Projeto Conte Sua História Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Juarez Moreira
Entrevistado por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 12/09/2019
PCSH_HV815_ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Beatriz Cunha
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual o seu nome inteiro, Juarez? Onde você nasceu e em que data?
R – Meu nome é Juarez Ferreira Moreira, eu nasci em Guanhães, no Centro Nordeste de Minas, no dia 6 de fevereiro de 1954.
P/1 – E do seu pai, qual o nome inteiro dele?
R – Rivadávia Moreira.
P/1 – Rivadávia Moreira. Nasceu lá também?
R – Nasceu lá.
P/1 – Como era a família dele?
R – A família do meu pai tem uma ascendência espanhola. O pai dele já é filho de uma espanhola, que, inclusive, era artista de circo. Essa mãe dele tinha um lado artístico. O meu avô era músico "diletância", não era músico… Depois se formou em Odontologia. Meu pai também era músico - essa palavra "diletância" era deles. O meu pai queria que eu fosse músico também, não profissional. Depois, ele concordou com isso tudo, queria que eu fosse engenheiro civil e eu estudei engenharia civil até o quinto ano, faltando seis meses para me formar.
P/1 – Como era a cidade em que você cresceu?
R – A minha cidade era muito bonita nos anos 60, era uma cidade simples, com uma igreja, a praça, o coreto… Aquela cidade brejeira do Brasil, típica cidade pequena e bela. Eu tenho boas recordações da minha terra. O nome original da minha cidade… Ela se chamava "São Miguel e Almas de Guanhães". Guanhães vem da tribo Guanaes, dos índios. Depois, ela passou a ser Guanhães. No Brasil, depois de uma época, as cidades pequenas passaram por um processo cultural, onde elas perderam a originalidade, o formato original. Cresceu tudo…
P/1 – Seu pai tocava o quê?
R – Violão. Ele… O bom gosto dele, o gosto dele pela música foi responsável pelo fato de eu e meu irmão sermos músicos - o Celso Moreira - e a minha família toda tem um apreço pela música, a música habita nos nossos corações.
P/1 – Como é que era? Ele tocava na casa de vocês?
R – Ele gostava de tocar o violão, assim, aquelas músicas do Dilermando Reis e, ao mesmo tempo, ele gostava demais de bossa-nova, do Antônio Carlos Jobim, Pixinguinha. Gostava de música americana, André Previn, Ary Barroso… Então, eu me lembro dele comprando um disco de bossa-nova, dois discos que são maravilhosos, e ele colocava para a gente ouvir. Acho que o que ele mostrou para a gente de música foi fundamental para eu ter sido músico.
P/1 – Ele comprava muito LP, então?
R – Muito LP. O LP, naquela época, não era uma coisa barata. Eu lembro que o LP era um bem. O Brasil vivia, naquela época da… Eu lembro que ele ia a Belo Horizonte e trazia disco… Luiz Bonfá. Eu lembro dele trazendo um disco uma vez, que era um compacto, de um cantor cantando "Yesterday", do John Lennon e Paul McCartney. Jack Jones, um cantor americano. O vinil tinha aquela coisa, aquela descoberta, aquela capa…
P/1 – Você estava falando dos CDs que seu pai trazia…
R – Os LPs.
P/1 – Os LPs, desculpa.
R – O LP era um negócio mágico, a começar pelo tamanho da capa. Você ficava tentando relacionar o conteúdo musical com aquele conteúdo plástico, aquela capa. Lembro de que eu cansava de ler a capa, que tinha todos os detalhes, tudo que estava tocando, onde é que foi feito aquilo…
P/1 – Você pensava em conhecer os lugares, de repente, essas pessoas…
R – Sempre despertava o imaginário da gente, não é? Você vê os artistas… Tinha o disco do João Donato e você via lá, via os músicos… Ou do Paulo Moura, ou do… Aqueles que a gente ouvia… Baden-Powell, que eu gosto tanto. Eu sempre ficava imaginando como é que seria aquilo. Menino, não é?
P/1 – E o seu pai tocou então violão, mas ele…
R – Era dentista.
P/1 – … Era dentista. Como é que era o seu pai em casa? Como é que era o humor dele? Como é que era essa pessoa?
R – Meu pai era um homem… O meu maior elo com ele foi pela música. Ele era aquele cidadão brasileiro, de classe média, trabalhadora e tudo. Era um homem que gostava muito de política, inclusive era udenista, ele gritava na política. Gostava de fazenda também. Muito popular, ele já jogou futebol… Quando eu nasci, não cheguei a vê-lo jogar futebol, mas ele gostava muito de futebol, era atleticano e era um goleiro. Como todo pai, a gente tem algum momento em que cresce assim e você… Politicamente, por exemplo, a gente… Eu não concordava com ele, mas ele gostava de saber que eu tinha opinião política.
P/1 – E a sua mãe, qual o nome inteiro dela?
R – A minha mãe faleceu quando eu tinha cinco anos. Então, eu não convivi com ela. É até curioso, que ela passou mal, eu estava perto e a vi desmaiar e tudo. As pessoas que conviviam com ela… Ela era uma mulher muito bonita, muito culta, muito sensível…
P/1 – Vocês então cresceram… Você tem irmãos, não é?
R – Eu tenho, somos dez. As famílias daquelas época eram desse número.
P/1 – Dez do mesmo pai e da mesma mãe…
R – Não, são seis da minha mãe e quatro da minha madrasta, que se chama Conceição e a gente chama carinhosamente de Inezita. Minha mãe se chamava Geralda Helena Ferreira Moreira.
P/1 – Você foi criado mais pela sua madrasta, então?
R – Pela minha madrasta, pela minha avó e minha tia.
P/1 – Como era essa casa na sua infância?
R – Essa casa era… Moramos em duas casas. Uma, era uma casa generosa, grande, aquela típica casa brasileira dos anos 40, 50. Era generosa, com quartos grandes, com jardim, com alpendre… Depois, a outra casa, tinha um quintal enorme, passava um rio, cheia de pé de jabuticaba, de manga, aquela típica casa brasileira… Muito espaço, muita generosidade de espaço. Tanto é que quando eu vim morar em Belo Horizonte, eu estranhava muito isso, os espaços eram menores. Eu fui criado em casa com quintal, no interior.
P/1 – E quando você começou a ir à escola, você se lembra de como era lá? Você gostava?
R – A escola, eu me lembro de que quem me levou primeiro foi a minha irmã mais velha e por conta do… Talvez pelo trauma da morte da minha mãe, eu tive uma dificuldade inicial na escola, no comecinho. Acho que eu senti muito a ida da minha mãe, mas depois eu me aprumei e me tornei um bom aluno de Matemática e talvez um… Eu era considerado o melhor de Matemática das turmas que eu… Me apeguei à Matemática e foi uma coisa que me ajudou e me fez gostar de ir à escola.
P/1 – Você gostava? Você fez amizade lá?
