profunda e que pouco se valoriza. Quando você reclama: "Ah, a constituição é cheia de direitos, não vale nada"... Ela valeu muito para muitas pessoas, criou imensos laços sociais, laços de sustentação social, econômico e social. Pouco hoje se tem registrado sobre esse processo.
P/1 - Osmar, como foi pessoalmente para você estar implicado… Você disse da sua relação com um parlamentar à época da Constituinte. Como foi estar implicado, acompanhar esse processo, que é um processo histórico, dos marcos mais importantes da história institucional do Estado brasileiro?
R - Foi extremamente rico. Imagina um sujeito que vem lá do campo, que tinha ido só a Erechim até terminar o segundo grau. Até os dezessete anos eu tinha feito trinta quilômetros de distância e aí começar a circular no Estado, ir para Brasília, circular no país, então... Claro que é uma relação de espanto no primeiro momento, mas também de apropriação de um novo conhecimento, num novo espaço, da percepção da vida política. Eu me lembro uma vez até [que] estava caminhando com um parlamentar, então encontramos Ulisses Guimarães, que de bobo não tinha nada. Ele disse: "Fulano, tudo bem? Eu só queria te dizer uma coisa." Disse assim: "De bobo ninguém está aqui.” E aí percebe assim que, como diz um humorista aqui da região, "na capital é diferente". Tem relações, a gente já vai aprendendo muita coisa.
Foi uma coisa um pouco espantosa por um lado e também muito gratificante, aprendi muita coisa na época. Mas acho que para formação e para afirmação de sindicatos, de direito desses trabalhadores, foi super importante na época. É claro que a política sempre tem suas divergências, é normal, partido é parte, mas [não há] nenhuma dúvida de que foi um movimento que conseguiu ser minimamente suprapartidário, dessa ideia de participar na Constituinte. Houve todo um discurso aparando um pouco [as] arestas e que foi um discurso importante na época para conseguir fazer com que os próprios sindicatos, que nunca mais fizeram isso, bancassem um processo político. Resolveram participar da Constituinte, que era uma coisa muito difícil de se fazer e continua sendo muito difícil ter um mínimo de unidade nesse momento de participação. Mas foi imensamente rico sim, nessas divergências eu aprendi, apanhei, normal do processo. Enfim, acho que valeu muito a pena.
P/1 - Eu queria te perguntar: a faculdade de Direito você fez onde e como foi se desenvolvendo a sua carreira dentro do Direito?
R - Eu fiz... Quando eu trabalhava lá no sindicato de Santa Rosa, dá 55 quilômetros daqui, eu fazia em Santo Ângelo aqui, toda noite eu vinha fazer a faculdade. Eu tinha... A minha faculdade de Direito foi aqui na antiga FADISA, a Faculdade de Direito Santo Ângelo, que foi fundada lá em 60 e... Deixa eu ver, em 90... Não, 61. Nós nos formamos nos trinta anos da faculdade de Direito, em 91.
Eram duas horas de aula, das oito às dez da noite, e tinha dois ônibus que vinham, então um ficava das oito às noite, [às] nove horas tinha intervalo, e tinha um ônibus [que] saía no meio, saía logo em seguida, no intervalo. Então vamos dizer assim, fiz minha faculdade, se você me disser assim, ah, foi um troço... Fiz, não fiz assim…
Um dia, depois eu voltei para a faculdade, quando eu vim para Santo Ângelo de volta; eu fui a Porto Alegre antes e um aluno me falou, porque eu lecionei vinte anos nesse espaço que eu me formei. Ele disse: "Ah, a gente descobriu que o professor não era tão dedicado como tá cobrando da gente." Eu disse: "Exatamente, eu não era mesmo. Eu sei o que eu sofri depois. Quero que vocês não sofram, porque depois eu tive que buscar tudo que eu não aproveitei no momento certo." (risos)
Fiz a faculdade meio como deu, levei o diplomaço na cabeça e disse: "Agora te vira." Decidi tomar outros rumos de novo. Migrei de novo, mais uma vez.
P/1 - Você falou que ia à faculdade à noite. Imagino que pouco teve contato com a cidade, mas como foram os primeiros contatos com Santo Ângelo?
R - Na verdade, Santo Ângelo a gente vinha e voltava, era... Eu tinha alguns contatos com alguns militantes da época. De vez em quando, até um sábado, eu ficava por aqui em Santo Ângelo; às vezes ficava um pouco mais à noite, acabava voltando, mas voltando como dava, ou de ônibus... Eu não tinha carro [por] boa parte desse tempo, depois consegui adquirir um carro e daí a gente passava também a fazer algumas coisas. Mas muito... [Um] laço muito frágil, digamos, com Santo Ângelo.
O laço era muito mais com Santa Rosa e com a região porque eu trabalhava lá, eu morava lá. Eu ia, ficava na maioria dos dias uma hora na aula, então era difícil estabelecer laços com a cidade. Mas depois, por ironia do destino ou não, eu acabei voltando para cá e faz mais de vinte anos que estou em Santo Ângelo de novo.
P/1 - Conte como foi então esse processo, enfim, essa ironia do destino que te fez voltar e se estabelecer mais em Santo Ângelo.
R - Na verdade, quando eu terminei a faculdade eu fiz um projeto. Disse assim: “Olha, não sou Jesus Cristo, mas até os 33 anos tenho que definir o que eu vou fazer da vida, porque já tá na hora.” Até porque [estava] assim, naquelas dificuldades.
Terminei a faculdade, larguei tudo, larguei serviço e disse: "Vou a Porto Alegre estudar". Sem dinheiro, sem lenço, sem documento, como dizem, sem nada. Tinha um carro, emprestei para esse cara que era deputado. [Ele] também ficou mal depois da Constituinte. O sujeito é uma figura, do ponto de vista dos negócios não foi adiante, então emprestei o carro porque não ia usar em Porto Alegre, não sabia dirigir lá, e fiquei. Meu pai me ajudou um pouco nesse processo, aí eu fui para Porto Alegre para estudar para concurso.
Cheguei lá e fui fazer a Juris, que era a escola dos juízes do Rio Grande do Sul. Fiz lá no ano de 92. Comecei, paralelo a isso, a estudar para concurso público, mas claro que quando eu comecei a estudar de verdade para concurso público… [Quando] cheguei lá, no segundo mês eu fui para o médico, porque me deu uma dor no peito, eu achei que ia infartar. Era puro estresse, porque eu nunca tinha estudado daquele jeito na vida, mudou muito a minha forma de vida. (risos) O cara disse: "Ah, você sabe [que] você não tem nada." Eu disse: "Mas como não tem nada? Rá rachando o peito aqui, tem que ter alguma coisa." Aí [ele] me deu um calmante e foi arrumar outras coisas. Tomei um calmante, daí sai para... Começar a fazer um esporte [no] fim de semana, fui me adaptando à capital e fui adiante.
Fiz a Juris nesse ano e aí começamos a fazer concurso público. Eu comecei a fazer todos os concursos que apareciam na frente. Eu disse assim: "Ah, tô aprendendo fazendo concurso."
O pessoal me dizia: "Qual a sua vocação?" Eu dizia: "Deixa eu passar num concurso bom, depois a gente discute vocação." Nesse primeiro ano já eu passei no concurso para analista da Justiça Federal.
Quando eu fui a Porto Alegre, eu fui só para estudar, mas eu aguentei um mês e meio mais ou menos estudando, dois meses; depois eu consegui um trabalho na FETAG, que era a Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Rio Grande do Sul. Acabei escrevendo um livro sobre a história da FETAG que eles acabaram publicando, trabalhando meio dia por semana - meio dia por dia, na verdade.
Eu estudava de manhã na Juris, trabalhava de tarde e estudava para concursos, para os trabalhos da Juris à noite. Morava de favor [com] um juiz de trabalho, hoje aposentado, num bairro distante até do centro da cidade em Porto Alegre, num apartamento. Meu _______ que me emprestou esse apartamento durante um tempo porque ele não estava morando lá, disse: "Ah, vai e mora lá."
Eu morei esse tempo, que foi uma época corrida, ônibus para cá e para lá. Eu fazia minha alimentação, roupa, [com] tudo me virava, sabe? Às vezes comia alguma coisa meio na corrida, naquele processo todo.
Logo depois eu passei, naquele ano ainda, para Analista da Justiça Federal. A vida estava tão dura. Antes, quando eu passei para analista, eu engordei cinco quilos; já não era, não tenho um físico muito forte. (risos) Comecei a comer um pouco melhor (risos), relaxei um pouco. Dignificou, “me salvei já, não vou morrer nesse processo”.
Foi uma coisa interessante. Na época que eu passei eu tinha um celular que era daqueles que você matava alguém se desse na cabeça e era dos que saíam caríssimos. Deixei o cadastro na Justiça Federal, mas chamaram os 32 iniciais e eu era 35º no concurso. Eu disse: "Ah, vai demorar", não fui atrás.
