Plano Anual de Atividades
Projeto Nestlé Ouvir o Outro – Compartilhando Valores. PRONAC128976
Depoimento de Lusilene dos Santos Farias
Entrevistada por Tereza Ruiz e Monique Lordelo
São Paulo, 11/03/2014
Realização Museu da Pessoa
NCV_HV05_Lusilene dos Santos Farias
Transcrito por Liliane Cust...Continuar leitura
Plano Anual de Atividades
Projeto Nestlé Ouvir o Outro – Compartilhando Valores. PRONAC128976
Depoimento de Lusilene dos Santos Farias
Entrevistada por Tereza Ruiz e Monique Lordelo
São Paulo, 11/03/2014
Realização Museu da Pessoa
NCV_HV05_Lusilene dos Santos Farias
Transcrito por Liliane Custódio
MW Transcrições
P/1 – Então primeiro, Lusilene, queria que você dissesse pra gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Tá. É Lusilene dos Santos Farias, eu nasci em Xique-Xique, Bahia, no dia dois de maio de 1985.
P/1 – Agora o nome completo dos seus pais e também o que eles faziam.
R – Minha mãe, pelo que ela conta... Ela se chama Lúcia Maria dos Santos Farias, e pelo que ela conta foi fato de trabalhou sempre na roça. Minha mãe não tem estudos, não sabe ler, nem escrever, apenas sabe assinar o próprio nome. E meu pai se chama Jarison Pereira dos Santos, e o ramo que ele leva desde que a gente veio pra São Paulo, há 25 anos, na verdade ele é ajudante em empresas que fazem entregas de bebidas. Então, ele carrega aquelas caixas de bebidas nas costas, mesmo sendo tão pequenininho, é essa função que ele sabe fazer.
P/1 – E como você descreveria seus pais? Como é sua mãe e como é seu pai?
R – Como é minha mãe? Minha mãe é aquela mãezona, que coloca todos os filhos, literalmente, somos em oito, então ela coloca todos embaixo das asas. E assim, convívio meu, meu mesmo, com mãe e pai, não tem aquela idolatria tão grande que eu acho que é o normal, que é o mais moderno, que é o hoje. Eu não tenho com os meus pais, mas como mãe, eu tenho totalmente essa diferença. Não sei se por serem pessoas tão sofridas, que vieram do norte, não têm aquela liberdade de conversa. Agora, adultos, temos uma convivência mais liberal, mais alegre, de abraços, de demonstração de sentimentos do que na infância.
P/1 – Você falou que vocês são oito irmãos. É isso?
R – Oito irmãos.
P/1 – Qual o nome dos seus irmãos?
R – Então, vem com “J” acredito que por conta do meu pai, que se chama Jarison. Então veio... Vou falar por ordem de nascimento. Então vem a Jacilene, depois veio Jariel, aí venho eu, era Lucilene, depois virou Lusilene, quando eu fui tirar meu documento, eles olharam o registro, que é feito à letra de mão, ou seja, não é datilografado, digitalizado, então eles entenderam que era “S” e discutiram comigo e colocaram “S” no documento. Então desde os 16 anos eu me chamo Lusilene. E depois de mim vem o Jaquiel, depois vem o Jesiel, o Jadiel, o Jackson e, por fim, o Jailson.
P/1 – E você lembra bem da casa onde vocês passaram a infância?
R – Na Bahia, como eu vim pra cá pra São Paulo com quatro anos de idade, então eu tenho poucas lembranças do quintal da minha avó. Eu lembro que era um terreno muito grande, tinha um poço. E me lembro da minha avó passando roupa com aqueles ferros à brasa. Isso lá na Bahia. Aqui em São Paulo, minha mãe veio por conta... Meu pai veio primeiro pra procurar emprego, minha mãe ficou com medo de ele não voltar, ela com seis filhos, ela ficou com medo de ele não voltar, resolveu... Na verdade, seis não, cinco filhos. Ela resolveu vir atrás dele por medo de ele deixá-la lá abandonada. Ela veio sem saber ler e escrever, com cinco filhos. Pediu ajuda e veio. E a gente morava num quarto superpequeno, que mais chovia fora do que dentro. Era um cortiço, na verdade. Lá fora tinha um tanque pra todo mundo lavar roupa. O mesmo tanque que lavava roupa, lavava louça, muito sofrido. E aqui em São Paulo, minha mãe ainda teve mais os três filhos, isso no início, então foi bem sofrido. Depois fomos pra onde a gente mora atualmente, até hoje, nesses anos todos. E aí minha tia cedeu um terreno, na verdade a gente tinha uma casa enorme. Como eu costumo falar, era um barraco-mansão. Era de madeira, não era de alvenaria, mas era enorme, então tinha um espaço supergrande. É isso que eu me lembro.
P/1 – Onde ficava essa?
R – Essa maior? Já lá onde a gente mora, onde atualmente é a casa da minha mãe, que aí se dividiu o terreno e aí são várias casas. Na verdade, no mesmo terreno são duas casas e constrói em cima, constrói embaixo. Mas antigamente não, era uma casa enorme com vários quartos. E ali tinha papagaio, tinha pato, uma vez meu pai trocou uma bicicleta por um cabrito (risos). E aí a gente tinha essa convivência com os animaizinhos pra lembrar um pouquinho lá do tempo acho que dele, que eles viviam na roça e convivem com os animais, então trazer um pouquinho disso pra cidade grande.
P/1 – E qual é o bairro?
R – A gente mora em Itaquera.
P/1 – Em Itaquera. E você lembra como era o bairro quando vocês se mudaram pra lá? Assim, como eram as ruas, como eram as outras casas?
R – Sim. Não eram... A maior parte era realmente barracos. Eram casas de madeiras, a rua não era asfaltada, não tinha a quantidade de prédios, comércios que existem hoje. Por ser próximo do estádio onde vai sediar a Copa, tudo tá totalmente diferenciado. Até nos últimos tempos, a evolução do bairro já sofreu uma mudança muito grande por conta disso, da Copa, enfim. Mas antes disso mesmo, conforme a cidade vai crescendo, tudo ao seu redor também, qualquer espaço vale ouro. Qualquer pedaço de terra vale ouro. Então, tudo foi se urbanizando muito mais. Não tem mais aquela quantidade de mato que tinha quando eu era criança, onde a gente falava que ia viver aventuras, realmente brincar ali no mato, fazer casinha na árvore, brincar de borboleta, pegar os galhos da árvore. Isso não existe mais. Para as crianças de hoje, infelizmente, é uma cidade de concreto onde a gente mora.
P/1 – Quais eram as brincadeiras de infância?
R – De infância? Muitas. Que hoje, inclusive, não se brincam mais. Então era brincadeira de roda, brincadeira de casinha mesmo, aquela coisa de menina, de fazer bolinho de lama, de fazer concurso de beleza. E as brincadeiras com os amigos mesmo, de se interagir, de fazer um jogo onde vai ter equipes, onde vai se dividir. Não aquela questão de menino não brinca com menina. Era tudo muito ingênuo, era realmente aproveitar a infância. Era esse tipo de brincadeira. Mais brincadeiras em grupo do que brincadeiras individuais, onde os meninos brincam com os meninos e as meninas com as meninas. Eram essas brincadeiras em grupo que eram muito bacanas. Então tinha não só o esconde-esconde, a gente tinha o pega-pega, e a gente queria fazer o esconde-esconde com o último salva todos, que aquele se escondia pra brincadeira não terminar, pra demorar mais tempo pra gente brincar. Tinha essa liberdade maior e essa segurança maior, que hoje em dia a gente não tem mais, de deixar o filho brincando na porta de casa e ter a certeza de que não vai acontecer nada com ele. Isso, infelizmente, eles não tiveram essa oportunidade de aproveitar o que a gente lá atrás teve, que é aproveitar a fase de ser criança. O bom de ser criança é ser criança, é brincar.
P/1 – E você se lembra de alguma história marcantes dessa fase? Assim, uma coisa que você cresceu contando pra outras pessoas, pra amigos, uma história de brincadeira de infância?
R – De brincadeira? Foram muitas, porque eram muitas cantigas de roda, muita coisa. Às vezes eu até conto pra minha filha como era o “brincar” de antigamente. Não era essa coisa de tecnologia, de um tem o computador, o outro tem o tablet, o outro tem o celular. Não tinha isso. E nem boneca às vezes a gente tinha. Então eu falo pra ela: “A minha infância foi tão ‘pobrinha’, tão ‘pobrinha’”. Eu falo: “Tem que aproveitar o que vocês têm hoje. E não só o que tem, tem que usar a imaginação”. Que o bom de ser criança é você imaginar, você ter a liberdade de criar coisas que no mundo adulto a gente sabe que não dá pra criar, não dá pra tirar lá do fundo do baú e colocar na realidade. Como a criança tem, ela tinha uma coisa da imaginação e pode colocar no seu mundo real e fazer parte dele. Então, a gente usava objetos pra fazer as brincadeiras. Então essa coisa de realmente aproveitar o que tem.
P/1 – Você falou que vocês usavam objetos pra fazer brincadeiras. Você lembra assim de criar brinquedos, de improvisar?
R – Sim. De criar brinquedos, então fantoche com meia, a gente fazia a comidinha, a gente fazia às vezes com plantas e às vezes com comidinha de verdade, então uma pegava um pouquinho do feijão, a outra um pouquinho do arroz, fazia aquela fogueirinha de lenha e ali a gente brincava de cozinhar, na verdade. Brincava de cozinhar. Então, ajudava a vizinha a plantar, depois ia colher e depois assar o milho na fogueira. Então, isso é legal. Pegar uma blusa de frio, fazer uma dobradura na qual parecia um bebê. Eu, pelo menos, quando eu via brinquedo na garagem das pessoas, por ser tão pobre, eu achava que as pessoas não queriam aqueles brinquedos, pra mim estavam realmente jogados no lixo. E pra brincar, um irmão achava a cabeça do boneco, o outro achava o corpinho, então a gente montava pra dizer que tinha uma boneca. Mas quando não tinha, isso não era motivo pra não se divertir, pra não realmente brincar. Então, o que era gostoso mesmo era essa coisa de não ter vergonha, então saía desfilando na rua, eu era a mais palhaça da rua, então fazia teatro pra todo mundo, inventava, improvisava na hora o teatro, não importa se ia na padaria, se ia dar volta no quarteirão e todo mundo ia ver. Então, essa inocência mesmo de ser criança e não ter medo do que está a sua volta. Mostrar o que você gosta de fazer ou de repente o que você gostaria de ser, encarar um personagem fictício, mas não vai fazer mal pra você. Que hoje em dia não tem, as crianças não têm mais a necessidade de usar a criatividade, é tanta tecnologia que já tá tudo pronto, infelizmente.
P/1 – E as refeições na sua casa? Assim, nessa fase de infância, você se lembra?
R – Nessa fase de infância? Muito difícil. Por serem oito filhos, meu pai sempre trabalhou sozinho, então às vezes eu e minha irmã mais velha tínhamos que colaborar de alguma forma. Não que nos obrigava, mas a gente que o vizinho ia, a gente falava: “Não custa nada ir também”. Então, a gente já chegou bater de porta em porta pra pedir um quilo de alimento, a gente já chegou a ir pra feira, esperar realmente a feira acabar pra aproveitar aquilo. E por incrível que pareça, eu e minha irmã, como mais... Não como mais sofridas, mas como alguém que já ali na infância já se preocupava em ajudar a colocar algo na mesa, somos aquelas que a vida nos retribuiu acho que uma forma generosa. Então, se tiver que apoiar, tiver que estender a mão pra um apoio moral, financeiro, seja qual for, somos as que temos mais estrutura. Então, as refeições eram mais difíceis. Minha mãe por não saber ler, nem escrever, então não tinha essa coisa de pegar uma receita, de saber o que é mais saudável, o que não é, o que vai render, o que não vai render. A gente comia o que tinha. Nunca faltou, nunca passei fome, mas a necessidade de ver realmente um prato diferenciado, uma mesa farta na casa do vizinho e na minha não, isso sim.