R – Muitos, muitos… Hoje eu até vi uma foto do tempo da escola, tenho boas recordações, foram tempos inesquecíveis.
P/1 – Você brincava muito nessa época?
R – Muito.
P/1 – Do que vocês brincavam?
R – Olha, eu nunca joguei futebol, que era o que todo mundo fazia. Eu sempre fui um cara… Mas eu tinha uns amigos, fazia carrinho, construía carrinhos… Era meio cientista (risos), tinha uma coleção que se chamava Mundo da Criança, eu via aquilo tudo, uns experimentos, uns inventos assim… Eu gostava.
P/1 – Você ouvia muito rádio em casa?
R – O rádio era uma coisa presente, como a televisão é hoje; você ouvia compulsoriamente uma rádio. Tinha o mesmo papel que a televisão tem hoje, tanto que o rádio está até hoje…
P/1 – O que você ouvia? Você lembra?
R – Ah, ouvia os noticiários, muito futebol, muita música, programa na rádio Nacional, na rádio Tupi, rádio Globo… Mas você, menino, não para. Aquilo está lá e você está aqui. Depois, passa o dia inteiro e você vê que estava prestando atenção em tudo, entendeu? Eu me lembro muito desses programas que tocavam música popular brasileira, ouvia no rádio também… Cheguei a ouvir bossa-nova, bolero, até chegar aos Beatles. E aí que as coisas mudaram, as coisas se quebraram um pouco, foi uma invasão…
P/1 – Você ouvia muito isso e ouvia os Beatles no rádio?
R – Naquela época tinha uma coisa curiosa, que você ouvia de tudo um pouco. Por exemplo, eu ouvia a música que meu pai gostava - Pixinguinha, violão, bossa-nova. Ouvia Roberto Carlos, Erasmo... E ouvia os Beatles, ouvia música americana. Não tinha muito… Tudo vinha junto, sem nenhuma…
P/1 – Limitação.
R – É, mas existiu uma separação depois que a gente começou a pensar sobre isso. Tinha uma turma que era da música de protesto, tinha a turma da bossa-nova, a turma do Roberto Carlos, depois vinha o tropicalismo… E essa música brasileira mais popular foi sempre deixada de lado. O Brasil profundo sempre… Já existia essa coisa da classe média se achar, e sempre esse Brasil caboclo de lado (risos).
P/1 – Mas você tinha contato com esse Brasil aí…
R – A gente ouvia também, tinha uns programas de música sertaneja e… A gente não ouvia porque a gente vem da classe média, mas eu fico lembrando e esse tempo existiu, está sempre presente.
P/1 – Como é que você começou a tocar violão, então? Com quantos anos?
R – O violão… Lá em casa, o meu pai tinha o violão e tudo. Os primeiros acordes… Por incrível que pareça, não sei se eu não tinha intimidade com a coisa assim, para tocar o violão do meu pai, ou não tinha mesmo interesse… Tinha a família de um pessoal lá - família do “seu” Geraldo - que tinha um violão. E a primeira vez que eu tirei foi nesse violão, na casa de outra pessoa. Eu lembro que fiz um… Repeti uma coisa de um filme, repeti umas três notas, foi bem ‘facinho’ assim. Eu digo que foi a primeira vez que peguei o violão.
P/1 – Era um violão grande?
R – Era grande. Esse era pequeno, engraçado, esse era um violão menor, entendeu? Menor que o Di Giorgio. Meu pai tinha um Di Giorgio e um Giannini. Logo em seguida, veio Roberto Carlos e a gente ficava querendo tocar. Eu comecei a tocar muito ali, aqueles hits, que qualquer pessoa que quer aprender fica marretando. Meu pai nunca parou para ensinar violão para a gente. Na dureza dele também… Eu e meu irmão, que tocamos violão, aprendemos sozinhos mesmo.
P/1 – Isso com que idade, você se lembra mais ou menos quando você começou?
R – Ah, eu tinha uns 11, 12 anos. Sempre tive um interesse muito grande pela música. Onde tinha música eu estava por perto. Me lembro da gente ouvindo o disco que meu pai tinha comprado, do João Gilberto, que se chamava O Amor, o Sorriso e a Flor. Ele tinha uma radiola, aquele móvel bonito, e colocou para ouvirmos aquelas músicas do João Gilberto: Samba de uma nota só, Ipanema, Insensatez, O pato, Doralice, entre outras coisas. Isso era muito bonito.
P/1 – Você queria tocar assim?
R – Não, é que vai entrando; na verdade, esses sons vão fixando… Quando apareceu a Jovem Guarda, era mais fácil você tocar um acorde da Jovem Guarda do que da bossa-nova. A bossa-nova era complexa. E eu fiquei focando nesses acordes do Roberto Carlos. Tinha até os Beatles… Meu irmão tocava bateria - ele é guitarrista hoje e tocava bateria - e tinha um grupo. Eles trouxeram o Sergeant Pepper, dos Beatles, com a capa bonita, mas eu ouvia muito Roberto Carlos e Erasmo, que era mais fácil de tocar (risos). E essa outra música… E, de repente, lá
para 1968 ou 1969, eu comecei a tirar do violão as coisas do Luiz Bonfá e do Baden Powell. Foi rápido, ninguém me ensinou e, rapidamente, eu comecei a tocar aquilo, eu tirava de ouvido. Era um negócio meio misterioso, de um ano para o outro. Não tem o momento quando você está crescendo e você muda a voz? Você cresce um pouco assim…
P/1 – É verdade.
R – É, dá uma mexida assim.
P/1 – Você não pegava, então, em partitura…
R – Não, não. Foi engraçado, eu aprendi de ouvido e isso me ajudou de certa forma, porque indo pelo ouvido eu tirava qualquer coisa. Com uma orquestra tocando, eu tirava um acorde da orquestra, sem violão. Eu preferia que nem tivesse violão, porque com violão eu já… Isso ajudou muito a desenvolver o ouvido e a minha percepção. Eu só fui aprender música já velho, já cursava inclusive Engenharia Civil. O curso, em relação à teoria musical, é pesado: cálculo, integral, diferencial, entendeu? Essas coisas. Um dia, eu trabalhando com _______ [21:50], ele falou… Eu já fazia Engenharia, mas estava querendo e planejando um dia largar para ser músico. Mas eu precisava dar uma satisfação ao Sistema e estudar Engenharia, porque em plena ditadura, se você não estuda você é vagabundo.
P/1 – Seu pai queria que você fizesse, não é?
R – Minha família toda, minha avó, todo mundo, o Sistema todo. Mas, voltando à partitura, quando eu me tornei músico… Um dia, eu parei e fui estudar música para unir as duas pontas da coisa: a percepção com a teoria.
P/1 – Você teve que fazer cursinho ou alguma coisa para fazer Faculdade?