O sujeito me liga numa sexta-feira à noite. Disse: "Vem cá, fulano." Achou meu celular. "Você não vai assumir o concurso?" “Como assim? Comendo o pão que o diabo amassou e não assumir um concurso? Vou sim.” E aí ele disse: "Não, porque tá esperando... Segunda-feira agora é o prazo definitivo pra acabar esse concurso."
Corri atrás dos papéis, acabei assumindo em dezembro de 93 na Justiça Federal em Porto Alegre. Foi uma grande coisa, porque na verdade eu cheguei na Secretaria da Justiça Federal e falei para juíza no dia que ela passou - ela passou rápido, até hoje é minha amiga. Eu disse: "Olha, trouxe a lista. Tô fazendo a Juris, me interessa fazer uma sentença." Eu já estava conseguindo uma época de comunicação, já sabia falar alguma coisa, e falei para ela: "Olha, gostaria de fazer uma sentença, ensaiar. Eu faço e levo para casa, não se preocupa com tempo, essas coisas."
Ela ficou observando por quinze dias, aí ela chegou na secretaria e disse: "Osmar, vem trabalhar comigo." Ela me tirou da secretaria, de carimbar coisas lá e me levou. Trabalhei de oficial de gabinete dela até passar no concurso para Procurador da República. Eu só minutava sentenças penais da Justiça Federal. Até hoje sei toda a dosimetria da pena, sei que é um processo difícil, tudo na cabeça, porque eu fazia sem parar aquele processo e aprendi bastante linguagem. na época, fazendo a Juris também me ajudou.
No final da Juris, passei no corredor, olhei um cartaz lá e disse: “Vou fazer concurso, tudo que for ali eu vou fazer. Tinha concurso para mestrado lá na UFRGS; mais um concurso, vamos lá. Não tinha mesmo muita noção do que era esse tal de mestrado. (risos) Cheguei lá, fiz a prova. Não fui muito bem na prova e fui para entrevista. Um dia anterior, uma menina que é minha amiga disse: "Ah, eles perguntam isso, isso e aquilo." “Ah, não, se perguntam isso e aquilo eu vou responder”, então mais ou menos sabia o que eles iam perguntar.
Fui lá e respondi, eu vi que os olhos dos entrevistadores brilharam. Fui aprovado no mestrado da UFRGS e comecei a fazer o mestrado. Na época, trabalhava na Justiça Federal, só que fazia o mestrado de manhã, era de segunda a quinta às aulas, pesadíssimas. Trabalhava na Justiça Federal do meio-dia às sete e estudava quando dava, então foi um período duro, de trabalho, de corrida.
Aluguei uma quitinete entre a UFRGS e a Justiça Federal. Eu saía correndo da UFRGS, passava em casa, comia alguma coisa, almoçava em frente [de] lá, num lugar não muito interessante, digamos assim, hoje, corria para a Justiça Federal e trabalhava lá. Sempre esse processo.
Foi uma época dura, mas de muito aprendizado também. Aprendi também a dosar a vida: quarta-feira dava uma parada, fim de semana dava uma parada, conseguia equilibrar um pouco, fazer umas festas, porque ninguém é de ferro nesse processo e obviamente tinha que saber viver também para conseguir tocar as agruras. Mas foi muito duro, um período difícil. O mestrado exigia muito, tanto que eu só terminei e defendi a dissertação de mestrado depois de estar seis meses já, ou quatro meses aqui em Santo Ângelo como Procurador da República, ou seja, três anos e pouco depois. Foi em 94 que eu entrei, defendi no meio de 97 o mestrado.
O mestrado, na época, eram dois anos de cadeira, hoje são dois anos no total. Na época eram dois anos de cadeira duríssima e dois anos para a dissertação, era o doutorado que nós temos hoje. Mas enfim, foi indo esse processo.
P/1 - Então a sua ida para Santo Ângelo está também, de alguma forma, condicionada ao fato de você ter subido, ter passado no concurso público, para Procurador da República?
R - Isso. Na verdade, eu continuava em Porto Alegre trabalhando na Justiça Federal e fui estudando esses anos todos. Foi [em] 92, 93, 94, 95 e 96. Abreviei um pouco os 33, porque era um pouco mais adiante naquela época, mas eu percebia que alguns colegas que trabalhavam comigo e que não eram gênios do conhecimento estavam passando em concursos bons. Eu digo: "Ah, não. Então se eles passam, como ________ , vou começar também a me autorizar pra passar nesses troços." E aí chegou um momento de compreensão, de conceitos, de evolução, de bastante estudo.
Eu tinha passado para Delegado da Polícia Federal, estava na prova oral de juiz estadual, de Procurador da República - ou seja, chega um momento que você consegue quase escolher o concurso público que quer tamanho investimento, esforço, estudo, que você tá preparado para o que vier e acaba passando. A gente via assim nos concurseiros. Tem toda uma lista, os primeiros dez vão desaparecendo porque eles vão assumindo, não fazem mais concursos. A vida toda a gente acaba sonhando com esses tais dos concursos, mas também é outra época interessante, desafiadora da vida, e que é bom.
Nesse processo eu fiz uma opção de voltar para Santo Ângelo, tinha vagas. Nosso concurso é nacional, podia ter colocado qualquer outra capital do Brasil; na época era muito fácil ir para todos os lugares, todos os lugares. Pensei até em ir para Criciúma, que era próxima de Porto Alegre - meio que tinha me amadrinhado com Porto Alegre - mas aí apareceu Santo Ângelo. Eu disse: “Vou voltar para Santo Ângelo, fazer uma experiência onde tinha estudado, conhecia pessoas.” Optei, voltei para cá no dia dez de fevereiro... Não, 24 de fevereiro foi a posse. [Em] três, quatro de março de 97, fui para Santo Ângelo.
P/1 - Conte como foi a sua experiência então, dessa vez como um morador na cidade. Acho que você já tinha alguma familiaridade, conhecia pessoas, mas como foi essa experiência de se tornar um morador, um habitante da cidade?
R - Na verdade, eu tive também um apoio daqueles meus amigos que eram juízes em Santa Rosa, que me emprestaram apartamento lá. A Delmira, que é a mulher desse juiz, me ajudou a montar, alugou o apartamento e montou o tal do apartamento aqui. Eu vim para cá e o trabalho, a procuradoria, ficava bem na frente desse apartamento.
Voltei, comecei a trabalhar. Era uma imensidão de trabalho, nós tínhamos dezessete mil processos. Tinha uma vara federal que eram dezessete mil processos, tudo acumulado em caixas. Controle zero, tinha estrutura quase zero. Eu tinha computador próprio, comprei computadores para estagiários na época para tentar dar conta daquele processo.
Como estava numa época também de expansão de vários desejos, eu fazia festa também na época, então várias vezes eu passava a noite, voltava a trabalhar, tocava. Tanto que em algumas daquelas situações, chegava junho ou dezembro - depois comecei a dar aula também - eu tinha que ir para o soro para recuperar o ano. Muito trabalho na justiça, algumas festas também que desgastavam, tentando conciliar essa situação toda.
Fui ficando uns três anos nessa situação, depois mudei de vida mais uma vez, mas mudei por Santo Ângelo, porque daí apareceu Luciana. Acabamos nos casando, construindo uma... Dando uma estabilizada no processo.
P/1 - E como era a cidade? Como você se lembra da cidade nesse momento que você chega? Quais foram as principais referências que você foi construindo, que teve nesse primeiro momento?
R - A cidade não mudou radicalmente de lá para cá. Ela tem uma história muito ligada às missões jesuítico-guaranis, tem algumas coisas a ligadas à própria coluna Prestes, um pouco ligado à ferrovia também - ela tem [essa] estaçãozinha que é marca daqui, então tem um pouco desse patrimônio que se preserva de alguma forma. Tem alguma dificuldade [de] apropriação desse próprio patrimônio por grande parte das pessoas que aqui vivem, mas todos os discursos das autoridades, das pessoas, ressaltam muito esse orgulho de ser missioneiro, esse orgulho da nossa história, das nossas tradições. Isso aparece desde o sujeito lá do CTG até o sujeito que está fazendo a campanha política, até na universidade, ou seja, a todo imaginarium que é traduzido em palavras dessa história, dessa importância, dos acontecimentos que dão origem à nossa cidade. Então me lembro um pouco disso circulando.
Tem algumas coisas que são interessantes. Quando cheguei um repórter descobriu que estava na cidade. Chegou a fazer uma entrevista: "Ah, vamos [fazer uma] entrevista e tal, não tem problema." Eu falei: "Ah, tem processo assim, pessoal não repassa contribuições previdenciárias e isso é crime." No outro dia, eu apareço na capa do jornal assim: "Procurador da República", aquela foto inteira, "diz que cinquenta empresas da cidade sonegam." Tô chegando bem, chegando botando pra quebrar. (risos)
Depois, com o tempo também, o pessoal ficou com medo, tá chegando pra quebrar ali, pelas notícias. Mas enfim, depois continuo fazendo meu trabalho, o pessoal sabe que eu não... Se eu estiver aqui e denunciar não tem problema, vamos lá, faz parte do processo.
