Memória da Convenção da Diversidade Biológica e Protocolo de Cartagena e da Convenção sobre Mudança de Clima e Protocolo de Kyoto
Depoimento de João Paulo Ribeiro Capobianco
Entrevistado por Stela Tredice e Thiago Majolo
São Paulo, 10/04/2006
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número TMBIO_HV005
Transcrito por Luani Guarnieri Bueno
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Está pronto? Posso chamar de João Paulo?
R - Claro.
P/1 - João Paulo, queria que começasse rapidamente falando o seu nome, local e data de nascimento.
R - João Paulo Ribeiro Capobianco. Nasci em São Paulo [em] três de janeiro de 1957.
P/1 - Como é que você começou a se envolver, a se interessar pela questão do meio ambiente, a questão ambiental?
R - Ah, são vários fatores. Um que pesou muito foi o fato de que eu fui criado... Criado não, eu fui criado em São Paulo mas passava um bom tempo das minhas férias numa fazenda no interior de São Paulo, divisa com Minas - sul de Minas, na verdade. E meu avô tinha uma mata enorme, tinha um amor muito grande pela mata. Tinha lá uma mística em cima da… Uma floresta muito, muito grande, uma floresta de jequitibás-rosa, que é uma árvore muito impressionante. Tinha toda uma história em cima daquilo, meu avô com aquela floresta. Depois, estudando no Santa Cruz, tive uma professora, Alicia Magalhães, que me influenciou muito nessa área também. Ela tinha uma ligação muito forte com o meio ambiente e, sei lá, a coisa foi puxando a outra.
P/1 - Passando algumas décadas, você participou da Rio 92.
R - Sim.
P/1 - Qual foi a sua área de atuação? Qual foi...
R - Ah, eu tive… Na verdade, eu participei absolutamente, intensamente, desde a fase preparatória, desde 88, 89. Começou em 88, mas em 89 de forma mais forte. Eu me envolvi muito em todo o pós-preparatório porque em São Paulo nós decidimos criar uma forma de maior inserção das ONGs brasileiras no processo. Na realidade, não eram nem...
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Depoimento de João Paulo Ribeiro Capobianco
Entrevistado por Stela Tredice e Thiago Majolo
São Paulo, 10/04/2006
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número TMBIO_HV005
Transcrito por Luani Guarnieri Bueno
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Está pronto? Posso chamar de João Paulo?
R - Claro.
P/1 - João Paulo, queria que começasse rapidamente falando o seu nome, local e data de nascimento.
R - João Paulo Ribeiro Capobianco. Nasci em São Paulo [em] três de janeiro de 1957.
P/1 - Como é que você começou a se envolver, a se interessar pela questão do meio ambiente, a questão ambiental?
R - Ah, são vários fatores. Um que pesou muito foi o fato de que eu fui criado... Criado não, eu fui criado em São Paulo mas passava um bom tempo das minhas férias numa fazenda no interior de São Paulo, divisa com Minas - sul de Minas, na verdade. E meu avô tinha uma mata enorme, tinha um amor muito grande pela mata. Tinha lá uma mística em cima da… Uma floresta muito, muito grande, uma floresta de jequitibás-rosa, que é uma árvore muito impressionante. Tinha toda uma história em cima daquilo, meu avô com aquela floresta. Depois, estudando no Santa Cruz, tive uma professora, Alicia Magalhães, que me influenciou muito nessa área também. Ela tinha uma ligação muito forte com o meio ambiente e, sei lá, a coisa foi puxando a outra.
P/1 - Passando algumas décadas, você participou da Rio 92.
R - Sim.
P/1 - Qual foi a sua área de atuação? Qual foi...
R - Ah, eu tive… Na verdade, eu participei absolutamente, intensamente, desde a fase preparatória, desde 88, 89. Começou em 88, mas em 89 de forma mais forte. Eu me envolvi muito em todo o pós-preparatório porque em São Paulo nós decidimos criar uma forma de maior inserção das ONGs brasileiras no processo. Na realidade, não eram nem ONGs na época, né? ONGs, organizações não-governamentais, foram introduzidas no Brasil em função da Rio 92, porque as Nações Unidas funcionam com governos e eles classificam o que não é governo de não governo. Nós nos chamávamos de entidades ambientalistas, na época.
O que ocorreu foi que nós estávamos, várias pessoas, entre elas eu e outras… Éramos convidados a participar de eventos preparatórios da Rio 92 de forma totalmente desorganizada; uma vez era eu, da outra vez era outra pessoa, depois uma outra pessoa, até que nós nos encontramos um dia e dissemos: “Olha, não é possível. Nós precisamos ter uma articulação nacional porque se não a Rio 92 vai ser apenas uma conferência no Brasil e o Brasil vai apenas sediar. Podia ser até na Lua, para o Brasil não faria nenhuma diferença. Não pode, a gente não deveria permitir isso, deveria aproveitar a Rio 92 para tornar a conferência algo importante para o Brasil, articulando as instituições brasileiras e também ajudando que as nossas questões nacionais também aflorem no processo.” E aí nós decidimos criar o fórum brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais, que nasceu numa reunião dentre três instituições. Na época, eu estava na SOS Mata Atlântica; nós chamamos uns amigos do CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação - e o Fábio Feldmann pela OIKOS. Essas três instituições se reuniram e então decidimos convocar uma reunião nacional do… Sem a menor ideia se isso seria viável, né? Não sabíamos qual era o nosso poder de convocação pra uma reunião nacional.
Chamamos uma reunião e foi uma coisa impressionante; assim, se vê, dezenas de instituições se reuniram em São Paulo e decidiram conjuntamente criar o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais. E o interessante foi que justamente desde o início nós nos preocupamos - foi uma coisa feliz que aconteceu - em não reunir apenas entidades ambientalistas, mas o próprio CEDI, que era uma organização que tinha uma forte inserção no movimento social, na questão indígena; eles tinham vários grupos, núcleos de trabalho que envolviam outros setores da sociedade não ambientalistas. Então teve um aporte da contribuição deles com a nossa e criou-se então esse fórum, que era bem amplo. Eu me lembro na primeira reunião da participação da CUT, que na época todo mundo achou estranho: “Mas poxa, o que que a CUT tem haver com o meio ambiente?” E a CUT foi super ativa no processo, foi importantíssima.