R – Engraçado, eu estudei num estadual e, no primeiro ano do vestibular, eu não passei. Depois eu fiz um reforço pequeno, de dois meses, em um cursinho, para fazer Engenharia Civil, mas realmente o colégio estadual tinha um nível grande para os alunos. De 400 alunos que saíam de lá, 350 passavam para o vestibular. Eu estudei em colégio estadual e tenho uma boa lembrança. Uma das boas coisas que aconteceram na minha vida foi estudar no colégio estadual.
P/1 – Por que?
R – Conheci pessoas maravilhosas, o ensino era muito bom e era livre (risos), mas lá tinha uma coisa que… Tinha uma rampa lá no final. Você não era obrigado a ir lá, você só fechava a sua porta, você não era punido por não ir à aula, você é que tinha que ter o discernimento de ir ou não à aula.
P/1 – Você gostava disso?
R – Muito, gostava. Você é quem tinha que ir. O colégio estadual foi muito importante na minha formação.
P/1 – E você teve professores bons lá?
R – Muito bons. Os professores que eram do colégio estadual, nessa época, vieram da França, estudaram naquelas universidades francesas e tinham uma pedagogia liberal, eram professores muito bons, de nível alto. Nem se compara com as coisas hoje.
P/1 – E você fez bastante amigos lá?
R – É o seguinte: eu era muito tímido e, no colégio estadual, não cheguei a fazer muitos amigos. Eu fiz depois. Eu fui fazer amigos através da música. Eu era uma pessoa muito tímida na época do colégio estadual, tenho a língua presa assim e era quase gago. Não era gago, era uma dificuldade. A música que me salvou - eu costumo dizer - da minha timidez. Eu fiquei três anos no colégio estadual, já tocava violão e ninguém sabia que eu tocava. Um único dia, teve uma festinha assim e eu comecei a tocar algumas músicas no violão. Eram todas as notas, uma por uma. Me cercaram: "Ah, você sabe tocar". E foi a primeira vez que eu tive uma plateia, um bocado de gente falando: "Ele toca". Foi o último ano do colégio. Ali, eu vi que a música poderia ser um instrumento para eu sair da minha timidez. Eu estava fazendo uma reflexão, porque a música me influenciou inteiro, mas eu fui conhecendo um músico ou outro… "Ah, tem um menino ali que toca". Eu me sentia bem perto dos músicos, porque me relaxava, uma coisa assim. E eu os achava, mesmo nos anos 70, aquelas pessoas mais extrovertidas do que eu, e eu queria ser extrovertido daquele jeito. Eu acho que foi isso que me levou… Eu era muito tímido e a música fez uma interface, acho que o maior legado que eu ganhei da música foi esse. Me ajudou, foi uma psicanálise, ela me inseriu num outro lado.
P/1 – Isso que você está falando é ainda no interior de Minas?
R – Aqui.
P/1 – Aqui?
R – É, aqui.
P/1 – Você, então, passou no vestibular e veio estudar aqui em Belo Horizonte?
R – Não, não, eu fiz uma confusão para você. Eu vim para Belo Horizonte para estudar no colégio estadual.
P/1 – Ah, entendi.
R – Só para você ratificar, em 1970. E do colégio estadual fui para a escola de Engenharia.
P/1 – Entendi. Onde você veio morar a primeira vez aqui em Belo Horizonte?
R – Ali na praça Afonso Arinos, na Avenida Pedro Álvares Cabral, 217, apartamento 1002.
P/1 – Como é que era essa casa?
R – Era um apartamento enorme da minha avó e, ao lado, tinha a escola de Direito. Na época, a gente vinha passar as férias aqui e a gente via muito… Já estava um movimento estudantil muito forte, você via o pau quebrando entre estudantes de Direito, a polícia e tudo mais. Era no Centro onde acontecia. Eu sou muito encantado com o Centro de Belo Horizonte, e não é o mesmo. É como o Centro de São Paulo, mas era muito… Belo Horizonte se tornou a minha segunda cidade.
P/1 – Como é que era nessa época o Centro?
R – Ah, encantador, porque você… Era outra época, você tinha tudo muito leve, apesar da época de ditadura. A gente acabava que tinha todo tempo do mundo. Era cheio de cinemas, então… Nós fomos ver um filme, a Belle de Jour, o Hitchcock. Eu costumo dizer também que fui salvo pelo cinema (risos). Você entrava de tarde - de duas às quatro, de quatro às seis - era maravilhoso. Era uma cidade ainda pequena, uma cidade paroquial, e você podia ir à casa dos amigos sem avisar: "Ah, fulano, estava passando por aqui". E parava lá para tomar café.
P/1 – Que cinemas que tinha na época em que você…
R – Ah, tinha o Cine Pathé. Inclusive é o nome do meu último disco - com aquela letra do Murilo Antunes - que fala um pouco dessa coisa da gente no cinema, desse encantamento. O Cine Palladium, que hoje é o Teatro Sesc Palladium; tinha o Cine Guarani, ao lado da minha casa; o Cine Metrópole; tinha o Cine Ajax; Cine Tamoio; tinha o Cine Pathé… A época do cinema era uma coisa.
P/1 – Você lembra de algum filme que você assistiu e que lhe marcou?
R – Vários filmes marcaram muito. A gente via aqueles filmes de Arte e via aqueles filmes de sucesso de bilheteria. Um filme que me marcou muito foi o Corações e Mentes, sobre a guerra do Vietnã. Aquilo é muito puro. Eu lembro que saí do filme abalado. Você vê que eu tinha razão, porque continua duro (risos). Essa ideia de você ver aquele documentário era muito pesado para uma pessoa que veio do interior. Era muito pesado e muito esclarecedor, mas contundente. Agora, têm filmes maravilhosos que, deixa eu lembrar… Tinha um filme de que eu gostava muito, que era sobre a guerra, que era o Fugindo do inferno, com o Steve McQueen, onde ele passava por várias coisas para fugir do campo de concentração nazista, e era o herói, sempre ganhava dos nazistas (risos). Tanto filme…
P/1 – Você gostava de filme de guerra?
R – É, documentários sobre guerra sempre me interessaram muito, e até hoje. Acho a guerra de uma inutilidade, uma coisa… Eu fico pensando sempre, porque ela é recorrente, ela está na nossa frente, está ao nosso lado. Você vê quantas guerras houve na Europa… Você fala em guerra hoje… Quando os políticos terminam, já estão falando em guerra, que vão invadir o país tal latino-americano. Até hoje as atrocidades da guerra… Uma coisa que me encabula na guerra é que a ciência é usada. Você pode ver nesses canais de televisão, Discovery Channel, os fabricantes de arma. Morre como um gênio o cara que fez uma arma, que desenhou uma arma. Eu fico pensando assim: um cara que desenhou uma arma poderosa, que pode matar não sei quantas pessoas, que pode dar não sei quantos mil tiros por minuto, entendeu?
P/1 – É um cientista, não é?
