Projeto Conte Sua História
Depoimento de Paola Valentina Xavier
Entrevistada por Rosana Miziara
PCSH _ HV851
Em 04 de junho de 2020
Transcrito por Fernanda Regina
R – É o Museu que eu mais adoro, que eu mais admiro, que eu mais tenho afeto, sabe? Tudo que vocês já fizeram até agora. Então, ...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Paola Valentina Xavier
Entrevistada por Rosana Miziara
PCSH _ HV851
Em 04 de junho de 2020
Transcrito por Fernanda Regina
R – É o Museu que eu mais adoro, que eu mais admiro, que eu mais tenho afeto, sabe? Tudo que vocês já fizeram até agora. Então, para mim é muito especial, de verdade.
P/1 – Nossa, para a gente é um carinho, assim, convidamos com muito, muito carinho, temos muito, muito afeto por você. E eu acho que as nossas duas instituições têm uma sinergia, identidade total.
R – Total, total. A gente é um museu de transformação, a gente é um museu social e a gente, né? E vocês, inclusive, por não ter esse espaço físico, tal, como os demais museus, todos estruturados ba ba ba. Então é isso, sabe? O social é aqui embaixo, pega muito mais embaixo do que em cima. Então tem todo esse ditado, essa construção que a gente vem fazendo, isso é maravilhoso.
P/1 – Bom, Pa, como eu estava falando, a gente vai fazer um mergulho na sua história de vida.
R – Ótimo.
P/1 – Eu vou perguntando, eu vou conduzindo. É claro que a memória quando você vê, você começa falar uma coisa, você já está lá embaixo, é super normal, você fica super à vontade, se você precisar fazer alguma pausa, você dá um toque.
R – Claro, claro.
P/1 – Vamos viajar juntas, assim.
R – Vamos, vamos viajar juntas, porque você... Deixa eu só desenrolar aqui o fonezinho.
P/1 – Eu vou perguntar desde priscas eras até hoje no Covid (risos). Até pós Covid, pós Covid vai ser uma loucura.
R – Pós Covid é festa, pós Covid é festa, é sagitariana, é evolução (risos). Maravilhosa! Não, meu amor, o que você quiser, pode perguntar o que você quiser, eu você sabe que não tenho problema com nada.
P/1 – Paola, vamos fazer um exercício, fechar um pouquinho o olho e voltar, tentar voltar para as suas imagens mais antigas que você lembra da sua infância, da sua história de vida, que imagem que te vem à cabeça, vai tentando internalizar esse momento, ir a fundo, vai tentando se conectar com esse passado, com o início da sua vida.
R – É muito boa essa conexão, né? A gente até já fica emocionada porque é muito boa...
P/1 – Que imagem que te veio?
R – Veio a minha casa, veio a imagem da minha casa, dos meus avós que foram as pessoas que me criaram com tanto amor, com tanta dedicação, sabe, imagens e sensações e até cheiros, sabe? Cheiros da hortinha que a gente tinha no fundo de casa no interior, da comida do meu avô, a melhor sopa do mundo era dele, o amor que eu tive, né? Por esses avós, porque eu sou gêmea, né? E, na época, minha mãe não conseguiu ficar com as duas crianças e eu com dois meses fui morar já com meus avós. Isso foi um presente, sabe? Sabe, isso foi um presente. A minha mãe sempre teve uma dor internalizada, que ela sempre falava para mim, até antes dela falecer, há seis, sete anos atrás, ela falava: “Eu nunca te abandonei, eu simplesmente não pude ficar com você”. Eu falei: “Mãe, você fez a melhor coisa que você podia fazer da sua vida, porque eu tive o melhor amor, eu tive, sabe? A melhor estrutura em relação à família”. E, para eu ser quem eu sou hoje, graças a essa estrutura familiar que eu tive, a esse amor, essa direção. Essa coisa dos meus avós, eles me fizeram entender o mundo em uma outra perspectiva, enfim... São momentos muito mágicos e icônicos na vida da gente.
P/1 – Então vamos contar toda essa história. Paola, vamos começar de uma maneira bem tradicional, começar não, já começamos, já começamos há muito tempo. Qual é o seu nome, data e local de nascimento?
R – Meu nome Paola Valentina Xavier, eu nasci em 19/12/1985 na cidade de Americana, interior do Estado de São Paulo.
P/1 – Seus pais são de Americana?