Tem algumas coisas inusitadas assim. Uma noite eu saí pra tomar uma cerveja. Um amigo meu [disse]: "Vamos!" Falei: "Vamos." Sentei numa mesa, aí conversa vai, conversa vem, eu vi que tinha um meio estranho ali no meio, mas meio, sabe? Daí ele saiu, foi para o banheiro. O cara disse assim: "Olha, esse aí é réu teu." Eu disse: "Ah, tá." Tô tomando cerveja com o réu aqui? (risos), porque eu não me lembrava, não sabia que era ele nas circunstâncias.
Enfim, até hoje converso com o réu. Ele cumpriu pena, depois ele tá tranquilo, encontro nas ruas da cidade hoje, meu amigo, faz parte. Mas são aquelas coisas [do] começo, de desconhecido, desavisado, e eu sempre fui muito ingênuo para essas coisas assim. Eu chego e me entregou, vou, levo cacetada de vez em quando, sujeito vem e me vende gelo de vez em quando, pra levar na mão. Vou, aceito, claro que com o tempo a gente começa a desconfiar de algumas coisas, quando a promessa é demais o santo desconfia e nós também. Mas ainda hoje eu tenho uma certa... A pessoa dizer assim: "Ah, fulano fez tal coisa, foi lá e vendeu..." Não acredito numa coisa dessas, não é possível que o cara vai vender uma coisa dessas, eu não consigo acreditar porque não entra. Não encaixa na minha forma de vida que o sujeito vai lá e vendeu a honra para estar nessas circunstâncias. Tanto que eu dou aula, eu digo assim: "Olha, tem bens que estão fora do comércio. A honra, a vida, essas coisas, estão fora do comércio." Alguns até vendem, mas não vem me dizer que vendem senão o campo é outro para o tratamento dessas situações, não Direito Condicional.
(PAUSA)
P/1 - Osmar, a gente vai retomar a pergunta que eu estava fazendo era um pouco da característica do seu trabalho enquanto procurador federal, Procurador da República na região, na cidade de Santo Ângelo. Você destacou algumas das dificuldades que encontrou logo da sua chegada, mas quais as características desse trabalho seu?
R - O Procurador da República, na verdade, é o promotor da Justiça Federal. Nós temos três grandes campos de atuação no campo penal, ou seja, todos os crimes federais. A a gente atua [em] tráfico internacional, contrabando, sonegação fiscal federal, moeda falsa, que são serviços e bens da União que são feridos, a lesão a esses bens, e criminais, que entramos com a denúncia na Justiça Federal. O outro campo que a gente oferece e acompanha como fiscal da lei, parte pública autônoma que se chama, é nos mandados de segurança, nas opções de nacionalidade, ou seja, uma série de processos que a gente oferece, pareceres. E o outro campo que é o interesse, o campo dos interesses difusos e coletivos: onde há uma coletividade, um grupo, a gente tem legitimidade enquanto Ministério Público para acompanhar esse pessoal, para tentar viabilizar o direito dessas coletividades, desses grupos, especialmente no olhar dos vulneráveis, indígenas e outros grupos que são mais vulneráveis nas relações sociais estabelecidas no nosso contexto.
Na época que eu cheguei aqui, a nossa procuradoria aqui abrangia… A Justiça Federal conhecida na competência nesse período [abrangia] 84 municípios da região. Pegava desde Santa Rosa, Cruz Alta, São Luís Gonzaga, até Tenente Portela lá em cima, ou seja, uma questão gigantesca aqui do ponto de vista de espaço, investigação, de atuação. Boa parte dos municípios sequer sabiam que existia essa função na região. E aí eu me propus a começar a visitar muitos municípios e conversar sobre temas, ajudando no debate. Participei de inúmeras conferências municipais de saúde discutindo sobre SUS, sobre direito de SUS, que até hoje é uma confusão legal. Mas fizemos um seminário bem legal, bem importante. Até em um desses seminários, passando, chegava... Passei em mais de quarenta conferências municipais de saúde - até fora da região, debati em Porto Alegre nesse tempo. Em um desses eu conheci a Luciana, que hoje é minha esposa, nesse trabalho todo.
Tem toda uma abrangência regional. Aqui hoje nós temos só 33 municípios ainda atuando e dois Procuradores da República; na época tinha um Procurador da República e 84 municípios, dezessete mil processos andando na Justiça Federal e boa parte deles vinha… Era um troço descomunal, mas eu sempre falava assim: “Olha, a gente não tem que pegar, entrar no mar, fazer um projeto como o mar e sair caminhando, senão nesse universo a água vai bater pela canela." A gente tem que pegar alguns temas e nesses temas sociais. Eu sempre priorizei alguns que eu acho que tem impacto econômico, social e histórico, cultural, que é o foco de atuação forte. Além do crime, que daí não tem desculpa; a gente é obrigado a atuar denunciando, participando de instruções, de audiências, isso tudo continua até hoje, nesses 23 anos de Santo Ângelo.
Teve todo um período de ingresso, um período muito forte. Na época era sozinho, virava a noite, dia. Achava que fazia, acontecia, não tinha dia, não tinha noite. Claro que isso custava porque viajava. Imagina você andar em 84 municípios, andar no Estado. Nós tínhamos reuniões mensais em Porto Alegre, eu ia todo mês a Porto Alegre nesse tempo; ficávamos dois dias discutindo para consertar ações, para estabelecer prioridades. [Foi] uma época muito rica da própria instituição, acho que perdeu um pouco esse foco, e também hoje tem muita intriga, tem pouca atuação conjunta, digamos assim.
E [foi] também uma época muito rica aqui na região, ou seja, nós... Eu conheci muito a região, muito mais do que na época anterior. Vários municípios da região, participei muito e até hoje tenho relações com pessoas. O pessoal me liga de vez em quando: "Eu queria falar com o Osmar pra falar uma coisa", nem que seja uma denúncia, mas vem com esse viés de alguém conhecido de longa data, o que de fato é.
P/1 - Osmar, no meio de uma vida tão intensa que você tinha e tem ainda, como é que foi se dando seu engajamento com a cultura, com a história, com a cidade mesmo?
R - Se deu muito pela atuação do... No próprio Ministério Público. E vejo assim, essas coisas... Primeiro que eu conhecia um pouco da história. Conheço ainda muito pouco, gostaria muito de me apropriar muito mais da história regional, que eu acho muito rica. Segundo que até as coisas mais elementares na rua, no dia a dia, acabam jogando a gente para um projeto que pode ser interessante.
Vou dar um exemplo: um tempo atrás nós tínhamos aquelas listas telefônicas que eram distribuídas para todas as pessoas. Mudou de mãos, vem a empresa privada e não distribui mais no primeiro ano. E aí uma senhora de uma imobiliária me encontra [e diz:] "Doutor, aqui, isso é um absurdo." Digo: "Deixa eu dar uma olhada, vou olhar o contrato com eles."
Ingressei na Justiça com uma ação - que foi a primeira, o Estado foi replicado depois - exigindo que eles distribuíssem as listas telefônicas e que pagassem, em razão disso e de outras lesões, um dano moral mais ou menos elevado. Aquela ação deu êxito, a gente ganhou um certo dinheiro, e com esse dinheiro foi comprado a sede do Procon em Ijuí. Foi reformado um andar do antigo fórum aqui em Santo Ângelo, que é a sede do Procon, e foi feito em outro município da região também. Elegemos os três maiores, que eram as relações de consumo, onde tinha mais pessoas, tinha probabilidade de mais relações de consumo; com base em critérios objetivos direcionamos isso. Então essa abordagem da senhora, o mais natural possível, acaba enviando a gente para esse tipo de trabalho.
[Tem] vários momentos assim... Depois teve uma representação em 2000 dos vereadores, ou antes talvez. Eu me lembro bem de 2003, que nós tivemos a audiência pública, mas já estava instruída a isso. Disseram: "Olha, um patrimônio daquele é um absurdo, tudo caindo, ninguém se responsabiliza", aquelas coisas que as pessoas dizem até hoje e que são verdadeiras. E a partir daí me chamou a atenção, disse: "Olha, nós temos uma história de cem anos de ferrovia em Santo Ângelo em boa parte do Estado. Grande parte das cidades foram montadas a partir da vinda, da indução que a ferrovia é capaz de levar para os cachorrões." E aí eu disse: “Não, não é possível que a gente deixe cair toda essa história do jeito que tá caindo e continua caindo, e não é possível que a gente consiga modelar uma ferrovia mínima que responda ao anseio de uma época diferente daquela. Ou seja, cem anos atrás nós tínhamos quarenta mil quilômetros de rodovias do Brasil. Por que hoje está com dez mil e o resto abandonado?” Por dentro de contratos de concessões, que é para melhorar o transporte.