R – É, o mundo é meio… A guerra… Você vê esses soldados americanos que foram lutar no Iraque, muitos deles piraram depois da experiência de ir à guerra. Eu lembro que morei em Nova York, em 1986, e no Metrô eu vi vários mutilados de guerra. Eles tinham um cartaz escrito assim: "Eu lutei na guerra e não recebo. Eu passo dificuldades". Eu tenho… A guerra é um… Se essa humanidade durar, a guerra vai ser colocada um dia como uma coisa assim de barbaridade, porque eu acho que… Fazendo filosofia barata aqui, o homem vai ter que evoluir.
P/1 – Para você, na época, os militares e essas coisas eram muito presentes na vida de vocês?
R – Olha, é o seguinte: eu, particularmente, tinha um foco muito grande ali… Você nasce com isso, eu acompanhei toda essa questão da ditadura, ainda menino, eu já tinha interesse e eu lia as matérias sobre o que estava acontecendo no Brasil, mas a classe média, como sempre, falava que aquilo estava certo mesmo, e tudo mais: "Larga disso, é assim mesmo, não tem…". E o país foi (precisando?) [34:48] mais até chegar na Nova República. A ditadura acabou naquela época, não é? Entrou um… Trazendo essa pergunta para hoje, eu acho que no Brasil, por incrível que pareça, a pessoa não sabe mais a situação da seleção brasileira, mas sabe, por exemplo, quem é o procurador da República que cometeu inconfidência ou sabe o nome de um político. Então, o que a gente chamava de direita radical, hoje ela se manifesta porque antes eles votavam todos juntos, entende? Votavam, por exemplo, no Aécio Neves - todos juntos. Hoje não, tem separações. O que a gente chama de direita, tem centro-direita… Antigamente, tinha a esquerda. Quem falava de política antes era a esquerda, a classe estudantil, os intelectuais, os escritores, poetas… Hoje, o país está mais politizado.
P/1 – Curioso.
R – É, as pessoas que são conservadoras… Antes, só aqueles que eram conservadores que falavam da sua colocação política; hoje, o conservador se coloca politicamente.
P/1 – Agora, na época, como é que foi a.. Vou voltar um pouquinho. Como é que foi a Faculdade? Onde é que era?
R – A escola de Engenharia era ali na Avenida do Contorno. Uma parte no _____ [36:42], no Campus da Universidade, e a outra, na parte do… Era lá no... Que rua era? Rua da Bahia, lá perto do rio… Mas o movimento estudantil já não tinha muita movimentação política.
P/1 – Era o curso de…
R – Engenharias diversas. As pessoas não… Todo mundo sabia que tinha ditadura. Aquelas pessoas eram inteligentes, pensavam sobre isso e não tinha… Essa coisa se reacendeu pelo Diretas Já, entende? Quando eu cheguei, nos anos 70, tinha ainda uma presença política, estudantes e policiais na rua, pessoas sendo presas e tal. Depois, o Brasil ficou naquela coisa morna de não querer saber, entendeu?
P/1 – E o curso foi como? Como foi cursar Engenharia?
R – É o seguinte: essa coisa de fazer Engenharia Civil veio do fato de eu gostar de Matemática. Depois eu vi que não tinha nada a ver com Engenharia. Matemática é uma coisa, eu deveria ter feito um curso de Matemática, mas, naquela época, você tinha que ser engenheiro ou médico. Então, esse negócio de Matemática… "Ah, você vai fazer Engenharia". Eu mesmo e o Sistema à minha volta.
P/1 – Mas você continuava tocando nessa época?
R – É, eu fui tocando. De certa forma, eu não podia falar que queria ser músico profissional, porque o Sistema não queria: "Você é louco, vai mexer com música?". Então o pessoal pensava que eu tocava violão por hobby e distração. Eu estava fazendo Engenharia e, ao mesmo tempo… O que eu estava fazendo era o que minha família pediu para que eu estudasse, então eu estudava. Quando chegou no último ano, falei: "Não vou fazer, não quero, não tenho vocação para isso". Meu pai não gostou, minha avó… Alguém perguntou: "Por que você não formou?" Por uma razão simples: se eu me formasse, eles me arrumariam um problema. O Sistema te arruma um emprego, porque a profissão de músico é muito difícil, eu mesmo estou vendendo CD (risos), você entendeu? Você ser músico é muito difícil.
P/1 – E você estava tocando já em lugares…
R – É, já me envolvia, eu já conhecia o Yuri Popoff, o Paulinho. Conheci o Paulinho e o Toninho Horta, logo em seguida, Wagner Tiso, Nivaldo Ornelas, Paulinho Carvalho… Eu já tocava assim... Já estava envolvido. Onde tinha música, eu estava. Tinha um show da Elis Regina, eu estava lá. Depois, no Teatro… Depois, eu ia falar com o guitarrista, _______ [40:03]. Eu via, "foi por ali"... Onde tinha música, eu estava lá. Eu queria aquilo, não me via de outra forma. Lembro de um dia em que eu fui fazer um estágio num diretório de engenharia, que a minha avó me arrumou. No primeiro dia eu fui e, à noite, eu cheguei numa tristeza tão grande que até sensibilizou a minha avó; ela achou que eu ia morrer de tanta tristeza. Eu não queria.
P/1 – Onde é que você ia, geralmente, para tocar ou para ver gente tocar?
R – Não tinha… Música é o seguinte: não tem nada pronto, você vai procurando os afins. Se você gosta de poesia, você tem que procurar onde tem poesia. Então, você vai perto de onde estão os músicos e vai encontrando essas pessoas, seus pares. Isso é uma coisa incrível, um gambá fareja o outro, entendeu? Se você gosta, você vai encontrar um cara que toca violão, que tem o disco tal do Tom Jobim que você não conhecia. Falam assim: "Ah, mas tem um rapaz ali que toca". Então, quem tem essa vontade vai onde for preciso ir, você entende? É visceral. Está aliado àquela coisa de você ser jovem e não ter muito medo, você é um pouco inconsequente em relação ao seu futuro. O jovem tem essa coisa… Tem até uma frase do Guimarães Rosa: "Juventude é uma coisa para você desmentir mais tarde" (risos). Você faz coisas quando jovem e… Tinha uma coisa curiosa nessa época, que era muito difícil… Estou contando isso para você, mas me gerou altas crises existenciais, muito medo e baixa autoestima. Estou contando isso para você como se não tivesse custado muito caro. Custa muito caro você largar a Engenharia Civil um dia para ser músico, porque você encontrava aqueles músicos mais antigos… Eles falavam: "Você é louco, Juarez, de largar a Engenharia para ser músico". Mas quando você gosta de uma coisa, você não pensa nisso. Por outro lado, incrivelmente os meus colegas de Engenharia eram aquelas pessoas inteligentes e falavam: "Juarez, larga esse negócio aqui, você vai ser um péssimo engenheiro" (risos). Então, era curioso mesmo, porque os caras falavam: "Não, você tem que ser músico, rapaz, tem que fazer o que você gosta". É engraçado porque… Uma vez, eu estava dando uma aula para uns alunos… Eu não dou aula profissional, mas foi uma aula de teclado, depois de um show, e um jovem foi lá em Ouro Preto e perguntou assim: "Professor, música dá dinheiro?" Eu falei: "Como é que você se chama? Nós vamos conversar lá fora, depois". Virei para ele e… Ele tinha um talento. Falei para ele: "Vou falar uma coisa para você: não vai mexer com música, porque quem faz Arte não pensa em quanto vai ganhar. Um poeta quando está… É um desafio, se você espera, então, continua tocando o seu violão. Agora, se você está esperando dinheiro, pode até vir dinheiro (risos), mas não é o lugar onde o dinheiro está exatamente, é o lugar onde você vai achar o que é bom para você". Esse dilema era muito crucial nos anos 70, das pessoas não poderem fazer o que gostavam. Sempre o pai ou a família falavam: "Não, você tem que ser isso". Hoje parece que essa coisa diminuiu bem.