O que ocorre é isso, eu participei desde o início. E quando nós criamos o fórum decidiu-se criar uma Coordenação Nacional e uma Secretaria Executiva; eu era secretário executivo do fórum junto com outra organização social que também surgiu no processo, muito importante, que é a FASE. FASE é uma organização com sede no Rio, mas tem abrangência nacional e ela dividia a secretaria executiva comigo. Era SOS e FASE, uma ambientalista e uma social.
A minha [contribuição] durante três ou quatro anos foi só isso, praticamente. (risos) Foi toda a parte preparatória, toda a parte de organização que foi superintensa. Realizamos seis encontros nacionais com centenas de instituições, chegamos a ter 1300 organizações filiadas ao fórum. E era um processo extremamente dinâmico, onde se debatia questão de conteúdo, se trabalhou muito as diferentes visões que as instituições tinham, que as organizações tinham, povos indígenas, comunidades tradicionais, o sindicalismo - era uma coisa incrível esse processo. Então eu vivia isso, dormia isso, e depois ajudei a organizar o Fórum Global durante a Rio 92. Foi um evento paralelo à conferência e por eu ser o secretário executivo e estar muito intensamente vinculado a essa processo, eu fui indicado como representante das ONGs na comissão interministerial preparatória para a Rio 92. Era o único, a única ONG, era o único representante não-governamental. E depois eu fui o único delegado oficial também, naquela época era uma loucura, naquela época as ligações brasileiras eram super-restritas. Hoje não, isso mudou radicalmente depois da Rio 92, e você tem hoje... Quem quiser se inscrever como delegado da delegação oficial basta ter uma justificativa, uma indicação de uma instituição que tenha atuação na área que não tem nenhuma restrição. Agora, por exemplo, em Curitiba nós tivemos uma delegação com mais de 170 pessoas, mas na época não, era super-restrito, eu era o único.
P/1 - E como você se sentiu sendo o único?
R - Na verdade, o fato de ser o único dentro do processo era algo... Era esquisito mas, por outro lado, como a articulação era muito forte do movimento todo, era uma coisa, existia... Digamos [que] a minha responsabilidade era muito compartilhada porque todas as decisões, todas as posições, todos os argumentos eram muito discutidos, tinha uma preparação muito forte. Não foi desconfortável por isso, seria muito desconfortável se eu estivesse lá representando e não tivesse um processo fora articulado, aí seria… Talvez fosse terrível, porque teria uma responsabilidade enorme de contribuir com o processo pela sua própria cabeça, digamos assim, representando um negócio enorme. Mas como foi muito participativo, muito intenso, então foi tranquilo. Foi uma experiência superpositiva, não teve nenhum problema maior.
P/1 - Além desse fato que você citou, que você se lembrou da presença da CUT que foi muito importante, teve algum outro fato, evento marcante durante esse processo?
R - Sim, o movimento negro teve uma participação muito forte, o movimento indígena também, extremamente importante… Das mulheres, teve uma representante fortíssima na comissão executiva, também trouxe a pauta de forma explosiva. Foi impressionante porque, na verdade, a Rio 92, pra muito além da questão ambiental e da questão de desenvolvimento que ela tratou, ela permitiu que as instituições se conhecessem. Foi uma coisa impressionante, os movimentos brasileiros, nas várias vertentes, não se conheciam e não se relacionavam; além de não se conhecerem e não se relacionarem, havia muito preconceito, muita.. Era um processo totalmente fragmentado. E durante o processo da Rio 92, todos esses grupos se enxergaram. A minha surpresa foi de ver a força que esses grupos tinham, a identidade - quer dizer, eu não sabia que no Brasil tinha um movimento de jovens, por exemplo, tão organizado como teve na época da Rio 92. O movimento negro estava explodindo, mas era uma coisa impressionante de força. O de mulher, que me referi, o movimento negro e o sindicalismo mesmo, já numa fase de discutir mais do que a questão trabalhista, a questão do salário, mas discutir a questão da qualidade de vida no processo produtivo.
Mas isso também não era tranquilo porque os movimentos não eram totalmente identificados com a questão ambiental. Foi um processo de aproximação muito impressionante porque os movimentos sociais não tinham uma pauta ambiental, de fato eles não tinham. E a Rio 92 acabou criando um processo, uma espécie de uma mobilização em função de algo que ninguém sabia muito bem o que ia ser. Virou uma coisa impressionante: “A Rio 92, o mundo vai, todo o mundo vai parar e eu tenho que estar nessa, eu tenho que participar disso.” Foi engraçado, porque muito se percebia que muitas lideranças, muitos movimentos vinham porque tinham que estar nisso, “eu não posso perder essa”, e no processo passou de um estranhamento pra criação de uma série de parceiras, de integrações que não havia. Mas teve muito estranhamento.
Tinha reuniões da coordenação nacional que… A coordenação nacional, se não me engano, chegou a ter 21 organizações do Brasil inteiro. Tinha um critério de região, de origem, de tipo de movimento; era um jogo de xadrez porque todo mundo queria estar na coordenação, então você tinha que ter algo que te permitisse selecionar e essa seleção ser aceita pelo conjunto, ser legítima. E esse processo, só pra você conseguir reunir, ter legitimidade pra reduzir 1300 instituições com a expectativa de... Porque ser da coordenação nacional era um grande objetivo. E você tirar [de] 21 uma, você imagine o processo que era. Um balanço entre ambientalistas e não ambientalistas foi um processo inacreditavelmente rico, realmente foi.
A minha vida, particularmente, mudou radicalmente a partir da Rio 92 porque eu mudei, saí, mudei de instituição inclusive, depois da Rio 92. Na verdade, não é que eu mudei de instituição; eu não achei nenhuma instituição pra trabalhar, mas criar uma instituição (risos) que fosse uma instituição que pudesse - pelo menos pra mim e pras pessoas que junto comigo criaram - conter o que aconteceu depois, na evolução da mentalidade do pensamento, da percepção que a Rio 92 provocou.
P/1 - E qual o nome dessa instituição?
