Projeto: Memorial do Incor – 25 anos
Depoimento Carmem Silvia de Oliveira Quadros
Entrevistado por José Carlos, Cristiane Palotti e Sandro Cajé
São Paulo, 02/09/1999
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento ISP_HV008
Revisado por Fernanda Regina
P/1 – Carmem, a primeira pergunta é seu no...Continuar leitura
Projeto: Memorial do Incor – 25 anos
Depoimento Carmem Silvia de Oliveira Quadros
Entrevistado por José Carlos, Cristiane Palotti e Sandro Cajé
São Paulo, 02/09/1999
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento ISP_HV008
Revisado por Fernanda Regina
P/1 – Carmem, a primeira pergunta é seu nome completo. (risos) Data de nascimento e local de nascimento.
R - É Carmem Silvia de Oliveira Quadros. Nasci em oito de janeiro de 1957, em São Paulo.
P/1 - E o nome dos seus pais? A atividade deles?
R - Meu pai se chamava Eli Quadros. Ele era juiz. Ele fez a carreira na magistratura. Nasceu em Cajubi, interior de São Paulo. E o nome da minha mãe era Carmem, como eu, ela nasceu em Florianópolis. O trabalho dela era em casa, com os filhos. Do lar, como falam.
P/1 - Do lar. E você sabe a origem da sua família? Quer dizer, de onde que vem mesmo avós, bisavós?
R - Sei. Da minha mãe, eles eram lá de Florianópolis. E era imigração alemã. Meu bisavô veio de Hamburgo, na Alemanha. E aí foi trabalhar como despachante aduaneiro. Então ela contava sempre essa história. Eles foram para Florianópolis, depois vieram para Santos e, no fim, para São Paulo. A família do meu pai, o pai dele era de Minas. Eles tinham uma origem Belga, Espanhola, pois ele cortou um pedaço do sobrenome. Tanto que o meu avô chamava
ngelo de Quadros Bitencourt e Sá. Sá era espanhol, porque naquela época o sobrenome de família espanhola da mulher vinha depois. E meu bisavô era Bitencourt, e era de origem Belga, e Quadros era espanhol.
P/1 - Quadros era espanhol?
R - Mistura como todo brasileiro.
P/1 - E aí o Bitencourt e Sá, e...
R - Eles tiraram porque dizia que dava azar. Hoje em dia eu ainda tenho carteira do meu pai de magistrado, então tem o nome do pai dele é diferente do nome dele. Mas, essas coisas de família assim... Aquelas histórias de nome. Então meu avô sempre, enquanto não vingasse, como eles falavam antigamente, um filho com o nome
ngelo. Nascia um, chamava
ngelo, morria, vinha outro, nascia, chamava
ngelo. Isabel, também. Então eles tinham aquelas tradições com nomes, pré-nomes.
P/1 - E nome o Bitencourt e Sá dava azar?
R - Diziam que dava azar. Então foi tirado. (risos)
P/1 - Conta um pouquinho sobre o seu pai. A atividade dele com o magistrado...
R - Meu pai e meu avô, pelo que eu lembro da história que ele contava meu avô morreu muito jovem, meu pai tinha 14 anos, e eles eram em 16 irmãos. E o meu avô tinha um nível de vida razoável, tal. Mas com a morte dele, deixou vivo esse monte de filho, aí cada um foi começa a trata de assumir alguma responsabilidade. Com essa idade o meu pai veio embora para São Paulo com mais dois irmãos. Tudo para tentar conseguir sustentar a casa e os irmãos pequenos que eram muitos. Então ele veio para São Paulo, foi estudar e logo começou a trabalhar em cartório, novinho.
P/1 - Ainda garoto?
R - Ainda garoto, 16 anos. Ele já estava trabalhando, se mantinha, mandava dinheiro para o interior. Eles moravam em Olímpia. Ele mandava dinheiro para lá. E os dois irmãos dele não queriam estudar, tinham uma vida mais boêmia. Aquela época de São Paulo, assim, lá, 1920 e pouco, tudo... Então eles tinham uma vida diferente. E meu pai, por sua vez era assim muito responsável. Nós falamos que
ele era Caxias. Estudioso, e tal, aquele senso de responsabilidade excessivo. Ele não se permitia muito essa história de se divertir. Ele começou a estudar, depois ele fez a faculdade de direito. Fez no Largo São Francisco.
P/1 - Fez no Largo São Francisco?
R - Fez no Largo São Francisco. Ele praticamente se cuidou sozinho aqui em são Paulo. Depois ele foi advogado por alguns anos, fez o concurso para magistratura, entrou, e foi Juiz até se aposentar. Aposentou-se... Sempre, só fez isso. Nunca advogou, nada. Ele só foi Juiz e ponto.
P/1- Dizia como conheceu sua mãe?
R - Eles se conheceram nessa cidade do interior. Minha mãe é lá de Florianópolis, foi parando de Santos para São Paulo, de São Paulo para o interior, foi parar em Olímpia. Conheceram-se lá. Casaram-se nessa cidade e ele advogou, como eu falei, um pouco de tempo. Depois ele entrou para a magistratura. Naquela época o Juiz... A carreira era muito lenta e ele ia para as cidades de interior... Você imagina isso em 1935, 37 e tal. Eu sei que uma das minhas irmãs, a mais velha, que nasceu em 1941, ele já era Juiz. Então, nasceu no interior; depois veio outra irmã que nasceu em 43, nasceu também já no interior. E meu irmão nasceu, acho que em 48, também nasceu. E ele passando. Ele morou, eles moraram muitos anos no interior.
P/1 - No interior.
R - E quando ele foi promovido para São Paulo, ele estava em Bragança e eu já nasci aqui.
P/1 - Você já nasceu aqui?
R - Eu já nasci quando ele já era juiz em São Paulo. Ele era juiz criminal.
P/1 - A casa que você nasceu, onde que era o bairro?
R - Era em Pinheiros. Uma rua que tem até hoje, aliás, a casa está lá ainda, Rua Arthur de Azevedo. E eu nasci aqui. Meu irmão mais novo, mais próximo de mim, nós temos nove anos de diferença. Minhas irmãs eram bem mais velhas. Uma tem 15 anos a mais, outra 14. Tanto que a mais velha é minha madrinha.
P/1 - Sua madrinha?
R - Então assim, eu fui meio que filha única. Porque com essa diferença de idade eu ficava praticamente sozinha em casa.
P/1 - E como que era esse contato? Como que era o ambiente doméstico?
R- Meu pai era, talvez por esse excesso de responsabilidade, uma pessoa muito dura, muito rigorosa. Hoje eu falo que ele achava que a nossa casa era extensão do Tribunal (risos). Ele, assim, criava a família meio com mão de ferro. Para as minhas irmãs, eu acho que já foi difícil; porque ele tinha essa personalidade, esse controle. Na época, também, isso era comum. Agora assim, para mim, eu acho que de certa forma foi mais complicado. Porque tinha mais uma geração no meio. Então, quando eu nasci ele já tinha 48 anos e minha mãe tinha 40. Eles não... Minha mãe ainda acompanhou um pouco mais as mudanças, tudo. Ela tentou se adaptar. Filha adolescente, nova, tal. E as coisas mudaram muito nessas últimas gerações, das décadas de 60 e 70. As coisas foram modificando muito. Então para ele aquilo era um horror. Eu vivi um ambiente muito fechado, muito rígido, muito controlado. Os valores eram muito definidos. Já quanto a isso não tinha muita dúvida, o que podia, o que não podia, tipo de educação que tinha. Todos estudavam muito. Todo mundo tinha noção das suas obrigações, responsabilidades... Todo mundo era muito estudioso. Meu irmão era menos, dava uns rolos com os estudos...
P/1 - Seu irmão...
R- É. Meu irmão. Na época ele era meio terrível. Então tinham essas confusões em família; negócio de estudo, de nota. Agora, as meninas eram aplicadíssimas, estudiosas, tal. E assim, minha mãe também tinha uma personalidade muito forte. Falavam que as mulheres da família tinham essa ascendência alemã. Elas tinham a personalidade bastante forte. Minha avó e ela. E era uma família de pais fortes. Ela cuidava muito da casa, nos educava. Mas assim, tudo com certo controle. A vida também era assim. Era uma vida simples, porque, na época... Na verdade, até assim... No fim da vida não, mas quando eu era pequena eu lembro que a carreira de juiz era uma carreira que... Meu pai sempre teve aquela importância nas cidades do interior, ou mesmo em São Paulo. Ele tinha aquela coisa; ele era juiz. Tinha aquela importância social, uma referência. O salário era muito ruim. A gente vivia bem, não faltava nada para ninguém. Minhas irmãs ainda só estudaram em colégio público. Na época, tinha escola pública muito boa - que era o Fernão Dias, na época, era uma super escola.
P/1 - Em Pinheiros?
R - Em Pinheiros. Aí elas fizeram USP, então meu pai nunca desembolsou dinheiro de escola com elas. Já meu irmão foi para aquele colégio São Bento, de padres. Depois de explodir o banheiro umas 10 vezes, foi expulso pelos Padres. Eles e os amigos eram uma turma terrível. "Você me interna." Aquelas histórias, o único menino no meio das meninas, então...
P/1 - Ele extravasava?
R - É. Essas histórias assim. Chamava meu pai: "O senhor sabe, tal, seu filho..." Aquela coisa toda. Nós morávamos em Pinheiros e tinha uma escola do lado de casa. Minha mãe era assim, ela achava que o segredo da vida era não complicar as coisas. Então se eu pudesse ir a pé, ela não ter que levar, não ter que se preocupar, ela me colocou num colégio de Freiras. Onde eu fiz o primário. Ia e voltava sozinha. Ela queria mesmo é não complicar as coisas. E esses valores de casa, eram família... A gente viajava, tipo férias de verão, para a praia. Ia para Santos, São Vicente, naquela época era legalzinho, limpinho. Nas férias de julho, nós íamos para o interior para visitar a família toda do interior. Que tinha tanto o lado da minha mãe quanto do meu pai. Era quando os dois... Na época tinha férias duas vezes por ano. Era uma vida, eu me lembro assim, brincava. Eu adorava estudar, sempre adorei estudar, era a CDF (risos). Estudava para burro. E passeava, tinha aquela vida de brincar na rua, andar de bicicleta.
P/1 - Como que era o bairro de Pinheiros nesse período?
R - Era muito diferente. Eu morava na Arthur Azevedo, era esquina com uma rua que chama Joaquim Antunes. Que hoje em dia eles abriram. Na época ela era sem saída.
P/1 - Ela não tinha saída?
R - Não tinha. Como não tem a de baixo, que é a Virgílio. Eles abriram aquela passagem ali. Mas, quando eu era pequena era fechado, então a garotada ia toda lá andar de bicicleta, brincar. Eu tinha um monte de restrições com o meu pai: não podia sair, não podia fazer isso, não podia andar de bicicleta, não podia brincar com menino, não podia... Um monte de "não podias". Mas eu sempre dava um jeitinho. Acho que já tinha um tipo de personalidade já meio, apenas abafada, mas já tinha uma tendência independente. Meu irmão, que era menino, andava de bicicleta na rua. Mas eu andava. Tipo você pode andar aqui na Joaquim Antunes, eu ia parar na Teodoro Sampaio, de bicicleta. Tinha uns limites, mas eu sempre dava um jeitinho de... (risos)
P/1 - Esticar.
R - Esticar. Ia lá à rua Pinheiros de bicicleta, tudo. Então eu já tinha vontade de expandir.
P/1 - Essa escola que você estudou, qual era? A primeira escola.
R - Ainda existe. Chama Colégio Santa Luzia. É na
ngelo Leite.
P/1 - E é um colégio de Freiras?
R - Colégio de Freiras. Ainda existe lá.
P/1 - E como que era essa escola? Como era o ambiente lá dentro?
R - Era, eu acho, o protótipo do colégio de freira de meninas da época. Só tinha meninas. Quando eu estava na quarta série do primário eles começaram a admitir meninos, mas com um monte de restrições. Eram os demoninhos entrando lá. E tinha aquela educação com uma visão religiosa. Eu fiz primeira comunhão na escola. Tinha catecismo, fazia balé, fazia piano. Que era o normal das meninas da época. Mas tinha aquela coisa assim, eu pelo menos, a associação que eu fiz na época daquela coisa de religião meio pesada, como se Deus estivesse espionando, pecado, aquela coisa. Eu me lembro que uma vez tinha uma festa de carnaval e eu levei a fotografia, as freiras ficaram horrorizadas. Aquilo era pecado. Eu estava me achando a linda no carnaval e me jogaram aquele balde de água fria. Na escola eu tinha duas amigas bem próximas. Nós andávamos sempre juntas. Até hoje eu tenho algum contato ainda com uma delas. Isso era na escola. Era um ambiente gostoso, só que assim, eu era muito preocupada, muito tensa já com negócio de escola. Eu queria aprender muito e eu tinha uma cobrança... Se bem que meus pais, meus pais não. Mais meu pai cobrava uma questão de nota. Para ele, tirar oito não era nota. Para ele nota era 10. Quer dizer, para quem se esforçou como ele se esforçou, ele acabou passando isso para os filhos. Então a gente tinha que se esforçar bastante mesmo. Mas eu tinha uma cobrança comigo mesma, de querer fazer tudo muito bem feito, ser a melhor. Na rua tinha as amigas com quem eu convivia mais. Amigas que cresceram comigo. Eu tenho uma amiga, que é minha amiga desde os 13 anos de idade, a gente tem contato. Nós éramos vizinhas. Porque nessa época ainda brincava criança na rua, tudo. Embora meu pai limitasse bastante essa coisa de ir à casa dos outros, incomodar. Até convidava mais em casa. Mas como ele trabalhava de manhã em casa, porque até hoje no Juízo ele trabalha mais a tarde, pois de manhã ele ficava em casa dando as sentenças. Então eu cresci com aquele barulhinho da maquininha. Era máquina de escrever e ele trabalhava muito: dava as sentenças. Trabalhava bastante. Às vezes eu mexia nos processos, aquelas fotos escabrosas de crime.