P/1 – E qual era a base da alimentação?
R – O básico: o feijão, o arroz, que nunca faltavam, mas não tinha a necessidade de ter a importância de ter um legume, uma fruta, de realmente ter isso. Tanto que até hoje tem irmãos meus que comem certas coisas e outros não, porque conforme os anos foram se passando, uns tiveram mais fartura do que os outros. Então, tinha época que não tinha realmente o que comer, minha mãe inventava um bolinho que às vezes eu também faço. Então, ela misturava a farinha... Isso sem medida, porque ela não sabe ler e escrever, então ela colocava a farinha de trigo, o leite e o açúcar, mexia aquilo ali e colocava pra fritar. E ali fazia um bolinho. E até hoje eu faço em casa. Quando eu vou a minha mãe, às vezes tem um irmão que fez também do lado, porque a gente não esquece isso, porque era uma maneira que ela inventou pra gente não ter que passar, vamos supor, o café da manhã sem colocar nada no estômago, ou não comer todo dia especificamente a mesma coisa, que era o que tinha. Então, isso é o que marca, porque ela sempre dava um jeito de fazer alguma coisa, sabendo ler ou não, pra não deixar faltar ou não deixar a gente com vontade de alguma coisa.
P/1 – E escola? Com que idade você começa a frequentar a escola?
R – Escola? Como eu sempre fui a menor da turma de acordo com a idade, a minha mãe não quis me colocar na escola porque achava que eu era muito pequena. Então ela falava: “Eu não vou colocar a minha filha misturada com esse monte de gente grande”. E acabei não entrando na escola com sete anos de idade. Quando completei oito anos de idade, não achamos vaga, eu entrei na escola com nove anos de idade. Mas eu recuperei o tempo perdido, porque todos que entraram a minha frente repetiram de ano. Eu sempre fui uma pessoa que eu nunca tirei nota vermelha, cheguei fases a não faltar na escola por anos seguidos, mas porque eu queria, não porque eu tinha algum motivo a mais, falar: “Não, minha mãe não me manda, meu pai...”. Ou: “Eu quero ser diferente”. Era um instinto meu. E hoje eu cobro muito da minha filha isso. Você tem que ter a vontade de estudar, não adianta eu mandar ou questionar. Então, eu fui por força de vontade.
P/1 – E você lembra assim, como foi a experiência, a primeira vez ou o primeiro ano na escola, como era a escola, como você se sentia?
R – Não, essa experiência não. A única coisa que eu lembro é que por muito tempo a gente ficou com o mesmo grupinho, então passava de ano e era mais ou menos aquele mesmo grupo que até hoje me lembro. Se eu for procurar nas redes sociais, eu consigo me lembrar do rosto, do nome, dessas pessoas lá do início da escola.
P/1 – Teve algum professor marcante?
R – Sim. Teve uma professora de Português, inclusive ela deu aula pra minha filha, eu fiquei superemocionada quando eu vi ela. Eu falei: “Nossa, ela deu aula pra mim e agora tá dando aula pra minha filha”. Foi uma professora, na verdade, de primeira a quarta série. Eu lembro que teve um ano que ela se casou e a gente deu lembrancinhas pra ela. Depois eu fui tentar puxar isso da mente da professora pra ver se ela lembrava e tudo, e ela se lembrou. E realmente, toda vez que eu ia na reunião, ficava aquele bate-papo de amiga. E essa foi a professora mais marcante.
P/1 – E por que ela foi marcante?
R – Pela delicadeza. Não só realmente... Professor é uma das profissões realmente que precisa ser privilegiada, mas nem todos estão ali por amor. Ou estão por amor, mas estão saturados por outras questões que lhes faltam e acabam, enfim, influenciando. Mas essa professora, especificamente, pela dedicação que ela tinha com os alunos. E também outra de Português, que aí já foi na base da quinta, sexta série, que me fez gostar muito de escrever, principalmente de escrever. Ler, a gente tem que ler, mas não é algo que eu adore fazer. Mas escrever, um alguém que me fez pensar em fazer faculdade de Jornalismo um dia, ou algo do tipo. Pelo menos ficar por trás dos bastidores pra poder escrever os textos e fazer essas coisas assim. Até hoje eu gosto muito de escrever.
P/1 – A escola que você fez o primário, você lembra o nome, não?
R – Então, teve uma fase que mudou um pouquinho as escolas. Antes era de primeira até o terceiro colegial, depois isso alterou. Então, eu estudei a primeira e a segunda série, né, o primeiro e o segundo ano, na escola que é EE, que agora é EE Fadlo Haidar. Que agora ela só faz atendimento de quinto até o último ano, não atende mais o primário. E depois eu estudei a segunda e a terceira série em outra escola, que foi essa onde minha filha estudou com a mesma professora que eu, que foi o Anísio Teixeira. Depois voltamos pra essa outra escola, Fadlo Haidar, pra terminar os estudos, onde eu não terminei ali. Eu estudei ali da quinta à metade do primeiro colegial, onde eu engravidei, tive a minha filha. Como não queriam me dar a vaga pra noite, eu precisava dessa vaga à noite porque era melhor pra administrar os estudos, pra não ter que parar, eu tive que terminar em outra escola.
P/1 – Elas eram perto da sua casa essas duas escolas?
R – Próximas.
P/1 – Próximas? E você ia e voltava da escola como?
R – A pé mesmo. A pé.
P/1 – Bem perto.
R – Bem perto. Essa pelo menos... Essa última escola onde eu tive que terminar os estudos, foi quando eu entrei no projeto do Programa Nutrir, e eu trabalhava e estudava.
P/1 – Quantos anos você tinha nesse momento?
R – Acho que em torno de uns 20 anos.
P/1 – E a alimentação na escola? Você lembra assim da merenda escolar?
P/1 – Eu lembro. Eu me lembro dessa escola de primeira à quarta série. Quarta série, onde eu fiz a terceira e a quarta série, que tinha um arroz supercolorido, com legumes, uma carne moída também com legumes, às vezes vinha com legumes, mas sempre pratos coloridos, nessa escola. Na outra já era uma coisa mais artificial. Não sei se por ser quinta série, começaram a ser coisas mais práticas, então bolacha... Porque adolescente até hoje não... É totalmente diferente do cardápio de hoje. Minha filha diz que tem lasanha, que tem panqueca, que tem macarrão com molhos diferenciados. E eles ainda assim sentem vergonha de não sentar ali com os amigos e compartilhar. Era bem diversificado. E a maioria das crianças antigamente realmente sentava na escola e comia sem vergonha, sem pudor, o que hoje, pelo que eu percebo, não é tão assim.
P/1 – E você se lembra de gostar da merenda escolar assim, de ter um prato preferido?
R – Sim. Principalmente esse arroz com legumes dessa escola. Essa escola tinha a... As alimentações pareciam mais caseiras, mais da mãe, não era aquela coisa mais enlatada, mais industrializada, que acaba tendo pela facilidade. E mais essa escola só.
P/1 – E aí quando você... Bom, termina o primário, daí vai pra... Entra nessa fase mais de adolescência, né? Fora a escola, o que você fazia pra se divertir? Assim, com os amigos?
R – Essas brincadeiras de rua. Eu sempre gostei de fazer as pessoas sorrirem, até um certo ponto, porque depois tive que criar uma maturidade e aí meu marido começou a me cobrar mais seriedade. Apesar de as pessoas me conhecerem pelo jeito espontâneo, pelo jeito alegre de fazer as pessoas realmente sorrirem. E aí a gente brincava dessa forma, tinha um local lá onde a gente mora, que é a brinquedoteca, que existe até hoje, mais de 20 anos, que é um espaço onde tem brinquedos, onde a gente tinha liberdade de criar brincadeiras e compartilhar com todos os amigos. Brincadeiras de criança, de infância mesmo. Aquelas brincadeiras de você pegar folha e realmente sair desenhando, fazer um desenho igual pra todo mundo e todo mundo pintar, ou então brincadeiras de rua mesmo, onde todo mundo poderia participar.
P/1 – Como você formou essa brinquedoteca?
R – Essa brinquedoteca na verdade foi um projeto da Adriana Teixeira. Tudo começou com um ônibus. Era um ônibus que chamava Ludicidade, e em vez de bancos, tinham brinquedos. E aí eles começaram a ir pra lá onde a gente morava, e o ônibus na verdade tinha que ir embora e a gente não queria perder. Porque como morávamos em lugar, ou seja, cheio de barracos, rio do lado, córrego, muito sujo, não tinha muita opção pra brincar. A gente tinha o mato, brincava no mato, brincadeira de subir na árvore, descer, casinha na árvore, essas coisas. Mas brincadeira mesmo de interagir, algo que possa além de você brincar, aprender com a brincadeira, veio com isso. Aí a vizinha cedeu o terreno e a gente foi conseguindo doações, aí toda a galera da comunidade ajudou a construir um espaço, depois vinha a educadora. Depois o projeto todo foi, ou seja, se desligando e ficou nas mãos da comunidade, como é até hoje.
P/1 – Tem um nome a brinquedoteca?
R – Tem a comunidade. É conhecida como a Comunidade A Casa das Crianças, ou Comunidade Raul Seixas, porque tem um parque lá do lado que se chama Raul Seixas. Realmente tudo começou todo mundo pequenininho, então há mais de 20 anos.
P/1 – Nessa fase de juventude assim, sair pra dançar, esse tipo de coisa você fazia? Ou então festinha em casa de amigos, ou festa própria comunidade?
R – Não. Na comunidade tinham muitas festas, então sempre Dia das Crianças tinha que ser lembrado de alguma forma, celebrar essa importância de ser criança, de que a criança precisa ter essa valorização de brincar, de não ter só obrigações. E brincadeiras saudáveis, não procurar brincadeiras na avenida. Porque antes da brinquedoteca, não tinha opção e nem a criatividade de pensar em brincadeiras. Todo mundo mais ou menos com o mesmo patamar de sociedade, então a mesma condição financeira de um era do outro, não tinha aquele que tinha mais, o que tinha menos, então não tinha nem onde buscar.
P/1 – E essas festas eram que tipo de festas?
R – Então, tinha Dia das Mães, que sempre comemoravam, então às vezes as mães, cada uma fazia um prato e montava aquela enorme na rua. Ou às vezes a gente foi pegando parceria, a padaria doava o bolo, outro doava o refrigerante. E a gente sempre comemorou, até em fim de ano mesmo, montar a mesa na rua e cear todo mundo ali na rua. Chegou assim. Agora, festa, balada, não. Eu fui poucas vezes, porque quando eu fui despertar para o adolescente, eu já tava com 15 anos. Então enquanto algumas amigas eram mães aos 12, 13 anos de idade, a minha mente, por ser infantilizada, não sei, preferia brincar com as meninas menores, mais novas que eu, porque tinha o pensamento como o meu, de brincar. E aí eu brinquei até os 15 anos. Parei de brincar quando realmente despertei aquela coisa do apaixonar, pelo meu marido, que era amigo de infância, sentava perto dele pra ver defeitos. Todas queriam ele, menos eu. E aí quando eu comecei a despertar isso. E aos 16 anos eu engravidei e uma semana de eu completar 17, eu virei mãe. Então, eu falo que eu não tive adolescência.
P/1 – Você pulou, né?
R – Pulei essa fase. Pulei.
P/1 – Conta pra gente como você se apaixonou pelo seu marido. Você o conhece desde a infância, é isso?