Isso sempre foi uma coisa que me intrigou, sempre foi uma coisa que eu briguei muito, briguei com Deus e o mundo já sobre esse tema. Eu participei um tempo atrás de um debate na frente parlamentar do Congresso Nacional. Até tinha o Ministro Passos, e a gente bateu boca, porque não tem fundamento o que o Brasil fez com as ferrovias. Jogou no lixo a história, jogou no lixo patrimônio público. Podia ter feito uma opção rodoviária também, mas não podia ter feito o que fez com a ferrovia. Foi uma burrice do ponto de vista da infraestrutura de qualquer país continental que nem o nosso. E de alguma forma a gente tá ainda nesse processo.
Eu ontem participei, das dez à uma da tarde, chamei uma videoconferência com o pessoal do Ministério da Infraestrutura, com a Rumo, para a gente pensar o que eu faço com a malha sul. Nós temos mais de sete mil quilômetros aqui, uns quatro mil já abandonados, quase, uns três mil em péssimas condições e eles querem antecipações de tutela. Eu disse assim: "Olha, vamos lá"... Antecipação de tutela, não, antecipação da licitação, para mais trinta anos; antecipação do contrato, renovação antecipada do contrato.
Eles querem por mais trinta anos. Não tem problema, eles têm mais cinco, sete anos para fazer. Vamos acertar o passado, vamos projetar o futuro: o que a gente quer com a ferrovia? E aí tem espaço para preservar a história, o patrimônio, tem os fundos que a gente cria nesse grande acordo, que eu não sei se será possível, porque é o maior desafio da infraestrutura do sul do Brasil que nós temos, e a gente tá tentando levar adiante isso.
Eu chamei a Rumo, ontem era o ministério também, um colega de Minas Gerais está ajudando nesse processo, que trabalhou com o caso da Vale lá na MRS. Eu participei do processo da assinatura do contrato da malha Paulista, quer dizer, da qualificação daquele contrato, reunião de assinatura, e nós seguramos dois anos a assinatura, que era para ter saído um pouco antes para fazer os projetos, para qualificar. Fizemos uma articulação com o TCU [Tribunal de Contas da União] lá em Brasília para segurar um pouco porque era um troço muito inicial, muito mal feito no início. Fizemos o edital, conseguimos inserir um grupo nacional de trabalho que temos, um edital, um aditivo no edital da norte-sul, aquele tramo central que foi ganhado pela Rumo na licitação, colocando outras exigências que não estavam no edital inicial.
Nós fizemos uma recomendação e nisso o Tarcísio ficou puto conosco, no início, veio lá e disse assim: "Olha, eu quero conversar com vocês." Então senta aí e vamos conversar.” Duas horas depois… "Não, entendi o que vocês querem. Não tem problema, vão adiante." Até ele falou depois: "Olha, conversei com Procuradores da República, estão pensando." A gente não tem essa ideia de alinhamento político, nós estamos pensando em Estado, daqui a cinquenta, sessenta anos. Para nós acertarmos a infraestrutura do Brasil é trabalho para vinte, trinta anos ou eterno talvez, e é mudar o rumo do Brasil em algumas regiões se a gente conseguir acertar um projeto adequado, que todas as coisas consigam se unir nesse projeto. Mas é muito difícil, tem muitas... Muitos elementos que participam, tem os beira-trilhos, tem o patrimônio histórico, tem o patrimônio público, tem a iniciativa privada, tem as regiões; é uma congregação de visões e de histórias que a gente vai tentar fazer um grande pacote. Se der certo essa nossa proposta - na última reunião ontem, inclusive que eu participava com a Jana, com o Peninho - essa é nossa ideia, de acertar o passado e construir um futuro a partir daí.
P/1 - Osmar, você está falando muito já de uma atuação, que você foi se especializando também nessa questão das malhas ferroviárias, entendendo também essa problemática não só para além da questão da linha ferroviária, que passa por Santo Ângelo, mas da malha ferroviária do Sul, do Rio Grande do Sul, e até de outras partes do Brasil. Eu queria, enfim, para entrar nessa parte temática, primeiro te perguntar da sua relação afetiva com as ferrovias, com o trem. De onde vem essa relação afetiva e como ela foi ajudando nessa especialização?
R - Eu queria até depois contar um pouco da história do cinema aqui, que é uma coisa em Santo Ângelo que eu acho que você conhece bem e eu acho que tem uma coisa muito… Que nem aquela do livro, das coisas que foram aparecendo. Mas a minha ligação com a ferrovia eu acho que tem um pouco a ver com Viadutos, os viadutos da ferrovia, com a minha história.
Quando eu ia para o colégio eu passava, quando eu ia para o segundo grau eu passava. Seguidamente tinha composições paradas, eu tinha que atravessar essas composições de forma que hoje não se recomenda e tampouco a época se recomendava. A gente pulava sobre os trens, pulava no meio dos trens, então qualquer mexida lá era um acidente e compromete o sujeito para o resto da vida. Mas a gente fazia isso.
Aqueles trens andando sempre eram muito inspiradores. De alguma forma os trens aparecem também no cinema, o que me chama um pouco para olhar. Tem até um episódio em Paris [da] primeira vez que aparece um trem no cinema: eles projetam, o pessoal sai correndo da sala né porque o trem vem. (risos) Agora ele nos pega. Então tem uma série de situações assim que foram encantando, mas muito, a presença dessa questão das ferrovias, e fui compreendendo a importância delas, muito pela atuação do Ministério Público aqui.
Claro que talvez esse outro, esse nascimento, essa simbologia volta a um regresso da adolescência talvez. Um outro patamar, digamos assim, mas muito pela situação por representações de vereadores. Tem muitos saudosistas das ferrovias, muitas pessoas apaixonadas por tudo que é tipo de trem. Hoje eu recebo mensagem de todo o Brasil, tem uns que não sei nem quem são as pessoas. De vez em quando eu respondo, quando dá, porque as pessoas se identificaram, tem alguém que tá lutando nessa área. Tem um sujeito do Paraná que me manda sem parar, tem outro uruguaiano; nem conheço pessoalmente eles. Tem outros de outros Estados.
Quando eu participei daquela frente parlamentar do Congresso Nacional, que deu um pau forte, foi um debate bem interessante. Quando desci daquilo eu percebi a paixão que as pessoas têm, porque eu nunca recebi tanto cartão corporativo e coisas na minha vida, sabe? Se eu saio com um maço de cartão as pessoas: "Ah, nós temos que conversar." Grande parte dessas pessoas sequer conversei mais porque enfim, é da parte sul, do Mato Grosso, o outro não sei de onde, o outro de lá, mas eu percebo que é um tema que tem impacto econômico, impacto social, que tem um amor pela história muito interessante. Por isso também o meu envolvimento, acho também, acabei criando esse amor todo pelo tema.
P/1 - Eu queria te perguntar se tem uma passagem, um momento, uma história em particular que você considera marcante dessa sua atuação pensando na construção de projetos para a ferrovia, no que diz respeito a pensar na construção de uma memória, na possibilidade de novas construções de memórias. E também pensando em projetos para o futuro, que é algo que você também ressaltou na sua fala.
R - Sim. Na verdade, lá em 2003 nós recebemos algumas representações de câmara de vereadores falando do abandono da região, do abandono dos trens, e nós fizemos duas audiências públicas. Uma delas tinha umas duzentas pessoas na Associação Comercial aqui em Santo Ângelo e vieram representantes da ALL, na época que ela América Latina Logística, que é a antecessora da Rumo. Tinha uns meninos bem intencionados, chegaram falando o que quiseram, ouviram muito mais do que esperavam. O pessoal pressionou muitíssimo e eles no final disseram assim: “Olha, deem um mês pra gente, a gente vai fazer um acordo com vocês então", porque estava muito forte a pressão popular e eu deixei o pessoal descarregar tudo que eles tinham também, tinha armas verbais para tudo que foi lado.
Nessa condução a gente acabou fazendo um TAC, um Termo de Ajustamento de Conduta, que eles voltariam a Transportal - o que eu não consegui até hoje, na verdade. Depois eu ingressei judicialmente, executando esse TAC. Eu sei que dez anos depois a gente conseguiu fazer um acordo judicial parcial e nesse acordo judicial, além de alguns projetos municipais, de renovação de terminais, a ALL pagou oito milhões de reais nesse acordo judicial - que eu não fiz sozinho, eu chamei todos, embora [no] acordo judicial eu tenha chamado o pessoal que tinha terminais, os prefeitos, convidei toda a região e botei na mesma sala. “Olha, isso é responsabilidade nossa, fazemos ou não fazemos isso?” Eu acho que é razoável, e a gente fez esse acordo.