R - Instituto Socioambiental, que foi um processo incrível porque, no fundo, esse processo da Conferência do Rio, no Brasil, aproximou um grupo de pessoas. E um desses dois grupos que se foram aproximando foi justamente os ambientalistas - no caso eu era da SOS Mata Atlântica e o CEDI, que eu me referi, que participou da origem, da coordenação do Fórum também, mas parte do CEDI. Foi um processo muito legal, porque existia um grupo dentro desse CEDI que era uma organização, a maior organização brasileira na época junto com a FASE. E o CEDI tinha núcleos: o núcleo de trabalho do sindicalismo, trabalho rural, povos indígenas, educação. Eram núcleos que funcionavam dentro de uma grande organização. E um dos grupos mais fortes era justamente esse de povos indígenas no Brasil, que chamava Povos Indígenas no Brasil.
O que acontece é que o CEDI, junto com outras instituições e com o movimento indígena, trabalhou muitos anos para o reconhecimento da terra, quer dizer, o desafio fundamental para garantir a integridade física e a sobrevivência dos índios no Brasil era que as suas terras fossem reconhecidas, demarcadas e homologadas; sem a terra não havia futuro. O conflito era enorme, então eles trabalharam anos e anos num movimento fortíssimo e conseguiram, principalmente depois da constituição de 88, quando tiveram uma participação muito intensa. Eles conseguiram, vários grupos e não o CEDI, especificamente, mas várias instituições. O movimento indígena muito forte criou áreas muito extensas, o Brasil teve um período de criação de terras indígenas muito extensas - agora a última grande foi Raposa Serra do Sol.
O que acontece, o interessante foi isso: uma vez criada a terra indígena, começou a surgir uma outra preocupação que passou a ser tão importante quanto você demarcar e homologar a terra, que era a sustentabilidade da terra indígena - como é que você fazia para, uma vez o território garantido, garantir que ele seria sustentável no longo prazo. Esse grupo começou a se interessar e buscar respostas ambientais pros problemas da gestão territorial, né? Porque uma coisa é você ter um povos indígenas, como sempre foi historicamente no Brasil, que ele sempre, com uma grande mobilidade…. Quer dizer, os grupos indígenas se estabeleciam numa área, atuavam ali por alguns anos e depois, quando os primeiros sinais de escasseamento de recursos naturais começava a surgir, eles mudavam, então você tinha uma circulação grande e isso tinha até como consequência vários conflitos entre grupos indígenas. Mas quando você confina, mesmo que seja num território grande, ou seja, aquele grupo, aquele povo indígena não vai mais poder sair dali, então a questão da sustentabilidade não é mais a mudança de lugar, é a gestão, e isso então passou a ser uma pauta fundamental dessa organização. Por outro lado, eu, de minha parte, e as pessoas com que eu militava no movimento ambientalista, nós trabalhamos pra criar unidade de conservação; não só pra isso, mas uma das vertentes fortes, e ainda é no Brasil e no resto do mundo inteiro, uma das formas mais significativas de você proteger a biodiversidade é você criar unidades de conservação. Só que no Brasil - e não só no Brasil, no mundo todo, mas no Brasil particularmente - você não tem áreas vazias, você não tem floresta vazia, nem Mata Atlântica, que são áreas às vezes com baixa densidade, mas às vezes com um pouco mais, que estão ocupadas.
Eu participei, antes da Suécia, de um processo muito intenso que foi a criação da estação ecológica da Jureia. A Jureia foi criada e tem pessoas dentro, caiçaras dentro, na região litorânea toda, e no interior com alguns agricultores familiares. A questão, pra mim, era outra: como é que você tratava essa situação de forma justa, porque nós, quando criamos a Jureia, logo depois assinamos a associação em defesa da Jureia. No estatuto, que foi uma grande discussão na época, foi meio um sacrilégio para alguns grupos, mas nós colocamos no estatuto que era a missão dela não só defender a Jureia como estação ecológica, mas as comunidade residentes dentro da Jureia, ou seja, promover as condições pra aquela comunidade; a retirada das comunidades para nós era algo inadmissível, não é? Afinal de contas, a gente reconhecia que foi graças a aquelas comunidades que aquela área estava preservada, então tinha um debate muito forte na época.
Nós [estávamos] procurando respostas de como lidar com essa questão de ter pessoas vivendo dentro de uma estação ecológica, como é que você torna isso viável, como é que você garante a compatibilidade. Eu estava junto com o meu grupo, procurando pessoas da área da antropologia, da sociologia, buscando essas respostas. E esse grupo que era da antrolopogia e da sociologia, procurando os ambientalistas biólogos para discutir a questão da sustentabilidade dos territórios indígenas. Foi uma junção, e como nós nos juntamos, eu não cabia mais na SOS e o pessoal lá não cabia mais na CEDI; saímos e criamos o Instituto Socioambiental pra isso, pra trabalhar exatamente essa questão.
P/1 - Voltando um pouquinho então a Rio 92. Como resultado, a gente tem as duas convenções: sobre diversidade ecológica e mudança climática. Pra você, o que significa essas convenções?
R - É diversidade biológica, né?
P/1 - É, isso, diversidade biológica.
R - Mudança climática, mas também tem a Agenda 21.
P/1 - Sim, é.
R - Tem a casa do Rio que foi importante, tem o protocolo de florestas que também foi... Embora seja um protocolo sem… Não é um vinculante, também foi importante no debate, então além do processo da Rio 92, que mudou o... Porque as pessoas… A gente não pode olhar a Rio 92 como um momento em que se aprovou duas convenções; tudo bem, isso foi superimportante. Mas a Rio 92 foi muito mais do que isso, ela mudou o movimento ambientalista mundial e mudou o movimento social mundial. Não foi só no Brasil que isso aconteceu, isto aconteceu no mundo inteiro, porque ela colocou como meta discutir meio ambiente e desenvolvimento. Então essa coisa, que poderia ser apenas uma jogada de palavras ou... Mas na verdade, isso de fato aconteceu. A discussão entre meio ambiente e desenvolvimento, muito influenciada pelo relatório Brundtland, que foi elaborado antes, e que trouxe pela primeira vez de forma clara a correlação entre pobre e meio ambiente, a degradação ambiental e o impacto maior sobre os pobres, e toda essa relação entre limites dos recursos naturais, o problema do consumo… Ou seja, foram vários temas que surgiram e que influenciaram toda a sociedade mundial, foi um processo muito intenso nesse sentido. As convenções são resultado disso, [é] extremamente importante, mas isso é uma questão que tem que ser bem entendida porque, por exemplo, nós acabamos de sediar no Brasil a Conferência das Partes, a 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre a Diversidade Biológica. O Brasil, inclusive, se candidatou a sediar essa conferência na penúltima reunião porque a última foi em Curitiba; foi em Kuala Lumpur e eu participei junto da Marina Silva, já como secretário, né? E lá, durante a reunião, nós discutimos a importância de trazer para o Brasil essa conferência. O Brasil nunca tinha sediado e nunca sediou nenhuma conferência das partes de nenhuma das duas convenções - aliás, de nenhuma convenção. Sediou a de desertificação, mas na área da biodiversidade ou de clima ela não havia sediado nenhuma. E mais uma vez, o que discutimos ali foi o seguinte: “Poxa, o Brasil teve um processo de mobilização enorme, teve uma série de… Promoveu modificações muito fortes na forma de pensar das suas ONGs, movimentos sociais atuarem e tá na hora da convenção voltar ao Brasil, né?”