R – Isso. Desde a infância. E na verdade eu não tinha percebido que eu gostava dele. Nem eu tinha percebido. E as amigas, todas namoravam. Os meninos olhavam pra mim e falavam: “Você não beija ninguém?”. E eu chorava.
P/2 – (risos).
R – Que eu quero brincar, não quero saber de namorar, eu quero brincar. E eu brincava e as meninas... Eu já sabia que ele tinha um interesse por mim, mas eu não queria namorar, eu queria brincar. Eu não quero saber o que é namorar. As amigas já todas mais com a mente mais evoluídas, pela idade, o corpo mais evoluído. E eu sentava perto dele, conversava e conversava, mas... De repente, uma amiga veio e falou: “Você tá gostando dele”. Eu falei: “Eu não tô” “Tá”. Eu falei: “Não” “Você fala muito dele. Você não percebeu, mas você fala muito dele. Você tem alguma admiração. Você gosta dele”. E aí a gente foi pra um passeio, pela primeira vez um passeio pra praia, onde a comunidade, a maioria não conhecia o mar, então foi algo inesquecível, muita gente vendo o mar pela primeira vez. E ali no ônibus mesmo eu já fui do lado dele, falei: “Cuida de mim para o pessoal não pintar meu rosto, não fazer sacanagem”. E depois que voltou do passeio, hoje o melhor amigo dele, hoje é o melhor amigo dele, na época fez uma fofoquinha e eu fiquei brava. E aí eu briguei com ele na frente de todo mundo. A gente tinha costume de fazer fogueira à noite e ficar em volta da fogueira, e aí eu briguei com ele e fui pra casa. Depois minha mãe falou: “Olha, tem um rapaz aí na porta te chamando”. Quando eu fui ver, era ele. E aí ele foi conversando comigo e as lágrimas caindo. E ele chorou lá na frente de todo mundo também falando que ele não falou aquilo. E eu toda bobinha, inocente. Depois eu fiquei com vergonha de ter feito ele me pedir desculpa. E ali eu percebi que ele não ia fazer aquilo comigo, que era mentira, era uma fofoca. Aí, eu fiquei com vergonha de falar com ele, ele achou que eu não aceitei as desculpas dele, aí a gente ficou um tempo sem se falar. Aí, teve um passeio na Nestlé, onde foi o dia do aniversário dele. E só sabíamos eu, uma tia da comunidade e uma amiga. Ela falou: “Olha, faz uma cartinha, pede desculpa”. Eu escrevi a cartinha, aí a amiga colocou no fim: “Ah, pede um beijo e um abraço”. Mas pra mim, ele era meu amigo, eu coloquei. “Se você aceitar, eu quero um beijo e um abraço.” E no dia do passeio, a gente foi ao passeio e eu não consegui falar com ele. Na hora de ir embora, ou seja, adolescente quer sentar no fundão. Todo mundo jogando a bolsa pela janela e joga e joga. Por incrível que pareça, só duas pessoas sabiam além de mim, parece que todo mundo combinou e falou: “Deixa o lugar reservado pra ela”. Sobrou um lugar do lado dele. Do lado dele. Eu sentei pra conversar e uma amiga minha sentou no meio, aí não consegui falar. Depois eu falei: “Ah, não vou entregar a carta sozinha. Ah, eu não vou”. As amigas foram, entregaram o presente, eu falei: “Ah, não, vocês já foram na frente, eu não vou”. A gente comprou um pirulito, embrulhou, embrulhou, embrulhou, embrulhou, e aí aquela coisa de desembrulhar, desembrulhar pra ver o que era o presente, eu aproveitei e entreguei a cartinha. Aí, ficou uma plateia de fundo e ele lendo a carta. Eu já: “Mas esse beijo e abraço é de amigo, se você me desrespeitar, você vai ver”. Ele me abraçou e o pessoal deu a entender que ele tinha me dado um beijinho. Todo mundo começou a gritar e pular e festejar, porque eu era a última ali da turma que não tinha namorado ainda, não tinha beijado ninguém. E aí eu saí falando: “Não beijou. Não beijou. Não beijou. Foi só no rosto, não beijou”. Brava, porque eu achei que ele tava me difamando daquele jeito. “Fala a verdade. Não beijou.” Depois começou a conversar e aí uma amiga minha conversando, estavam ela e o namorado na época, aí eu joguei uma indireta pra ela, falei: “Olha, eu gosto de pessoa com atitude, não fica falando”. E fui embora. Depois cheguei a casa, todo mundo dormindo, falei: “Ah, vou sair de novo”. E ele tava vindo ao meu encontro. Ele falou: “Eu ia lá a sua casa, porque você falou que gosta de pessoa com atitude”. E pegou e me beijou. Depois a vergonha de olhar para os vizinhos, todo mundo conhecido, de falar: “Ah, tá namorando. Tá namorando”. E aí foi onde tudo começou, há quase 14 anos.
P/1 – Isso você tava com quê? Quinze anos?
R – Quinze anos.
P/1 – Quinze anos. Pra onde foi esse passeio da Nestlé?
R – Acho que foi na sede. Foi um passeio na sede. Que eu lembro que a galera se abraçou assim, aí foi tirada uma fotografia de baixo pra cima assim com a galera abraçada. Foi na Nestlé.
P/1 – E como vocês fizeram esse passeio? Qual era a relação da Nestlé com a comunidade?
R – Esse passeio, especificamente, eu não lembro se foi o passeio onde a gente conheceu... Acho que não foi onde a gente conheceu, porque foi acho que a maioria os adolescentes, não foram os pequenininhos ou a turma toda da comunidade. Exatamente o que a gente foi fazer na Nestlé, eu não lembro.
P/1 – Lembra-se do passeio só?
R – Eu só me lembro do passeio.
P/1 – E esse da praia, eu fiquei curiosa, pra quê praia vocês foram? E fala pra mim assim, foi a primeira vez que vocês foram?
R – Foi a primeira vez. A gente foi pra Mogi-Bertioga e era uma casa acho que de uns padres e tinham vários quartos. E cada família acabou ficou acomodada num quarto pra colocar bolsa. Foi um bate e volta mesmo, mas foi aquela diversão. Ida e volta. Foi realmente inesquecível, porque muita gente não conhecia o mar. A minha mãe não conhecia o mar. Então, foi aquela alegria de ver todo mundo com aquela reação ao mesmo tempo vendo o mar pela primeira vez, uns pulando, outros admirados com aquela dimensão de água. Foi muito mágico.
P/1 – Sua mãe tava junto?
R – Tava.
P/1 – Você se lembra da reação dela?
R – A reação dela foi de pular. Ela pulou mais do que as crianças. Assim, na beirada, o final da onda. E ela pulava de alegria, pulava de alegria, imaginando aquela quantidade de água e: “Olha, a água vem até aqui e volta”. Acho que admirada com tudo. Admirada.
P/1 – E você, a sua sensação, você lembra assim?
R – Ah, a minha reação é aquela coisa de... Até hoje quando eu olho o mar é realmente a prova real, aquela coisa que os olhos veem, é uma prova de que Deus existe. Toda vez que eu olho o mar, eu tenho essa sensação de: “Olha como Deus é maravilhoso. Olha o que ele deixou. Olha que natureza perfeita, linda. Ordenou, a água vem até onde Deus ordena e ela volta, ela não passa dali”. A reação foi de euforia, adolescência, de todo mundo entrar na água, entrar na água e pular, e abraçar. Aquela alegria.
P/1 – Vamos falar então um pouquinho do namoro com o seu marido. Qual o nome dele?
R – O nome dele é Ubanis.
P/1 – Ubanis. Daí vocês namoraram durante quanto tempo?
R – Assim, eu costumo falar pra ele: “Não sei como não dava câimbra na língua”. Porque a gente namorava e via o sol nascer. Então, a gente começou a namorar lá próximo onde eu morava. Inclusive, tem uma situação que meu pai uma vez muito bravo... Meu pai, ele bebe, e quando ele tá bêbado, ele ri, ele dança, desce na boquinha da garrafa se for necessário. Ele vira o cantor, o que for. Mas são, o meu pai é um homem muito sério, de poucas palavras. E uma vez ele saiu e estávamos eu e ele conversando frente a frente, e meu pai virou e falou: “Vai lavar a louça agora. Vai lavar os ‘trem’”. Que na Bahia: “Vai lavar os ‘trem’”. E aí queria correr atrás de mim pra puxar meus cabelos e eu correndo do meu pai. E ele falou: “Não bate nela, não. O senhor não bate nela, não”. Até ele pedir em namoro mesmo, assim, demorou. A gente começou em outubro, aí quando foi Páscoa, eu comprei um ovo, aí meu pai falou: “Quem é? De quem é?”. Eu falei: “O dono vem buscar. Ah, o dono vem buscar”. E tinha um banquinho na frente de casa feito de madeira, eu falei: “O dono tá lá fora”. Meu pai sentou do lado dele, falou: “Uma vez eu tava lá fora, o rapaz brigando comigo por causa dela”. Ele de cabeça baixa, tipo: “É? Ainda bem que ele não lembrou que fui eu”.
P/1 – (risos).
R – (risos) E aí não teve um “oficializar”, aquela coisa de oficializar, de pedir em namoro. Foi aí que começou.
P/1 – Como era o namoro de vocês? O que vocês faziam juntos?
R – Só beijava mesmo. Não tinha passeio, porque não tinha liberdade de pegar um ônibus. Ele tinha horário pra entrar, então dava oito e meia da noite, ou eram dez horas da noite, a mãe dele o gritava na rua, ele tinha que entrar, porque no dia seguinte tinha escola. Então, era realmente de ficar ali na rua namorando, aí às vezes um casal namorava do lado também. Aí, eu comecei a namorar próximo de casa, no fundo da rua, até eu chegar à porta da casa dele pra namorar assim. Era mais isso. A gente ficava só os dois, conversando. E realmente começou... Tudo começou com a amizade, com essa troca de cartinha, que eu tenho a cópia dessa carta até hoje. E com muita declaração. Ele escrevia caderno com frase, eu escrevia caderno com frase, sempre teve muita demonstração de carinho, demonstração de amor, de dar presente. Uma vez eu viajei, ele me esperou com um ursinho, eu tenho esse ursinho até hoje, uma gatinha, que ela mia até hoje, ou seja, quase 14 anos. E tá lá. A gente preserva isso de demonstrar e eu também demonstro pra minha filha. Que é importante a gente demonstrar o que eu não tive. Não tive essa coisa de ficar abraçando, beijando minha mãe. Até hoje não tenho, não consigo. Eu tenho mais intimidade com o meu pai, depois que eu virei mãe, do que com a minha mãe. Essa liberdade maior com o meu pai do que com a minha mãe.
P/1 – Sua mãe é mais fechada?
R – Não. Meu pai é mais fechado, meu pai é mais sério.
P/1 – É que não tem costume mesmo, foi isso?
R – Não sei, não tem costume. Quando eu engravidei, eu me senti um pouco rejeitada. Rejeitada no sentido de me sentir um ser humano não tão importante na vida dos meus pais, por isso que não tenha essa... Talvez seja esse o motivo de eu não ter essa idolatria de falar: “É a minha mãe. Eu mato, eu morro, é a minha mãe”.
P/1 – Eu queria te perguntar isso, como foi a gravidez. Só antes te fazer uma pergunta, nessa fase que você tá me contando assim da adolescência, você só estudava ou já trabalhava?
R – Não, eu só estudava.
P/1 – Só estudava.
R – Só estudava.
P/1 – Então me conta como foi. Como veio a gravidez...