Desse acordo, chamei de novo os prefeitos que tinham ficado sem transporte e fiz uma divisão, dois cortes: o primeiro [de] 50% para cada um, então quatro milhões divide por dez na época, ou nove, que ficaram sem trens, e quatro milhões foram destinados proporcionalmente à população, daí as cidades maiores receberam uma porta maior de verbas disso. E nesse recurso a gente tentou pautar aplicação na preservação da memória Ferroviária, da história. Por exemplo, tem um Museu Catuípe belíssimo, foi feito com uns quinhentos e poucos mil reais desse dinheiro, que é exatamente na estação ferroviária lá e que vale a pena dar uma olhada, porque é bonito mesmo, tá bem feito e bem conservado. Nós recuperamos em São Luiz Gonzaga, por exemplo, o antigo presídio, que virou Centro Integrado de Cidadania com parte desse dinheiro, além de fazer uma praça lá.
Em Santa Rosa foi feito o... Tape Porã, que é um parque linear onde passava a ferrovia desativada no centro da cidade, porque não tem mais condição de chegar ferrovia ali. E aqui em Santo Ângelo, por questões burocráticas, a gente tá trabalhando ainda para investir parte desse dinheiro na restauração da nossa estação férrea aqui.
Cada município fez projetos e apresentou. Muitos eles disseram não. Por exemplo, Ijuí fez a Estação Cultura lá, um projeto belíssimo também, para fazer uma concha acústica, para restaurar o armazém da antiga estação, bem no centro da cidade. A gente trabalhou assim nesse projeto. Talvez tenha o maior impulso na área, que é pouco, do ponto de vista de todo esse patrimônio nacional, que chegou a ser o segundo maior patrimônio do Brasil depois da Petrobras, mas que é bastante para a região porque impactou, porque a gente conseguiu preservar, conseguiu salvar alguns valores desses.
Muitos deles já começaram a cair de novo pela falta de investimento e manutenção, mas [teve] muita coisa boa. Eu acho que tem sido, que nós conseguimos aplicar bem esse recurso que era pouco, mas é bastante, também pelo efeito que deu.
Acho que esse foi um dos grandes projetos nessa área e que me dá muita satisfação de olhar [como] as coisas foram feitas. Inclusive, como eu não terminei ainda de ajudar a destinar, porque é uma destinação de juízo, mas quem determina, quem pega a destinação… O juiz termina, acaba sendo eu, ficou isso acordado na situação. Como não terminei ainda, quero fazer um manualzinho, até para prestação de contas, com imagens do que foi feito com esse dinheiro. Quando é bem empregado eu acho que a gente consegue fazer bastante com um pouco às vezes, e isso se mostrou bem razoável aqui na nossa experiência.
P/1 - E eu queria te perguntar, na sua perspectiva, qual é o impacto da ferrovia para além da questão de infraestrutura, que eu acho que é óbvia. Mas qual o impacto que a ferrovia, a estação de trem, tem na cidade de Santo Ângelo? Você agora, nesses pouco mais de vinte anos na cidade, o que representa e qual o impacto que essa ferrovia ainda tem pra cidade?
R - Na verdade, nós temos duas estações hoje: a Estação Central, que foi uma arquitetura bonita, inclusive a caixa d'água importada da Bélgica, de ferro fundido, que é belíssima, tá do lado da estação aqui. Essa tem uma importância hoje turística, de preservação da memória. Ela abriga ao mesmo tempo o Museu Coluna Prestes, quer dizer, o Memorial Coluna Prestes, e também o Museu Ferroviário - tem algumas peças ferroviárias, podia ser implantada. Não chega mais linha aqui, então estamos diante de um patrimônio urbano.
A outra estação é lá na estação São Pedro, que é distante daqui uns cinco ou quatro… Não isso, acho que uns três quilômetros, mais ou menos, e que ainda tem uma circulação de um trem por semana. Eu já falei no início da… Disse: "Olha, pessoal da Rumo, eu não quero saber de um trem por semana. Um trem por semana não tem impacto econômico, não tem impacto social. É só para o Veronese ver para não ficar multando, forçando a ter trem. Não dá, vamos trocar isso. Isso não serve pra ninguém, nem pra vocês, porque tá feio esse troço. Não conserva, manda um trenzinho brabo lá, a imagem de vocês também tá piorando nesse aspecto, então vamos trabalhar assim, onde dá pra trabalhar, vamos tocar.”
Lá é uma região que nós até restauramos um acordo que eu fiz com a Rumo. A estação lá é recente, foi feita uma reforma nela porque ela… Lá não é propriamente prestar uma reforma, porque era mais... Era um mundo bem mais recente, não tem esses traços arquitetônicos daqui. A gente tentou dar vida àquele espaço, que é um espaço belíssimo, mas a gente está com algumas dificuldades. Especialmente a pandemia atrapalhou muito para gente conseguir dar vida.
Nós queríamos fazer um parque lá. Pensamos várias ideias, desde jogo de futebol, pista de caminhada com iluminação. A Associação dos CTGs pegou aquilo como cedência para fazer um lugar de dança no antigo armazém. Estava tudo mais ou menos estruturado para se fazer isso. A gente conseguiu fazer a estação, conseguimos um trem turístico ano passado, que era para ser em treze, quatorze e quinze de novembro; já estava certo para voltar e agora, com a pandemia, suspendeu inclusive isso. Conversei há duas semanas já. Eles suspenderam, vão voltar em alguns trajetos que estão mais fixos, mais duradouros, que têm mais público. Eles voltam esse ano e os outros só para o ano que vem.
Talvez em junho e agosto nós vamos trabalhar uma data, talvez até dois fins de semana para pensar na retomada, um pouco ... Para lembrar um pouco, para não deixar morrer totalmente essa ideia do trem turístico. Mas hoje, economicamente, [é] muito pouco, tá meio depredada toda a via.
Tem lembranças interessantes. Tem vários ferroviários que têm histórias belíssimas sobre a antiga. Até esses dias eu fui ao mercado, veio um sujeito falar comigo e disse assim: "Olha, eu sou ferroviário, e a gente vai fazer um churrasco lá." Eu disse: "Me convida." Lá na estação, para contarmos histórias sobre a ferrovia. Eu disse: "Me convida, tô junto nessa." Acho que não fizeram ainda, porque eu o encontrei semana passada e ele não me falou nada do tal do churrasco.
Acho que tem uma coisa interessante que envolve essa questão da ferrovia. Tem uma aura, todo mundo é a favor, mas tem dificuldades hoje, econômicas e outras, para a gente levar adiante a proteção desse patrimônio e dessa história.
P/1 - Osmar, para gente também poder se encaminhar para parte final, você estava falando também de preservação de outros patrimônios culturais da cidade, da região. Você chegou a mencionar o trabalho também que envolveu o cinema de Santo Ângelo. Queria que você falasse e refletisse também sobre como foi e como têm sido esses trabalhos e esse seu engajamento nessa preservação histórica cultural, mas também com o olhar, pelo que eu percebo na sua fala, de um futuro, de que isso também possa ter uma sustentabilidade econômica, que me parece fundamental quando a gente pensa na questão desse patrimônio.
R - Com certeza. Na verdade, acho que a minha formação na Unijuí, a minha formação Universitária me ajudou muito, abriu um pouco os olhos para esse patrimônio e para essa questão cultural. Sempre tem professores interessantes que fazem reflexões que abrem horizonte para isso
Eu tive outra experiência também. Em 2004 fui fazer doutorado na Espanha e essa visão da arquitetura europeia sempre me chamou muita atenção. Eu até li um livro do Sennett, acho que é "Carne e pedra", [em que] ele faz uma comparação entre a evolução do ser humano e a evolução da arquitetura da cidade. Eu até brincava, na Inglaterra pega todos aquele prédios retinhos, [os] sujeitos são durinhos, e efetivamente são, são conservadores. Boa parte da Europa, se você olhar do ponto de vista da formação, pensamentos deles. E se pegar nossa aqui então, é uma... Nós temos esse jeito de Brasil e isso se reflete pra dentro da arquitetura, o que é uma situação. Mas o que me chamava atenção é que boa parte das pessoas que destroem o nosso patrimônio, inclusive histórico… Nós tivemos casario aqui lindíssimo [que] foi para o chão, foi um crime contra a humanidade que foi feito. E os mesmos caras que vão visitar o patrimônio histórico na Europa, visitar os palácios, vêm para cá e derrubam os palácios daqui. É isso que me chama atenção e me incomoda em muitas situações, porque é um discurso muito hipócrita, um discurso de desenvolvimento quando você pode casar desenvolvimento com proteção de patrimônio em muitíssimas situações com alguma inteligência, com alguma tranquilidade, com esse casamento que pode render mais dinheiro, inclusive, para esse sujeito, em muitas situações.