A gente promoveu uma… Revisitar isso, o que aconteceu. E por isso a gente fez a loucura ali, nós discutimos ali e a ministra achou que era razoável; nós logo nos candidatamos e foi aprovado por unanimidade na hora. Foi uma coisa que caiu assim, quase que ovacionada. E depois nós tivemos que correr atrás de acertar internamente isso. (risos)
Mas o que acontece? Uma convenção, ela… [Para] você trabalhar no âmbito de uma convenção das Nações Unidas, você tem que ter uma dose enorme de sangue frio, de persistência e objetividade, porque a convenção… Quer dizer, o problema não é a convenção, o processo decisório das Nações Unidas é um processo extremamente complexo, longo e difícil, porque tudo é por consenso, não se vota. Isso quer dizer que um país, literalmente um país, seja desenvolvido ou não, seja do norte ou do sul, seja do leste ou do oeste, um país membro pode bloquear uma decisão, então isso faz com que os processos negociadores sejam extremamente penosos. Pra conseguir avançar no processo negociador você tem que preparar documentos e esses documentos vão sendo lapidados como se fossem uma jóia, uma pedra, um diamante - não sei se a comparação é boa porque nem sempre o resultado é um diamante, tá certo? Polido. Mas... (risos) Você tem que ir polindo. A gente joga lá, todo mundo bota o que quer ali, eu coloco o que eu acho como país, aí o outro país discorda e coloca entre parênteses o que ele quer dizer, significa que eles querem discutir aquilo que não está aprovado. E é uma luta de pôr e tirar parênteses. A gente brinca isso, é quase que um ritual, sabe? O ritual dos brackets - em inglês, parênteses; colchetes, na verdade. Pra quem está olhando esse processo, isso é muitas vezes algo quase que ridículo porque as coisas [estão] acontecendo, a biodiversidade sendo destruída num ritmo avassalador, as mudanças climáticas acontecendo e as pessoas ali pondo e tirando parênteses. Então parece um negócio que num leva a nada.
Isso me lembra sempre, brinco que tem - brinco não, sempre lembro de um poema do Drummond de Andrade que ele fala exatamente disso. Eram dois jogadores de xadrez do lado de fora de uma muralha e dentro, eu não me lembro de qual guerra que ele se refere agora, mas era uma guerra tipo Troia, sei lá, uma guerra desse tipo. A guerra acontecendo e as pessoas morrendo, sendo esquartejadas, mulheres sendo estupradas, e os caras jogando xadrez do lado de fora da muralha. O mundo se acabando. (risos) Então, esse processo, pra quem não está nele e não vê um caminho ou um destino, isso é desesperador; foi o que aconteceu agora. O problema é que não tem outro caminho! Mas é uma coisa… Essa que é questão maluca do negócio: como é que você vai fazer pra que 188 países assumam compromissos numa direção se não for por consenso? Sem consenso você vai guerrear, vai impor militarmente? Você não vai poder fazer isso, seria a antítese das Nações Unidas.
É um processo extremamente moroso, mas você olhando seu alvo, seu objetivo, a gente vê um monte de avanços que ocorreram. Coisas que as pessoas muitas vezes não se dão conta, mesmo as pessoas da área mesmo, pessoas que militam na área. Um exemplo simples: antes da Rio 92, antes da Convenção sobre Diversidade Biológica, não havia a ideia e o sentido da biopirataria porque a biodiversidade era de todos, era “patrimônio da humanidade”, se ela estivesse no Brasil, no Canadá ou na Índia, tá certo? Eu, se estivesse como país desenvolvido, com uma indústria com capacidade científica forte, eu ia lá, utilizava isso fim de papo, quer dizer, não existia o princípio da soberania dos países sobre a biodiversidade contida em seus territórios, portanto não havia biopirataria. Isso foi um sentido trazido pela Rio 92, pela Convenção sobre a Diversidade Biológica. Outro princípio: do conhecimento tradicional associado. O conhecimento tradicional sempre foi tratado como não-conhecimento, não merecedor de qualquer tipo de referência ou sem nenhum sentido de importância, embora todos os laboratórios, todos os pesquisadores, todos os que trabalharam, que pesquisaram a chamada pesquisa moderna, dita científica, sempre se utilizaram desses conhecimentos para chegar a identificar plantas, ou animais ou substâncias, princípios ativos que pudessem levar a uma descoberta. Todos trabalharam assim, mas esse conhecimento nunca foi reconhecido e foi a Convenção sobre a Diversidade Biológica que colocou o conhecimento tradicional no mesmo nível do conhecimento científico acadêmico; tem que ser valorizado e tem que haver remuneração por esse conhecimento. E assim outras questões de princípio que a convenção trouxe, que são extremamente importantes e que modificaram a compreensão da humanidade. Isso foi uma questão cultural, civilizatória, você passar a tratar a biodiversidade como algo que pertence, no bom sentido da palavra… Porque num outro dia até, num debate eu citei que uma das importâncias da convenção foi o fato de reconhecer a soberania dos países, das nações sobre a biodiversidade, e aí alguém me criticou muito fortemente, dizendo que a soberania é um princípio chauvinista, “soberania que nada, isso é ridículo, tem é que preservar.” Mas o que eu quis dizer, o que a convenção diz, não é soberania pra destruir, é a soberania para conservar, usar de forma sustentável e repartir o benefício. É esse o sentido o espírito da soberania que a convenção traz, não é? Não é que qualquer país pode fazer o que quer, mas os países têm responsabilidade, têm a autonomia e o direito a autorizar e a não autorizar, a orientar o uso dessa biodiversidade da forma como o país, a nação considera que é correto, né? Isso é um princípio fundamental e tem implicações enormes: por exemplo, se os países soberanos, e o Brasil, que é o país mais megadiverso entre os megadiversos, o país com a maior diversidade biológica do mundo... Nós temos dezessete países megadiversos no chamado mundo não-desenvolvido. Se você pegar todos: Índia, China, Brasil, todos os países aqui da América Latina, da Bacia Amazônica, são dezessete países, estão fora desses países desenvolvidos, esse é o chamado de grupo dos países megadiversos. O Brasil é o país mais megadiverso desses países, é o país mais megadiverso do mundo. Então se a nossa diversidade biológica pertence à sociedade brasileira e portanto o Brasil, nação brasileira, deve tratar dessa biodiversidade como um patrimônio seu, portanto o seu uso e a sua conservação deve se dar de acordo com um processo decisório nacional. Isso tudo bem internamente, agora no plano internacional você só resolve este problema entre os países se você tiver um regime internacional de acesso e repartição do benefício, ou seja, como é que você vai fazer que um outro país obedeça a sua autodeterminação nacional sobre aquele recurso biológico, sobre aquele princípio ativo, sobre aquele extrato? Isso só vai prevalecer se você tiver um regime internacional de acesso. Então desde o início da convenção, desde as primeiras reuniões das partes, se discutia isso: “Nós precisamos de um regime internacional de acesso que regulamente isso, que vincule os países num processo de respeito à autonomia dos países e de repartição dos benefícios, inclusive do conhecimento nacional associado, remunerando o conhecimento nacional associado [dos] povos indígenas, dos quilombolas, ribeirinhos etc.”