P/1 - Era criminal?
R - Era. Gente com ferimento, morto, aquelas coisas. Às vezes eu olhava e depois saia... (risos). Uma casa toda cheia de livros. (risos)
R - Que lindo ele anda (risos).
P/1 - Bichinho virtual...
R - Imagina, muito legal. Então era assim, era uma casa que tinha muito livro. O valor da gente era mais era essa questão de estudar, tudo. Eu estava dizendo esse negócio de brincar na rua... Tinha algumas restrições, ir à casa da pessoa, incomodar, horário, pode ou não pode. Primeiro ele queria saber na casa de quem ia. Que família que era. Que valores que tinham. Então era um controle razoável. Essa minha amiga de infância, o pai era promotor também, então era mais, tinha certo livre conduto. A gente podia ir mais, tudo. Então nós crescemos juntas.
P/1 - E desse colégio, você estudou até quando?
R - Eu fiz até a quarta série. Nessa época tinha essa história de admissão. Vocês não devem ter nada ideia do que se trata. Quando você vai para o ginásio ou você fazia cinco anos de primário ou, se não, você fazia um exame, que chamava admissão, que se tivesse preparado, você pulava uma série e ia parar na primeira série do ginásio. Que hoje em dia é a quinta. Fui fazer a prova numa escola, que chamava Liceu Eduardo Prado. Fui parar nessa escola. Entrei, me dei super bem, primeiro lugar. Aquelas coisas do meu pai, feliz da vida, tudo. Eu fui parar nessa escola e fiz até o final do ginásio.
P/1 - Essa prova de admissão, como que era? Era tipo uma prova mesmo?
R - Era prova mesmo. Você tinha que estudar. Eu me lembro de eu fazendo um cursinho, nas férias, com uma professora particular. Era como se fosse uma revisão da quarta série, tudo. Era um vestibularzinho para você passar para o ginásio. Então você tinha que estar pronto para aquilo. Tinha Matemática, Português, História, Geografia. Era uma prova ampla. Acabei passando, fui para essa escola.
P/1 - Foi para o Liceu? Esse Liceu?
R - Esse Liceu apareceu assim, coitado. Tinha um tio, que era muito próximo nosso, tinha um primo que era uns três ou quatro anos mais velho. Ele pôs o filho nessa escola. Só que eles tinham uma criação completamente diferente. Eram cinco meninos, uma casa bem mais liberal que a minha, tal. E eu não sei a história como é que foi: "Ah, não, escola boa, escola boa". Me mandaram, eu fui parar nessa escola. Eu ia, sempre fui, voltei de ônibus de escola. Não tinha essa história de levar, buscar, ficar a disposição. Não tinha muito isso, não.
P/1 - E onde que era essa escola?
R - Era na Rua Jacurici, Cidade Jardim. Era um colégio enorme. Era muito lindo. Tinha muito verde. Tinha até um bonde, as crianças faziam o lanche num bonde, lá no meio. Muitas quadras de esportes. Era um colégio que na época era um bom colégio. Um colégio médio como ensino. Mas era um colégio de gente muito endinheirada. Então, para mim, era uma surpresa. Era um contato muito diferente das pessoas que eu estava acostumada. Aquele colégio de freiras, tal. Fui parar num colégio misto. Um universo muito diferente. Eu era muito distraída, muito na minha. Tem coisa que depois, com o tempo, que eu falei:
"Nossa!". Que foi cair a ficha. Era um colégio de gente bastante diferente de mim. Eu era muito quieta, muito tímida, muito voltada para mim mesma. O pessoal lá já estava namorando, saindo. Eu me lembro que, quando foi? Acho que na segunda série, eles montaram uma classe mista e, eu lembro, que eu levantei a mão, que eu quis ir para a classe mista e o diretor falou: "Mas você?". Quer dizer, estranhou a atitude porque eu era toda comportadinha, tal. Fui parar nessa classe mista, estudei. E era legal, era uma turma legal. Eu fiz ótimas amizades lá. Também amigas que eu tenho até hoje. Grandes amigas. Foi uma fase muito feliz, porque era uma escola muito alegre. O pessoal era muito desencanado. Muito mais liberal que aquela coisa, aquela sombra. Embora as freiras, elas não eram ruins, nem nada disso. Não tenho nenhuma lembrança negativa nesse sentido. Mas tinha aquela coisa, aquele peso, sabe, de pecado. De pode, de não pode. Não era uma coisa assim, de uma moral de dentro para fora, era de fora para dentro, sabe. Então aquilo me incomodava. Até hoje me incomoda em relação à religião. Esses controles, essas noções muito pesadas, esses dogmas eu não consigo engolir muito não.
P/1 - Muito fechado?
R - É. Então, imagine só. Eu num colégio de freiras, super fechado. A minha casa dentro do Tribunal, era complicado (risos). Meu pai me levava para brincar, quando eu pequena, menorzinha, eu ia brincar no Tribunal. Tanto que quando o Brasil ganhou uma daquelas Copas de Pelé, eu via o desfile dos jogadores da sala dele, lá no Fórum João Mendes. Eu lembrei uma imagem assim de pequena: Pessoal chegando aqui, na Copa... O que era aquilo?
P/1 - 1970, será?
R - Não. 70 eu já era grandinha. Eu era menor.
P/3 - 1966?
R - Não. 1966 foi da Inglaterra que o Brasil perdeu.
P/1 - 62, então.
R - É. Eu era muito pequena. Tinha uns seis anos, mas eu me lembro eu vendo aqueles jogadores, o Pelé, que era o auge, no Centro da Cidade. Então sempre, minha vida sempre teve essa influência muito grande dessa questão do trabalho do meu pai. Essa figura de juiz. Eu acho que era mais forte que a figura de homem em casa. Engraçado.
P/1 - Figura mais de um juiz?
R - É. Era assim.
P/1 - E você ia ao Tribunal?
R - Não ia muito. Mas algumas vezes ele me levava, eu achava aquilo tudo muito grandioso.
P/1 - Escuro? (risos).
R - É. Aquela coisa da toca preta, ele usava aquela roupa preta. Mas eu sabia que ali tinha alguma coisa de poder, de distinção. As pessoas tratavam... Ah, é. A gente... Ele não gostava muito de cinema, não deixava a gente ir a clube, não deixava fazer esporte. Tinha um monte de regras. Mas cinema, dependendo do tipo de filme, tudo, ele recebia umas permanentes, tinha cadeiras, aquelas cadeiras primeira fileira, veludo. A gente ia naqueles cinemas do centro. Eu lembro que pequenininha eu vi essas coisas. Mas, de resto, ele fazia uma censura. Revista em casa, imagina! Primeiro ele via. Foto novela se entregava, se ele encontrasse em casa, voava empregada, a revista. Depois eu fui para esse
colégio aí. Era uma turma muito alegre. Foi uma fase muito feliz. Eu gostava muito do lugar. Só que aí, quando eu estava terminando o ginásio, que era a oitava série hoje em dia, eu encanei que eu tinha que ir para um colégio forte porque ia ter o tal do vestibular pela frente.
P/1 – Estava surgindo nessa época, né?
R - Já tinha. Era sessão em sessão. Era por áreas. Sessão era Biológicas, sessão era parte de Humanas e (trecho inaudível) o pessoal ia fazer Mauá, Poli e FEI, pessoal de exatas. Eu já comecei essa história que eu tinha que estudar porque senão não ia conseguir entrar na faculdade. Eu com essa, uma das minhas grandes amigas lá da escola, resolvemos ir para o Rio Branco.
P/1 - Para o Rio Branco?
R - É. Aí eu fui parar lá no Rio Branco. Odiei. Foram três anos horrorosos. Escola mais chata que eu já vi na minha vida (risos). Eu fiz o cientifico lá, em biológicas. era um povo muito chato. Fiz poucas amizades lá. Que também ainda tenho contato. Mas era assim... Eu me lembro de eu chegando lá, o pessoal sentando em cima da prova, ou quem não tinha calculadora escondia a dos outros, para tirar a nota mais alta. Acho que tinha aquela competição, sabe. Teu colega, você tem que eliminar, porque ele é um concorrente lá para frente no vestibular, entendeu? Aquilo para mim era uma coisa. Eu chorava. Odiava a escola. Mas fiquei. Afinal de contas, eu que quis ir para lá. Imagina ter que dizer: "Quero mudar de escola". Na época não tinha muito essas coisas, não. Aí eu fiz os três anos de Rio Branco e depois fui para a faculdade.
P/1 - Existia uma expectativa de profissão para você?
R - Sim. Eu queria muito, eu gostava muito de biologia, eu queria muito fazer medicina. Era a escolha básica. Eu sempre dizia que eu ia ser médica e tal. Mas, nessa época eu devia estar com uns 14, 15 anos - 15 anos eu estava no primeiro colegial - eu comecei a namorar e aquilo desviou muito, sabe. Não só a atenção, mas começaram a aparecer outros planos: casar, mais para frente e tudo. Começou a cogitar. Imagine; eu era super nova naquela época. Mas, medicina, plantão, família, mulher, começou já enroscar por aí. E eu fui tentando descobrir alguma coisa que fosse meio derivação da outra. Quando eu prestei vestibular, foi bem esquizofrênica, prestei Psicologia, Biologia e Medicina.
Eu entrei na PUC em Psicologia. Entrei direto, eu era estudiosa, então não teve problema nenhum. E na USP eu entrei em Biologia. Só que aí eu escolhi fazer Psicologia. Não sabia direito o que eu estava escolhendo. Eu me lembro de eu indo a PUC fazer inscrição com o meu pai: "Faz direito." Mas para mim direito, eu associava aquela imagem dele, radical, duro, não sei. Quando eu imaginava direito já pensava num Tribunal. Para te dizer bem a verdade, eu continuo pensando hoje em dia, eu acho que com dezessete anos é muito difícil alguém ter noção de alguma coisa, entendeu.
P/1 - Com certeza.
R - Eu acho isso uma loucura. Enfim, funciona assim.
P/1 - Muita responsabilidade para alguém que...
R - É. E depois eu não sei, pelo menos eu, quando eu fiz não tinha como hoje em dia, tem Feira de informação, de orientação vocacional, pessoal fala mais nisso, discute mais em casa. Minha filha está com dezesseis, está no segundo colegial, eu estou super preocupada com isso, com essa escolha dela. Apesar de que hoje em dia tem uma visão de que nada é definitivo totalmente, entendeu. Se não der certo essa profissão, quem disse que ela não pode fazer outro? É claro que as coisas vão ficando mais difíceis. Você reescolher com o tempo, com os compromissos que você vai escolhendo, tudo isso complica. Mas eu acho que nada é fechado.
Pode acontecer, que nem agora, eu comecei a fazer com 40, direito. Estou achando ótimo. Então não acho que seja um caminho fechado. Mas é que quando a gente está com dezessete anos, parece que é a tábua da salvação, que você tem que escolher a sua vida, definir tudo. E, sei lá, até gostaria, fico pensando: se ela ficasse um ano fora. Ou se ela quisesse ficar um ano dançando, fazer um ano de teatro. Se eu eu falo isso para ela, ela quer me enforcar". “Vai todo mundo entrar na faculdade e eu não vou entrar?". Tem aquela pressão do mútuo, tudo. Na minha época também tinha. Mas assim, quando eu vi, sei lá, saí da escola direto, não tinha feito cursinho, não tinha feito nada, entrei nas coisas que eu queria. Nossa! Nem pensei duas vezes, quando eu vi, eu já estava fazendo Psicologia.
P/1 - Foi direto?
R - Foi.
P/3 - Esse clima de competição que tinha no Rio Branco era uma coisa que era encontrada, era uma filosofia de quem dirigia a escola ou era uma coisa natural entre os alunos?