R – A gravidez veio... Realmente, assim, é bom ser criança, é bom não ter essa malícia do mundo no sentido de... Malícia no sentido de fazer as coisas com outros sentidos, com pensamentos já mais negativo ou destrutivo. Então, eu era realmente mais infantilizada. É bom ser inocente. O bom da criança é ser inocente, mas, infelizmente, a inocência demais, ela acaba causando curiosidade demais. Então, acabei engravidando... Claro, eu sabia do ato que eu estava fazendo, qual era o ato, mas ao mesmo tempo, não tive explicação nenhuma em casa. Por ter uma irmã mais velha que já namorava, já tomava anticoncepcional, não tive explicação nenhuma. Das amigas, a explicação que tinha era muito realista. Então, pra mim que tinha um pensamento de criança, você vir falar de algo tão realista, que chegava assustar, é a mesma coisa de eu pegar uma criança que gosta de brincar de boneca e realmente falar o sexo da forma que ele é explícito, eu vou assustar aquela criança de alguma forma. Então, pra mim era daquela maneira que eu ouvia como as amigas contavam. Era algo muito grosseiro, então eu preferia não ouvir. Acabei não aprendendo nada. O que eu aprendi foi com a vida, então pela curiosidade. Por que ele fica assim e eu não? O que será que ele tá sentindo que eu não sinto? Então, eu deixava avançar um pouquinho mais pra ver se eu ia sentir o que ele tava sentindo. A primeira transa, os dois usaram camisinha, porque os dois virgens. Na segunda, resolvemos não usar porque achamos que ele não perdeu a virgindade. Foi quando eu engravidei. Acabou. Ou seja, não foi porque tava bom, porque já sabia realmente que era maravilhoso. A segunda transa você tá travado, você tá com medo, você tá com receio, você tá envergonhado, você não sabe se é bom, se não é. Sabe que você tá fazendo o ato em si, mas que experiência eu tô tirando disso? É legal? Não é? Então é como eu costumo falar, foi a inexperiência. Eu engravidei pela inexperiência. E aí eu esperei dois meses pra ter certeza que eu tava grávida. Quando eu tava com o exame na mão, sempre muito magrinha, a barriga muito retinha, aí eu fui mostrar pra minha irmã. Ela falou: “Para de ficar se difamando. Isso é mentira”. Tá bom. Fui contar pra minha sogra. “Esse papel é falso. Onde que essa menina... Imagina, gente, ela é uma criança.” Porque todo mundo me via como aquela menina doce, meiguinha, toda tímida, envergonhada, que mal olhava no rosto das pessoas.
P/1 – Não acreditaram.
R – Ninguém acreditou. Quando fui contar pra minha mãe... Meu pai tinha muito ciúme da minha irmã, minha irmã é bem mais velha que eu, acho que uns seis, sete anos mais velha. Aí, eu falei: “Bom, e agora?”. Eu na janela de casa, era um barraco ainda, eu falei para o meu marido: “Vai você”. Ele falou: “Vai você”. Eu falei: “Vai você”. Ele: “Sua mãe tá com a faca na mão, tá com a peixeira cortando frango. E o povo da Bahia com a peixeira, o povo mata. O povo mata”. Minha irmã entrou e falou: “Mãe, vem cá, senta aqui”. Sentou minha mãe, eu já comecei a chorar. Ela falou assim: “A senhora vai ser avó”. Ela olhou pra irmã, falou: “Jacilene!”. Porque minha irmã já namorava. Ela falou: “Não, minha filha, a sua filhinha aqui, olha”. E eu comecei a chorar, chorar, porque eu imaginei a reação do meu pai. Mas a minha mãe chorava, na realidade, não porque ela... A primeira reação da minha mãe foi: “Mas como ela tá grávida?”. Como se fosse assim “ela é uma criança”. Porque o pensamento da minha mãe era: ela age como criança, ela tem o corpo de criança. Acho que nem minha mãe percebeu que eu já tava com os meus 16 anos. E como uma moça de 16 anos não virou mulher ainda? Não conversava, não tinha diálogo. Minha irmã sabia porque a gente dormia no mesmo quarto. Então, não tive explicação nenhuma. E aí minha sogra viúva, tem um filho mais velho, sentaram minha sogra, meu cunhado, eu, meu marido, minha mãe, meu pai e minha irmã. E do mesmo jeito que meu pai entrou, ele saiu, calado. Então, assim, eu não levei bronca, eu não levei conselho, absolutamente nada. É como se aquilo não tivesse feito efeito nenhum na vida deles. A minha mãe chorava não por ter uma adolescente grávida: “Ô meu Deus, minha filha engravidou e eu não tive tempo nem de conversar”. Ela chorava com medo da reação do meu pai. Por ser uma doméstica, por ser aquela mulher do interior que realmente deve respeito ao marido independente da situação, ela tem que atender ao marido. Então, pelo fato de ele trabalhar, a obrigação dela era cuidar dos filhos, “e como você não cuidou?”. Acho que a reação, o medo dela foi esse. Então, eu me senti rejeitada nesse sentido de... É como se fosse um trapo que você pegasse e falasse: “Ah, pode levar, não vai fazer falta”. E aí eu comecei a conviver mais na casa da minha sogra. Então, ia pra escola com ele, de mão dada, tudo, ia pra escola. E quando eu voltava da escola, já ficava na casa da minha sogra, na mesma rua. Eu não lembro exatamente quando foi que eu levei as minhas coisas pra lá, passei a dormir lá. Eu não lembro exatamente desse momento, mas eu já devia estar em torno do quinto mês de gestação. E aí então quem me levou pra ter filho foi minha sogra, quem cuidou de mim e ajudava a cuidar da minha filha era minha sogra. Tanto que quando minha filha chorava, ela pegava dos meus braços e eu ia atrás igual a uma bobinha: “Mas me dá, que é meu. Eu tenho que olhar, eu tenho que ver o que ela tá sentindo, não você”. Mas pra ela é uma criança cuidando de outra criança, não tem condições. Daí foi meu apoio, foi meu chão. Foi a minha sogra, a minha estrutura. Assim, eu lavava a louça com muita raiva porque minha irmã me obrigava, não porque minha mãe me ensinou. Então, se eu sou o que eu sou hoje, se eu sou mãe, mulher, se eu sei lavar, passar, cozinhar, não foi minha mãe que me ensinou, foi a vida, foi minha sogra. Então, se eu fui trabalhar um dia, se eu estudava e trabalhava, não foi por motivação de ninguém, foi porque eu quis conhecer o mundo, eu quis conhecer outras pessoas, outros espaços, não porque eu tinha alguém ali espelho pra falar: “Não, eu vou seguir ou eu vou ser melhor que alguém”. Eu não tive.
P/1 – E como foi essa gravidez?
R – No começo... Depois vem aquela fase de parece que a ficha não caiu, as pessoas me olhavam na rua... Assim, se até hoje, com quase 29 anos, as pessoas me olham e não falam: “Imagina que você tem tudo isso”. Imagina há 12 anos. Eu tinha o rosto muito mais de criança, então as pessoas me olhavam na rua como se eu fosse uma extraterrestre. E aí eu chegava a reclamar: “O que é? Tá olhando o quê? Tem menina de 12, 13, que tá aí, nem marido tem, nem alguém tem pra se responsabilizar junto pelo problema”. A minha sogra já falou para o meu marido: “Comeu a carne, vai roer o osso até o fim. Você não trabalha, mas a partir de agora você vai arrumar um trabalho pra sustentar sua família”. E foi o que aconteceu. Hoje ela não é mais viva, mas, enfim, deixou um homem honesto, íntegro, pai de família, que conquistou o que tem com o seu suor e me fez a mulher que eu sou hoje. Se eu sei lavar, passar, cozinhar, cuidar de um filho, foi graças a ela, que infelizmente não vai estar aí pra quando o próximo vier, vai fazer falta aquela coisa de... Tudo vai ser uma lembrança, ela não vai estar. Então quando o bebê chorar, eu vou lembrar que não vai ter ali alguém pra me ajudar a pegar no colo quando meu marido não estiver, alguém que realmente vai me apoiar, pra me ensinar alguma coisa, não tem mais.
P/1 – Mas você é mãe hoje, né? Tudo o que você sabe, você sabe como fazer…
R – É. Hoje eu sei todos os... Sei como fazer porque ela me ensinou. E assim, tratou a minha filha sempre como uma princesa.
P/1 – Como foi o nascimento da sua filha? Assim, eu queria saber como você se sentiu, como foi virar mãe.
R – Não tem descrição. Assim, como eu costumo dizer, enquanto você descobre, é algo tão pequeno, é milímetro, mas a emoção de você estar grávida, de você saber que tem outro ser que depende você, é totalmente diferente. Então, por ser uma adolescente, as pessoas vinham: “Ai, como tá o bebê? Como tá o bebê?”. Eu cheguei ao ponto de questionar: “Tá, mas antes desse bebê, venho eu. Se não fosse eu, não existia esse bebê. Ninguém pergunta de mim?”. Então cheguei a surtar e reclamar. E toda vez que eu me sentia sozinha ou que pronunciasse a frase “eu me sinto só, porque ninguém me ama, ninguém me quer”, minha filha mexia. Como se ela sentisse: “Mãe, eu tô aqui, você não tá sozinha”. Isso até me emociona, porque eu não tive muito esse convívio com a minha mãe. Eu acabo sendo uma mãe chata. Eu me considero uma mãe chata. Por ser nova, por ser do mundo moderno, eu me considero uma mãe chata, que pega no pé. Mas eu sempre falo pra ela e deixo bem claro que é a minha maneira de eu mostrar pra ela que eu me importo com ela. Então, se eu pego no seu pé, é porque eu me importo com você. Eu quero que você aprenda a lavar uma louça, a dobrar uma roupa, a varrer uma casa, porque isso é benefício pra você. Já pensou você passar fome com tudo dentro de casa porque você não sabe cozinhar? E se você souber, você não precisa passar por essa necessidade. E a conversa é sempre muito aberta, totalmente diferenciada do que eu não tive. Então, o que eu não tive, por mais que eu exploda, teve uma situação que eu realmente explodi, aí eu respirei fundo, falei: “Não, eu não posso agir assim com ela”. Respirei fundo, eu falei para o meu marido: “Um dia eu ainda vou te contar isso. Eu não vou te contar agora porque você vai ter a mesma reação que eu tive, você vai querer gritar com ela, ou vai querer agredir, ou vai querer... Porque essa foi a primeira reação”. Mas é a reação da curiosidade. E o que eu dei de exemplo pra ela foi: “Você já quebrou uma perna? Você sabe o que é a dor de quebrar uma perna? Você sabe qual é a dor de ter um filho? Não, porque você só vai saber o dia que você passar por essa situação”. Então, eu tive que respirar fundo e ter esse tipo de conversa, de perguntar o porquê, por que ela não veio perguntar pra mim. Porque ela não precisa ter medo de perguntar pra mim as coisas, porque eu sou brava, mas eu sou a mãe dela, que eu quero o bem dela, que eu tô ali. Melhor ela perguntar pra mim do que perguntar pra amiga. Eu vou saber explicar melhor, porque eu já passei pela situação, às vezes a sua amiga não. E aí tem essa diferença.
P/1 – Qual é o nome e idade da sua filha?