P/1 – Como é que foi…
R – Voltando nesse assunto de largar a Engenharia Civil, eu sendo um rapaz de classe média, criado naqueles valores… A transição foi muito difícil. Eu me lembro de um dia em que eu encontrei com um músico que tinha largado a música para ser engenheiro e ele estava muito triste. Ele me viu tocar em 1976 ou 1977, me chamou em um canto e falou assim: "A gente tem que fazer o que gosta, eu não toco mais, por conta de ter um salário na empresa. Eu comecei até a adoecer, então, eu lhe aconselho… Eu sei que música é difícil, mas eu lhe aconselho a fazer o que você gosta". Foi um rapaz que eu nunca mais vi, mas na época ele estava vivendo um conflito, porque ele tirou a música da vida dele e aquilo fez mal para ele; ele estava deprimido. Eu lembro que ele falou: "A vida é muito rápida". Agora, a música, como qualquer outra profissão, exige muito da gente, você tem que trabalhar muito. As pessoas perguntam para mim… Porque elas são muito encantadas com o mito hollywoodiano de ser artista. Então, você quer ser o John Lennon, o Frank Sinatra e o Sting, e acaba esquecendo que o músico é um servidor, uma pessoa que serve, é igual a um enfermeiro, um motorista de táxi, um garçom, cuidador, um médico… Ele tem que trabalhar. Então, esse glamour ao ver a música, esse tipo de visão narcísica da música e de ser artista, tira do cara a capacidade de ser pragmático e encarar a vida de músico na realidade, entendeu? De trabalhar, ser um trabalhador.
P/1 – Você trabalha onde mais nessa época?
R – Você… Com música, você faz "trampo", faz "bicos", você dá aula, toca em casamento, em festa, toca em coquetel (risos), faz uma gravação ali… Você vai fazendo de tudo, não tem… É uma coisa até dura de falar, mas você não tem uma perspectiva de futuro. Você é destinado, tem que se formar em Engenharia ou Medicina, pouco importa se…
P/1 – Mas tinha um lugar dessa época que você…
R – Não tinha. Tinha lugares, por exemplo… Em 1976, 1977, _____ [48:09], clube de jazz. Às vezes o Roberto Menescal ia lá depois de um show, a Elis Regina… Um cantor desses aí. Eu fazia Engenharia Civil ainda. A gente estava querendo movimentar, é uma coisa meio louca, não tem um processo. Essa é a coisa mais difícil de responder, porque você vai indo com o que você tem na mão.
P/1 – Na época, você era de MPB…
R – Tinha saído do Clube da Esquina, mas não tinha… Era de MPB e tal, mas não tinha uma movimentação muito grande, entendeu? O Conservatório era fechado na época, não tinha… O Sistema era muito gelado, congelado assim. Você fazia porque tinha que fazer mesmo, era uma coisa meio…
P/1 – Dura?
R – É, uma coisa de que se você gosta disso, tem que… Agora, tinha uma coisa aqui, por exemplo, do músico ir para o Rio de Janeiro. Eu não quis ir morar no Rio de Janeiro, por questões minhas. Eu ia tocar muito no Rio e em São Paulo, porque eu ia acompanhar várias pessoas, acompanhei vários cantores. Sempre estava por lá no Rio e em São Paulo e via… Já era uma cidade crescendo, a complexidade… E eu criado em Belo Horizonte, como falei para você, com um certo conforto e comodidade aqui na cidade. Não era um comodismo, não era um preciosismo de pequeno burguês meu. Eu resolvi ficar em Belo Horizonte. Eu, o Chico Amaral e vários músicos, Afonsinho… Tem vários músicos que ficaram aqui em Belo Horizonte, mas não tirou o fato de que eu tocava muito no Rio. Eu tocava muito no Rio e via como era o Rio de Janeiro. Então, não tinha muitas ilusões. Descobri que no Rio de Janeiro também era muito difícil a vida de músico.
P/1 – Por que?
R – Porque eles me diziam. Os músicos falavam e eram bons músicos que moravam lá e tal, eu conhecia todo mundo.
P/1 – Por que era difícil a vida de músico?
R – A vida de músico é muito difícil, porque tem muita competição, não é? Seja no Rio de Janeiro, seja em Nova York, músico de jazz ou músico de…. Você tem uma quantidade de músicos bons procurando emprego… Ou Londres. Sempre é muito difícil, é um funil, você tem que se desdobrar. Aqui, eu sentia que estava se formando um núcleo musical e eu investi nele. Então, quando a cidade cresceu, que teve uma massa crítica, no meu ponto de vista, teve uma cena movimentada. Assim, de certa forma, eu apostei, vamos dizer assim:"Vou ficar em Belo Horizonte". Mas eu nunca fui um cara de ficar só aqui, já viajei, já morei fora, porque…. Tenho uma vivência muito grande tocando outras músicas fora daqui e tudo, entendeu? Mas o normal, na época, era você ir embora para o Rio ou São Paulo. O diferencial da minha geração, por exemplo - e de várias outras -, foi ter ficado aqui e ajudado a criar uma cena musical. Para você ter uma ideia, tinha uma cena aqui, com o grupo Galpão, tem o grupo Corpo, tinha o grupo [Nouvatick?] [51:58]. O [Guapo?] [52:00] era feito aqui, a gente via como um exemplo, disciplinado, praticava todos os dias e foi para o mundo inteiro. Então, ficar aqui era um estado de espírito, entendeu? Porque se eu fosse para o Rio ou para São Paulo seria mais um músico tentando um lugar ao sol em Rio, São Paulo, Nova York. Agora, a experiência de você ir lá fora… Foi uma das coisas que eu… Você vê como as coisas são lá do outro lado, você vê que as dificuldades são as mesmas.
P/1 – Musicalmente, que cena que cresceu? Que cena você falou que cresceu e que vocês semearam?