R - Olha, eu acho que tinha a ver com a direção da escola. Eu acho que tinha a ver com o perfil dos alunos que procuravam. Porque naquela época já tinha a história do Dante, Bandeirantes e Rio Branco. Então eram os colégios que arrasavam no vestibular. As pessoas já iam para esses colégios e lugares mais competitivos. Não posso dizer que eu não fiz. Quer dizer, eu tinha uma intenção de sucesso. Tanto assim, na outra escola eu era a primeira da classe, saí de lá com homenagem, as melhores notas, não sei o quê. Mas eu passava cola para todo mundo, entendeu. Nunca fui do gênero: Ai eu quero tirar 10, os outros que tirem cinco, meu 10 é maior. Eu não tinha nada a ver com isso. Mas a escola tinha muito essa filosofia. Eu lembro do diretor, a primeira vez que eu tive contato com ele, que era o diretor do Rio Branco, na época, uns alunos foram reclamar não sei o quê, e eu lembro do homem gritando na Diretoria. Ele falava assim: "Aqui vocês não são nada. Aluno aqui é zero. Vocês não servem pra nada. Vocês não são nada. Aqui, vocês vêm para aprender e só". E eu ficava olhando e falava: "Nossa, que estranho". Não batia. Tinha aquela questão de levantar para o professor entrar, de respeito, de disciplina. Era uma disciplina bem férrea na época. A questão da disciplina não me incomodava, nem a questão do respeito, porque para mim estava meio introjetado. Eu sempre fui, essa coisa de respeitar gente mais velha, um professor, uma situação. Para mim isso até hoje não é problema. Mas era a forma como era. Era uma coisa meio terrorista, sabe. Uma pressão, aquela coisa. E pior ainda os aluno ainda fazerem terrorismo com os colegas (risos). Aquilo era muito engraçado. Por exemplo, da minha classe, ainda uns... Eu estava esperando esse meu pequenininho... Há quatro anos teve um encontro do Rio Branco que eles fazem, sistematicamente. Eles chamaram a minha classe; então, milhares de profissionais, médicos e tal. Vê-se que o pessoal chegou em lugares de importância social, profissional, tudo. Era um pessoal que estava ali, não estava para brincar.
Mas eu achava aquilo tudo muito estranho. Quando eu saí de lá eu dei Graças a Deus. Eu não acreditava, era um pesadelo. E aí, engraçado, que depois eu fui para logo, mais tarde. Eu fui escolher escolha para a minha filha, queria qualquer coisa muito diferente disso. E ela ficou numa escola diferente, uma coisa de formação humanizadora tal. Mas quando chegou na sétima série deu a louca nela, enfim, ela queria ir para o Dante. Falei: "Pelo amor de Deus, você não sabe o que você está fazendo. Você vai procurar um tipo de escola...". Mas eu achei muito engraçado, questão da vida, de ter falado: "Não, meus filhos não vão estuda". Quer dizer, no que dependia, ela não ia estudar no Dante. Só que eu esqueci de uma pequena variável, ia depender dela também. E ela quis ir para o Dante, ela está lá.
P/1 - Antes ela estudou onde?
R - Ela estudou, de pequenininha, dos cinco até a sétima série num colégio chamado Rainha da Paz. É um colégio que tem uma formação religiosa, mas, não que seja light, mas é uma coisa assim mais elaborada. Ela fez um processo de contato com religião muito gostoso. Eu me lembro que na época da Primeira Comunhão, que eles faziam assim, fizeram bem mais velhos, lá com, com uns 11, 12 anos, tal. Os pais participaram, tudo. É mais um convite. Não era uma introdução dogmática. Mas uma introdução à Divindade, à Deus. Essa coisa. Então isso eu achei muito bom. E aí gostava muito da escola que, embora, sei lá, às vezes as pessoas falam: "é uma escola meio careta.” Eu acho que eles conseguiam ter uma coisa de formação de valores muito importante. Você entra lá na escola, pelo menos até onde ela estudou e até a pouco tempo que eu fui lá, você vê aquela escola limpa. Mas não tem ninguém, tipo: "Ô, se você jogar um papel no chão, você vai ser expulso, ou você vai de castigo". Eles cuidam da escola. Cuidam do jardim da escola. Tudo muito bonito. Parece que você tá num parque, sabe.
P/1 - Não é feito uma autoridade?
R - Não. E até hoje ela fala que foi a melhor escolha que podia ter feito. Engraçado, que eu fazia festa em casa, tinham as bagunças, molecagem, guerra de brigadeiro, atirava no prédio do lado, tal. Mas não tinha aquela coisa que eu vi, depois com o Dante, de danificar coisa, de estragar, de fazer sacanagem, entupir banheiro, quebrar móvel. Coisa de vandalismo de escola grande, que o valor vem assim da contenção, da pressão, da disciplina e não dessa coisa que eles tinham no Rainha de: eu não vou porque é a cadeira que eu vou sentar, eu não vou sujar, vou jogar o papel no lixo, porque, sei lá, a minha escola, o lugar que eu estou, vai estar sujo. Eu estudei no Rio Branco e ela foi estudar no Dante, mas tudo bem (risos).
P/1 - E aí, você veio do Rio Branco e foi parar na PUC nos anos 1970. Como é que foi isso?
R - Anos 70, mais ou menos. Porque eu entrei lá, 75 e era aquela fase dos 70, não como foi nos 60. Que minhas irmãs estudaram na USP, na Maria Antônia. Minha irmã foi a primeira turma de história da USP. História da USP na Cidade Universitária. Eu me lembro de eu pequenininha, indo nas festas. Era muito legal. Era um pessoal muito politizado. Na PUC a gente estava naquela fase de, em 71, já tinha passado a Copa do Garrastazu; então tinha aquela coisa de Brasil, alegria, futebol, milagre econômico. Todo mundo achando que está numa boa. Tinha o Geisel, que foi aquela época, repressão forte, tudo. Mas, engraçado, acho que
como eu estava muito preservada nessa escolas particulares, não tinha noção do que estava acontecendo. Eu só me lembro que, no primeiro ano da PUC, eu me envolvi com o movimento lá dentro de greve, meio político, tal. Eu lembro que eu cheguei contando em casa e meu pai quase me matou: "Ah, você vai parar no DOI-CODI! [Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna]". O que é DOI-CODI? Sabia lá o que era DOI-CODI, entendeu. Aí, mais ou menos nessa época, eu tinha uma prima que fazia Jornalismo na USP e morava lá no CRUSP. Ela morava no CRUSP, tal. Ela sumiu e foi uma confusão para conseguir salvar. Foi um rolo danado.
P/1 - Seu pai interferiu?
R - Interferiu. Dentro do possível, tentou ajudar. Mas meu pai, ele se incomodava muito.
Ele se sentia muito mal. Porque mesmo o Judiciário... Qual era a função que ele tinha? Era uma função só de lei. Não tinha aquela função democrática.
P/1 - Estava subordinado?
R - É, estava subordinado. Então ele achava aquilo, ele era super contra aquilo tudo. Fui cair na PUC. Eu lembro que ele ficava horrorizado: "Você é maluca!". Ficava tentando... Bom, aí começou a faculdade de Psicologia. Que eu demorei um tempo para baixar lá na faculdade, para entender o que estava acontecendo, como é Psicologia mesmo. O primeiro ano era introdutório. Na época era integral, eu passava o dia todo lá. Só que na época eu tinha aula específica, que a gente falava, as matérias específicas de Psicologia eu tinha no Aeroporto. Não, eu tinha o básico que era na PUC. Tinha um prédio que chamava Neide Solito, que foi uma psicóloga famosa, tal, que fez a clínica da PUC. E esse prédio era em frente à Gastroclínicas, que é o Centro de Fonoaudiologia da PUC. A faculdade de Psicologia era lá. Tanto que eu conheci a Bellkiss lá. A Beatriz foi minha professora de Neuroanatomia no primeiro ano. Eu me apaixonei. Adorei. Gostava do estilo de aula, sabe. Tudo tinha a ver muito com a minha formação. Já tinha aquela tendência meio de Medicina. Eu mexia com os encéfalos, com as coisas. Estudava, tinha notas altas e eu acho que eu acabei me destacando como aluna. Aí, no ano seguinte, ela me convidou para ser monitora. Ela dava a parte teórica de Neuroanatomia e eu fazia parte, com outras colegas, fazia a parte de laboratório; supervisionada por um médico que dava laboratório.
P/1 - Isso era na Escola Paulista de Medicina ou não?
R - Não. A gente tinha as peças de anatomia lá dentro da própria PUC, lá do Aeroporto. Só que do primeiro para o segundo ano teve a mudança, enfim, Psicologia foi por para a Monte Alegre também. Eles chamam de prédio novo. Eu lembro que foi muito engraçado que a mudança do laboratório foi feita no meu carro. Isso é super contra a lei. Você não pode transportar restos humanos, tudo. A não ser com autorização. Eu sei que no fim tinha cérebro, tinha tudo no meu carro. Aqueles negócios de mantimento. Nós tínhamos tudo, mas eram as peças que o pessoal da Paulista tinha utilizado. A Bellkiss tinha conhecidos, então eles davam as peças para a gente, as peças, os cérebros, essas coisas e eles eram mergulhados em formol, para manter numas latas de mantimentos. Era meio engraçado. Eu fiz essa mudança para o laboratório lá da PUC da Monte Alegre. Eu fui monitora, dava aula lá, gostava dessa parte experimental, tudo. Experimental, essa parte de anatomia. Foi aí que eu conheci a Bellkiss.
P/1 - Como que eram os conhecimentos de Neuroanatomia nesse momento? Quer dizer, o que é isso exatamente?
R – Nós aprendíamos quais seriam as bases fisiológicas da parte neurológica mesmo. Como funcionava o cérebro, quais seriam as áreas do cérebro responsáveis por tal e tal coisa. Isso em termos neurológicos. Não tinha nada a ver com comportamento, nada disso. Depois a gente tinha neurofisiologia, que era outra matéria. Tudo isso eram as matérias iniciais.
P/1 - Eram obrigatórias?
R - Eram obrigatórias. Mais para frente que tinha a parte de Psicologia mesmo, digamos, teórica. Aí começou a ter contato com Psicanálise, Fenomenologias, assim uma formação. Eu lembro assim, eles tentavam dar uma formação bem aberta. A gente tinha contato com tudo. Tinha Ética, tinha Estatística. Eu dormia na faculdade, passava o dia inteiro lá. E o básico, que era o primeiro ano, tinha Teologia, Antropologia, Sociologia e tinha Psicologia inicial. Esse básico era legal porque eram os alunos de vários cursos da faculdade. Então a gente tinha aula com o pessoal da Fonoaudiologia, pessoal de Sociologia, pessoal de Direito, era muito legal o ambiente. E na Psicologia tinha as matérias específicas. Depois eu perdi um pouco com a Bellkiss, via pelos corredores, cumprimentava, conversava. Mas aí fui estudando. Nesse meio tempo, eu me formei em 79, 77. Casei, primeira vez, com aquele namorado lá dos 14 (risos). Fui terminando a faculdade e quando chegou perto do fim encontrei-o no último ano. Encontrei no corredor e ele: "Ah, professora tem alguma coisa para mim? Que eu quero trabalhar, quero fazer, tal". Ela falou que ela ia começar a fazer a primeira tese dela - que era a tese do Mestrado. E ela precisava de alguém que aplicasse os questionários, que fizesse as perguntas. Foi quando eu fui parar aqui. Aí eu terminei o quinto ano, estava já terminando o quinto. Eu já estava junto com ela e já estava vindo aqui no Incor. Eu ia lá ao ambulatório e aplicava questionários. Ela estava no início da tese, um estudo de que instrumento ela ia usar, sabe. Eu comecei a aplicar esses questionários e fui ganhando espaço dentro do serviço. Ela também foi investindo muito em mim, eu também tinha uma ligação muito forte com ela. Aos poucos foi abrindo espaço, fui entrando no ambulatório, comecei a atender. Até quando eu era bolsista, já era Psicóloga formada, eu já comecei a trabalhar aqui, atendia na enfermaria. Eu era apaixonada pelo trabalho. Eu era assim, louca pelo trabalho. Se a jornada era oito horas eu ficava 10. Eu era super dedicada, eu era apaixonada pelo trabalho. Gostava muito.
P/1 - Mas você tinha tido contato com Psicologia hospitalar em algum momento na
faculdade?
R - Nada. Não tinha nada a ver. Não tinha coisa nenhuma. Só tinha Psicologia clínica. Do hospital não existia absolutamente nada na faculdade.
P/1 - Nem de ouvi falar?
R - Eu sabia dela por causa da questão de ter sido aluna monitora. Eu sabia que ela trabalhava em hospital, tudo. Eu não sei se teve aquela influência um pouquinho da Medicina. Mas foi também, sabe essas coisas que acontecem? Se tropeçar na pessoa: "Ah, você está precisando de alguma...? "Ah, eu estou precisando da pessoa assim". Ah, eu vou. Daí eu já vim. Parecia que estava tudo já sintonizado ali para eu vir para cá.
P/1 - E veio e adorou?