Nós tínhamos um hospital aqui em Santo Ângelo… Tem um prédio, era o Hospital Gatz, que é o sujeito que veio da Alemanha, foi um cara que foi médico na Segunda Guerra, com todas as suas... Teve até uma peça teatral que eu assisti, fiquei encantado com a história do sujeito. O hospital era… Pensa numa coisa linda, para fazer um shoppingzinho a céu aberto, um lugar de música; era algo que seria visitação constante para sempre. Do dia para noite foi derrubado, construíram um prédio retinho, que tem sua função também, mas que não tem aquele apego histórico, que não representa toda sua história, então eu tenho...
Essa visita em vários países do mundo eu sempre tive também, especialmente depois do casamento. Luciana incentiva muito essa questão cultural e ela... A gente viaja muito, a gente conhece muitas regiões do mundo, e aí essa observação, esses museus, essa vida nos outros países, essa... A gente vai também trazendo, de alguma forma.
Esses dias eu fiz na frente da clínica… Nós temos uma calçada que é uma experiência pessoal que eu fiz... Chamei um cara e disse: "Olha, eu quero que você faça isso aqui." Desenhei pra ele. “Eu quero que você faça uma grade assim, assim, volteado e tal” e ele pegou, foi lá e fez, botou na calçada. Na segunda semana, passa um vizinho: "Onde é que você mandou fazer aquilo? Quem é que foi o cara que pensou nisso aí?" Eu digo: "Não, eu não pensei. Eu copiei de Boston. Vi em Boston, passando pela cidade, vi lá e desenhei. Mandei o serralheiro fazer aqui e ele fez".
São umas coisas assim. Eu acho que o mundo vai chocando a gente de alguma forma, tanto que nós, na vida pessoal, acabamos adquirindo um casarão aqui, que é um casarão de mais de cem anos, feito de barro. Nós fizemos um projeto - passou pelo conselho, inclusive - para preservar toda a arquitetura histórica. Tá lá a casa de barro, assentada sobre a pedra das ruínas; na cozinha a gente fez um vidro para deixar exatamente o tijolo da época aparecer, [em] toda construção nós abrimos uns espaço sobre as portas. A sustentação é uma madeira que nós deixamos exposta, os tijolos todos assentados de forma diferente; um tipo de construção [que] na época não tinha prego, toda a cobertura é feita com madeira encaixada, uma técnica belíssima, coisa que meio que desapareceu. Até achamos uma telha, fizemos um quadro dessa telha de 1921, provavelmente. Fui atrás dos registros para ver que época fora feita a casa, eu acho que é 1921. Tem o assoalho original ainda, e é onde minha esposa tem consultório.
Descascamos parte das paredes para tentar preservar um pouco essa história e também não ter nenhum problema de casar, dar uma potencialidade econômica a isso, muito próximo de casa. Obviamente a gente tem também um ganho em relação a isso, a gente preserva aquilo como parte do nosso quintal mesmo. E nós gostamos da história, ela também tem esse apego a história e por isso a gente faz isso.
No caso do Museu, do nosso Museu do Cinema aqui em Vivaldino Prado, teve um episódio interessante, porque na verdade o Paulo Prado, que é um sujeito que mora na área aqui em Santo Ângelo, ele tem... É uma figura inusitada, mas bem interessante em muitos aspectos. Ele é pitoresco em algumas coisas, é sui generis. Eu escuto muito ele e gosto muito dele. Ele fez uma casa na árvore, construiu lá. “Vamos tomar uma cerveja na árvore”, e lá na árvore mesmo ele faz num espaço. Ele fez uma daquelas bigas romanas, ele tem em casa, e por tradição familiar, todo um acervo que ele comprava, inclusive que é o acervo hoje do Museu do Cinema aqui. Ele disse: "Olha, me apertei, preciso de dinheiro e vou vender isso."
Ele procurou na época o Secretário de Cultura, chegou aqui e disse: "Olha, tenho o acervo. Quero cinquenta mil.” Cinquenta e cinco, depois deu na contagem. E aí o Secretário de Cultura disse: "Olha, sem chance. Época de crise, não tem a menor chance de comprar isso". Ele botou na rede. No outro dia, um cara de Minas disse assim: "Tô comprando, tô indo para aí, pode segurar", e ele disse: "Não, não, deixa eu pensar uma semana."
Quando ele procurou o Secretário de Cultura, ele disse assim: "Eu não tenho, mas vai lá e procura o Veronese para ver se vocês acham um caminho." Apareceu lá com duzentos e poucos itens, e eu disse: "Tá, eu também não tenho dinheiro, mas deixa eu olhar esse material para gente dar uma pensada." Eu fui no sábado de manhã seguinte lá, peguei um chimarrão, fui dar uma olhada. Eu me encantei com o material, [um] material interessante; tem documento da censura, tem uma série de... Tem, digamos assim, liberado, censurado, ele tem cartaz de todas as épocas históricas. Santo Ângelo tem mais de cem anos de cinema e eles foram uma das famílias que deram origem a esse cinema aqui também. Durante todo tempo teve e continua tendo, o que é muito raro, ter cinema sempre em cidades como a nossa. Chegamos a ter um momento que tinha cinco cinemas funcionando normalmente, conjuntamente, cheios, então cinema é uma marca da cidade.
Fui lá e voltei, parei num posto de combustível, que é [de] um conhecido meu para abastecer, e eu disse: "Fulano, eu preciso de um patrocínio aí para comprar esse acervo." Ele disse: "Nem pensar, não vai encontrar nenhum empresário que vai botar esse dinheiro."
Mais meia dúzia de conversa com eles [e] apareceu a ideia de fazer uma bazar da Receita Federal com produtos apreendidos. Organizamos via Rotary aqui e dois meses depois eu tinha comprado. Ficou mais um ano na casa do cara, cuidando, porque a gente não conseguia achar um espaço físico, o espaço físico que nós estamos aqui hoje para conseguir destinar, o que é uma dificuldade, mas nós em dois meses compramos com esse dinheiro que foi produto de um bazar da Receita Federal. E agora a gente conseguiu mais, a última reforma foi feita de novo com partes de um outro bazar dessa atuação, digamos, público-privada, e de muitas ideias também para tentar preservar essa história.
Eu acho essa história do cinema, que até um menino, aqueles que fazem filmes, cinemas de... Eu não me lembro o nome deles, que veio para cá e fez uma experiência, ele veio visitar e disse: "Olha, eu sou formado em Cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina, mas eu não sabia que existia uma máquina de 7,5mm, uma coisa assim, que vocês têm aqui no cinema." Então tem algumas coisas que são bem interessantes. Quer dizer, não é algo gigantesco do ponto de vista de acervo, mas é um acervo que eu considero de muita qualidade, que expressa muito Santo Ângelo, expressa muito a nossa sétima arte ali e tem digamos determinadas peças que são peças bem importantes, não só para história de Santo Ângelo, mas do Brasil e talvez, quiçá, do mundo.
P/1 - Do próprio audiovisual, né? E foi muito fruto então, pelo que eu estou entendendo, da situação do... Porque foi a partir de bazar de bens que foram apreendidos pela Receita Federal, então teve essa articulação do Ministério Público, também pessoas da comunidade que se engajaram e aí se gerou esse fundo, né?
R - Eu até na época… Uns anos depois, eu levei o pessoal que ia fazer o bazar lá, o pessoal do Rotary, e aí alguns deles… Foi muito feliz a levada deles, fizeram com maior paixão. Alguns deles encontraram fotos dos familiares deles lá, registrados, eles: "Olha aqui, a gente não sabia", então criou toda uma hora de proteção a esse _________. Mas foi muito pessoal a coisa, bateu lá, pensam a saída e vêm embora. Tanto que eu não sabia como formalizar isso, como é que eu vou fazer agora para a gente fazer um bazar, eles comprarem?
Abri um procedimento administrativo no Ministério Público Federal nesse campo da preservação da Cultura. Eu fiz pouca instrução, pedi uma avaliação da Secretaria de Cultura, “vai lá e avalia esses bens, vê quanto que eles valem”. Fizeram um levantamento com busca na rede, em muitas situações, me apresentaram um valor e a partir desse valor então a gente conseguiu fechar o negócio com ele, segurar esse acervo em Santo Ângelo, mas foi muito assim. Esse procedimento administrativo a gente deixou disponível para todo mundo lá: "Olha, foi assim que se fez esse processo", que é tudo meio criação, a gente foi apanhando no meio da caminhada para saber como faz para formalizar, para evitar qualquer ruído, à medida que envolve o esforço de bastante gente.
P/1 - E pra gente também se encaminhar para o final, acho que não tem como não falar, você mencionou já algumas vezes a figura da Luciana, sua esposa. Para a gente ter esse registro, como é que foi que vocês se conheceram, enfim, como foi o casamento?