R – Eu faço parte de um grupo de música que toca instrumental, jazz e bossa-nova. É que hoje você tem uma geração de música jovem, são muitas músicas, você tem show, cantores, acompanhadores, luzes, escola de música… Você tem uma cena que não tinha de jeito nenhum nos anos 60, porque todos iam para o Rio. O Nivaldo Ornelas foi para o Rio de Janeiro, o Toninho Horta foi para o Rio de Janeiro. O que era o normal? Você ir para o Rio. Teve uma época… Porque o Rio já estava cheio de gente, então, naturalmente alguns foram ficando aqui e fazendo as coisas com o que tínhamos aqui, com os instrumentos que tínhamos e com as possibilidades que tínhamos aqui, sem muita ilusão.
P/1 – Mas quem ficou aqui, então?
R – Ah, muita gente, nossa. Que ficou aqui, falando de pessoas que eu conheço, Chico Amaral; Celso Adolfo (cantor e compositor); tem o pessoal que se formou aqui; o Samuel Rosa, que foi meu aluno quando dei aula na escola do Mílton… Poderia citar vários outros nomes de… Paulinho Pedra Azul, que é muito popular, um cantor popular. O próprio Toninho quando voltou para aqui, mas vive no avião.
P/1 – O Clube da Esquina não é exatamente uma cena, não é? Eles…
R – O Clube da Esquina foi o que deflagrou o fazer música. Foi através dos discos do Clube da Esquina que nós todos ouvimos e que uma geração resolveu fazer música a partir de Belo Horizonte. Foi por conta dos amigos do Clube da Esquina, entende? Foi o grande catalisador, os discos do Mílton, do Lô Borges, do Beto… Desdobrou essa coisa.
P/1 – Eles circulavam aqui em Belo Horizonte nessa época?
R – O Lô morava aqui, eu toquei com ele. Com o Beto Guedes toquei também. O Mílton morava no Rio. O Tavinho Moura mora aqui. Fernando Brandt morou aqui. Mas as coisas iam para um ponto que era muito Rio e São Paulo, porque as músicas faziam sucesso e eles viviam fazendo show. A eclosão do Clube da Esquina, é que deu um caráter de fazer música em Belo Horizonte, em Minas, entendeu? Com um caráter mineiro, um caráter… Já não era bossa-nova, não era tropicalismo, não era Beatles, não era chorinho. Era uma música feita, entende? Então, muitas pessoas… Tinha uma coisa lúdica ali, em ouvir os discos do Clube da Esquina. Antes, a gente só tinha ouvido os discos dos Beatles e da bossa-nova, por exemplo. Então, foi um…
P/1 – Como é que você conheceu o pessoal do Clube da Esquina?
R – Ih, essa história é longa, porque eu conheci o Paulinho, que era o músico, ele me apresentou ao Só nós [??], conheci o Beto, conheci o Yuri, conheci o Toninho Horta. A irmã do Toninho, a Leila Horta, começou a namorar o Yuri, e eu tocava com o Yuri Popoff, aí conheci o Toninho… E você vai… Uma coisa vai levando a outra. Eu conheci o Flavinho Venturini, do 14 bis, conheci tanta gente. Nós éramos novos e não estávamos para observar as coisas, nós íamos vivendo. Como Belo Horizonte era pequeno, tudo estava muito íntimo, o seu cotovelo encostava…
P/1 – Você se lembra de alguma história dessa época que você guarda com carinho?
R – Nossa, tem muita história, tem tanta história. Eu tenho uma história legal. O Mílton Nascimento, na época, sabia que eu adorava o Tom Jobim. Eu estava no Rio de Janeiro, na casa dele, e um dia ele fez a gentileza de me levar para conhecer o Tom Jobim. Eu lembro disso, porque eu amo a música do Tom Jobim. Já tenho um disco gravado - chama-se Nuvens Douradas - e eu estou gravando agora, 25 anos depois, um segundo disco sobre o Tom Jobim. Acho que é uma das melhores coisas da música brasileira e o Mílton Nascimento, que também é um dos grandes gênios da nossa música, não só mineira, como brasileira. Porém, se você me perguntar: "Você se lembra de…". A generosidade dele de me levar para conhecer o meu ídolo também, o Tom Jobim…
P/1 – Como é que foi isso aí?
R – O Tom Jobim era um cara simpaticíssimo, de humor finíssimo. Depois do show, no camarim, tinha muita bebida, muita coisa. Era um show com Vinícius, Miúcha, Toquinho e o Tom. E eu lá encantado, estava vendo aquilo de perto. Eu lembro que tomava muita cerveja - estou sem beber agora, mas eu adoro cerveja. O Tom Jobim tinha um piano e ele tocava uma música com o baterista, que se chamava Miltinho. Ele ficava mostrando e eu de lado vendo aquilo… Numa hora ele deu um acorde assim, e como eu tinha ouvido tudo, peguei e falei com ele: "’Seu’ Jobim, o senhor me dá licença, essa nota que você está… Essa nota é um mi bemol". Ele virou e falou: "Mílton, onde é que você arrumou esse cara? Esse cara tem uma orelha danada, tem um ouvido danado" (risos). Ele foi muito simpático e tirava um sarro, assim… Tinha um violão lá, eu peguei e mostrei para ele o acorde, que era assim. Eu era muito tímido, eu poderia ter falado mais…
P/1 – Você estava me falando de quando você falou com o Tom Jobim. O que mais vocês conversaram? Você falou que deu até um mi bemol certo lá.
R – Ele respondeu que meu ouvido era bom e começou a tirar… Ele olhou para mim e falou assim: "Ô, Mílton, onde é que você encontrou esse rapaz? Ele deve sofrer muito. Olha a testa dele, deve sofrer muito, ele tem muita sensibilidade no ouvido". Ele brincou, era muito brincalhão. Tinha uma coisa, que os garçons serviam muita cerveja e eu tomava muito. Uma hora, um garçom, que era rapaz (tinha uns vinte e poucos anos), achou que eu estava tomando muita cerveja. Eu virei e falei: "Não, eu sou amigo do Tom Jobim, pode falar com ele lá". E eu vi, de longe, o garçom falando com o Tom Jobim: "Aquele rapaz ali, pode servir para ele?" "Não, pode sim, ele é meu amigo, é o craque" (risos). Eu lembro e é muito engraçado lembrar disso (risos). O Tom Jobim é muito carismático, muito… Ele não era um homem alto, não, era pequeno assim e bem-humorado.
P/1 – Como você conheceu o Mílton Nascimento?
R – Ah, rapaz, o Milton eu conheci em 1972 assim, no bar do Tadeu, que é um amigo nosso que já teve vários bares ali. Depois eu fui encontrar com dois amigos dele que estudavam engenharia comigo, fui até Três Pontas e ele estava lá um dia, em 1975 ou 1976…
P/1 – Você ia muito ao bar nessa época? Como era em Belo Horizonte isso?