R - Vim. Vim a mil. Eu tinha uma sede, vontade de trabalhar, de aprender, de me lançar, de ter contato com os outros profissionais. Acho que, acho não, era até meio excessivo. Acho que eu estava inebriada. Mas eu gostava. Gostava de ter contato com os pacientes. Eu tinha um contato fácil. Tinha facilidade pessoal, isso ajudava bastante. Eu curtia muito a Bellkiss. Eu me lembro que eu tinha um pouco de dificuldade, pois uma coisa é você chegar num serviço que já estava funcionando. No entanto, eu cheguei com aquela expectativa meio mágica de começar tudo. Tudo a mil, tal. Tinha outras pessoas trabalhando e que, por exemplo: "O que essa pirralha quer? Chegando aqui, achando que está a mil?”. Sei lá, eu devo ter atropelado muito gente. Mas, sinceramente, acho que era muito... Sabe quando você está apaixonada? Você está com energia que você quer fazer. Às vezes eu via uma pessoa parada, que já estava num outro ritmo; não que não fosse um ritmo positivo, entendeu? Mas não estava nessa fase meio de mania, de querer curtir tudo, fazer tudo. Eu me esfolava.”Você vem aqui meia noite para atender paciente". Ora, mas eu estou aqui, entendeu? Nós tínhamos um contato mais ou menos... E enfim, tinha outro grupo, que depois eu fiquei muito próxima, uma amiga minha que é muito amiga minha até hoje, nós tínhamos um contato gostoso. Era um grupo... Nós saíamos juntas, a Bellkiss também. Eu tinha muito aquela coisa com ela assim, ela era minha mãe profissional. Ela era bem isso. Eu era muito identificada com ela. Eu queria ser ela quando eu crescesse, entendeu? Era bem assim. Ela falava: "Você vai fazer aqui. Você vai..." Eu ia e não tinha questão. Nem tinha o que questionar porque eu não estava nem me diferenciando dela. Eu precisava aprender muito com ela. Como de fato eu aprendi. Era assim... Ah não sei. Acho que eu era voraz (risos).
P/3- A Bellkiss, você falou?
P/2 - Você era fixa de alguma equipe aqui dentro?
R - Era. No começo eu fui para o ambulatório. Depois eu gostava muito da enfermaria. Eu ganhei um presente, era a UCO. Sei lá, era a unidade que era a Unidade Coronariana. Eu fui para Coronariana. E a ala dos particulares, que era o oitavo andar aqui. Então eu tinha, entre aspas vai, o espaço de elite, bem entre aspas. Eu fazia ambulatório, que eu também gostava. E fazia a parte da U.T.I. Eu tentava trabalhar em equipe, tinha aquela coisa de trabalho muito profissional. Eu adorava tentar. Então eu chegava muito aos médicos, chegava à enfermeira. Acho que em função também, sei lá, do contato pessoal, foi facilitando. Então quando eu cheguei na UCO eu ficava em pé, não tinha nem onde sentar. Depois eu já tinha, tinha a cadeira da Carmem. De repente, já tinha o lugar lá que eu meio que conquistei. Então eu ia me enfiando e consegui ficar na UCO, tinha um relacionamento muito bom com o pessoal. Fiquei bastante tempo lá.
P/2 – E naquela época já tinha aquela cultura do psicólogo sempre participando das visitas médicas, das reuniões, já existia?
R – Aquilo começou, acho que começou com a gente. Tinha. Tinha a questão da visita. Eu acho que, logo no começo, tinha a direção do sentido do que seria compartilhado por todo mundo, do que era geral do serviço. Mas também tinha muito espaço para cada um desenvolver o trabalho de acordo com a sua forma de ser. Depois, mais para frente, o próprio serviço foi crescendo, a forma como se requisitava a presença da gente, a necessidade da gente. Eu lembro que o serviço, ele foi amadurecendo, ganhando espaço, se diferenciando. Tinha muita aquela coisa: “Mas o quê diabos faz o psicólogo aqui dentro. O que faz o assistente social? Psicólogo é assistente social, assistente social é psicólogo? Mas, o que o psicólogo quer saber com o médico? Por que ele vem na visita? O que tem uma coisa a ver com a outra, entendeu?”. Então assim, eu acho que tinha muito de uma procura de definição do papel da gente e de conquista de espaço mesmo. A questão, tanto que eu dei risada agora com a questão da sala, era muito engraçada. Nós lutávamos por metros, entendeu? Então se entrava a equipe todo mundo olhava: “Que diabo, né?” Depois teve uma época que a gente começou a usar uniforme. Então a gente usava uma saia, ou calça azul clara, blusa branca. O pessoal chamava a gente de “azuizinhas, as azuizinhas”. Então você entrava na visita médica, você via, você sentia aquele olhar. “O que essa infeliz está fazendo pendurada aqui?”. E aí também tentava outra forma de conquistar espaço. Quando eu entrei já tinha a questão da evolução no prontuário, o que eu acho muito importante. Então, da mesma forma tinha a evolução médica dizendo como está o paciente, o que ele está fazendo, que medicação está tomando, tinha evolução de enfermagem, então cada profissional tinha uma folha; então tinha, primeiro tinha a folha de Evolução multiprofissional, depois acho que tinha a folha da gente mesmo. Você colocava: fui visitar paciente tal, estava de tal e tal forma, o contato foi assim, assado, estou percebendo tal e tal. A evolução tinha um sentido de comunicação com os outros profissionais, marcava a nossa presença dentro do prontuário e, hoje em dia, eu vejo bem assim. Enfim, também era uma forma de estar conseguindo espaço dentro da equipe. Dentro do papel concreto, na medida em que se escrevia, que você também estava, no sentido simbólico, conseguindo um espaço ali também.
Então nós escrevíamos, era engraçado. Às vezes tinha uns médicos que brincavam, punham vírgula na evolução, escrevia: “E daí? Larga a mão de falar bobagem”. Sabe, alguns brincavam, outros não era tão...
P/1 – No próprio prontuário?
R – No próprio prontuário. Tinham uns que não eram tão brincadeira assim. Mas era muito difícil porque, eu me lembro assim, era a rejeição pelo desconhecido, sabe. Muitas vezes não era nem que eles rejeitassem. Às vezes você rejeita uma coisa que você conhece ou que você imagina que você conheça e fala: “Ah, não quero nem saber disso aqui”. Conosco era uma rejeição que eles nem sabiam o que a gente fazia, nem o que nós queríamos. Eles eram muito reticentes, os outros profissionais no geral tinham uma coisa assim meio, sei lá. Então dava alguma confusão, o paciente está chorando: “Então vamos chamar o psicólogo” - entendeu? A enfermagem: “Puxa, mas o quê que a gente vai fazer com essa mulher parada aqui dentro de uma UTI, uma psicóloga”. Então, eu sentia muito isso. Eles não sabiam direito a que era devido a nossa presença, o que a gente ia fazer, tudo. A meu ver, foi muito passo a passo este processo. É como eu estou te falando, primeiro eu não tinha nem cadeira para sentar. Mas eu entendia que na medida em que eles estavam me dando espaço físico, significava que estava conquistando espaço simbólico, como profissional. Então começaram a me chamar. Às vezes, me chamavam fim de semana, aconteceu até de me chamar à noite, assim, e não foi só uma vez. Depois eu fui pra equipe de transplante. Quanto aos primeiros dez transplantados, sei lá, acho que eu atendi o primeiro ou segundo, aliás, eu acho que os primeiros cinco casos, não sei. Atendi junto com a Bellkiss, nós atendíamos assim. Os primeiros dez passaram comigo. A minha participação no programa era de fazer avaliação psicológica, tentar preparar esse paciente para situação do transplante. Para o primeiro era praticamente preparar para o desconhecido, porque era o desconhecido... É claro que tinha técnica médica, tudo. Mas na verdade aquilo era muita novidade para todo mundo, para os médicos, para nós, para o próprio paciente. Então até conhecer o primeiro doador pra esse primeiro paciente que efetivou, pro primeiro paciente dessa era, porque já havia tido os do doutor Zerbini. Não quiseram saber direito o que aconteceu, porque era assim, tinha uma unidade montada lá em cima, no oitavo andar, que era com tudo isolado; então tinha a equipe lá do transplante só que entrava, o paciente ia ficar lá isolado por muito tempo. Então ninguém sabia direito quais iam ser os efeitos. Embora eu tentasse estudar muito do que tinha de literatura de fora, eu fazia muito levantamento bibliográfico. Eu lia muito do que tinha de trabalho fora do país. Eu tentei me informar o máximo para tentar trabalhar, tentar identificar aquilo, mas não deixava de ser uma situação nova para equipe inteira. Eu lembro que eu tive contatos longos e profundos com alguns pacientes que estavam esperando o tal do coração. As pessoas iam morrendo pelo caminho porque não aparecia doador. Toda aquela expectativa, você fica esperando aquela porta abrir para você ter uma chance de vida e a porta não abria, e o cara morria e acho que morria um pedacinho de mim junto em cada um que ia embora. Porque era muito difícil, era muito complicado. Daí o primeiro foi o Carlos Ferro, que eu tive um contato muito bom com a família e com ele. A gente também tinha no trabalho, na época do transplante, de trabalhar com a família do doador. Então eu me lembro que o primeiro foi um policial militar que se suicidou. Era uma peculiaridade, eles também precisavam de um coração muito grande. Enfim, o Carlos Ferro era um cara muito alto, muito grande, pesadão, ele precisava de um coração que correspondesse à anatomia, ao tamanho dele. Mas era muito difícil de achar um doador pra ele. Esse policial se matou... Esse policial se suicidou na frente da mulher, um cara super jovem, 20 e poucos anos. E eu me lembro que eu fui conversar com a família no Instituto Médico Legal bem de madrugada, fui lá conversar sobre a questão da doação. Porque ainda eu vejo, eu leio. Eu acho que deve ter melhorado, tem programas, existem organizações que cuidam disso, tudo. Mas você vê que é muito difícil, é muito difícil as pessoas doarem, tem preconceito, tem medo e milhares de coisas. Às vezes a pessoa quer doar, mas a família não deixa doar. Então era um drama essa questão da doação e de receber, chegar o órgão que fosse compatível, tinha uma série de coisas. Tinha um monte de alarme falso: “Ah, vem vindo, tal, pega o Carlos Ferro, leva, não sei o quê, prepara, entra em jejum, vai...’’. Não ia. E o cara vendo a folhinha indo embora e não tinha marcha ré. Porque tem uma hora que compromete mais o primeiro e nem dá mais para fazer. Enfim, muitas vezes a pessoa morre. Então era muito dramático, muito forte, o envolvimento era grande, a equipe lutava muito. Foi uma fase muito importante. Eu assistia porque tinha um visor aqui em cima, eu assistia a cirurgia, achei aquilo muito mágico. Você pegar, sei lá, tirar um coração morto – porque o coração ficava praticamente morto, né, acabado – de repente, coloca-se o coração, vê aquilo batendo, vida de novo; quer dizer, muita coisa envolvida. O trabalho com o paciente era um trabalho complicado: ela está com uma parte do corpo de outra pessoa, justo que parte, o coração, o simbolismo de coração, vida, sentimento: “Que quê eu estou do outro dentro de mim? Eu sou outro? O outro está em mim? Onde que eu estou, que não estou?” – identidade, tudo. Era uma coisa muito complexa. Mas era apaixonante o trabalho, era muito legal.
P/3 – E como foi o contato com essa primeira família, esta família do doador. Como que foi o contato com essa família?