Esse processo, evidentemente, para um país como o Brasil é visto como algo estratégico porque isso vai, concretamente, impedir patentes de produtos da biodiversidade brasileira, como ocorreu recentemente com o cupuaçu e outros; e vai exigir um acordo de transferência de tecnologia, de remuneração do Brasil, ou seja, o Brasil é um óbvio beneficiário de um regime internacional de acesso e repartição de benefícios. Já os países desenvolvidos que não têm a biodiversidade, que têm a tecnologia e o conhecimento científico para transformar essa biodiversidade em produtos, para eles, um regime internacional de acesso de recursos genéticos e repartição de benefícios é algo que em tese não interessa; quanto menos você estiver regulado nesse negócio, mais “livres” são as relações. É um debate que está ocorrendo desde o princípio.
O que aconteceu agora, lá em Curitiba? O Brasil teve uma posição muito agressiva, no bom sentido, nesse processo. Aliás, o Brasil nos últimos anos assumiu uma liderança muito forte na convenção sobre diversidade biológica. Ele já tinha uma importância, uma influência muito grande na de clima, tanto que o MDL, tudo isso foram modelos sugeridos pelo próprio Brasil.
O Brasil liderou processos importantes e agora teve um papel decisivo em Montreal no ano passado, 2005, com a questão do chamado desmatamento evitado na convenção, um negócio muito importante que nós vamos trabalhar muito daqui pra frente. Mas na biodiversidade, nós tínhamos como meta, já há um bom tempo, viabilizar esse regime internacional, que nunca era viabilizado, sempre se empurrava com a barriga, de que forma os países que são contrários tentavam inviabilizar na negociação diplomática. Nenhum país pode chegar e dizer “sou contra” porque seria politicamente inviável e inaceitável; ele não pode ser contra se ratificou a convenção, tem que ser a favor porque a convenção prevê isso. Agora, ele pode atrapalhar, como? Primeiro não deixar que nenhum documento cheio de parênteses ou não seja pré-aprovado, ou seja, uma forma de eu impedir que o projeto avance é eu não ter nenhum documento, cada reunião é um novo documento, então recomeço do zero. Se eu tiver um documento que vai evoluindo de reunião pra reunião, chega um momento em que o tal do diamante foi lapidado e ele está pronto, né? Então uma das formas era impedir o documento. Outra forma era não ter prazo: vai fazendo, vai tocando.
Agora em Curitiba nós vencemos esses dois desafios: conseguimos um documento, que é o documento que vai seguir agora sendo lapidado, que vai permitir avanço, e definimos uma data, que é no máximo até a COP X [Conferência das Partes], daqui a quatro anos, no máximo. Pra quem está de fora, pras populações que estão de fora, pras populações indígenas, pras muitas ONGs que trabalham nesse processo, isso é quase que ridículo, porque nós tínhamos que ter esse regime aprovado já há muito tempo e agora só daqui a quatro anos. Do ponto de vista de uma análise, digamos, pragmática é um absurdo! Pragmática no sentido de que eu preciso resolver o problema. Mas do ponto de vista da negociação internacional foi um avanço fenomenal; as pessoas que vêm negociando isso, tentando obter o regime, saíram de lá soltando rojão. Foi a maior vitória de todas as conferências anteriores.
Essa questão é um negócio difícil de se trabalhar porque, de fato, a velocidade do processo negociador entre os países é totalmente descasado, desproporcional em relação à gravidade do problema, porém, sem essa negociação nós não chegaríamos a ter nenhuma solução pro problema do mesmo jeito. Então, [para] trabalhar numa convenção dessas você tem que ter muito sangue frio, muita calma, muita objetividade e não deixar de trabalhar as agendas de proteção de conservação. No caso do Brasil, por exemplo, nós não podemos amarrar todos os nossos processos numa convenção internacional; convenção internacional é um espaço fundamental, nós temos que pendurar muitas questões nela, mas temos que ao mesmo tempo construir ações fortes no Brasil de conservação, inclusive não só no Brasil.
Na relação bilateral, na relação com os países amazônicos, por exemplo, estamos fazendo um trabalho bem legal agora, digo o governo federal, nesse momento que estou no governo federal; um negócio muito legal, envolvendo os países da bacia amazônica num processo internacional de conservação. Acabamos de fazer uma iniciativa agora superimportante na região do Sul, nos campos sulinos, nos pampas envolvendo Brasil, Uruguai e a Argentina numa gestão integrada desse bioma importantíssimo que está sendo destruído também, que tem uma altíssima biodiversidade. Então você tem formas de trabalhar nacionalmente, regionalmente, internacionalmente e mundialmente através da convenção.