R – A minha filha se chama Letícia Gabriele. Dois nomes, porque eu nunca gostei de Lucilene, virou Lusilene, piorou. Então, eu coloquei dois nomes pra ela ter essa opção de escolher. Então é Letícia Grabriele, ela vai fazer 12 anos o mês que vem. É uma mocinha, quase da minha altura, já usando os meus saltos altos, as minhas roupas, dando palpite nas minhas coisas, fala: “Ai mãe, isso tá brega, isso não tá” (risos). Mas a sensação realmente de ser mãe é... Não tem preço, você chegar estressado de um lugar, de repente ver aquele sorriso banguelo, como se você fosse algo tão precioso, que ela tá esperando há tanto tempo e vir, correr pra te dar um abraço de felicidade, como se não te visse há muito tempo. E a minha filha é muito carinhosa, de escrever cartinha e falar: “Mãe, o carteiro deixou uma lembrancinha”. Eu falava: “Ah!”. Fazia aqueles desenhos com aqueles bonecos com as pernas longas, os braços longos, eu falava: “Ah, essa aqui não sou eu, não. Que eu não sou tão magra e tão alta. Esse palitão não sou eu, não”. Mas sempre de demonstrar carinho, de deixar uma cartinha, um bilhetinho, de escrever: “Mãe, eu te amo. Mãe...”. Eu não consigo falar, eu não consigo... A palavra “eu te amo” é muito difícil pra eu falar. Eu gosto de ouvir, mas pra mim, eu demonstro o amor que eu tenho com as coisas que eu faço, com as atitudes que eu tenho. Mas é importante. O que eu não tive... Então, às vezes eu acabo... Às vezes ela vem fazer um carinho e às vezes eu viro e falo: “O que você quer?”. Porque eu não tive isso, então pra mim dá uma intenção de que ela quer alguma coisa em troca, porque eu não tive. Talvez por serem tantos filhos ou pelo sofrimento, eu não sei dizer. Porque talvez ela também não teve. E aí eu tenho que respirar fundo e falar: “Não é porque eu não tive, que ela não vai ter”. E já da segunda gravidez é algo totalmente diferenciado. O planejar um novo filho ao mesmo tempo é diferente, porque dá uma sensação, infelizmente, de como se fosse o primeiro, porque ela foi no susto, foi uma coisa não planejada. O segundo, realmente, quando meu marido falou que queria ter um segundo filho, eu falei: “É mentira. Você tá me usando pra atingir a sua mãe”. Eu não acreditei. Porque eu sempre quis, ele não queria, eu respeitei. E quando ele falou: “Não, é verdade”. Eu falei: “Não, você tá me usando, porque depois você vai desistir”. E aí eu fiquei com essa fixação de como se fosse um prêmio que eu sempre quis, de repente estão me dando em minhas mãos e eu não posso tocar. E aí demorou, a ansiedade foi tomando conta, foi tomando conta, e ao mesmo tempo cuidando da minha sogra doente, porque eu cuidava dela sozinha com a doença, era eu pra tudo 24 horas, pra ir a médico, tudo. E aquilo tava me consumindo ao ponto de eu pensar que não existia mais futuro. Que enquanto ela vivesse daquele jeito, minha vida seria daquele jeito. E eu queria porque queria um filho o mais rápido possível como uma forma de “tem alguém aí que pelo menos vai me fazer pensar no futuro, que eu vou querer conhecer, vou querer ver crescer”.
P/1 – E vocês estão planejando então?
R – Na verdade, o planejamento já tá concreto.
P/1 – Agora é realizar.
R – Agora é só realizar. Agora é esperar, fazer os próximos exames, um ultrassom para ter certeza do tempo de gravidez. E aí vem a ansiedade pra saber se é menino ou menina. Porque eu sempre quis um menininho, mas eu falei: “Agora é diferente, porque eu não sou mais aquela adolescente despreparada”. Que realmente as pessoas falavam: “Olha, sua barriga tá com formato de menino”. E eu fiquei com aquilo na mente: “É um menino”. A minha mente me preparou pra um menino. Quando falou que era menina, eu falei: “Tá errado. Eu não aceito”.
P/1 – Mas você tá grávida agora?
R – Tô.
P/1 – Ah, parabéns!
R – Tô gravidinha. E é uma sensação mágica. É mais mágica pelo peso no sentido de responsabilidade, de felicidade. Porque a gente passou por um momento tão difícil com a doença da minha sogra. E meu marido ficou tão descrente de tudo, e até hoje não aceita. Dois meses se passaram, não aceita o que aconteceu. Então um filho pra devolv...
P/1 – Criança é uma vida, né?
R – Pra devolver a alegria, não vai substituir. Nunca vai substituir. Mas pra devolver a alegria que a nossa casa precisa, porque cada um se isola num cantinho e sente a saudade do seu jeito. Minha filha porque era idolatrada pela avó. Era avó, avó, dormia com a avó, tudo era a avó. Porque mãe... E eu, não só por ser sogra, por ter aquela pessoa como imagem, aquela figura que pra mim era o exemplo e que pra mim ensinou muita coisa, e que Deus foi generoso de assim como ela cuidou de mim, me deu a oportunidade de cuidar dela.
P/1 – Bacana. Parabéns.
R – Obrigada.
P/1 – Quero voltar um pouquinho no nascimento da sua primeira filha. Então, entender assim, quando você começou a trabalhar? Você teve o bebê, né?
R – Tá. Eu a tive, aí ela mamou até um ano e oito meses, ainda mamava, e aí eu trabalhava lá na comunidade. Assim, trabalhava, um trabalho não voluntário, a gente tinha uma ajuda de custo ali.
P/1 – Que trabalho era esse?
R – A gente abria a brinquedoteca, então ficava como educadora. Abrir o espaço, gerenciar as atividades para as crianças, essas coisas. Organizar realmente o espaço, que tipo de atividade seria feita. De cuidar realmente do espaço. E aí veio o Projeto Nutrir, aí acho que um pouco antes, se eu não me engano, de a galera ir embora pra escolher outra entidade, teve o projeto do primeiro emprego, que foi lançado pelo Governo, e aí a Nestlé aderiu e toda fábrica aderiu um jovem de primeiro emprego. Aí, teve um processo seletivo, prova, como todo local pra você entrar.
P/1 – Que idade você tava nesse momento?
R – Eu acho que já tava com uns 20. Foi em torno dos 20. Que foi um ano só que eu fiquei lá. Em torno dos 20, 21 anos. E eu fiquei lá durante esse um ano e ainda estudava, tava terminando a escola.
P/1 – Mas o Nutrir você conheceu antes?
R – Conheci antes.
P/1 – E como você conheceu o Nutrir?
R – Então, o Nutrir, na verdade, eu não sei nem quem apresentou, se foi a Rosana Padial, ou a Adriana Teixeira, que foram praticamente as fundadoras da comunidade, que acho que acabou, provavelmente, fazendo essa parceria. E aí a nossa comunidade foi a primeira a ser atendida pelo Programa Nutrir, e aí eu tive essa experiência ali, não como mãe, porque... Acho que... Não. Deixe-me ver. Foi no ano de 2000. Eu fui mãe no ano de 2000? É. Foi no ano de 2002, então eu não era nem mãe, eu tava ali como uma adolescente, como a tia da brinquedoteca.
P/1 – E quais eram, assim, as ações do Nutrir? Você lembra como o programa se estabeleceu na comunidade?
R – Se eu não me engano, acho que foi uma visita, primeiro, pra conversar com as mães e contar a ideia do projeto. Então, sempre baseado na educação alimentar, até então foco na desnutrição, esse era o foco maior. E ajudar as mães a criarem receitas, fazer com que os filhos experimentem coisas mais saudáveis, não necessariamente da forma padrão que se fazia. E a criança aprendendo a importância do por que comer aquele alimento, do por que ele precisa existir no nosso dia a dia, de forma lúdica. Então, tinha teatro, tinha música, tinha jogos, tinha brincadeira. E aí uma parte dos voluntários já criava isso antes nas reuniões e levava pra lá o tema: “Ah, o tema hoje é leite e derivados”. Então, as mães trabalhavam na cozinha com leite e derivados nas receitas e as crianças em cima do tema, pra aprenderem um pouco mais realmente da importância daquele alimento, as vitaminas, os nutrientes. E a gente auxiliava assim. Como eu já tava como tia, então eu auxiliava mais ou menos no cuidado com as crianças, não envolvida tanto como mãe. Mais nesse sentido.
P/1 – E como era? Deixe-me só entender assim, quando a Nestlé chega e estabelece o programa na comunidade, tem um treinamento com essas mães? Ou são reuniões?
R – Não. Acho que foi feita uma... Na verdade, não tinha reunião de servente. Tinha escolhido o dia da Folia Culinária, que acho que tinha esse intermediário com a galera do Nutrir e alguém da comunidade, que marcava: “Olha, final de semana tal, sábado tal, é o dia da Folia Culinária”. Os voluntários vêm. Então, as crianças já esperavam na rua e saiam correndo, todo mundo pra abraçar, todo mundo muito carente. E aí já tinham mais ou menos definido, eles já tinham acho que definido as mães que iam pra cozinha, as mães que queriam ajudar lá também. Porque não cabia todo mundo na cozinha, era uma cozinha comum, uma casa comum, fogão comum. Então, uma ajudava a picar fruta, a outra lavava, a outra cortava, a outra lia receita. E tinham livrinhos também, que depois eles distribuíam as receitas que foram feitas para as mães que não puderam entrar na cozinha, ou que ficaram participando com as crianças lá e com os voluntários.
P/1 – E que cozinha era essa? Era uma cozinha da comu... Alguma casa da comunidade?
R – Era uma casa da comunidade. Atual minha. Na época era da minha sogra, a falecida, mas ela que disponibilizava a cozinha dela, o espaço, pra entrar e sair, cozinhar, enfim. Então, o pessoal trazia, quem tinha as panelas maiores, trazia. Aí, era aquela coisa. “Quem sabe fazer bastante arroz?” Aí, vinha aquela mãe que sabe fazer uma quantidade maior de arroz. E elas, entre si, combinavam isso e depois levavam as refeições prontas lá para o espaço da brinquedoteca. Hoje tem uma cozinha, mas antes, não. Então, o espaço da brinquedoteca onde serviam essas alimentações para as crianças baseadas no tema.
P/1 – E esse trabalho com as crianças, você acompanhava como tia?
R – Sim. Também como tia.
P/1 – E como era? Qual era o trabalho que era feito com as crianças enquanto as mães cozinhavam?
R – A gente tinha a roda de conversa, a gente falava do tema e aí sempre tinham personagens, ou tinham cartazes. Às vezes tinham cartazes, então colava os cartazes do tema, fazia perguntas para as crianças pra saber até onde era o grau de sabedoria deles referente àquele alimento, se eles já conheciam, se sabiam que esse alimento era realmente importante, sei lá, para o crescimento, ou para o organismo. Tinha teatro, tinha música, ou às vezes separava os grupos, você falava: “Um tem que fazer o teatro”. E era tudo muito improvisado. Tudo muito improvisado. Às vezes ia apresentar na rua. Era um teatro, como não cabia todo mundo no mesmo espaço, “vamos apresentar na rua”. E aí ia todo mundo pra rua pra apresentar o teatro. Ou realmente eram jogos que já vinham prontos, a gente tinha que pintar algum desenho, ou contar alguma história. Era sempre muito lúdico. Muito lúdico. Era uma forma de aprender brincando.
P/1 – E você se lembra, das folias, uma situação que tenha te marcado?
R – Ah, acho que foi do leite e derivados, que teve um teatrinho e aí... Tudo muito improvisado, então a roupa era improvisava. E tinha uma amiga que falava “leitE”, e aí todo mundo ria, porque... O correto seria realmente “leitE”, mas a gente fala “leiti”, como se fosse um “i” ali no final. E isso foi muito engraçado, porque todo mundo interagia, mesmo com vergonha ou não, o pessoal participava e todo mundo aplaudia. Era muito gostoso.
P/1 – Você se lembra da primeira folia que você participou, ou não?
R – Não. Lembrança assim específica da primeira folia, não.
P/1 – E de aprendizado, assim, de coisas que você não sabia e que você aprendeu com as folias?