R – Foi. Era muito engraçado. Quer dizer, engraçado nada! Mas assim, uma coisa é você estar protegida aqui dentro do hospital, qual a expectativa de vida que o receptor tem. Então você está torcendo pela vida. É como se você tivesse torcendo por um coração. É uma imagem meio pesada, mas como se você fosse, você visse um coração: “Ai, deixa-me pegar esse coração e pôr aqui”. Então eu esperava um coração. Isso dentro de mim, ok? Mas eu não imaginava que aquele coração ia ter uma pessoa que ia estar morta. Não é que eu não imaginava, eu imaginava. Uma coisa é você imaginar e outra coisa é você ter o contato concreto com aquilo, com o drama da morte, da morte em si. O luto da família, a perda, a tristeza. Então é uma dicotomia, porque você vê assim: é como se você tivesse numa maternidade que do quarto você vê uma criança nascendo e no hospital do lado, você vê um cara morrendo. Era tudo muito junto, vida, morte, tristeza, alegria, renascimento e perda. Você via, eu estava lá, trabalhando a tristeza, aquele do rapaz, aquele drama, aquele suicídio, aquela morte assim tão prematura, uma coisa tão dolorosa, dolorosa; depois... O Incor, mesmo naquela época, já era considerado a “NASA” do Hospital das Clínicas, ele tinha um papel muito importante. O Incor sempre foi muito foco de projeto científico, coisas enfim, estava sempre acontecendo alguma coisa. O pessoal estava sempre trabalhando, muitos trabalhos publicados, uma equipe médica e científica muito boa; então aqui era como se a gente tivesse protegido da realidade de fora, do resto do H.C, do resto da saúde no Estado, da Prefeitura. Isso eu fui ver mais tarde, o contraste é brutal. Então assim, eu aqui dentro daquela UTI. Trabalhando com aquele paciente, o coração... Até eu entrei na história do coração: aí, de repente, atravessa a rua. Eu estava no IML de madrugada (IML não é bolinho), aquela coisa de gente chorando, perdida: “Cadê o corpo? Não é corpo? De quem é, de quem não é?”. Gente procurando reconhecer, aquele drama. Mas é uma coisa assim tão chão, que para mim era muito complicado. Foi difícil na época, eu acho que eu era nova também, eu devia ter o quê? Uns 24, 25, 26 anos, quando nasceu minha filha depois. Eu já era adulta, mas aquilo tudo era muito forte, esse contraste concreto, emocional, simbólico, de vida e morte ali no transplante, era uma coisa muito intensa. Muito mesmo. E o engraçado, olha só! Eu atendi os 10 primeiros, eu não sei. Teve um paciente que foi em seguida do Carlos Ferro. Foi o segundo, era um japonês e ele me impressionou muito. Chamava-se senhor Kimura. O que me impressionava era o fato que ele era muito “zen”, como se diz hoje em dia. Ele tinha um controle de si muito grande. Na verdade, acho que eu tinha que fazer terapia com ele (risos) Ele era super centrado, compenetrado, ele compreendia muito bem o que acontecia, era disciplinado. Então quando a gente ia fazer, entre aspas, a avaliação para ver se aquela pessoa tinha condição de fazer o transplante, se tinha que ver se aquela pessoa ia ter força depois, quer dizer, não é que você ia fazer uma previsão, mas você tentava meio que traçar um perfil. Também é meio relativo. Para ver se aquela pessoa ia conseguir, porque é assim, muita gente tem aquela imaginação de que você vai ali e só troca o coração: “Bom, até logo. Muito prazer, vou para casa”. Não é nada disso. Muito mais naquela época. Era aquela coisa sofrida, o cara ficava... O Carlos Ferro ficou três meses, ele ficou aí sem contato, é máscara, e você para entrar e lava a mão, e passa, desinfeta. Eu também. Eu lembro que uma história de tira coisa, põe coisa, eu usava anéis, tal, eu joguei, pus no bolso do avental, aí foi parar no ramper, que é o lugar que põe as coisas para lavar: “Ah, meus anéis”. Era aquelas coisas assim. Mas era uma rotina que até para você entrar em contato com o cara você tinha que despir de tudo. Você imagina o fulano isolado lá dentro, sem saber se vai viver ou não, aí tinha que tomar a tal da Ciclosporina, enfim, não se sabia direito a reação que ia ter. Quer dizer, se sabia por estudos, tudo, mas e se o cara tivesse rejeição? Como é que ficava? Então ele não sabia se estava rejeitando ou não, cada dia que passava. Era tudo muito novo. E o Kimura, ele já chegou de um jeito diferente. Ele tinha as preocupações, não é que ele tivesse assim, vai vamos falar, negando ou nada disso. Ele era muito centrado, muito consciente, ele estava preparado para se adaptar às mudanças que fossem necessárias. Outro dia, eu estou lá na faculdade, no Direito, contanto essa história, pessoal perguntando: “Ah, como que era que você fazia?” – aí, uma das meninas falou: “Meu tio fez transplante”. “Ah, é?”. “Ah, é o Kimura”. Eu falei: “Nossa Senhora! Ele foi meu paciente e tal”. Aí eu soube que, sei lá, há um mês atrás, que ele estava vivo ainda. Quer dizer, daquela fase antiga, acho que ele é o único sobrevivente.
P/2 – Ele é o que está a mais tempo. No Brasil inteiro, ele é o que está a mais tempo. Faz 15 anos de transplante.
R – É? Pois, é. E eu estava muito impressionada porque ele já tinha os planos de pescar. A vida dele... Eu me lembro da história da pesca, foi uma coisa que marcou. Então esse contato, o sucesso, a vida, a morte, essa questão de doação, esse drama de esperar. Telefonava não sei de onde, manda equipe buscar coração, sabe. Era uma coisa assim muito movimentada. Eu curtia muito.
(PAUSA)
P/1 - Essa coisa que você comentou do desconhecido, quer dizer, essa coisa de tudo desconhecido (risos). No fundo era tudo, não é? Não só a questão do transplante, mas mesmo a Psicologia no hospital? Quer dizer, era tudo muito, vocês estavam aprendendo nessa história.
R – Estava procurando, aprendendo. Teve uma coisa também, que foi legal, adorei fazer na época, foram os primeiros cursos. A gente começou assim: tinham algumas aulas e disso começou a virar cursos. Então assim; primeiro: Curso de Aspec... Não me lembro se era o primeiro, segundo ou terceiro, mas assim, de fato organizado. Curso de Atuação do Psicólogo na Área Hospitalar. Não sei se foi esse o primeiro. E eu peguei isso também com muita vontade, então eu também fazia essa parte de organização. Então eu ia atrás das pessoas, fazia contato, convidava os psicólogos, médicos, lia o serviço, fazia o levantamento. A Bellkiss falava: “Vai atrás de fulano”. Eu ia. Ia aos hospitais, nas clínicas, e, além disso, montava essas palestras. Essas palestras começaram com umas 30 ou 40 pessoas. Mas acho que depois de uns dois anos, quando foi o primeiro Congresso de Psicologia Hospitalar que o serviço fez, nós já tínhamos por volta de mil pessoas. Aquilo foi aqui nesse Centro de Convenções Rebouças, foi o primeiro Congresso de Psicologia Hospitalar. Foi muita gente. Foi um parto. E realmente, foi um parto. Eu estava grávida e minha filha nasceu. Acho que o Congresso era em outubro e, de tanto eu correr, minha filha adiantou acho que quase um mês e ela nasceu em agosto daquele ano. E eu desesperada que eu ia perder o encontro de psicólogos, porque eu estava na comissão de organização e, enfim, aquilo era outro filho meu. Eu estava junto aí gerando outro bebê, que era o tal do Encontro. Foi um sucesso. Nós não imaginávamos que aquilo ia virar o que virou. Tanto que a Bellkiss falou que era outra filha e tal. Nós fazíamos inscrições e recebíamos os conferencistas. Aliás, até eu... Acho que até eu dei uma palestra naquele ano, o que foi um drama para a minha pessoa. Enquanto eu ficasse trabalhando com o paciente, organizando, estava muito bom. Mas quando bota para falar em público, a coisa já enrosca. Eu fui, falei, eu lembro que estava em pânico quando eu olhei aquele auditório enorme, cheio de gente, tal. Isso foi coisa que eu acho que também abriu muito para o serviço... E a gente assim, procurando patrocínio de laboratório: primeiro era laboratório médico que dava cartaz. “Meu Deus, quem dá o cartaz?”. Mas era assim, tipo: “Quem dá o cartaz? Ah, fulano dá o cartaz, mas ele não dá a impressão: Mas como não dá impressão?” Liga, pede: “Pelo amor de Deus...!”. A gente não tinha, não tinha nem fundos, não tinha, sei lá, nada de onde tirar dinheiro. Foi bem a base do garimpo mesmo. Depois começou a divulgação também da história da Psicologia Hospitalar. Porque nesse Congresso teve a participação de vários psicólogos do Hospital das Clínicas, profissionais de outras áreas também. Isso começou a ajudar a formar um corpo dentro do Hospital das Clínicas. Foi realmente uma questão de crescimento e de maturidade. Enfim, depois do encontro acho que começou a questão do aprimoramento, que, por sua vez, era o correspondente a residência médica. Quando eu entrei aqui já tinha estagiário, depois de uns anos eu era supervisora de estágio também, fazia essa parte. O pessoal fazia um rodízio. Então tinha gente que estava no Ambulatório, tinha gente que estava numa enfermaria, digamos que infantil, outro estava UTI. O estagiário entrava aqui e passava durante um ano por cada uma de nós, cada uma das profissionais. Nós tínhamos uma liberdade boa no sentido de na parte teórica, cada uma tentava passar, tinha os tópicos básicos, mas tinha a formação de cada um. Porque tinha gente que tinha a formação Psicanalítica, mas já no meu caso era uma coisa mais Yungiana. Então quando a pessoa passava por mim, passava por mim de fato. Eu tentava discutir os casos e tal. Depois do estágio, que já tinha quando eu entrei aqui, começou a ter a questão do aprimoramento com bolsa da FUNDAP. É FUNDAP ainda?
P/2 – Não.
R – Com bolsa da FUNDAP. Foi uma grande conquista. Quer dizer, foi se aprimorando tudo. Depois começou a ter no estágio pessoas de outros estados e outras cidades. Vinha gente do nordeste, gente do Sul... Tudo foi crescendo, quer dizer... Mas foi rápido, foi muito rápido.
P/1 – Foi um espaço que vocês foram conquistando com dificuldade...
R – Com muita dificuldade. Desde o espaço até a cadeira: “Onde vai ser a reunião?” “Ah, não se sabe.” A salinha da Psicologia, o ramal, a máquina, sei lá: “Uma máquina dá? Tem secretário?”. Sei lá: “Será que precisa de secretário?” Eu preciso de secretário. Nós tínhamos a pessoa para fazer as coisas. Mas, no começo, era meio artesanal. Imagina então quando a Bellkiss começou! Devia ser, sei lá. Não imagino. Porque comigo já era muito assim, nas reuniões, equipe multiprofissional o pessoal olhava: "O que essa aqui está fazendo aqui? Qual é?” As reuniões, sei lá, o que vai falar. Nós temos uma linguagem própria da área. Uma linguagem específica que não é a mesma linguagem do médico. Dentro do ambiente médico é outra linguagem, sei lá, os valores, aquela questão da humanização, enfim... Aos poucos, eu me lembro, que a minha cabeça também foi... Tinha a questão do paciente indivíduo, de ser abordado, de ser atendido, mas tinha muito a questão de trabalhar a própria equipe. Vimos que não adiantava nada você chegar lá e conversar com o paciente e tal, ele colocava alguma coisa para fora, alguma angústia, alguma preocupação, não sei o quê, e, de repente, entrava outro profissional lá para fazer exatamente o oposto, tapava: “Ah, não chora nada. Vai tudo passar. Vai tudo ficar ótimo. O senhor vai ver. O senhor vai ser outro amanhã. Viva! Alegria, alegria! Não sei o quê”. Ou se não, chegava um cara grosso, não dava informação nenhuma. Você ficava lá: “Olha, quais são suas dúvidas? Tá querendo saber alguma coisa sobre a cirurgia?”. Não no sentido de ficar dando aulinha de informação, mas no sentido da pessoa, pelo menos, tomar um pouquinho mais um rumo diante de uma situação que ela é paciente, no sentido da palavra. A gente tentava reabilitar um pouco para a pessoa o controle de uma situação. Porque internação, aí vem aquela história, a pessoa perde o controle sobre si, sobre suas coisas. Ainda tem aquela coisa. Às vezes, até tem que usar a roupa do hospital, tem pacientes que nem têm, então é uma despersonalização muito grande que o paciente sofre. Aquele contato de vida e morte. Enfim, quando você começa a conseguir que a pessoa coloque um pouquinho para fora e vem outra pessoa e bota a tampa, faz o trabalho oposto: “Não, não precisa saber nada não. Pode deixar, eu resolvo o seu caso. O senhor está pronto e acabado. Eu te entrego para a família.” (risos). O cara: “Ah!” Vem.” Ou se não: “Melhor não falar nada de como é a U.T.I., senão ele vai ficar com medo”. E aí o cara acorda lá com 500 tubos. O cara não sabe onde está e nem quem ele é. A pessoa passa o maior medo. É claro também que nós tínhamos que aprender a lidar com esta dura realidade, saber dosar as coisas, enfim, também era importante você saber que você tinha que ficar entubado. Pode ser que você prefira não saber. Era difícil para a gente também chegar num ponto de saber o que cada um precisa, cada um é de um jeito diferente, você tinha que trabalhar de um jeito diferente, era uma situação diferente, uma condição específica, tudo era muito pessoal. Mas eu lembro que, para mim, meio que essa descoberta da questão do ovo, era a questão da equipe, sei lá, falar até sobre algum comentário feito do lado de algum paciente. A equipe toda tinha que se organizar, tentar ser a mais harmônica possível.
P/1 – Um ancorado no outro.
R – Isso. Porque isso parece muito óbvio, mas não é não.
P/1 – No dia a dia não.