Estou falando muito, mas isso é pra… Sintetizando, na realidade, a convenção é fundamental. Ela foi uma conquista mundial, planetária, e nós temos que fazê-la valer, garantindo que ela avance, definindo protocolos, que vincule países a tomar decisões numa direção acordada, e ao mesmo tempo tendo iniciativas fora do ano da convenção, mas que façam uma conversão na direção da convenção.
P/1 - Usando até um termo muito empregado pela imprensa, o Brasil tem feito a lição de casa em relação a essas convenções?
R - Olha, essa é uma outra questão particularmente muito sensível pra mim porque eu nunca estive no governo. Eu sempre estive fora do governo, lutando, no sentido de que o Brasil fizesse mais. Eu não tenho dúvida de que a situação no Brasil hoje, se for comparar com a época da Rio 92, a mudança foi radical. No campo legal, nós avançamos monumentalmente no campo da compreensão, da conscientização avançamos pra burro, no campo da implementação avançamos muito. Só que nós temos um problema claro, que é o seguinte: o passivo é enorme, quer dizer, a distância entre o que nós temos que fazer com o que podemos fazer é algo muito impressionante.
Criamos agora lá na Amazônia, só pra dar um exemplo, nesses últimos três anos nós criamos 150 mil quilômetros quadrados de unidades de conservação, de proteção ambiental, só na Amazônia. Isso significa o estado do Acre inteiro - só federal, fora os estaduais, criando uma barreira na expansão da fronteira agrícola. Foram unidades de conservação criadas em lugares estratégicos, não foi simplesmente criar em locais mais inacessíveis, embora... É superimportante você criar, por exemplo, um parque estadual Tumucumac que fica no Amapá, quase na divisa do Brasil com a Guiana. Claro que é importante criar, mas do ponto de vista de impacto na redução do desmatamento é pequeno, porque o desmatamento não está lá, está subindo pelo chamado arco do desmatamento, abraçando a Amazônia pelo leste do Pará em direção ao oeste, pelo sul, vindo do Mato Grosso, de Rondônia, então esse que é o movimento.
Esses 150 mil quilômetros quadrados que nós criamos foi exatamente na frente da expansão da fronteira agrícola. Pra quê? Pra criar literalmente uma barreira ecológica contra a expansão predatória do desmatamento. Isso resolve o problema? Não resolve o problema, então fazer um movimento desse, que é dificílimo de fazer, tecnicamente muito difícil, politicamente extremamente difícil… Pra fazer isso foi um trabalho monumental de esforço de governo. Só um governo com muita decisão, com muito foco e com muita vontade de fazer, é capaz de fazer isso. E continua, vamos chegar a mais de duzentos quilômetros quadrados até o final desse ano.
É uma revolução, do ponto de vista de criação. Se isso acontecer, só pra se ter uma ideia, em quatro anos, a sociedade brasileira, o Governo Federal terá contribuído com mais de 43% de tudo que se criou na Amazônia em quinhentos anos. Se somar o quanto eu vou ter de unidade de conservação no final desse ano de 2006 e ver quanto que foi criado nesses quatro anos, eu vou ver que isso significa 43% do total, por baixo; pode ser mais. Então é um esforço enorme. Por outro lado, a frente de predatória, a agressividade do processo é tão intenso que a sensação vai ser sempre aquela: “Poxa vida, eu não fiz nada”, não é?
Nós temos hoje na Amazônia um desafio que não é algo para um governo, não é um algo para uma área de um governo, muito menos, é algo que a sociedade brasileira - não só brasileira, mundial vai ter que fazer. Todo o processo da civilização ocidental, se você for olhar, ela se deu sobre os recursos naturais. A Europa, a América do Norte, a Mata Atlântica… Essas regiões mais desenvolvidas do Brasil, São Paulo - nós estamos aqui, no lugar mais desenvolvido do Brasil, e a Mata Atlântica aqui recobria 80% do território; hoje ela recobre 7% do território, talvez 10%, depende dos cálculos. Esse processo se deu removendo a floresta. O Brasil não se desenvolveu com a floresta, ele se desenvolveu contra a floresta. E esse modelo que varria a Mata Atlântica, que varria o cerrado, ele está varrendo a Amazônia, mas não é algo que surgiu agora, é um modelo que sempre foi adotado não só no Brasil, no mundo todo. Só que a capacidade de conversão que a humanidade hoje tem é impressionante.
Até a década de 50 do século passado, nós tínhamos 50, 60% da Mata Atlântica. A destruição da Mata Atlântica de verdade, em termos gerais, por exemplo, no Paraná, em Santa Catarina, no interior de São Paulo, foi no século passado, ou seja, quarenta anos atrás que isso aconteceu de forma violenta, porque no início toda a colonização [a] destruiu na região do Rio de Janeiro, na região litorânea, e em algumas regiões de São Paulo - mas assim mesmo o Rio de Janeiro, por exemplo, tem mais de 20% do território com cobertura florestal.
O processo avassalador de destruição não é antigo, é recente e chegou na Amazônia com tudo. Então reverter isso, não é combater o desmatamento, porque as pessoas não têm um ímpeto de desmatar por nada: “Eu vou desmatar porque eu odeio árvore, odeio flor.” Não é isso, é um modelo econômico, é uma lógica, não é? É uma lógica econômica forte, financiada, fomentada culturalmente, economicamente e financeiramente, né? Você tem que reverter isso, e reverter isso significa reverter uma visão de desenvolvimento regional. Você não faz de um dia pro outro, é um processo.
Eu acho que o Brasil está avançando nessa direção. Sinceramente, eu sinto isso, eu vejo isso acontecer. Estando no governo, inclusive, eu vejo isso acontecer, cada vez mais os processos vão indo nessa mudança. O problema é saber se vamos conseguir fazer essa mudança a tempo. Qual é o tempo dessa mudança? Porque as forças que querem manter o sistema como está… Se você pega o Congresso Nacional, ele é majoritariamente ocupado por parlamentares que têm essa visão ou se formaram nessa visão. Pra eles, é uma visão de futuro pro país, não é uma questão, não é um debate de de bons contra maus; isso é uma visão monoteísta meio absurda de que tem os bons que querem conservar e tem os maus que querem destruir. Não, é visão de futuro.
Você tem parlamentares - que são a maioria no Congresso Nacional - que acham que o futuro da Amazônia, o combate a pobreza, a inserção social, coisas positivas, meritórias, têm que se dar com a substituição da floresta por soja e pecuária, é uma visão. E trabalham diariamente com essa agenda. Você tem dentro do governo pessoas que pensam assim, dentro dos governos estaduais lideranças que foram eleitas, que têm mandato, que pensam assim. Então você tem que virar, mudar essa lógica, e mudar essa lógica não simplesmente denunciando ou com campanha, porque eles também fazem campanha.