R – Com as folias? Literalmente essa forma de lidar com alimentação. Ainda mais depois que eu fui lá por trás dos bastidores, participar como uma voluntária, eu cheguei a outras entidades como voluntária. Enquanto comunidade, chegava tudo pronto, eles já tinham pensado nas brincadeiras, no tema antes, as receitas. Mas depois de participar por trás dos bastidores e ver as reuniões, que a galera almoçava rapidinho pra poder ir pra reunião. Que eu mandava e-mail para os voluntários: “Tal dia é a reunião”. A gente escolhia o tema e fazia a ata, e ali sim a gente desenvolvia o tema juntos: “Olha, a gente vai fazer o tema esse. O que você acha de a gente contar essa história? Olha, achei esse livro que fala sobre isso”. Não algo complexo, algo realmente para o mundo das crianças, que fosse do entendimento deles. Falando a mesma coisa, a mesma importância, mas para o entendimento deles. Então, vê que realmente a importância que tem de você colocar a mesa pra criança, ou até mesmo para o adulto, de maneiras diferentes aquele mesmo alimento. Não existe só a forma padrão: “Vamos fazer cozido”. Não. Não precisa ser cozido. Pode ser ralado, pode ser a casca, junto com uma a fruta, num bolo, numa vitamina. Não precisa ser o refrigerante. A gente pode fazer o refrigerante com a fruta. E realmente esse aprendizado de usar o alimento de outras maneiras.
P/2 – Por que você se tornou voluntária?
R – Na verdade, não foi bem voluntária, eu fui trabalhar lá como jovem do primeiro emprego.
P/2 – Mas antes do primeiro emprego, você não tinha uma liderança ali?
R – Na comunidade? Tinha por conta de ser... Assim, teve a inscrição pra ver quem queria participar, tudo, pra ser tia, pra abrir essa brinquedoteca, fechar, e acho que na época eram duas, e tudo tinha algumas capacitações que a gente fazia pra lidar ali com as crianças no dia a dia, não era algo profissional e falar: “Não, você tem a obrigação de ensinar isso e no final do ano todo mundo tem que saber isso”. Não. Não era como uma escola, não era como uma creche, é um espaço da comunidade, a criança entra e sai a hora que ela quer. Olha, a gente abre, sei lá, do meio-dia às três. Do meio-dia às três, ela vai entrar e sair quantas vezes ela quiser, não tem obrigação de falar: “Não. Entrou aqui, é minha responsabilidade, ninguém sai”. Por serem crianças da comunidade, de cresceram ali, então tem toda essa liberdade. Às vezes quando uma não podia abrir, as próprias mães abriam, quando isso foi... Pra dar espaço mesmo para as pessoas verem realmente como é. Tá, você brincou, agora você tem a oportunidade de estar ali numa outra situação, numa outra maneira, você gerar as suas ideias e expor ali para as crianças. Mesmo sendo vizinhos, filhos, irmãos, parentes.
P/1 – Quem dava essas capacitações que você mencionou?
R – Na verdade, eram formadas pelo Ambar, que era uma empresa onde tinha a Adriana Teixeira e a Rosana participavam, que foi quem fundou a comunidade. Esse ônibus “Ludicidade” era um ônibus cheio de brinquedo e precisava se fixar, depois que o ônibus fosse embora, pra conhecer outras comunidades que também precisavam de um espaço para as crianças brincar. Então, acabam eles mesmos formando algumas capacitações de como lidar com as crianças, e aí tinham educadores mesmo, pessoas formadas como educadores pra poder... Psicólogos eles tinham. Então, sempre cada um tinha a sua formação e contribuía um pouquinho com aquilo e a gente fazia essas capacitações entre a gente, diário. Eu cheguei a ir para o Fórum Social Mundial, no Rio Grande do Sul, onde realmente se reúnem pessoas do mundo inteiro. Então, com algumas experiências pra gente trocar. Nessa questão do terceiro setor, mesmo não sendo algo governamental, ou remunerado, que compensava você doar um pouquinho de si, um pouquinho do seu momento, ou do que você sabia, pra alguém que não sabe, pra alguém que precisa, que só precisa realmente de um espaço e de um tempo pra você expor aquilo.
P/1 – E depois que o Programa Nutrir entra então na comunidade, você passou um tempo como tia, que você falou, né?
R – Foi.
P/1 – Trabalhando diretamente com as crianças. E aí em que momento que tem essa virada que a Monique falou? Assim, você passa a estar mais dentro, assim, do planejamento mesmo, que foi o que você citou das folias, do projeto? Como isso acontece?
R – Nesse caso, enfim, vem aquela coisa de enfrentar o mundo, de não saber pegar ônibus, metrô, e ter que se virar sozinha pra chegar até a Berrini, que era super longe de casa, tinha que sair cedo, mas mesmo assim eu encarei como um aprendizado.
P/1 – Mas como surgiu isso? Por que você ia até a Berrini? Você começa a trabalhar?
R – É. Porque eu comecei a trabalhar. O Programa Nutrir, ele tava saindo da nossa comunidade pra atender outra. E aí teve essa coisa do Programa do Primeiro Emprego, do Governo, de lançar isso, de o jovem ter essa experiência, a Nestlé acatou e acho que teve esse clique de: “Por que não pegar alguém da comunidade que está sendo atendida e colocar no programa, no terceiro setor ali realmente?”. E aí toda fábrica, não era só aqui na sede. Toda fábrica tinha um jovem. Então, eu me comunicava com outras pessoas. Teve encontro uma vez no fim de ano, vieram alguns jovens de outras fábricas, então legal, você vê o sotaque. Teve encontro também em Caçapava dos voluntários, dos jovens de primeiro emprego, pra gente trocar realmente essa experiência. Uma coisa é você estar ali sendo atendido e outra coisa é você estar ali por trás. Realmente você vê a necessidade, que é extensa, de pessoas carentes, de comunidades carentes, que não ficam estabilizadas, vão à procura, vão à busca, independente de saber: “Ah, a Nestlé recebe milhões de cartas”. Realmente, recebe, mas não custa nada eu ser mais uma a me inscrever ali. Porque o pouco de ajuda que vem se torna muito. Pra aqueles que precisam, o pouco se torna muito. Então, de receber, cadastrar as comunidades. As fábricas mandavam doações, vamos supor, a de leite mandava o leite, a de chocolate mandava sempre uns chocolates. O que eu vou fazer com aquilo? Tem as comunidades cadastradas, vamos ver a que mais ou menos se aproxima daquela quantidade de doação, se é compatível, se é próximo de vir buscar. E ligava pra elas, recebia elas, entregava a doação. E cheguei a visitar também comunidades na época de seleção, onde eles estavam escolhendo a comunidade que eles iriam atender em seguida da que eu vim, da Casa das Crianças.
P/1 – Deixe-me entender só como você se vinculou a isso. Você recebeu um convite direto ou você se inscreveu?
R – Eu não sei especificamente quem teve a ideia, e aí foi um processo seletivo. Escolheram os jovens, eu não lembro se por faixa etária, ou por grau de escolaridade, aí a gente foi pra lá, na sala do Nutrir, fizemos uma prova, fizemos uma entrevista, como se fosse uma seleção de emprego comum. E dentre essas pessoas...
P/1 – Como era essa prova, a entrevista?
R – Foi como uma prova comum: tinha Matemática, tinha Português, tinha, enfim, escrita, tinha acho que redação. E depois também um bate-papo, como sempre tem em uma entrevista de emprego comum, como se fosse uma seleção comum. E talvez por falar com as mãos e gostar de falar tanto, não sei se talvez por isso, de não ficar tão inibida, eu acabei sendo a escolhida. E aí eu fiquei durante esse um ano. Fiquei um ano com essa experiência ali de visitar as comunidades, de mandar o e-mail, de fazer a ata, de receber as doações ou cadastrar, por trás dos bastidores. E ver realmente a formação... E foi aí que começou a formar essas parcerias com as escolas. Eu não participava, mas foi ali que eu já ouvia as conversas de capacitações de merendeiras, de “a gente precisa montar um cronograma, montar as receitas”, por conviver com a culinarista e com a nutricionista na mesma sala a maior parte do tempo. Eu não ficava sozinha na sala, então tinha a nutricionista e a culinarista. Então ali a gente aprendia muito, porque escutava as histórias das comunidades, do quanto realmente... Não tem preço você levar uma coisa que pra você é básico e pra outra pessoa vai fazer tanta diferença. Você ver aquele retorno de algo simples, que qualquer um poderia doar, que às vezes é um tempo, é uma sabedoria simples, que não vai custar nada você passar pra frente e que pra outra pessoa vai fazer a diferença.
P/1 – Quando você foi selecionada, teve algum treinamento?
R – Não me lembro. Acho que não. Só mais assim, mexer com computador, porque não tinha acesso a computador, então... Se eu não me engano, eu não lembro se nessa época eu já tinha feito o curso de computação ou não, então eu sabia muito pouco do mundo da internet, dessa coisa de enviar um e-mail, receber um e-mail, de ter que aprender a falar o português corretamente pra poder atender ao telefone, essas coisas assim. De se vestir um pouco mais adequadamente para o ambiente.
P/1 – E você passou a participar ou continuou participando de Folias Culinárias em outras comunidades dentro da...
R – Enquanto eu estive nesse Programa do Primeiro Emprego, sim. Chegamos a participar de Folias Culinárias em outras comunidades, de ver realmente ali você levar tudo pronto, falar: “Será que vai dar certo?”.
P/1 – Conta como era então esse planejamento para as Folias Culinárias em outras comunidades, um pouco como foi a sua experiência.
R – Na verdade, a gente enviava o e-mail para os voluntários, já tinha o cadastro, enviava o e-mail para os voluntários marcando o dia da reunião, o horário, e ali discutia: “Olha, o tema... A gente tá pensando em visitar tal comunidade, que fica próxima daqui ou não. A gente tá pensando em ir tal data, o que vocês acham?”. Sempre era um acordo comum de todos. “O tema vai ser esse. O que a gente pode desenvolver?” A maioria dos materiais já estava pronta, que eram livros, eram jogos da memória, algumas coisas pra fazer teatro. A maioria já estava pronta, mas é claro que tinha que se adaptar com a quantidade de crianças, o espaço que tinha. Então, as receitas, eu via ali a culinarista mais ou menos planejando. Já tinha também, claro, as receitas catalogadas, que já foram inventadas, testadas e aprovadas. E aí depois visitar a comunidade ali, ver aquele monte de criança com aquela alegria, com aquele sorriso só de você estar ali. Não demonstrou nada ainda, eu só cheguei. E realmente visitar a cozinha e ver que as mães estão superempolgadas e sorrindo, e uma corta, e outra que não sabe cortar, aprende, a outra que... Sempre essa troca de experiências e ali com as crianças também.
P/1 – Você lembra, assim, de uma situação marcante dessa época? Pode ser até na sua comunidade também, durante as Folias Culinárias ou numa outra comunidade. Um fato...
R – Eu não lembro o nome da comunidade, mas o jovem, inclusive, que quando eu saí, foi ele quem me substituiu ali no Programa Nutrir, por ser a comunidade atendida naquele momento. E uma fase realmente da interação das mães na cozinha, do sorriso delas, de olhar e ver: “Nossa, eu não sabia que com a casca eu podia aproveitar muito mais determinado alimento”. E elas muito contentes que elas prepararam, depois ver o prato feito e falar: “Dá pra fazer com a casca, fica gostoso”. E a aparência também é gostosa, não é aquela coisa de você olhar, falar: “Tem casca, não ficou com a cara boa”. Ou: “Hum hum, não dá pra comer”. Realmente essa questão de as mães olharem e verem que independente da idade ou independente do que for, você sempre tem alguma coisa pra aprender e pra passar para o outro, e aprimorar, melhorar. Eu trago desse jeito, mas de repente a sua ideia complementa a minha e vira algo melhor. De ver realmente essa recepção da comunidade em si, só o fato de saber que tem um visitante que vai ali pra ver a sua história, pra ouvir um pouquinho, ou pra sentar uma criança no colo e dar um pouquinho de atenção. Realmente tem “Ns” comunidades, com certeza existem milhões de crianças carentes nesse sentido de precisar um pouquinho de atenção. Talvez pelos pais, enfim, serem tão ocupados com o mundo moderno, pelo fato de a mãe e o pai trabalharem, sempre estar numa creche, estar numa escola, não ter essa coisa de sentar: “Ah, vamos sentar no chão mesmo. Vamos contar uma história? Vamos, a gente começa e você termina, e vamos inventar”.