R – Assim, os meus pais... A minha mãe é... Desculpa, deixa eu lembrar, espera aí. Não, a minha mãe não nasceu em Americana, depois vocês vão editando, né?
P/1 – Não, pode falar, não tem problema.
R – Depois vocês editam o negócio. Não, a minha ela foi nascida em Barretos, também interior do Estado de São Paulo, o meu pai, para ser bem sincera para você, eu não sei, porque eu nunca tive muito contato com ele, foi uma pessoa totalmente, meio que, para ser bem sincera para você, indiferente na minha vida na questão desse contato de família. Então, a minha mãe eu sei todas as informações, já meu pai, não sei não.
P/1 – E seus avós, são do interior, os pais dela?
R – Os meus avós são de Minas Gerais, os dois, o meu avô foi nascido em Canoeiros, uma cidade chamada Canoeiros em Minas Gerais, e minha avó era de Patos de Minas Gerais, então é uma família que a gente vem dessa coisa mineira. Aí, depois, eles se mudaram para Barretos, acho que conheceram lá, porque meu avô vem daquela cultura, imagina, trabalhou em fazenda, essa coisa. Eles acabam se conhecendo em Barretos, a minha avó era neta de fazendeiros, essa coisa toda, lá em Barretos, na época. Barretos tem uma história muito forte com a minha família, sabe? E eles são dessa região.
P/1 – E você conviveu com seus avós, foram com esses avós que você foi criada?
R – Sim, foram, foram os meus avós paternos, eu fui criada pelos meus avós paternos, eu fui criada pelos meus avós maternos... Aí foi a melhor coisa da vida.
P/1 – Como que aconteceu? Sua mãe teve você em Barretos, por que ela teve você lá?
R – Não, eu nasci em Americana.
P/1 – Americana, por que ela teve você em Americana?
R – Então, porque aí eles tinham mudado para lá em Americana, na realidade, os meus avós eram mineiros mudaram para Barretos e vieram tentar a vida em Americana. Na realidade, como meu avô sempre me dizia, ele falava que queria vir para São Paulo já diretamente, mas a minha avó nunca gostou de São Paulo, do agito, das pessoas, enfim. Aí ficaram nesse meio termo aqui, próxima, que é Americana, que é uma cidade a duas aqui de São Paulo. Mudaram para cá e aí, né? Toda a família foi constituída, né? Restante. Minha mãe se casou em Americana, tal e eu nasci nessa cidade, devido a essa constituição ali em Americana, na cidade de Americana.
P/1 – E sua mãe fazia o que?
R – A minha trabalhava em fábricas têxteis, sabe? Tecidos, Americana é muito forte com a coisa do tecido, né? Com a mão de obra têxtil e tal. Então ela sempre trabalhou de costureira nas empresas e tal. A minha mãe era uma pessoa que, se eu for te falar, olha, não consigo nem a descrever, porque ela é totalmente além do tempo dela, sabe? Ela é uma pessoa totalmente além do seu tempo. Muito divertida, extremamente divertida, extremamente leve, uma pessoa de muitos amigos, era uma pessoa de muita energia positiva, né? Eu acho que peguei uns dois por cento do que ela era, porque as pessoas falam: “Você é animada, Paola, você é animada”, vem dessa coisa da minha mãe.
P/1 – E como é que ela conheceu o seu pai? Você sabe?
R – Você sabe que eu não sei, olha, boa pergunta. Você está me trazendo memórias que eu não sei te falar, não sei mesmo. Talvez se eu tenha alguma lembrança, eu acho que eles se conheceram em uma festa, alguma coisa assim. Eu tenho como lembrança, assim, bem por alto, mas não posso te afirmar com cem por cento de certeza. Na realidade, como era uma relação muito atribulada dela com ele, eu nunca tive muito interesse, sabe? De saber, de pesquisar, de querer entender.
P/1 – Mas você chegou a viver com ele, com seu pai?