Todos querem o quê? Todos querem o desenvolvimento, todos querem a melhoria da qualidade de vida, todos querem geração de emprego e renda, todos querem acabar com a miséria, todos querem, nós queremos. Então, como fazer isso? Nenhum país do mundo fez isso que o Brasil pode fazer, que é gerar emprego e renda, inserção social, melhorar e se desenvolver mantendo uma floresta como a Amazônia, não é? É um desafio civilizatório e acho que nós estamos avançando nessa direção. Eu sinceramente acho - eu não sou pessimista - que os resultados são muito concretos e as coisas estão mudando, nós estamos avançando numa agenda de construção de um novo paradigma. E como eu disse, o desafio agora já não é mais pra mim buscar um novo paradigma; um novo paradigma já é visível, já está percebido. O desafio agora é fazer ele ser viável em tempo. Estamos correndo contra o tempo, e essa corrida é angustiante, mas você não pode ficar desesperado, porque se você ficar desesperado você não vai chegar.
P/1 - E qual, ao seu ver, qual a participação da sociedade civil nesse processo?
R - Sociedade civil organizada, você fala? Bom, é fundamental porque ela tem um... Aconteceu agora uma coisa em Curitiba bem interessante, que eu acho que simboliza bem isso. Quando nós terminamos a Conferência de Curitiba, nós fizemos uma avaliação. Nós, que eu falo, é toda a delegação brasileira que trabalhou na negociação. E a nossa avaliação foi extremamente positiva, em duas frentes. Uma enquanto Brasil, mais uma vez ali… Eu reencontrei literalmente todo mundo em Curitiba, é impressionante, todo mundo que lida com essa agenda esteve em Curitiba. Tinha mais de duzentos estandes de organizações, de empresas, de projetos, uma troca absurda de informação, de experiência; aquela coisa dinâmica, duzentos eventos paralelos acontecendo de debates, todos lotados. Quando nós organizamos e eu vi que tinha duzentos eventos, eu falei: “Pelo amor de Deus, isso é brincadeira. Vai ficar gente em sala falando pra meia dúzia.” Mas todos lotados, uma coisa impressionante. Uma cobertura enorme da mídia, quer dizer, um assunto... Então, acho que do ponto de vista de contribuição, de cumprir um objetivo e de recolocar a questão, de debater e reaproximar as partes, de dinamizar, tudo isso que o Brasil vem fazendo foi nota dez.
Do ponto de vista dos resultados da convenção, da reunião, também eu acho que a gente conseguiu uma data pro regime internacional de acesso, pra gente conseguir um documento base. A gente conseguiu ter uma posição contra as chamadas sementes estéreis, que pra nós é um problema gravíssimo. Essa tecnologia que introduz na semente essa sua incapacidade de se reproduzir, isso pra nós é algo que pode ter um impacto enorme na biodiversidade e o lobby pra liberar isso foi enorme, manter isso foi uma guerra. A questão da informação das cargas de transgênicos no momento da exportação também foi uma guerra - aliás, nesse campo o Brasil… É outra frente que o Brasil tem um papel importantíssimo em posição planetária, porque o Brasil é o último grande produtor de grãos que pode - que pode e não conseguiu ainda - mas pode conseguir a chamada convivência entre o transgênico e o não transgênico. Os países como Argentina, Canadá, Estados Unidos e outros - a própria Índia agora está entrando nisso - eles não têm mais como fazer isso, porque você só consegue fazer isso mantendo um sistema de segregação muito forte, onde você preserve as duas atividades. Como esses países não preservaram, a contaminação foi total. Então hoje, por exemplo, você não tem mais como ter soja convencional na Argentina; é tudo misturado, você não tem como separar. O Brasil ainda pode fazer uma segregação, então por isso a agenda foi tão forte na busca dessa informação no momento da importação porque isso reflete pra dentro.
Agora estamos ali avaliando o quê? Pra quem estava negociando ali, avaliando os avanços: “Aqui nós não avançamos tanto, mas aqui avançamos muito”, com uma sensação de: “Poxa vida, valeu a pena o esforço.” No mesmo momento uma ONG, o Greenpeace solta uma nota dizendo que foi um fracasso total. Isso foi interessante, porque isso bateu naquela equipe que estava ali reunida: “Pô! Mas como um fracasso total?” Antes de que as pessoas ridicularizassem o manifesto, alguém disse: “Mas tá certo. “Como tá certo?”, “Tá certo, eles estão pondo mais pra frente a agenda. O passivo é tão grande, o desafio é tão grande que o buraco é mais embaixo, então foi um fracasso porque não resolveu tais e tais questões.”
Eu discordo dessa visão, mas é como trabalha o movimento. Eu sempre digo que o movimento ambientalista, e eu acho posso falar porque eu sou parte dele, embora esteja no governo provisoriamente, o movimento ambientalista e o movimento social, como um todo, tem um defeito que hoje eu vejo com muita clareza, que é o de não comemorar as vitórias. O problema é tão grande, a distância entre o que nós temos que fazer e o que estamos fazendo é tão grande, a destruição, a extinção é tão acelerada, o desmatamento é tão impressionante que se eu consigo reduzir 31% do desmatamento não posso comemorar, porque mesmo assim foram dezenove quilômetros quadrados, que é um absurdo, é verdade! Realmente é um absurdo. Agora, reduzir 31% do desmatamento é uma vitória que o movimento conseguiu, não foi o governo. O governo está fazendo o quê? Está implementando ações que a sociedade está cobrando, está propondo. O governo tem que fazer isso, o governo representa um projeto de sociedade; se a sociedade brasileira, o projeto dela, os projetos ambientalistas não fossem esses, nós não teríamos conseguido fazer. Então é um dilema, é uma sensação de que você nunca pode comemorar porque se você comemora você relaxa, então não pode, sabe? Temos que continuar pressionado.