P/1 – E as folias são um momento de integração também entre pais e filhos assim? Você acha que elas promovem isso de alguma maneira?
R – Sim, porque acaba... O que a mãe aprender na cozinha acaba interagindo com o que a criança aprendeu de outra maneira, brincando. “Então, você viu o que você comeu? Tinha isso, isso e isso.” A gente falou que tinha, porque lá eles falavam: “Olha, o cardápio de hoje é: vai isso, isso, isso, a gente vai preparar. Então, o refrigerante caseiro...”. Então ficavam pensando: “Como um refrigerante caseiro? Como que eu vou fazer com a fruta, com... Acho que não vai ficar bom”. Então, a primeira ideia vem: “Ah, acho que não vai ficar”. Vem aquele preconceito de: “Será?”. E as mães vão lá, depois trazem tudo pronto, todo mundo come junto, todo mundo experimenta junto, aí vê a cara, a careta que o outro vai fazer, se realmente: “E aí, gostou ou não? Aprovaram ou não?”. Acaba tendo essa experiência, porque leva pra casa como algo diferente. Tudo que é novo, que você não imaginava que... Imagina, onde que eu ia saber?
TROCA DE FITA
P/1 – Então, eu queria que você... Você tava contando das receitas, né?
R – Isso.
P/1 – Que vocês aprenderam nas Folias Culinárias. Eu queria que você me dissesse assim, se teve uma receita mais marcante, pra você assim.
R – Assim, pra mim, pra mim, acho que foi o bolo com casca de abóbora, onde eu nunca ia imaginar que um bolo com uma cara linda de chocolate tinha casca de abóbora. E às vezes você não precisa contar que tem a casca de abóbora, porque se você contar, tem aquele preconceito de: “Ah, tem, eu não vou comer. Acho que vai ficar ruim”. Mas aí de fazer, de todo mundo degustar e de... É muito legal. E até hoje eu levo, porque de se preocupar, realmente a importância maior do programa foi levar aos pais a importância de se preocupar com a alimentação que você leva à mesa para os seus filhos. Nem sempre porque tem uma cara linda, ou é supercolorida, é saudável. Ou porque não tem uma supercara colorida realmente é ruim. Então eu, particularmente, levo isso pra casa e tento forçar a minha filha, forçar no sentido de incentivá-la a experimentar. Porque às vezes ela olha para o alimento, fala: “Não gostei. Não quero” “Mas você nunca provou. Como você fala que não gosta de uma coisa que você nunca provou?”. A regra é experimentar pelo menos três vezes. Pelo menos de formas diferentes. Porque é isso que o Nutrir deixou, você preparar um alimento, um mesmo alimento de formas diferentes e sabendo reaproveitar o máximo, não precisa ter o desperdício. Não precisa ter. Você pode reaproveitar aquilo e a mesma coisa que você usou pra fazer um salgado, uma receita salgada, você pode aproveitar, de repente, o miolo, a casca, pra fazer algo doce e incrementar um pouco mais. Não precisa entender de nutrição pra saber, ou ser uma nutricionista, falar: “Não, porque isso tem betacaroteno, isso tem zinco, isso tem...”. Não precisa entender muito bem. A gente sabe que os legumes, as verduras, são alimentos importantes, e que infelizmente faltam à mesa. É muito ou feijão e arroz, ou o prático, algo simples, que já tá ali congelado, ou mais fácil de fritar, ou, enfim.
P/1 – E pra sua casa, você leva essa preocupação? Assim, como você escolhe os alimentos?
R – Pra minha casa, sim. Então eu sempre prefiro... Que nem, por exemplo, formas de... Incrível, isso até em casa. Porque na época, minha filha, acho que muito pequenininha, se chegou a participar, ainda era um bebezinho, então aquela coisa mais... Não participou como criança ali. Meu marido participava como um adolescente também da comunidade. Na minha casa, sim. Quando eu morava com a minha mãe, sim, porque minha mãe ia pra cozinha aprender enquanto todos os filhos estavam lá na brinquedoteca aproveitando as informações, as brincadeiras, depois todo mundo ter o prazer de degustar, porque fica a curiosidade de ver: “Que receita será que vai trazer da próxima vez com esse tema?”. E até hoje, por exemplo, uma coisa aqui em casa, meu marido não gosta, é algo cozido. Então, legume cozido é muito difícil, uma carne cozida. Então, vamos supor: “Tá. Não come a batata cozida numa carne, num ensopado? Não come? Tá bom”. Então, eu fui lá, eu cozinho a batata, e aí, por exemplo, eu frito o alho no azeite e coloco aquela batata pré-cozida ali, e todo mundo gosta. Continua sendo uma batata cozida, eu só a transformei de uma forma diferente. Eu podia assar? Podia. Fica uma delícia, mas não é tão saudável. Então eu sempre prefiro trazer alguma coisa... Cenoura. Imagina, se eu ralar uma cenoura e fizer uma salada, ninguém vai comer, mas se eu colocar no arroz, todo mundo come. Não é a mesma cenoura? É a mesma cenoura. Uma tava crua; a outra, não. Então, eu às vezes forço. Se tiver salada, como eu costumo falar, acho que na outra vida eu era vaca, eu não sei, porque o que eu gosto de mato, se tiver salada, eu como com muito mais gosto, com muito mais vontade de comer. Independente se todo mundo vai comer ou não, eu sempre faço, essa é a regra. Eu vou colocar tal, o que você não com... Minha filha, pra feijão não comia, pequenininha. Eu falava: “Como, se bebezinha comia na papinha, e agora que sabe falar não come feijão? Tá bom. O que você não quiser, você deixa no prato”. Sempre assim. Nunca tirei porque ela falou: “Eu não gosto.” “Tá bom. O que você não quer, deixa no prato.” Hoje a minha filha não come sem o feijão. Pelo contrário, ela não gosta do caldo, tem que ter só o caroço. Porque teve que ter um pouquinho de insistência ali pra poder comer. Então, sempre levo pra casa... Eu sempre assim, meu marido costuma falar: “Você compra esse monte de receita, não sei pra quê você junta essa coleção de receitas”. Eu falo: “Um dia eu vou ser dona de casa e eu vou ter tempo de preparar todas, de sair testando todas, não se preocupe”.
P/1 – (risos).
P/2 – (risos).
R – E aí eu faço teste, eu gosto de dar para as vizinhas pra experimentarem. Ou então eu levo pra minha mãe. O que eu vejo que falo: “Ah, eu fiz, ninguém gostou muito, não. Porque sobrou, é porque ninguém gostou”. Eu levo pra minha mãe e pessoal de lá adora. Eu falo: “Ah, engraçado, em casa ninguém gostou, aqui todo mundo faz a festa”. Então, eu gosto de inventar algumas coisas. Ler na internet, inventar algumas coisas. Não 100%, assim, não preciso falar: “Nossa, tem que ser 100% saudável, criança não come doce, criança não...”. Criança é criança, mas acho que é importante os pais terem essa consciência de que ele vai ser um adulto e um pai ou uma mãe que vai por isso no prato do filho, vai depender do que você, como mãe, coloca no prato pra ele hoje.
P/1 – E na sua comunidade, você acha assim: quando você pensa antes do Nutrir e depois do Nutrir, que mudanças você vê assim? Que coisas você acha que o programa deixou pra comunidade?
R – Essa preocupação das mães mesmo realmente da alimentação. A geração... A nova geração, a gente consegue identificar crianças um pouco mais acima do peso do que aquelas crianças de antes. Ou aquelas mães que participaram da folia têm essa preocupação maior de levar ao médico, falar: “Não, tá com o colesterol alto, eu vou baixar isso, eu vou incrementar mais isso”. Ainda existe essa coisa de troca de informação ali. Ainda existe. “Não, porque eu vi isso, eu fiz, eu testei, é bom. Você dar para o seu, você pode fazer.” E realmente, eu descobri uma receita maravilhosa, eu não vou guardar só pra mim, eu vou contar pra todo mundo. Eu vou fazer e vou mostrar: “Aqui, olha, ficou bom”. Mas essa preocupação realmente de se preocupar com a alimentação do filho, do que ele anda comendo na rua, ou se come na escola ou não, de comer tanta besteira ou não. Realmente de ter essa preocupação não com o peso ou com a fisionomia, mas com a saúde em si, de buscar uma ajuda num posto de saúde, de ver que realmente não tá legal, que precisa muda alguma coisa.
P/1 – Você acha que o programa ajudou nisso?
R – Ajudou.
P/1 – E ainda existem situações em que a comunidade cozinha hoje? Assim, situações coletivas, na brinquedoteca, que hoje em dia tem uma cozinha?
R – Hoje, assim, atualmente, esse último ano foi onde deu mais uma decaída mesmo assim. Mas anteriormente ainda tinha. Por exemplo, festa do Dia das Crianças nunca pode faltar, independente se tiver em atividade, brinquedoteca ou não. Não abre mais como antes, não tem mais aquela estrutura financeira que tinha antes, então abre menos vezes. As crianças também, não sei se por ter tanta opção de lazer no sentido de: “Ah, prefiro ficar no computador”, o outro tá com o tablet na rua, realmente as crianças se desligaram daquela coisa de brincar junto, de largar as tecnologias e brincar, brincar na terra, de correr, de pular. Mas cozinhar todo mundo junto, só quando é Dias das Crianças. Ultimamente tá assim, Dia das Crianças. Ou Dia das Mães, aí realmente elas cozinham, vão pra brinquedoteca, porque agora tem uma cozinha lá, e preparam uma alimentação lá mesmo. E às vezes montam na rua, porque tem mais espaço.
P/1 – E tem essa preocupação assim com o alimento, que tipo de alimento, se é saudável?
R – Tem. Inclusive depois. Antes de o Nutrir chegar, tudo, o que tinha... A gente tinha a roda de conversa, depois no final tinha o suco com a bolacha. Era um suco artificial. E depois que o Nutrir veio, veio a importância de a gente pensar: “Não, por que o artificial se a gente pode interagir com o natural? Colocar uma fruta, uma coisa nova, diferente, ou até mesmo ensinar, em certo sentido, o paladar da criança a passar a gostar de coisas que ela não provou, ou que ela pode provar e falar: “Não, mãe, olha, faz esse, porque eu bebi lá e esse é mais gostoso”. De ter essa opção. Em vez de realmente fazer um suco industrializado, de saquinho, põe a água e acabou, você fazer a fruta, de conhecer a fruta, de olhar a fruta. Porque às vezes pode existir a possibilidade de a criança beber e não saber nem que cor é a casca da fruta por fora. Achar que porque o conteúdo é amarelo, por fora também é amarelo. Essa realmente é a importância de você ter esse contato maior com o alimento, com a fruta, com a preparação.
P/1 – E na sua casa, não sua família hoje: você, seu marido e a sua filha, mas na sua casa onde você vivia ainda com a sua mãe, com seus irmãos, qual é o impacto que o programa teve? Teve uma mudança assim no dia a dia da alimentação de vocês na época do programa ou posteriormente?