R – Belo Horizonte tinha poucos bares. Tinha o Maletta, tinha o Cantinho do Lucas, o Lua Nova e tinha um outro bar, que se chamava Panorama. Não tinha muitos bares, a cidade era bem pacata. Tinha restaurantes assim, mas, geralmente, essa coisa de música acontecia lá no Maletta, na Galeria do Maletta, que tinha esses bares… Por exemplo, tinha um show de um cantor, eu ia lá e ficava aberto até mais tarde. Belo Horizonte era bem calmo, bem… Não era igual São Paulo e Rio na época, que tinha.. Hoje, sim, hoje Belo Horizonte é muito grande.
P/1 – Que lugar de Belo Horizonte você acha que gosta mais? De bairro, de lugar…
R – Ah, rapaz, eu moro há tantos anos aqui. Como eu morei lá, gosto lá do Centro, que a gente se recorda. Mudou tudo, mas a gente recorda as coisas daquele tempo. Belo Horizonte está crescendo muito, sabe, Lucas? Está ficando… Os lugares vão mudando também. Eu gosto de ir na Savassi também, que é mais perto. Ainda tem uma coisa de você ir na Savassi ou ao Centro, encontrar uma pessoa e começar a conversar, o que é uma coisa da cidade pequena e ainda existe. Eu gosto de fazer as coisas andando a pé para ter essa possibilidade de encontrar as pessoas: "E aí, tudo bom? Como é que vão as coisas?".
P/1 – Você estava falando muito da música, mas como é que foi, você se casou nesse período? Como é que foi esse lado da sua vida?
R – Eu sou casado hoje com a Flávia, que é arquiteta e estamos juntos já tem… Começamos a namorar em 1993 e moramos juntos desde 1997 ou 1998. Antes, eu tive uma outra companheira, que foi até os anos 90, e nós moramos juntos um tempo. Não tenho filhos, isso foi uma opção devido a… Eu sou de uma família de dez, então vi as dificuldades de ter um filho, eu sou um cara muito responsável e as adversidades da música foram me deixando um pouco com medo de ter filho. Eu me arrependo, me arrependo e isso me causou até uma certa crise um tempo atrás.
P/1 – Mas passou?
R – Passou, mas eu… Como eu vim de uma família grande, é difícil. Uma família de dez filhos é difícil para qualquer um e a vida de músico é muito cheia de sobressaltos, então eu tinha um certo receio da dificuldade que eu teria. Eu via colegas com dificuldade para criar filhos e tudo, mas eu acho que as pessoas que têm vontade têm que ter um filho. Isso é uma coisa que eu revi na minha vida, entendeu?
P/1 – No meio da sua carreira, você diz que saiu do Brasil, não é? Como é que foi…
R – Fui para Nova York e fiquei quase um ano. Foi uma experiência muito boa, foi uma das melhores coisas que eu fiz, passar um tempo fora do Brasil. Fiquei alguns meses em Los Angeles, e depois em Nova York. Foi em Nova York que eu aprendi a ver como é você ser músico. Você via aqueles músicos de jazz todos que você via nos discos trabalhando no clube de jazz como um cara comum. Porque do lado de cá, você endeusa, cria um mito. Eu falava assim: "Essa visão hollywoodiana do artista". Você esquece que música é um trabalho. Você via grandes figuras do jazz lá, como caras comuns, trabalhando, tocando num clube de jazz. Muita gente talentosa, muito trabalho, trabalho, trabalho e dedicação, entrega. Então, foi importante passar um tempo ali.
P/1 – Você tocou aonde lá?
R – Eu tocava naquele circuito, tem um circuito Brazuca… Eu também toquei em clube de jazz, bares, restaurantes, aquela coisa normal de qualquer músico que sai do Brasil.
P/1 – Você fala que é normal, mas você tocou com muita gente boa, imagino.
R – Conheci muitos músicos. Famosos, não é assim, mas toquei com bons músicos americanos e brasileiros que moravam lá. Vi como é que a coisa era processada, entendeu? Mais importante é ver o que… A gente tem uma visão de música um pouco idílica e quando você vê é tudo muito no preto e branco, é mais trabalho e dedicação do que outra coisa, essa experiência do que é a música como profissão. Porque você tem um processo que mitifica o artista, pinta como se fosse um deus e não sei o quê, e você não é… Você pode se tornar um cara famoso e tudo, por acaso, pelo seu trabalho, mas você não tem que ser exatamente… Você trabalhar com música, já é digno. Qualquer forma de fazer música já é bacana, você dar aula de música, você interagir com a música. A Arte faz bem para as pessoas. Essa coisa que… Você não tem que ser o mais famoso, o melhor, ter tocado com…
P/1 – Queria lhe perguntar como é a sua rotina e tal, mas antes você me fala onde que você foi também. Você saiu do país e foi para Nova York, mas que lugares lhe marcaram?
R – Nova York é muito encantador, a cidade toda é muito interessante sob vários aspectos. Como músico, eu viajei trabalhando para vários lugares, não só nos Estados Unidos mas em vários lugares. Já fiquei na França, já toquei na Itália, já toquei na Finlândia, já toquei na Suíça, Portugal, Espanha, Argentina, Bolívia, Venezuela…
P/1 – Teve algum show que você fez que mais lhe marcou nessa carreira toda?
R – É o que eu falo com você... Tem tantos momentos que… Toquei, por exemplo, no Lincoln Center, num show do Ivan Lins. Eu, o Chico Pinheiro, lá de São Paulo, e o Cyro Baptista, percussionista brasileiro que mora lá em Nova York. Toquei numa sala muito importante, com uma orquestra maravilhosa. Acaba que foram tantos lugares, que a gente até esquece. Chega uma hora que você pode… E tem detalhes assim, se torna até um trabalho de… Você tinha que estar vivo nessa profissão. Você já vive o seu futuro, você não vai ser. Eu toquei uma vez também, que me causou muito… Uma vez, eu fiz um concurso nacional para tocar. Você fazia abertura do Guerra nas Estrelas. Eu toquei na noite do Full Jazz Festival, no Rio de Janeiro. Era para fazer a abertura do Clube Washington Júnior. Isso, para mim, foi uma coisa boa porque foi feito um concurso no meio de vários músicos e eu fui escolhido para fazer. Fui um dos escolhidos. Morando aqui, fiz o concurso para abrir o show de uma grande…
P/1 – Como é que você… Você acorda e toca todo dia?
R – Sim.
P/1 – Como é que é isso?
R – Isso é tranquilo, na hora em que você chegar vou estar tocando. Já viu aquele pintor que tem um ateliê e ele fica sempre… Ele está sempre pintando. Ele não vai fazer um quadro amanhã, está sempre fazendo um, está sempre trabalhando. O músico é a mesma coisa, a gente toca todos os dias, é uma coisa…
P/1 – É uma rotina.
R – Rotina, entendeu?
P/1 – Mas como é essa rotina? Tem uma ordem específica ou não?