R - Eu fui fazer uma palestra sobre SUS lá em Ijuí. Na época eu fazia, participava das conferências municipais. [Era] enorme o salão e na saída eu vi a Luciana. Luciana me chamou atenção, eu conversei um pouco.
Isso foi bem no final de 99, um pouquinho antes do final. Aí na verdade deu uns desencontros, eu tentei saber notícias dela, me falaram que ela era noiva, alguma coisa assim, mas ela ficou sabendo também que eu busquei informações. Nos encontramos logo depois, no final do ano a gente já viajou juntos e a partir daí a gente decidiu se casar rapidamente. Foi uma coisa assim, muito “bom, tá na hora de dar uma apagada”. Eu já estava com 35 anos, estava na hora de parar também, então foi.
Resolvemos nos casar, resolvemos ter filhos, construir a vida. Foi muito rapidamente. Não foi nada no susto, foram decisões que a gente foi tomando. Foi muito intensa a relação, como é a relação intensa até hoje.
Ela é formada em Psicologia, tem inclusive doutorado pela UFRGS no campo da psicanálise. Estuda muito, gosta muito de cultura e também tem uma relação muito forte nessa questão cultural, então se pegar os clássicos, o que o pessoal tá discutindo hoje, ela acompanha tudo que é live, vídeo. Segue, por exemplo, Christian Dunker, estava hoje na onda ali discutindo temas, tá todo dia lá por casa ele e mais tantos outros. [De] madrugada não dorme, levanta três, quatro da manhã, cinco às vezes. "Não, vou ler tal coisa", é sempre muito ligada na tomada.
Nos casamos em maio de 2000. Já na sequência, foi muito rápido nosso casamento, nós tivermos o Franco, logo em seguida, que é o nosso primeiro filho. Depois tivemos o Piero, que é nosso segundo, e tivemos o Luigi, que é o terceiro. Parou por aí também, porque três já dão o que fazer. Mas foi assim.
Hoje é muito difícil, mas a gente tenta passar um pouco desses valores também da ideia da leitura, da ideia da cultura, joga no meio da biblioteca lá em casa, que é grande, para ver [se] eles, por osmose, atraem alguma coisa (risos). Mas enfim, faz parte do processo, hoje é muito difícil assim você fazer um certo _______, a não ser como as redes sociais, que aí eles nasceram dentro, qualquer coisa eles estão sabendo. Meu maior, com treze anos, desmontava e montava computadores ele próprio, para ver o que tinha dentro. E montava certinho, funcionava. Comprava peças de todos os lugares do Brasil e montava, porque é uma outra geração, é a geração ligada na tecnologia.
Acho que nesses vinte anos que a gente está junto a gente viajou para praticamente todo o mundo, porque é uma das coisas assim… A gente trabalha muito, muito, tanto eu quanto ela. É madrugada, a gente tá tocando. Eu sou ligado hoje a URI, que é uma outra universidade, não aquela; faz vinte anos também que eu dou aula na URI, e eu dou aula na graduação campo do Direito Constitucional; [no] mestrado, Estado, Constituição e Diferença, e também no doutorado, que são temas em Direitos Culturais e Minorias sócio-étnicas, que é a minha cadeira.
Esse envolvimento todo nos leva... De vez em quando, às três, quatro da manhã, eu tô aprontando algum artigo, fazendo, que é uma coisa que eu gosto de fazer, mas tem um preço também isso. Para compensar um pouco, a gente raramente sai hoje pela cidade. No dia a dia tem pouca convivência noturna, até pelo estilo de vida que é muito desgastante, mas a gente viaja muito nos finais de ano - quando dá, agora não porque esse ano trancou tudo. A gente ia para as Ilhas Inglesas agora em julho, mas aí foi tudo cancelado, os cruzeiros; a gente gosta de cruzeiros, porque também consegue largar os meninos um pouco e deixar eles terem outras experiências.
Tem experiências interessantes, que eles vão... O meu tinha sete anos, foi subir numa parede daquelas que tem rapel e aí ele se apertou. Estava na Austrália na época, se apertou e começou: "Socorro, socorro!" Ninguém dava bola para ele, e daí ele olhou: "Help, help" (risos) porque ele percebeu que estava em uma outra língua. Essas coisas são interessantes para eles também, eles vão tomando um choque de outras culturas, vão aprendendo. Acho que vai ressignificando um pouco a vida.
A cultura passa muito pela convivência, pela formação Universitária, pela atuação do Ministério Público. Acho que tem uma série de pilares de sustentação para esse viés, esse amor que eu tenho pelas coisas. Acho que nós temos que preservar a história, quem não preserva a história tem dificuldade de construir um futuro.
P/1 - E aí eu queria te perguntar, Osmar, para a gente encaminhar para o final: para você, como é participar de um... Enfim, contar a sua história de vida e por meio dessa história de vida participar de um projeto de memória que trata da cidade de Santo Ângelo, trata também da estação de trem, assim como da linha ferroviária. Como é para você se ver participando de um projeto de memória como esse?
R - Confesso que eu fiquei meio desconcertado. Primeiro, quando veio o roteiro, achei meio pessoal e eu digo: "Será que...?" E aí mais ou menos... Foi a minha ideia, mais ou menos compreendi que nessa história pessoal obviamente vai aparecendo também institucional. Eu achei que o foco era muito mais quando a (Jane?) me falou um tempo atrás da Rumo, e que era muito mais institucional. Quando veio essa situação pessoal eu fiquei um pouco desconcertado, mas compreendi que é um processo, que pessoal e institucional às vezes não são tão distantes assim. Parece que hoje apareceu um pouco mais isso.
Eu nunca fiz isso de contar abertamente assim a história. Seguramente, tampouco pensei, foi saindo como... Fui me lembrando de alguns aspectos e alguns episódios. Acho que teria tantos outros que talvez a gente acabe tamponando e também são interessantes para gente tomar decisões de vida, decisões de vida, mas eu sou... Eu fico grato em relação à experiência.
Eu sou um sujeito sempre otimista em relação à vida. Quero que as coisas aconteçam, sempre pensando. Eu acordo quatro da manhã e organizo cinquenta coisas que eu tenho para fazer. Até durmo um pouco depois, mas já tenho a agenda pronta na cabeça; eu quero que as coisas aconteçam, eu pressiono, vou. Eu tento organizar isso para não cair em rotina. Por exemplo, se deixar… Eu tenho uma série de servidores que trabalham, eu sempre falo pra eles: “Olha, pior coisa que tem é a rotina. Você vai ‘vou fazer porque tem que fazer’. Não, faz porque isso é importante, porque isso vai ter um impacto. Veste a camisa, vamos pensar em projetos interessantes para a sociedade, para onde a gente vive.”
Talvez a pior coisa seja a gente chegar no final da vida, olhar para trás e dizer "não fiz nada que preste, não deixei uma semente interessante”. Eu me preocupo com isso. Acho que a gente, especialmente depois de uma certa idade, passa a ter noção da finitude e aí a gente passa a dizer: “Bom, tem que deixar alguma coisa plantada.”
Um dos grandes projetos que eu tenho, que eu gostaria muito de resolver - não sei se será possível, mas espero que sim - é resolver essa questão da malha como um todo, pensar a infraestrutura e a proteção de patrimônio. A gente tá tentando, ainda vai inserir, sim, nesse projeto de renovação, se acontecer, recursos para a preservação das estações, das Marias Fumaças, desses espaços que representam a memória ferroviária que são muito importantes, porque remetem à história de muitas pessoas.
Muitos casamentos aconteciam nas estações, tudo chegava pela estações, desde os animais; chegava desenvolvimento, chegavam as pessoas para morar, quer dizer, isso é parte muito presente na formação das nossas cidades, na formação histórica de nossos povos. Para perceber onde passava a ferrovia tinha desenvolvimento, tinha vida, tinha muita história que se contava em relação a isso.
Eu acho que o Brasil não pode botar no lixo não só o patrimônio público, mas também esse patrimônio imaterial, material que representam essas estações, esse casario, essas locomotivas, esses vagões. Veja, tem o vagão que o Getúlio Vargas andava, que a gente estava esses dias ali olhando; poucas pessoas sabem, entende? Mas representa um período da história brasileira que em dois toques vira lixo se a gente não consegue ter uma articulação de preservação.
Tenho muitos projetos aí em vida, espero conseguir realizar. Eu teria tempo já para me aposentar no Ministério Público - uma aposentadoria ruim, é verdade, com a reforma da previdência agora me jogou lá mais uns cinco ou seis anos. Não sei se estou preparado para sair do Ministério Público, mas a universidade também acaba me sugando bastante, então não sei se... Penso em terminar algumas tarefas, ao menos, ou deixar bem encaminhadas, digamos, antes de abandonar o barco.