R – Sim no sentido de quando... Começava quando ia ao mercado. Então, a seleção dos alimentos já não era mais a preferência por bolachas, por coisas, mas sim por frutas, ter o hábito sempre... Até hoje minha irmã também tem o hábito de ir na feira. Toda sexta-feira, ela tem que ir na feira, independente se ela vai usar tudo ou não. Às vezes eu vou lá: “Menina, mas a fruteira, o negócio tá murchando”. Ela: “Deixa aí, que eu reaproveito pra alguma outra coisa”. E reaproveita. Em casa também tem esse hábito. Então, o que mudou foi esse impacto no sentido de não só a mãe, a criança também ter essa noção de que: “Ah, não vou fazer esse, porque eu prefiro comer esse. Eu prefiro comer a fruta a, sei lá, fazer um suco industrializado ou comer uma bolacha”. Essa coisa acho que... Não por não conhecimento, porque às vezes tá ali. O que falta, realmente, é a oferta, é a insistência, é mostrar de maneira diferente pra se consumir aquele alimento. E aí você passa a gostar e cada um faz a sua maneira.
P/1 – Então, mudou a maneira de fazer compra?
R – De fazer compra.
P/1 – E pra você, pessoalmente assim, nessa esfera assim da nutrição, de compra, mas de maneira geral, por que o programa foi importante pra você assim? O que te trouxe de aprendizado, de mudança na sua vida, de uma maneira geral?
R – Em tudo, realmente, se preocupar realmente com a alimentação. Preocupar-se em saber que assim, pra ter a pele bonita, um cabelo bonito, enfim, o que se mostra por fora vem muito de dentro, então você tem que selecionar bem o que você coloca dentro, pra isso resplandecer pra fora no sentido de preocupar com a alimentação. Então, eu sou do tipo de mãe que por mais que a minha filha vá fazer 12 anos, eu ainda levo ao pediatra, eu ainda faço exames constantes se tiver com falta de tal vitamina, falta de tal. Hoje tem a facilidade da tecnologia, você clica na internet, você qual determinado alimento você precisa integrar no seu dia a dia pra suprir aquela necessidade, aquela falta ou aquele excesso. Então, essa é a preocupação maior, de realmente ter sempre em casa o colorido, de ter uma fruta, de ter legume, de ter a verdura. Não é só a carne. Realmente, às vezes a gente, se parar pra pensar, é muito carnívoro, é carne, é carne, é carne. Não precisa ser só carne, carne, ou feijão e arroz, que é o essencial. A gente pode colocar um colorido e inventar. Acho que o mais legal é isso, pela diversidade que existe de inventar, o poder de inventar. E ninguém vai poder falar que o que você fez tá errado. É a sua invenção, é a sua criação, é a alteração para o seu paladar, e aí não necessariamente precisa agradar a todos. Mas essa importância realmente de você se importar com o que você coloca pra dentro, com o que você come. Não precisa ser só bonito no olhar: “Não, tá um prato bonito, é bonito”.
P/1 – Tem algum alimento que você não conhecia ou não consumia antes do programa e que depois você descobriu a partir do Nutrir e passou a gostar?
R – Acho que mais os legumes. As frutas, até então, a gente tinha mais... Mas os legumes em si, de você ter essa ideia de fazer não só cozido, não só assado, você pode colocar num bolo, você pode colocar num suco. Então assim, se fizer pra mim um suco com... Isso a gente aprendeu com o Nutrir. Então se fizer um suco e colocar uma couve, uma laranja, uma beterraba, argh, não é legal, mas eu sei que é saudável. Não é o melhor suco do mundo, mas eu sei que eu tô ingerindo algo que faz bem pra mim. Essa coisa de você saber que eu não preciso comer beterraba só cozida, numa salada, de você tomar a laranja, só o suco da laranja puro. Não precisa. Eu posso colocar outras coisas que vão me fazer bem, de repente são hortaliças, se é uma fruta, se não é, e levar para o meu dia a dia. E às vezes as pessoas falam: “Ah, porque você nunca envelhece. Você e fulana são iguaizinhas, podem passar dez e você voltar aqui, você tá igual”. Por que será? Não sei. Talvez seja aí. Nunca parei pra pensar, mas talvez seja, realmente. Alimentação.
P/1 – Ahã. Porque se alimenta bem.
R – Essa alimentação, essa coisa da variedade. Aproveitar que a gente tem um país tão farto e aproveitar os alimentos que a gente tem. Essa é a importância. O foco maior é a importância do se alimentar, do se alimentar bem, não importa se eu vou...
Não tô comendo pra engordar ou pra me manter magra, não é isso, é realmente o se alimentar bem, a importância do que você coloca à mesa, do que você oferece ali.
P/1 – E a experiência que você teve trabalhando dentro da Nestlé era remunerada?
R – Era.
P/1 – E você lembra o que você fazia com essa remuneração, como você usava esse dinheiro?
R – Acho que eu ajudava em casa, porque com filho pequeno e o marido trabalhando, e também primeiro trabalho, então eram mais essas coisas domésticas. Nunca tive assim, falar: “Não, vou investir em mim, eu vou...”. Até porque não era muito. Depois vem aquelas coisas de ficar... Assim, acabei me isolando para as necessidades e esqueci os sonhos de lado um pouquinho. E às vezes eu paro e penso: “Será que eu tô velha demais pra...”. Não tô.
P/1 – Não. Não tá.
R – Mas às vezes cai a ficha, fala... É que realmente o cargo, quando você assume a responsabilidade de ser uma dona de casa e uma mãe dedicada, você não consegue. Você se esquece de você e acaba... Você tem tempo pra casa, você tem tempo para o filho, para o marido, mas, infelizmente, para os seus projetos não tem.
P/1 – Mas essa experiência de trabalho assim, o que te ensinou? Se te ensinou alguma coisa, o que te ensinou a experiência de trabalho, esse um ano trabalhando na Nestlé? Em termos de trabalho mesmo, porque foi seu primeiro emprego mesmo, né?
R – Foi. Ah, responsabilidade em si, de você saber que você tem horários pra tudo, que você tem que seguir disciplinas. Você precisa ter disciplina, você precisa saber interagir com as pessoas e enfrentar o mundo, não importa se é longe, se é perto, se você vai pegar metrô, ônibus. Essa coisa do “vai em frente”, não importa se tem alguém do seu lado ou não. Não é o ditado “quem tem boca vai a Roma”? Vai a Roma e vai aonde quiser. E sem ter boca, porque você simplesmente ter a vontade de pesquisar, de vasculhar, de... Se é a informação que você precisa, vá buscar a resposta, esteja ela onde estiver. Então, essa questão da responsabilidade realmente como profissional, de você saber que você tem horário, que você tem regras, que você tem a sua responsabilidade, que casa é casa, trabalho é trabalho, os dois não precisam necessariamente se misturar, ou levar um problema ou uma solução de um lugar ao outro. De ter essa responsabilidade e realmente de ter um foco, seguir em frente e saber que aquilo, independente se às vezes a gente entra num trabalho achando que vai ser superlegal, e o tempo vai passando e você: “Não é realmente legal. O que me venderam ali na proposta de emprego não é realmente no que eu tô atuando”. Mas que independente disso, você sempre tem uma experiência. Acho que toda experiência vivida é válida, serve. Todas. Independente se foram boas, ruins, todas servem. A gente conhece pessoas. A gente entender que o mundinho não é só ali onde a gente vive, os vizinhos em volta, as ruas em volta. O mundo é muito maior. As pessoas sempre têm alguma coisa pra te ensinar e você sempre tem alguma coisa a ensinar ou a aprender. Olhar com os olhos diferentes, olhar para o lado e falar: “Nossa, como aquela pessoa se veste diferente ou fala diferente. E olha aquela tão nova e já tá num patamar tão alto”. Pra você entender que o mundo não gira realmente em torno da gente mesmo, de si próprio. Porque existe essa expansão toda que a gente pode buscar.
P/1 – Eu vou encaminhando para as perguntas finais. Vou só perguntar pra Monique se tem mais alguma coisa. Não? Tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado e que você gostaria de falar?
R – Acho que... Não sei. Falei tanto já (risos).
P/1 – Nada que te ocorra agora, assim?
R – É. Nada que me ocorra agora.
P/1 – Queria saber então, primeiro, quais são seus sonhos hoje?
R – Hoje o foco maior é ser mãe novamente, cuidar desse novo ser que vem vindo aí, que não conheço, mas que já causa um turbilhão de sentimentos. Inicialmente, focar na família. Como a gente teve essa perda recente da minha sogra, não tá tão bem estruturada ainda a minha família. Então, eu preciso reestruturar a minha família novamente, pra depois tomar um rumo, pensar em mim, falar: “O que eu quero pra mim?”. O foco maior é a minha família agora, é a minha filha, é o meu marido, é a gestação, o saber que eu tenho que me cuidar. Então, realmente eu voltei a me alimentar melhor, porque eu pensei: “Não tem mais só eu, existe um serzinho ali que depende de mim, que se eu não me alimentar, ele também não se alimenta”. E eu não quero isso. Não quero ser causadora de um prejuízo, de certa forma. Então, eu preciso me cuidar um pouco mais. Acho que essa fase passando, aí sim, eu vou voltar a pensar um pouquinho em mim. Eu queria muito voltar a estudar. O que falta é aquele empurrãozinho, aquilo de falar: “Comecei, agora não vou parar”. O que eu preciso é começar, é voltar.
P/1 – E você pensa em alguma coisa específica? Uma faculdade?
R – Eu queria... Assim, eu tenho muita vontade de fazer curso de espanhol. Queria muito aprender o espanhol. Às vezes até em casa, eu cheguei a estudar um pouquinho em casa e tudo. E como minha filha já tá entrando também nessa fase, aí ela fazendo um curso, eu posso fazer um junto, porque a gente acaba usando em casa, treinando e ninguém vai esquecer. Eu pensei em fazer curso primeiro. E como eu tô agora em casa, prendada, inventando milhões de receitas e aproveitando tudo, eu pensei em fazer Gastronomia.
P/1 – Ah, que bacana.
R – Um rumo totalmente diferente, que eu nunca pensei, mas eu pensei em fazer ou Nutrição, algo relacionado a esse sentido, justamente por gostar. Eu aprendi a ter o prazer de cozinhar. Por ser dona de casa, o meu hobby maior é inventar coisas novas pra sair da rotina do dia a dia. Nem todo dia é domingo pra gente fazer aquele prato especial, né? Mas tem que se virar. Tem que usar a criatividade pra não ficar uma coisa rotineira e falar: “Ah, hoje eu não vou jantar, prefiro comer um pão, porque de novo é o feijão e o arroz, é um complemento”. Mas por isso.
P/1 – E como foi contar a sua história?
R – Emocionante ter que voltar lá atrás e me lembrar de coisas que eu achei que nem eu fosse lembrar. Achei que nem a minha mente estaria tão boa assim.
P/1 – Você gostou? Era isso que você esperava?
R – Foi mais do que eu esperava. Senti-me bem à vontade. Gostei.
P/1 – Que bom. Bom, a gente vai encerrar então. Obrigada. Muito obrigada por ter vindo.
R – Imagina.
P/1 – Obrigada pela generosidade de dividir sua história com a gente.
R – Obrigada eu, né, por o pessoal lá atrás se lembrar de mim, assim, do nominho. Dez anos atrás já faz da última convivência com o pessoal e mesmo assim saber que o pessoal ainda lembrou. E poder fazer parte dessa história que pode seguir e de repente daqui a dez anos ter outra pessoa sentada aqui no meu lugar contando uma história parecida.
P/1 – Tá certo. Obrigada então.
R – Obrigada eu.
FINAL DA ENTREVISTARecolher