R – Varia um pouco. Acorda, faz o café, pega o violão um pouco, depois vai dar uma caminhada ou então lê um pouco antes. Antes, tinha o jornal em papel, agora não tem mais, a gente usa pouco. E inverte um pouco, mas a caminhada é toda manhã. A caminhada ajuda a segurar e virou uma rotina, tanto quanto tocar violão. Ajuda bastante.
P/1 – E você lê bastante também?
R – Gosto muito de ler. A gente gosta de ler também noticiário sobre política e o mundo, mas as notícias estão tão ruins, não é? (Risos).
P/1 – Você se preocupa bastante, não é?
R – É. Para não falar muito e não falar sobre isso… Agora, também tem essa coisa imediata do Facebook e outras coisas, em que você já vê as notícias muito rápido, vê as manchetes muito rápido. Às vezes, o assunto não é profundo e você tem que ir na Folha de São Paulo, ou em outro jornal, como O Globo, e procurar o assunto, para ler uma coisa com o conteúdo mais…
P/1 – Agora, me fala um pouco dos seus CDs. Quantos CDs você já fez? Como que é essa…
R – Eu tenho 14 CDs gravados, lancei o último, que se chama "Cine Pathé", que é um disco de canções. Eu não sou cantor, mas ao longo das décadas, me pediram para colocar letra. Fernando Brandt, Murilo, Celso Adolfo, Chico Amaral, Simone Guimarães, Paulinho Pedra Azul… Eu descobri que tinha umas músicas com letra e fiz um CD agora, que quem interpreta essas canções é a Mônica Salmaso, a Alaíde Costa, a Simone Guimarães, a Paula Santoro, a Catina Deluna, o Renato Motha, o Renato Braz e tem o ______ [18:48] tocando. André Queiroz, Kiko Mitre, Nivaldo Ornelas Esse trabalho é uma coisa diferente do que eu faço normalmente. Atualmente, eu estou fazendo o meu segundo em homenagem ao Tom Jobim, no estúdio - estou em dois terços, no meio do trabalho - e ainda tenho, em seguida, a gravação de dois discos. Então, até o fim do ano que vem eu devo estar com… Vai ser o meu décimo quinto disco, mais esses em seguida. Estou com um disco de canções novas e uma releitura minha dos Beatles. Tinha uma época que era o seguinte: você tinha que tocar… Você tocava _______ [01:20:01] de bossa-nova, na época, isso era meio esquisito. Então, eu fazia os arranjos, mas nunca coloquei essa pauta no meu trabalho. Agora, vou gravar essas músicas e tenho feito até uns shows.
P/1 – Está fazendo um arranjo?
R – São releituras, um novo “aplautch”[??], licença poética sobre os Beatles. É uma música boa, não preciso falar, é uma música popular, que agrada gregos e troianos.
P/1 – Você interpreta, arranja e compõe?
R – É, têm essas duas… Nos meus shows, tem as composições, que o pessoal gosta muito e pede sempre, mas eu gosto sempre de interpretar alguma coisa de outros.
P/1 – Tem o que você gosta mais de fazer ou não?
R – Engraçado, eu gosto de… O Jobim, é uma coisa recorrente, não é? É o seguinte: eu estudei tirando de ouvido, então eu formei um repertório enorme. Às vezes, eu saco uma música que não toca há anos. Saco uma música do Harry Mancini, ou então… Outro dia eu toquei "Brejeiro", do Ernesto Nazareth, que eu tocava quando era menino. Então, você tem muito da plateia, claro. Quando você está num lugar mais relaxado, você toca… Quando é show, você faz um programa mais sério, mas quando está num jazz club, num bar ou num lugar assim, você toca muita coisa que, geralmente, você não toca num show maior.
P/1 – Como é que você se prepara para tocar num show?
R – Eu faço um… Gosto de estar no camarim antes do show. Ali, conversando com os músicos e fazendo um pouco de arpejo - arpejos de escala leve assim -, e de estar num bate papo com os músicos porque, na verdade, você já está fazendo música ali no camarim com os seus colegas. Já tem um mantra ali, você entende? Você estar ali, já tem uma empatia. É muito ruim você ter que… Vamos supor, eu tenho um show nove horas, imagine que está tudo pronto e alguém te leva e deixa na porta do teatro cinco minutos antes para você subir no palco. Nove horas. Não pode. Você tem que estar dentro do teatro, ver aquele movimento, a luz, o ambiente ali… "O cara vai dar o terceiro sinal". Tem todo um ritual: "O show vai começar daqui a quinze minutos, o Uber vai te buscar e você vai subir". Não dá certo, não existe para mim.
P/1 – O que você projeta para o futuro agora? Continuar compondo, continuar tocando…?
R – Ah, eu estou com muita vitalidade ainda, tenho o entusiasmo de adolescente. Estudei tantas músicas no violão e quero gravá-las. Se pudesse, eu gravaria três discos por ano, porque estou com uma superlotação de material, de coisa que eu gostaria de… Tenho que arrumar tempo e meios para viabilizar esse processo, entende? Porque está em “go bye” [??], mas eu estou muito feliz com o fato de ser músico, só me trouxe coisas boas.
P/1 ‐ Então não se arrepende não?
R – Não. As dificuldades que porventura eu tive na música, acho que qualquer outro profissional teria. Passa tão rápido, foi ontem, acho que foi ontem. Eu olho assim, e como passou rápido. Então, eu aproveito para falar que você tem que fazer as coisas que gosta, e rápido.
P/1 – Você acha que passou rápido…
R – Rápido. Quando você faz as coisas com intensidade e com amor, você mergulha naquilo e quando vai ver, já passou. Cinco anos passam como um sopro, dez anos passam…
P/1 – Como é que foi contar um pouquinho da sua história hoje?
R – Foi legal, Lucas. Porque as perguntas são diferentes das perguntas… Quando você vai fazer um show, você já tem um viés assim já musical, então, a gente já sabe. Essa fala aqui, é imprevisível. Eu me surpreendo com algumas coisas que voltam lá do passado e, como diz o Roberto Carlos, esse clichê: "Foram tantas emoções". Engraçado, até que hoje nessa entrevista, eu não me emocionei, mas eu sou muito emotivo e procurei ser mais pragmático nas minhas respostas. Eu sou muito emotivo. Talvez pelo diferencial dessa entrevista eu não tenha chorado, mas sou muito chorão; quando começo a contar alguma coisa, eu me emociono.
P/1 – É, você segurou um pouco.
R – É, tentei ser mais direto, tentei ser menos emotivo e ser mais conciso. Não sei se consegui.
P/1 – Foi ótimo, um prazer.
R – Prazer e obrigado a vocês por essa oportunidade de falar aqui, dando meu depoimento sobre minha vida e sobre minhas coisas. É uma oportunidade única.
P/1 – Não, virão outras depois, não tem problema. Obrigado, viu?
R – Obrigado você.
P/1 – Pode ter outras vezes também, não é a única vez.
R – Claro. Depois, a gente pode pegar um tema específico.
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