Acho que tem muitos desafios, o Brasil tem cada vez mais desafios; me assusta um pouco esse excesso de polarização na vida nacional hoje, sabe? Qualquer coisa vira futebolização, vira questão política e assim por diante, e faz muita falta alguém que seja capaz de dialogar com diversos setores da sociedade, seja... Que tenha uma postura mais estadista, não criar encrenca em cada esquina como a gente tem visto sem parar. Isso atrapalha muito qualquer projeto de país, de cidade nessas situações, que qualquer iniciativa vai ter sempre aquele peso de ter que convencer de que aquilo não é uma questão pessoal, de que não é algo para perseguir alguém. Isso é o maior absurdo, o Brasil tá entrando nessa época de rivalidade sem fundamento. Ou seja, nós precisamos sim ter, digamos, algum estadista, alguém que passe além de governos, de políticos, capaz de indicar um novo horizonte para a sociedade.
Um novo horizonte pra sociedade passa desde a cidade, digamos, ter horizontes interessantes, especialmente para o Brasil. Pensar um projeto nacional que seja alguma coisa segura, com menos encrencas, com menos ruído de comunicação, porque até mesmo pessoal que tá discutindo… Discuti esses dias até com empresários, porque eu converso com todos os setores da sociedade; tenho que conversar, obviamente. Eu disse pra eles: “Pensa assim: se tu é um investidor no exterior, tem um fundo ou você tem um dinheiro do exterior. Você olha para o Brasil nessa confusão. Você vai botar dinheiro bom lá? Não vai, né? Ou vai ter muita dificuldade de fazer.” Então o Brasil precisa ter minimamente uma estabilidade para resolver esses conflitos, indicando o mínimo de segurança jurídica no cenário, para o investidor nacional, para o internacional, para as pessoas virem a morar aqui, porque nós temos lugares maravilhosos e potencialidade imensa, mas nessa esculhambação nós jogamos metade fora.
Eu até escutava, tem uma história que uma vez eu peguei um carro em Madri indo a Salamanca, e aí tem "Conte-me tua história", um programa. Em trinta segundos tu tem que entrar e falar tua história, e aí um senhor disse assim: “Olha, eu vou me jubilar ano que vem e tô indo para o Pantanal no Brasil, que é o lugar melhor do mundo que eu encontrei para passar meus últimos dias.” Eu disse: “Ah, que interessante”, a gente acaba pensando em fugir do Brasil e os outros indo para o Brasil.
Essas situações todas que me fazem acreditar no Brasil, embora haja uma desconfiança do ser humano, porque eu acho que muitos não deram muito certo, nessa época que nós estamos vivendo aí.
P/1 - E eu queria perguntar se por acaso teve alguma coisa que você não disse que gostaria de dizer, que não teve oportunidade de dizer ao longo da entrevista e que gostaria de complementar.
R - Olha, na verdade, de bate pronto assim não me lembro de alguma coisa... Muito provavelmente, como é que é? Numa roda de cerveja, num vinho no inverno sairiam muito mais histórias interessantes (risos), porque a gente acaba abrindo compartimentos da memória para buscar.
Eu podia hoje, do ponto de vista institucional, estar em qualquer lugar do Brasil. Podia ser Procurador Regional da República, ter sido promovido há muitos anos. E por laços que eu criei aqui por Santo Ângelo, pela história, eu acabei ficando e a minha ideia é ficar direto por aqui, inclusive depois de aposentadoria, fazer outros projetos. Então de alguma forma acho que tem um laço histórico, um laço de presença que me prende aqui em Santo Ângelo, e a tendência é que eu não vá me remover pra outro lugar, a não ser que algum episódio diferente aconteça nessa trajetória da vida.
No fundo, no fundo, sou do interior. Eu gosto do interior, já vivi em Porto Alegre cinco anos. Foi uma experiência também bonita, mas acho que a vida do interior tenho ganhos e perdas. A questão da segurança, da facilidade, da rapidez no trânsito, uma série de coisas que [me] atrai. Hoje em dia, com as ferramentas tecnológicas, você pode viver quase no meio do mato e tem acesso a muita coisa que no passado precisava ir para as capitais, tanto que muitas capitais europeias, por exemplo, estão perdendo gente porque as facilidades estão migrando para pequenos vilarejos. De alguma forma me identifico um pouco [com] essa vida de pequenas cidades, gosto de viver onde estou vivendo. Tento jogar meu futebolzinho ainda, que é a minha paixão; meu Grêmio ontem ganhou, então tô feliz hoje. (risos) São coisas que, enfim, fazem parte do processo. Então é isso, acho.
P/1 - Invariavelmente a pergunta final aparece. Certamente daria para gente fazer essa entrevista em outros blocos, fazer parte 1, parte 2, e poder ir além da sua história de vida, mas a minha última pergunta seria: como foi para você contar a sua história, fazer esse exercício de rememorar eventos de diferentes momentos da sua vida?
R - Foi um desafio, sabe? Porque a gente nunca é chamado a pensar sobre essas situações depois, [de forma] mais ou menos estruturada, evolutiva, nessa linha de tempo como você coloca. Foi um desafio, porque eu nunca tinha parado para pensar, tampouco verbalizar isso, que é uma coisa difícil também, fica difícil.
Eu acredito que muitos entrevistados devem trancar falando. Como já tenho vinte anos de sala de aula, de alguma forma eu vou enrolando para cá quando me escapa alguma coisa, desvio, vou tentando voltar, mas não é uma coisa fácil falar, tampouco falar sobre a história de vida. Mas eu gostei de falar.
Eu me abro demais às vezes sobre alguns temas, me parece. Às vezes eu pago o preço no dia a dia, porque a pessoa vem lá, traz um processo, então eu digo: "Ah, processo", e ele diz: "Não, mas tem tal coisa, ah, mas tal coisa", aí eu acabo falando algumas coisas que o sujeito apresenta na conta. No final diz: "Mas você falou isso aqui." É, falei, o que eu vou fazer se não segurei a língua naquele momento? Não era o momento de ter falado, mas enfim.
Acho essa experiência interessante, desafiadora. Gostei desse desafio, não sei se essas coisas de a gente organizar melhor o pensamento sairia melhor, muito diferente; acho que não muito.
Enfim, [contei] um pouco daquela vida, que eu acho uma vida mais ou menos tradicional, com alguns desafios. Tenho uma vida que eu gostei de viver até agora e quero viver muito tempo, muito tempo para frente, enfrentando cada vez mais desafios. Acho que a gente tem que se renovar, se ressignificar na época que a gente vive, em todos os momentos, para conseguir dar sentido à vida, senão obviamente as depressões estão aí e as outras doenças mentais. E eu tenho visto muito isso, nunca em outros momentos da história.
Por exemplo, a Luciana foi tão procurada, procuraram tanto. Não consegue dar conta do trabalho, do atendimento, porque essa angústia do nosso tempo desestabiliza muito as pessoas. Ter um certo equilíbrio, uma certa ideia de continuidade, projetos novos que dão ânimo, sonhos - sonhos são importantes para mover a vida. E esse talvez seja o maior desafio, a gente manter acesa a chama da existência com alguns projetos; projetos institucionais, prefiro eles, tenho muito prazer. Óbvio, nas coisas da vida, particulares, mas tenho imenso prazer nas questões da vida pública, da preservação. Quando um projeto vai adiantar, isso me dá ânimo de continuar tocando e vivendo.
P/1 - Bem, Osmar, então em nome do Museu da Pessoa, também da Rumo, que é apoiadora desse projeto, queria muito te agradecer por ter compartilhado a sua história. Que bom que você... Enfim, porque é isso também, você falou que às vezes algumas pessoas podem travar e também é muito tranquilo que possa eventualmente acontecer isso, mas eu fico muito... Foi muito prazeroso poder ver a sua disponibilidade para poder compartilhar a sua história e que bom também que você se sentiu bem à vontade para fazer esse exercício. Por isso te agradeço bastante, por esse momento e por ter de alguma forma participado desse momento em que você compartilhou a sua história. Obrigado.
P/1 - Não, eu que agradeço a oportunidade. Mais que isso, se entender um dia que "Ah, faltou um aspecto nós podíamos ter conversado", não tem problema, é só me dar um grito aí. Qualquer coisa a gente faz de novo, dá uma complementada, muda, corrige, explica um aspecto que porventura tenha saído atropelado. Sem problema, fico à disposição.
Eu acho que essas... A Jena me falava esses tempos: "Tem um tempo na agenda para ferrovia?" “Não, ferrovia sempre tem, eu dou um jeito. Pode ser meia-noite, uma hora, se é ferrovia sempre tem.” E essa preservação de patrimônio histórico também tem, eu acho que nós temos que ter prioridade nas pautas. As outras coisas às vezes eu deixo, vou deixando um pouco para trás; o que não são temas mais importantes podem ficar como menos importantes na agenda também.
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