Tem uma lógica, mas eu acho ruim porque as pessoas, a sociedade não se mobiliza por derrotas; a sociedade se mobiliza também por esperança, também por sensação de “pô, nós estamos avançando”. Nós não podemos viver num país como o Brasil, como eu chamo, com o chamado o complexo de vira-lata: “Pô, o Brasil melhorou, mas não melhorou o suficiente. Falta muito, então eu não posso compartilhar, eu não posso comemorar! Falta tanto que eu não posso comemorar.” Eu acho isso equivocado, mas entendo a lógica. Quando você está no governo você tem que sempre administrar dessa forma, sempre estar muito atento a esses movimentos, a essas postulações, a esses processos pra atendê-los, porque eles são legítimos, eles são corretos, e ao mesmo tempo saber interpretar essa crítica, que às vezes parece uma crítica excessiva como “o buraco é mais embaixo, o desafio é maior então continuem trabalhando pra fazer mais, afinal de contas é obrigação de vocês que estão aí agora”. (risos)
P/1 - João Paulo, você está com mais um tempinho ou vamos encerrando?
R - Não, eu vou precisar encerrar, infelizmente.
P/1 - Tudo bem. Então vamos à última questão que... As duas últimas, mas são rápidas. Eu só queria que você me dissesse quais as principais lições que você tirou da sua carreira?
R; Ah... (pausa) Olha... Eu acho que é uma… É difícil dizer quais as principais lições porque no fundo é tudo misturado. Eu não sei o quanto veio da carreira, o quanto veio do meu casamento, o quanto veio da minha relação com os meus pais, o quanto veio da minha relação com meus amigos. Carreira não é uma coisa isolada, carreira é algo que está inserido numa relação social, então eu não sei o que é o que veio da carreira. O que eu sei é que tem a ver não só com a carreira, mas tem a ver com a vida pessoal, com a vida de quem tem uma certa tendência a querer mudar as coisas, que eu acho que eu tenho. As pessoas que estão nessa área têm uma certa tendência a não se conformar, a querer mudar a realidade.
Eu não sei onde peguei esse vírus - ou sei lá, esse defeito, sei lá o que é - [de] achar que as coisas podem ser melhores, porque tem gente que tem uma relação mais tranquila com isso, vive a realidade como ela é e de forma mais conformada. Eu não consigo viver assim, acho que não consigo me conformar que nós vamos caminhar inexoravelmente pra uma destruição total do planeta. (risos) Porque no fundo tem gente que não se preocupa com isso.
Eu acho admirável que as pessoas possam viver e usufruir do planeta e das coisas sem nenhum tipo de dor na consciência, de preocupação. Eu fico incomodado com isso. Acho que a gente tem que mudar. Pra quem tem essa preocupação, essa coisa que incomoda de querer mudar, de que tem outros caminhos, que temos que liderar outros processos, o mais importante é a perseverança mesmo assim. É uma coisa que eu aprendi, sem querer ser ditador de regras, o que acho que é um defeito das pessoas. Você não convence por imposição, você não lidera pela imposição; você lidera pelo exemplo, você tem que liderar pelas ideias. Isso exige um processo de construção coletiva e é muito mais difícil você construir coletivamente, mas é a única forma porque qual é a outra opção? É a imposição, é o autoritarismo, é a ditadura, a ditadura ecológica, sei lá, o que seria uma tragédia pior do que a ditadura militar ou sei lá o quê.
O que você vai fazer? Tem que administrar isso de forma a não se tornar o que algumas pessoas hoje se tornaram, amigos meus, pessoas que militaram nisso e se tornaram pessoas amargas, quase que considerando o resto das pessoas como pessoas que não têm, que não merecem créditos. É uma coisa assim, meio absurda; se isolaram, pessoas que saíram do movimento, que se isolaram do movimento, se tornaram pessoas muito, muito duras. São vários exemplos assim. Se eu pegar da Rio 92 pra cá muita gente saiu, muita gente desistiu, muita gente se isolou, né?
Acho que esse é o erro. Acho que você tem que trabalhar no processo de construção coletiva. Nós não vamos salvar o mundo. O que a gente pode fazer, se todo mundo quiser, é melhorar as coisas, e eu acho que pode pra melhorar muito. Sei lá, não sei se respondi a sua pergunta, mas é mais ou menos por aí. (risos)
P/1 - Respondeu sim. E a última pergunta, então, é o que você achou de ter participado desse projeto de memória.
R - Olha, eu estou achando um negócio muito legal. Eu ainda não vi tudo, mas eu... Essa é uma questão que sempre me incomodou: a falta de documentação. E essa documentação não é só escrita, não é escrever um livro; é você documentar a opinião, a percepção das pessoas. E eu espero que o uso disso seja amplo, que a gente possa disponibilizar isso, [que] isso possa servir para que as pessoas entenderem o processo de outras pessoas. Acho que o mais legal é isso, é entender como que a pessoa percebeu aquilo, como você percebeu e a outra percebeu; você entender a lógica da percepção do outro e como isso te influencia é uma coisa superimportante.
Eu me ressinto muito de não ter feito algo durante a… Durante não, mas logo depois da Rio 92, nós chegamos, um grupo de pessoas que trabalhou muito intensamente, inclusive na própria organização do Fórum Social, Fórum Global. Foi uma loucura aquilo, aquele Fórum Global Mundial foi uma loucura, um episódio único na história do planeta, da sociedade, não-governamental. E nós nos comprometemos a fazer, a registrar essa memória. Nós chegamos até a identificar uma pessoa, um historiador, uma escritora que ia sentar conosco. Iríamos passar uma semana, alugar uma casa em algum lugar e reunir ali umas cinco ou seis pessoas, que foram aquelas que seguraram a rédea do processo intensamente, que viveram intensamente pra registrar, desde episódios menos importantes, mas que hoje seriam superinteressantes [de] serem contados, até coisas da negociação, da Convenção, do debate entre visões norte e sul entre as ONGs que vão - um episódio importante também isso, como as ONGs do norte viam a questão da biodiversidade e as do sul. Teve brigas entre as ONGs por visão, não é? Tudo isso queríamos registrar e não fizemos. E eu acho isso um crime, porque você não registra e isso desaparece. Você perde a história, a história contada dessa forma. Então eu acho fantástico esse projeto e eu espero que ele de fato disponibilize essa informação de forma interessante também, porque também não adianta a gente pôr uma hora de fala de todo mundo, de cada um, porque não vai resolver. Tem que fazer uma edição disso, tem que fazer um… Espero que isso seja feito e foi um prazer pra mim participar.
P/1 - Obrigada, João Paulo, foi um prazer também nosso.
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