R – Não. No dia a dia não é nada óbvio. O fato de você passar, aquelas coisas que a gente vê em filme de médico: “XRA, parâmetros isso, isso, aquilo...” A pessoa escuta aquilo, sei lá, acha que vai morrer no dia seguinte. Era complicado. Depois também aconteceu que eu fui chegando perto dos 30 anos, tive minha primeira filha e o meu pai adoeceu. Meu pai teve, eu trouxe ele para cá para ter um acompanhamento com um médico amigo, que eu já tinha contato aqui e, depois de um ano de acompanhamento, ele veio fazer um raio X de rotina e viram um tumor enorme, que estava escondido, ela estava com um câncer que não tinha o que fazer. No primeiro raio X o médico me falou: “Carmem, não tem o que fazer e vai ser rápido”. Aí, eu trouxe meu pai para cá. Foi inclusive nessa época que eu lembro que eu atendia, tinha transplantado, tinha meu pai internado aqui em cima, eu levei ele para o oitavo andar e tal. Ele acabou falecendo aqui. Começou uma coisa meio, começou a ficar difícil para mim. Não só a questão da perda em si do meu pai, mas a questão de buscar caminho. Mesmo essa questão que a gente brinca de mãe, tudo, tem uma hora que acho que você é pequena que você quer chupar tudo na mãe, depois tem uma hora que você se afasta da mãe, que se fala: “Ah, você não sabe nada. Quero procurar meu caminho”. “Meu envolvimento com a Bellkiss foi bem esse, sabe. Tipo assim: “Ah, não, agora eu quero pensar diferente. Eu quero fazer do meu jeito”. Foi adolescência no sentido de formação profissional, sabe. Começa a questionar, quero, não quero, fico, não fico. Aí assim, eu também tive, foram fatos muito importantes que aconteceram para mim naquela época. Foi: o nascimento da minha filha, meu pai faleceu em seguida e eu tive, não foi bem um piripaque, eu tive uma doença, que necessitou internação e eu corri risco de vida, tudo. Na época, foi uma coisa meio forte e aquilo me fez questionar muito. Tanto que quando eu estava em casa me recuperando da cirurgia eu decidi que eu não ia voltar. Eu decidi que eu ia sair daqui. Que eu ia sair do INCOR e que eu ia procurar um outro caminho. E coincidiu bem com a época dos 30, sabe. Foi uma fase de desprendimento de uma série de coisas. Foi muito difícil para mim essa época, foi muito sofrido, foi assim um parto. Eu não saí direto depois dessa cirurgia, eu voltei, eu fiquei de licença, acho que eu fiquei em casa uns dois meses, sei lá, até eu voltar, depois que eu voltei, eu me lembro que eu pedi demissão tipo num fim de ano, em férias, porque assim também eu tinha uma outra responsabilidade muito importante, que era a minha filha. Tinha minha filha, tinha minha mãe. Não dava mais para ficar aquela coisa de corpo inteiro aqui. Aí eu comecei a questionar, pensar o que eu ia fazer, se eu ia buscar um caminho novo. Aí que eu saí daqui e montei esse serviço que eu falei. Fui estudar de novo, fui fazer especialização. Porque acho que foi uma fase bem... Eu saí da faculdade, eu precisava de prática, eu precisava aprender, eu precisava de contato, precisava pôr a mão na massa. Depois foi uma parada assim, agora eu preciso estudar de novo, eu precisava... Foi bem isso. Bem elaborar, sabe. Diante de uma perspectiva diferente, agora eu sou mãe, eu tenho que assumir um monte de responsabilidades, eu tenho que... Sabe, foi muita mudança de uma vez só. Foi essa questão da cirurgia, foi a questão da morte do meu pai e mas também da minha filha. Foram coisas que aconteceram assim, um ano uma coisa, outro ano outra, outro ano e acabou acumulando. Porque, inclusive tinha a questão, como todo serviço, como qualquer trabalho, tinha escalonamento de férias e horários, então era difícil vir trabalhar, deixar a criança doente, com febre. A gente tinha um horário rígido, eu trabalhava oito horas aqui.
P/1 – Tinha consultório, PUC?
R – Eu tinha consultório. O serviço da PUC eu já tinha parado, eu tinha uma vida muito corrida. Eu comecei a achar que eu estava deixando muito a minha filha e era uma coisa muito importante. Minha mãe também estava em parafuso, estava viúva. Sabe quando começam os pilares, começa a mexer tudo. Então foi uma transformação de vida pessoal muito grande, eu precisava me afastar. Precisei me afastar daqui, me afastar da Bellkiss, me afastar, sabe, tipo brigar com a mãe. Tipo aquela fase que você põe a mochila nas costas, fala: “Agora eu vou viajar”. Foi, mais ou menos, assim que eu saí. Saí meio intempestivo, numa reunião, que teve uma reunião no serviço, revisão de férias, e assim: “Não, agora as férias. Vamos ver como que vai ser”. Todo mundo queria tirar férias em janeiro. Eu falei: “Meu Deus, minha filha vai para a escola”. Ia começar alfabetizar, sei lá eu, coisa assim. “Como é que eu vou tirar férias em abril? O quê que eu faço com ela em janeiro? Interno numa clínica?” Minha mãe já tinha idade. “Onde é que eu ponho?” Sabe quando você começa, eram situações práticas, foram mudando. Antes eu tinha disponibilidade total e absoluta, depois começou a ficar complicado. Eu pedi demissão numa reunião de férias. Decidi que ia sair e saí.
P/1 – E como é que foi?
R – É, foi muito complicado. Foi complicado porque primeiro eu tinha uma ligação muito forte com o serviço. Eu era apaixonada pelo trabalho que eu fazia aqui, eu gostava muito, me relacionava muito bem. O hospital tinha uma importância muito grande na vida, aqui no Incor, tal, então foi um corte. Um corte que eu mesma fiz, mas foi um corte muito doloroso. Aí eu fui procurar, como eu te falei, coisas novas: implantar esse serviço, esse trabalho num hospital. Era um serviço meu, a responsabilidade era minha, eu que tinha que resolver como que eu ia fazer, como que ia ser. Claro que não tinha a dimensão daqui. Para a Prefeitura foi uma experiência completamente diferente. Aqui eu reclamava, como todo mundo reclama, é natural. Reclamava de falta de condição, dessa história: “Não tem sala. Não tem isso. Onde que eu atendo o paciente? Tem, sei lá, 700 pacientes marcados, como é que eu vou atender direito isso? Como é que eu vou fazer aquilo?”. Quer dizer tinha as limitações do próprio local, da instituição. De repente, fui parar no hospital de Campo Limpo, periferia, naquela época, abrindo, faltando tudo. Ainda lá, no Campo Limpo, esse trabalho no berçário foi um trabalho preservado e foi um trabalho que também eu me apaixonei muito. Acabou sendo... Mas era uma realidade muito diferente, muito diferente. As mães, a população que era atendida lá. Eu achava que o pessoal aqui era precário, o pessoal lá na Prefeitura então, não tem nem como classificar. Aqui, realmente, era como se fosse um hospital particular. Mesmo por atendimento de quem não podia. Inclusive os leitos, não sei como é agora, mas na unidade de internação eram dois leitos por quarto e um apartamento.
P/2 – Continua.
R – A pessoa vinha e ficava num apartamento aqui.
P/2 – Banheiro próprio.
R – Banheiro próprio, tudo. Eu fui parar, sabe. Campo Limpo ainda era novinho, era aquele lance de inauguração, da Erundina, aquela festa, aquela coisa. Eu lembro que eu cheguei lá no começo. Foi também muito difícil porque eu tinha uma experiência razoável e eu lembro que o pessoal falava: “Ah, a experiência do H.C. é um paquiderme falido. Nós queremos construir algo novo”. Eu falava: “Meu Deus, tudo bem. Vamos, tá bom, vamos construir um negócio novo! Tudo bem. Mas, olha, botar a enfermaria de saúde mental no nono andar sem proteção na janela, eu acho que é uma experiência um pouco arriscada.” “Imagina! Vamos desinstitucionalizar os manicômios, essa questão da grade é uma rejeição da sociedade aos...”. Assim tinham milhares de teorias: “Vamos soltar todo mundo do hospital”. Foi um tal de pular gente lá de cima, sabe. Depois puseram grade, puseram tudo, porque era difícil, era uma proposta nova. Mas eu acho que você constrói propostas novas com base em coisas que você aprende, não dá para você negar experiência, negar a história, tudo, você tem que ouvir. Acabei conseguindo fazer lá um trabalho muito... No fim, fui para o Jabaquara. O Jabaquara era uma judiação. Porque foi um hospital construído para ser um hospital de ponta, tinha equipamentos ótimos, você andava pelos corredores, você via umas salas, aqueles computadores, aqueles super aparelhos, tudo enferrujando e com goteira pingando, sabe. Tudo abandonado. Pessoal lutando para atender leito, paciente deitado pelo chão nos corredores, tinha essa questão de deixar o pessoal de doença mental, da saúde mental solto. Quanto mais você avança para a periferia, mais desespero dá com a saúde. É uma coisa... Aí eu comecei a questionar mais ainda, entendeu. "Mas esse povo não precisa de psicólogo, eles precisam de remédio, precisam de maca. Então era gente deitada no chão, morria no chão, urinava no chão, barata passava em cima. Eu me lembro atendendo esse pessoal do CCI (tentativa de suicídio), barata passando na UTI, polícia com tiroteio: "Abaixa todo mundo". Entra bandido, entra policial, dá tiro e tal. Assim, não é bem drama, não. Mas é a situação real. Eu me senti muito questionada naquele período. Porque a gente tentava fazer trabalho de equipe, mas que equipe? Não tinha equipe, não tinha médico, não tinha gente, não tinha cama. Dava plantão, tinha, tentava, eu era supervisora de estágio, tinha o título, tudo. Tentava fazer alguma coisa, mas era, tinha muita limitação. Era praticamente ficar dando soco em parede, murro de faca. Era muito difícil.
P/1 - Psicólogo acabava recebendo mais reclamação do próprio serviço do que...?
R - Na verdade, nesses locais, inclusive até algumas administrações, mesmo no Campo Limpo, o psicólogo na verdade é um profissional caro. Mesmo em termos salariais, na Prefeitura e tal. Ele é um profissional caro, então de repente, eles queriam que a gente cobrisse o pessoal de recepção na portaria. Bolas, contrata 10 recepcionistas por um terço do salário, para ter 20 psicólogos sentados aqui para ficar cobrindo esse tipo de coisa, dá plantão para cobrir falta de psiquiatra. Primeiro que nós não estamos preparados para isso, nem é esse o nosso trabalho, nem é essa a nossa função. Então eu me lembro, domingo lá, chegava alguém: "Ah, mas você precisa dar um jeito, você precisa encaminhar, reinternar esse paciente, tirar daqui, é paciente psiquiátrico". "Mas eu não tenho competência para isso, eu não estou preparada para isso, eu não vou fazer". "Ah, você está com má vontade". Má vontade. É a mesma coisa que eu sair operando alguém por ai. Não é isso. Era muito triste ver esse sucateamento da saúde. A questão... Eu nem imagino o que deva estar acontecendo ai por fora. Porque realmente. Aí eu acabei saindo da área. Depois teve essa historia de PAZ, quem aceita fica, quem não aceita vai embora. Uma serie de temeridades, de terrorismos, de coisas que aconteceram. E uma coisa que eu percebi meio que independente da administração, sabe, saúde e educação não é muito valor aqui no pais da gente, caindo bem em lugar comum. Você mexer com a área comum e com uma área assim como a psicologia você enfrenta muita dificuldade é um campo muito vasto, tem muita coisa para fazer. A gente tentava no Campo Limpo, fazia grupo, tentava pegar os pais, os homens, as mulheres. Às vezes você tinha uma criança lá, nascia o bebê e fazia exame: infectado com sífilis - a criança infectada com sífilis, se ela não for tratada, ela pode desenvolver problemas, enfim, pode chegar a ter até doença mental. Então o que você precisa fazer? Você tem que isolar essa criança no berçário, ter o isolamento e fazer um tratamento. Não me lembro quantos dias que a criança fica lá com um tratamento, coisa é super cara, muito caro. Aí você trata da mãe e do pai, fala: "Olha, sua mulher ficou contaminada. Vamos fazer... "Ah, homem que é macho não quer saber dessas coisas". “Então o senhor, pelo menos, usa o preservativo. Então o senhor faz um tratamento". "Mas que tratamento, que nada, não sei o que". O pessoal só falta bater na gente, entendeu? Um ano depois, estava lá de novo a mulher com filho na barriga, contaminado, tal. Assim, esse trabalho com população carente, com o pessoal da periferia é um campo enorme, mas não exatamente nos moldes dos hospitais diferenciados. Mas na periferia ainda tem muita coisa para fazer, mas você tem que garimpar.
P/1 - É uma diferença brutal do Incor, para o...
R - É. É outra coisa. Foi um choque, foi realmente um choque. Ainda no Campo Limpo eles tentaram fazer uma coisa nova. Mas quando eu cheguei no Jabaquara eu vi judiação. Eles têm bons projetos. Lá tem um projeto que foi o aborto terapêutico. É um dos poucos hospitais em São Paulo que a mulher que sofre estupro pode fazer o aborto, enfim, ela tem o direito a fazer. Então tem uma equipe legal, sabe, trabalha com mulher essa questão de aborto. Então veja você, o pessoal luta mesmo. É um trabalho muito bonito, esse pessoal que faz o trabalho do aborto terapêutico, chama equipe do Aborto Legal. Muito legal. Mas difícil, viu? Muito difícil.
P/1 - Vocês tinham 20 psicólogos, de 15 a 20 psicólogos é isso?
R - Lá na Prefeitura? Tinha. Tinha muita gente, tinha gente. Campo Limpo, tinha muito. Porque esse concurso que eu tinha passado, esse concurso do Jânio, ele foi feito anos depois. Eu sabia que eu tinha sido aprovada e anos depois, quando eu pensei que o negócio já tinha sido caducado, ele foi revalidado, Então eu fui chamada. Então eu falei: "Nossa! Estão me chamando, lá vou eu". Mas tinha um número grande de psicólogos, tinha muita gente. Mas era assim, era um profissional mal aproveitado na época, tudo, isso eu estou te falando seis sete ou anos atrás.
P/1 - Não deve ter mudado muito...
R - Eu acredito que tenha piorado. Porque o contato que eu tenho com algumas amigas... E com a ocorrência do PAS a coisa complicou mais ainda. Algumas que estavam em hospitais foram para postos médicos, inclusive um parente meu, o meu cunhado, era médico no Menino Jesus, Hospital Menino Jesus, anestesista plástico para esses acidentes queimados, de bebê, tal. Ele não aceitou, aderiu ao PAS e foi mandado para uma creche. Ele fazia comida para as crianças de uma creche lá no Butantã. Você imagina um profissional preparado fazendo comida numa creche, por uma questão política tudo.
P/2 - Como se tivesse sido um engano do profissional.
R - É, e os psicólogos também. Deu uma varrida que voou psicólogo para todo lado. Era para posto, teve gente que foi para a Secretaria de Administração, eu nem sei. Eu sei assim, eu tinha muita pena porque tinha muita gente boa.
P/1 - Tinha recursos humanos?
R - É, daquelas escapadas, entendeu? Vamos para algum lugar para terminar a carreira para se aposentar. Eu também acabei pedindo exoneração quando eu cheguei do afastamento, resolvi me exonerar. Aí, no ano passado eu me vi lá na faculdade, um professor me convidou para dar uma aula e eu dei uma aula da parte da psicologia ligada ao abuso de poder, porque você está falando do Poder Judiciário tal, uma questão do poder nas profissões de ajuda. Eu já dei aula, às vezes o pessoal vem conversar comigo, tal, é muito engraçado. Não deixei de ser psicóloga, eu estou indo para outra área, mas que tem... Engraçado que eu encontro as pessoas: "Você fazendo Direito, você ficou louca, você pirou?". Mas tem muita coisa a ver, estou impressionada, muita coisa a ver.
P/1 - O consultório...
R - Nada. Acabou.
P/1 - Desse período que você trabalhou no Incor, foi até 1987? Quais os momentos que foram marcantes para você lá dentro do Incor, mesmo para a instituição, para o serviço? O que ficou gravado para você?
R - Eu acho que me lembro de momentos marcantes assim, os momentos de contato bom da equipe. A amizade que a gente tinha, a gente tinha um grupo de pessoas que depois se espalhou, sabe. Aconteceu até morte, tudo. Mas assim, eu tenho uma lembrança boa das pessoas. Essa coisa de conquistar espaço, isso sempre foi muito presente. Então da Bellkiss ali muito forte lutando, conquistando passo a passo. Cada... Até migalha, sabe? Até uma cadeira, tudo. Lembro assim, quando a gente começou, essa questão do transplante, para mim, eu acho que foi muito importante. Os trabalhos, os primeiros trabalhos publicados, também a gente escrevia trabalhos. Alguns para a revista médica, outros para as revistas de psicologia. Essa expansão, esse crescimento, esse movimento do serviço de dentro para fora. Essa questão para mim, eu lembro, que foi para a gente, todo mundo, esse momento do Primeiro Encontro de Psicólogos, essas mil pessoas. A gente falava: "Gente, mil inscritos." Era muita gente. Nós não tínhamos ideia do que era aquilo, entendeu. Tinha, sei lá, meia dúzia de gatos pingados e nós lá fazendo inscrição. No outro ano já virou uma coisa, a gente tinha uma empresa ajudando e tal. Essa questão de ficar procurando laboratório para patrocínio de curso, aquela dificuldade, aquela coisa. De repente, crescer para isso. Deixa-me ver, um momento. Nossa! Foi tanta coisa. Mas olha, foi tudo muito marcante, viu? Acho que esse crescimento do serviço, essa diferenciação, essa a conquista de espaço. Isso foi uma constante, que eu acredito que seja, continua igual. Eu imagino que seja mais ou menos assim.
P/2 - No começo você entrava na visita médica e as pessoas ficavam olhando: "Quem é essa pessoa que está aí, o que está fazendo?". Hoje é tão grande ter esse espaço, as pessoas nunca te olham de um jeito estranho. Muito pelo contrário, você faz parte realmente daquilo. Não é estranho você assistir uma visita médica ou falar durante uma reunião. Isso já faz parte. Estranho é quando você não está: "Por que você não apareceu na outra reunião? Fala onde é que você estava". Acho que o espaço está mais garantido, foi legal você ter falado: "Puxa, foi ela uma das pessoas que plantou esse espaço, que conseguiu conquistar esse espaço que hoje a gente meio desfruta disso. Que está junto por isso. Acho que luta para continuar. Porque é difícil esse trabalho, é difícil de conquistar. Acho que é fácil mais perder isso. Claro que a gente tentando manter isso, mas é muito mais difícil conquistar, dar o primeiro passo. Vocês conseguiram isso e hoje a gente desfruta disso. Quer dizer, a gente faz parte. O psicólogo aqui da Incor realmente faz parte, tanto quanto médico, como assistente social, quanto fisioterapeuta, foi uma coisa que praticamente acontece até hoje.
R - Eu lembro, lembro de coisas assim, tipo Natal... Tinha uma japonesa, não sei se falaram dela, a Lury, a Margareth Lury, ela trabalhou aqui também. Ela tinha uma coisa meio artística e tal. Ela ainda tem. Ela fez uma árvore de Natal, nunca, até hoje, quando eu entrei ontem lá no serviço eu me lembrei da árvore de Natal. Era uma coisa muito diferente, parecia assim arte contemporânea, uma coisa estranha, toda pendurada. Lembro que todo mundo passava e olhava. Quer dizer, a gente já era meio estranha no hospital, já eram as diferentes. A nossas árvores de Natal eram as mais diferentes, entendeu. Aquela coisa de arame meio forrado, ela se mexia, se movimentava. Então isso são episódios marcantes, os Natais, aquela coisa de amigo secreto. Teve uma fase que era muito engraçada, essa coisa, que era amigo secreto de verdade, a gente ficava mandando as correspondências, até descobrir quem que era. Era assim, era gostoso, né. Algumas saídas, de repente ia tomar chá nessas casas de chá, assim. Então aquela mulherada saia junto. Uma vez eu tinha um gato pingado, um estagiário, um homem, que era muito difícil aparecer. Nossa, foi milhares de momentos.
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa que eu fiquei curioso em relação, que a UCO era um presente, eu fiquei. Como é que é isso?
R - Era considerado uma área meio nobre porque era uma UTI. É uma UTI muito de vida ou morte, é uma coisa muito importante aqui no hospital. Todas as áreas são importantes, mas era assim: o cara chegava com um enfarte, em geral era assim, ou vai ou racha, entendeu? Ou o cara vive ou o cara morre. E pior é que são aquelas 36 horas, sei lá, 48 horas, um pouco mais, que fica naquela coisa vive ou morre. Lá é tudo muito forte. Você tem que interferir na hora, caso contrário, o cara morre. É muito tênue a questão de vida e morte, todo mundo muito tenso. Ali acontecem grandes coisas. Quer dizer, no hospital todo acontecem muitas coisas, mas ali é, não sei, era meio que salvar e tal. Depois que o cara saia dali, saia do inferno, ele ia... Quem ficou lá naquele inferno foi o Antônio Carlos Magalhães, ficou muito, viu. Sobreviveu por pouco... Sobreviveu por acaso. Aquele homem tem fôlego de gato! Ninguém acreditava que esse homem fosse viver. A época do Tancredo até estava falando para a minha filha ontem, que eu falei: “Ah, vou lá no Incor”. Estava aquela comemoração dos 30 anos de Jornal Nacional. Falei: “Sabe filha que uma vez eu fechei o Jornal Nacional”. Ela falou: ”O quê? Que história é essa?” Falei: “É. Eu trabalhava no Incor, o Tancredo...”. Isso foi uma fase também dramática, foi dramática. O período que ele ficou aqui, a morte dele, eu estava aqui. Eu estava saindo do Incor, daí, de repente, aquelas câmeras, aquelas coisas, o Jornal Nacional, me parou, me entrevistaram e aí, à noite, foi ao ar essa minha entrevista. Na época, eles passavam os letreiros, ficou minha imagem congelada, e aí: “Mamãe, mamãe!”. A pequenininha, meu pai: “Minha filha!”. Então até no Jornal Nacional eu fui para por conta do Incor, viu (risos). Depois, não lembro se foi antes ou depois do Tancredo, que o Antônio Carlos Magalhães ficou, ele ficou na UCO justamente. Ficou um tempão lá em cima, nessa história de vai, não vai, Humberto Lucena... Esses pacientes todos, esse pessoal todo, aqueles que começaram a eleger o Incor o lugar. Porque tinha muita gente que, a própria irmã do Sarney, morreu aqui e não tinha nada a ver com o coração, era coisa de vesícula. Mas ficou um ambiente assim, ficou um centro de referência.
P/3 – A partir de que momento ficou caracterizado o Incor como um centro de referência forte aqui para o Brasil? Porque assim, por exemplo, essa gente que não precisa do serviço público, de vir aqui.
R – Eu não sei como funcionava em termos políticos. Eu sei assim, por exemplo, eu lembro que o filho do Lula foi operado aqui, ele também foi beneficiado na época. E o filhinho dele, ficou lá no oitavo andar. Ele foi operado porque tinha problema cardíaco. Tinha uma ala do Incor, que é justamente o oitavo andar, que é do lado da UCO, que é dos pacientes particulares e convênio. Então essas pessoas pagavam. Agora, o que eu não sei é como que era essa questão dos políticos, entendeu. Se de fato eles pagavam, se eram doações, se depois isso se convertia em aparelhos. Sinceramente, essa parte, eu não tenho a mínima ideia de como funcionava. O que eu sei é assim, que acabou, de certa forma, isso acho que trouxe mais notoriedade para o hospital. Por um lado, eu acho que essa questão que você fala de ocupar um espaço de população carente, por outro lado, eu acho que chamou muito investimento, chamou muita tecnologia de ponta essa questão de ter uma Fundação. Inclusive teve uma época que eu acho que ainda tem aqui, que a gente tinha um salário muito baixo, e a gente tinha uma complementação da Fundação, que eu acho que o pessoal com chefia ainda tem. Era o que mantinha também profissionais aqui. Mantinha o nível e o investimento. Eu lembro que eles começaram a fazer plano de carreira para a gente, então tinha essa questão de você poder uma desenvolver uma carreira dentro do hospital, de você aperfeiçoar. Você tinha que ter pós, você tinha que procurar estudar, procurar se aperfeiçoar. Eu não sei se tudo isso caracterizaria uma coisa totalmente negativa. Eu acho que isso fez circular uma energia aqui, em termos de poder, dinheiro, tecnologia, medicina, tudo. Então, eu acho que acabou constelando isso aqui como ficou... Porque assim, eu não lembro se o pessoal daqui lembra disso ou se refere assim, mas era a NASA. O Incor era a NASA, tal. Hoje em dia eu não sei o porquê realmente eu estou... Mas a meu ver, é tipo assim, se eu tiver alguma coisa do peito eu corro para cá, entendeu. Mas isso é por questão do que eu vivi aqui e, também, como eu te falei, eu trouxe o meu pai para cá.
P/1 – Mas isso desde o princípio, desde a década de 70 já tinha...
R – Eu não... Bom, eu vim para cá em 80, 79. Quando eu me formei em 80, por aí, que eu comecei a vir para cá. Na época que eu vim para cá já tinha uma força. Mas eu não sei, foi muito engraçado, eu acho que, não sei se coincidiu, mas esse período que eu fiquei aqui, seis anos, tal, foi um período que a coisa deslanchou e se ampliou de tal forma que, esses dramas, tudo aconteceu aqui. Era drama político, perda de presidente, transplante. Isso aqui era uma coisa. Eu, realmente, não sei como é agora. Mas eu peguei uma época muito vibrante e eu também estava a mil.
P/1 – Acompanhou ?
R – É coincidiu.
P/1 – Mas a produção de artigos, a produção de saber, de ciência, da parte de psicologia já era muito forte antes disso, ou...?
R – Estava começando. Tudo começou eu acho que com a própria carreira da Bellkiss, entendeu. Quando eu cheguei aqui era a primeira tese dela. Então, o fato de você já ter, quer dizer tinha a formação acadêmica, a carreira universitária de Psicólogo, mas dentro da psicologia hospitalar ou dentro do hospital, eu acho ela é a única Livre Docente. Não tem ninguém. Então, eu acho que assim, esse próprio impulso dela, de procurar essa carreira universitária e começar a exigir da gente esse tipo de produção. Porque eu me lembro que, logo que eu entrei aqui, foi essa questão da coleta de dados da tese e, em seguida, começaram os primeiros trabalhos de serviço em conjunto, às vezes, com médicos ou então, eles escreviam sobre Proláxo de Válvula de Nitral e pânico, síndrome do pânico. Depois eu trabalhei um montão com essa história de síndrome do pânico, tal. Então, essa questão da produção científica também era uma novidade, sabe. Você começar a procurar, a produzir saber, transmitir saber. Isso eu acho que foi fundamental. Eu acho que justamente os encontros, os congressos, os cursos propiciavam esse espaço, que era um espaço de troca. Então, vinha gente lá de não sei da onde, vinha gente do Brasil inteiro, a gente, começou a baixar ônibus, descendo, a gente não sabia nem onde enfiar as pessoas direito. Mas a questão da troca: “O que você está fazendo?”. “Ah, eu não sei, eu só posso entrar numa área do hospital, ou nem me deixam entrar.” “Ou como é que são as suas dificuldades?”. “O que você está fazendo?”. “Ah, eu estou fazendo isso”. Aí, começaram a mandar trabalho para os encontros, para os congressos, como funcionam os congressos. Mandar trabalho, aí começou a mandar trabalho para fora. Eu acho que isso, não só essa questão da transmissão via científica
o trabalho, mas essa questão do aprimoramento do estágio, acho muito importante.
P/1 – Foi fundamental.
R – Ah, eu acho. Eu acho que quando aqui saiu o reconhecimento, não me lembro qual é o termo exato, que a FUNDAP começou a ter aqui o aprimoramento com bolsa reconhecidamente uma Instituição de formação, nossa, isso é fundamental, é 10.
P/1 – Essas coisas do Direito, como é que está sendo isso? (risos)
R – Olha, nem eu sei direito. Eu acho que assim, engraçado, o meu irmão, esse que eu falei desses rolos de explodir o São Bento: “Ah, eu nunca vou ser Juiz. Meu pai camela, meu pai faz isso, faz aquilo. Meu irmão é Juiz. (risos) Aquele, aquele... Meu sobrinho também é Juiz, tem milhares na família. Mas, eu acho que essa questão, esse clima da minha casa, não no sentido pessoal, mas essa questão, foi uma coisa que eu procurei muito quando eu era psicóloga, procurei na minha vida pessoal essa questão do justo. Eu não sei esse meu mergulho na periferia, eu me senti meio atada. Eu não tenho nenhuma pretensão política, entendeu. Mas, falta tanta coisa aqui. Você vê esse caos que a gente está vivendo de instituições jurídicas, de tudo, sabe. Então eu acho que essas coisas mexeram comigo e eu acho que aquela figura, lá de trás, do meu pai, aquelas coisas de procurar o certo, de procurar estudar, de procurar desenvolver, eu acho que acabaram pipocando numa fase mais tarde. E aí, eu estou adorando. Enfim, tem a parte de filosofia, eu curto muito. Mesmo a visão que eu tenho do Direito, por exemplo, no ano passado nós estávamos vendo Maquiavel, que eu tive em psicologia, então: “O homem, lobo de outro homem. A tendência negativa, isso. Maquiavel, maquiavélico”. Nossa! Eu vivi isso em tudo, eu vivi isso em todos os lugares que eu passei: a competição. Desde lá no primário, aquela história de ser o melhor aluna, depois aquela história de Rio Branco, a própria política dentro das instituições, como funcionam os vários partidos. Eu peguei assim, peguei Montouro, o governador, peguei Erundina prefeita, peguei... Não sei quantos governadores, quantos partidos, quantas coisas que eu peguei nesse tempo todo que eu trabalhei, dentro daquela questão do poder, aquela coisa viva, grande, o tal o Leviatã, que eu... (risos) Gente, isso tem vida, isso anda. Essa história do Maquiavel, tal, você fica achando livro, livro de cabeceira de totalitarismo. Quando você começa a estudar isso a fundo, você vê essas manifestações nas coisas mais corriqueiras. Eu acho que numa fase da minha vida eu mexi muito com essa coisa interna, do por quê, do por quê da razão das coisas, da base das coisas. A agora eu acho que eu estou trabalhando com uma coisa assim mais manifesta, mas que as bases são as mesmas. É muito incrível ver isso. É muito incrível. Até mesmo nos perfis em Direito, nas coisas que eu estou estudando. Aquelas coisas que eu estudei em Yung, as figuras, os arquétipos. Nossa! Você, eu vejo aquilo tudo andando na faculdade, sabe. Nos professores, nas instituições, nas leis. É muito legal descobrir as coisas em comum. Eu estou curtindo. Também estou desbravando mais uma coisa. Agora o duro é que são cinco anos. Com esse monte de criança, com tudo. Então é complicado.
P/1 – Você entrou quando, está em que ano?
R - Entrei o ano passado. Entrei, eu não fiz vestibular. Eu estava procurando essa questão se eu ia fazer pós, o que eu ia fazer, aí eu descobrir que ia ter um processo de seleção, que chama Seleção por suficiência, que fazia 10 anos que não tinha na PUC no Direito. Eles selecionam quem já tem grau universitário. E, naquele ano, abriu e eu estava ligando: “Ah, Carmem abriu”. Eu falei: “Ah, não acredito.” Eu fui e fiz uma prova escrita, depois eu passei por uma banca oral, análise curricular e eu fui aprovada. Eu fiquei feliz da vida (risos). Agora eu vou estagiar, fico vendo direito de família. Eu, de certa forma, eu sei que to engatinhando mesmo. Mas eu me sinto meio privilegiada em relação a esse aspecto humano, entendeu. Eu acho que isso vai me ajudar muito.
P/1 – No trabalho? Vai misturar psicologia com direito?
R – Se puder, eu acho que vai ser legal.
P/1 – E o seu marido? Como é que você conheceu o seu marido? Também foi aqui que você o conheceu?
R – Meu marido, eu sou mais velha que ele. Eu tenho seis ou sete anos a mais, não sei... Ele era amigo de uma das minhas sobrinhas. O fato de minhas irmãs serem mais velhas do que eu fez com que eu fosse tia muito nova. Tenho sobrinhos próximos de mim. Tem um que já é Juiz, tem 30 e poucos anos, tem uma que eu consegui arrastar também para a faculdade de direito, também está com 30, está fazendo também. Nós íamos juntos passear e conheci esse amigo dela na casa da minha irmã. Um amigo da minha sobrinha. Eu achava que me tratava muito bem porque eu era tia, mas não era. A tiazinha já estava na moda (risos). Só que aí a história rolou. Ele é italiano, está aqui no Brasil há uns 16, 17 anos. É uma junção super engraçada, da minha família não tem nada de sangue italiano, nunca tinha visto italiano, assim convivido, essas diferenças, diferenças culturais, dá muita confusão e tal. Mas, você viu. Ele está me dando a maior força com a faculdade, está achando ótimo que eu estou voltando a ativa. Porque os anos que eu fiquei em casa, eu sou assim, eu sou absolutamente apaixonada por criança, eu acho que eu teria 10 filhos se eu pudesse, curto, eu amo de paixão. É só colocar um bebê no meu colo amamentando e já estou em nirvana, eu curto muito. Mas, por outro lado, eu tenho essa sede assim de trabalho, de fazer, de realizar as coisas e ele começou a achar que eu também estava ficando meio doente dentro de casa. Na verdade, o ano passado, meu filhinho estava com dois anos quando eu fui fazer a faculdade, acho que eu fiquei mesmo uns três anos parada, digamos. Parada em termos. Porque eu nunca corri tanto na minha vida, bebê e tal, essa coisa toda. Mas eu acho que eu preciso dessa outra dimensão. Então eu tenho que dividir ao máximo. Eu faço a faculdade num horário que eles vão para a escola: de manhã, saem os dois meninos de lancheira, malinha, eu também, lancheira, malinha, vamos todos para a escola e volto. Só a minha filha que está num ritmo diferente, depois, agora, sei lá, acho que ela vai estudar comigo.
P/1 – As duas na faculdade.
R –
É. Ela está falando até em fazer direito. Se for, vai ser muito engraçado. Vai ser minha bichete (risos).
P/1 – Avaliando a sua trajetória de vida e tal, tem alguma coisa que você mudaria nela, enfim, alguma coisa que se acontecesse de novo você mexeria?
R – Não. Eu só quero poder fazer muita coisa. Sobre o que já passou eu acho que as coisas tinham que ser como foram mesmo. Coisa de lugar comum, mas, assim, as coisas que eu me arrependo são coisas que eu não fiz, que eu não falei. Mas, sei lá, eu espero que dê tempo, que eu tenha tempo de fazer muita coisa. Mesmo que eu não fizer, o que der tempo também já vai estar bom. Eu acho que tem muita coisa ainda pela frente, eu quero fazer ainda muita coisa.
P/1 – Quais são seus planos?
R – Eu me sinto muito viva. Ah, eu quero conseguir terminar a faculdade. De verdade, está sendo uma luta, porque eu espero todo mundo dormir para estudar, sabe, as crianças pegarem no sono, comida para o cachorro, meu marido sossegar, aí é que eu vou lá para os livros. Então não está sendo fácil, quer dizer, essa coisa meio de novela, não é. É complicado no dia a dia. Você tem uma criança com febre, eu já perdi prova, tem esse monte de coisa. Eu fui fazer prova com os dois porque fiquei parada num congestionamento, chegou na hora da prova, apareci lá na prova de Direito Constitucional com duas crianças, bota uma cadeirinha lá fora. Óbvio, na hora em que eu sentei deu um branco absoluto, eu não conseguia escrever nada. Assim, está sendo difícil. Mas eu quero muito terminar, eu quero conseguir exercer a profissão, quero estudar muito. Eu tenho vontade de fazer Direito Internacional, tenho vontade de fazer estágio no exterior e tenho vontade de fazer relações internacionais junto com o Direito. Eu tenho vontade de aprender outras línguas, eu queria viajar muito, ver como é que funcionam essas coisas nos outros países. Passear também, não quero só trabalhar não. Adoro passear, tem muito lugar que eu quero conhecer. Sabe, ver os meninos, minha filha crescendo, sabe, essa coisa de ver desabrochando é uma delícia. Eu tenho, se bem que hoje em dia, eu acho que é meio comum isso, eu tenho pedaços da minha vida, momentos, meus momentos do dia são muito diferentes. Então, na faculdade de manhã eu estou com a minha turma que tem 18, 19, nós saímos juntos, eu fui para a “pindura” com elas. Elas me convidam para as coisas, para o churrasco, tudo. Na hora da “pindura” fui eu que fui lá na frente falar. Fomos tentar dar “pindura” até no Fasano, fomos tentar dar a “pindura”. (risos) Então, assim, eu me divirto, acho uma delícia a companhia, não me sinto nessa de: “Ai, eu estou mais velha.” To trocando com elas adoidado. Só depois chego em casa, enfim, chega a minha parte mãe. Vou brincar de carrinho, vou dar comidinha, dar banho, as histórias. O de seis anos está aprendendo a escrever e a mais velha está namorando. Então, vê assim: “Ah, está virando mulher.” É gostoso ver a minha filha virando mulher, é um espetáculo, entendeu. Eu vivo muitas coisas diferentes, eu não tenho, graças a Deus, uma rotina chata, nem acho que a minha vida está parada. Eu só fico assim meia aflita, meio ansiosa, sei lá, se vai dar tempo de eu fazer tanta coisa assim, se eu vou ter fôlego para tanto coisa. Porque vontade eu tenho, bastante. Chega! (risos)
P/1 – Tem mais algumas coisas?
R – Tem alguém que fala tanto assim?
P/1 – Tem mais alguma que você queria comentar Carmem?
R – Olha... não sei. Eu acho que essa fase aqui, eu acho que a fase de Incor, a fase de hospital, eu fui privilegiada por poder ter essas experiências que eu tive. Porque eu me sinto assim, diante do grupo social, entre aspas, que eu faço parte, às vezes do condomínio, que eu vou à praia, eu não me sinto fora da realidade, o país da gente, entendeu. Nem do país, nem das pessoas, eu acredito assim que essa experiência que eu tive, desde o IML de ver morte, de ver tristeza, pobreza, drama, falta de tudo, do lado uma pessoa que tem tudo e... Eu dou Graças a Deus por poder ter tido essa dimensão humana e não ficar boiando, vivendo da minha fantasia guardada e fechada dentro do meu carro, com ar condicionado, entendeu? Sei lá, fazendo de conta que não está acontecendo nada disso do que está acontecendo da vida como é aqui. Eu me sinto, quando eu estou em roda, sabe essas coisas assim que você vai a restaurante conversar, ou você vai num cinema... Eu me sinto muito diferente, porque esse fato de eu ter podido transitar em realidades tão diferentes como eu pude, como eu espero poder ainda transitar bastante, eu acho que isso me enriquece muito. De coração, de contato com as coisas. Não fazer isso seria de uma pobreza pessoal muito grande, sabe? Eu fui muito privilegiada em todos os sentidos, eu me sinto privilegiada. Só isso.
P/1 – O que você achou de ter dado essa entrevista?
R – Foi ótimo. Foi muito importante, pois é difícil sentar e fazer um amarrado de tudo. Talvez tenha sido mais importante pra mim que falei do que para vocês que só ficaram aí ouvindo. Com certeza. É como se eu tivesse parado para fazer um amarrado da minha vida. Acho que tem a ver com a minha história passada, sei lá, desde pequenininha, com o Incor, com o meu pai, com o meu futuro, com essa profissão de agora e com a profissão de antes. É importante. Muito legal, fiz terapia milhares de anos... Foi fundamental. Foi uma coisa muito importante, mas, assim, esses momentos em que você dá essas paradas, ainda mais dentro desse ritmo todo, eu acho muito legal. Bom, eu agradeço demais, foi lindo, viu. (risos)
P/1 –Obrigado, Carmem.
R – Obrigada vocês por mais uma oportunidade.Recolher