R – Não, não vivi, nem com ela, né? Praticamente, eu não vivi, porque, assim, foram dois meses que eu tinha de vida quando eu fui morar com os meus avós, então, assim, foi um período muito curto que eu convivi com ela, né? E com ele, né? Também, mas, assim, foram dois meses essa coisa, né? E era uma época muito atribulada para ela, porque ele tinha um vício com alcoolismo e tal. Aí ela tinha que trabalhar, estava com duas crianças para cuidar, aí não dava conta, tinha a babá, mas aí não era o que ela queria para a gente. Aí como eu estava muito na casa dos meus avós, aí teve um dia que a minha vó acabou brincando com ela: “Olha, não vou te devolver mais essa criança, não”. Aí, ela: “Mãe, você pode ficar, então com...”, na época, com o filho, que todo mundo falava como filho dela. Aí minha avó, enfim, aceitou na hora, tinha sempre um super carinho comigo, desde que eu nasci. Aí comecei a viver a minha vida com meus avós.
P/1 – E seu irmão é irmão gêmeo ou irmã gêmea?
R – É uma irmã.
P/1 – E por que você que ficou com a sua vó e não sua irmã? Como foi essa escolha, você sabe?
R – É uma escolha muito doida, porque, assim, na realidade, meu avô que me deu meu nome civil, né? Meu vô que me deu meu nome civil.
P/1 – Como é seu nome?
R – Meu nome civil é Kleber. Nome civil: Kleber. Então já tinha ali uma afetividade, com essa coisa da escolha do nome. Eu não sei, acho que é uma coisa muito, sabe? De energia, de magnetismo com a pessoa, de história, de realmente “Olha, é por esse caminho que vai ser seguido”. Aí eu também não sei como se deu essa escolha. Eu acho que foi mesmo um envolvimento, eu não sei, eu simplesmente... É difícil pensar nisso, o que se deu essa escolha, mas talvez por essas questões que eu estou falando para você, ele escolheu meu nome, tinha essa coisa do carinho, de ficar muito lá, a minha irmã ficava mais com a babá, aí foi isso que aconteceu.
P/1 – Aí você foi morar na casa deles que era na mesma cidade?
R – Na mesma cidade, em Americana, na mesma cidade.
P/1 – E você tinha contato com a sua mãe?
R – Tinha, sempre tive contato com a minha mãe, minha mãe era a minha melhor amiga, minha mãe é uma peça que foi totalmente, muito importante na minha vida e na minha formação, sabe? Enquanto pessoa. Sempre ela estava envolvida, mesmo que eu não morasse com ela, ela estava envolvida, ela queria saber o que estava acontecendo comigo, ela queria saber como estava na escola, era aquela mãe que levava presente. Ela sempre teve esse engajamento materno, mesmo eu não morando com ela.
P/1 – E seu pai saiu de casa logo? Como foi essa separação?
R – Não, não, eles viveram juntos durante muitos anos.
P/1 – Ah, tá, ele morava lá?
R – Morava, morava com ela, eles viveram juntos, eu acho que... Deixa eu pensar, ah! Imagina, mais de vinte anos depois que eu nasci.
P/1 – Ah, tá! É que eu pensei que... Mas como era a sua relação... Vamos só voltar, você morou na casa da sua avó, como era a casa deles, onde você foi criada?
R – Da minha vó?
P/1 – É.
R – A casa da minha avó era maravilhosa, a casa da minha avó era a minha casa, né? Era a minha casa a casa da minha avó, então era muito gostoso, era muito... É isso, são essas memórias que me vem com cheiros, que me vem com afeto, que me vem com amor, que me vem com a segurança, sabe aquela segurança de você estar em um lar que te protege, com pessoas que te protege? Então essa é a sensação que eu tenho da minha casa lá no interior. Tanto que ela existe até hoje, está lá, é uma coisa que a gente não consegue, eu, particularmente, não consigo nem vender por essas questões afetivas, foi ali que eu iniciei toda a minha vida, então eu tenho uma afetividade com essa casa que vai além, sabe? Então são coisas que nem tem preço.
P/1 – Quem morava na casa?
R – Morava eu, minha avó, meu avô e a minha tia. Minha tia era como se fosse uma irmã, hoje a gente tem essa coisa, ela foi muito mais minha irmã do que minha tia. Ela também é parte grandiosa da minha formação, grandiosíssima, porque ela sempre foi presente, sempre ali, sabe? Ajudando na educação, na minha educação. Escola, tudo. É a melhor pessoa, sabe? A melhor pessoa. Tanto que até hoje a gente tem essa consideração, eu tenho essa consideração por ela como irmã, irmã mais velha, que me ajudou a criar, mais do que como uma tia, sabe? Tanto que eu tenho os filhos dela, que seriam os meus primos, eu tenho como se fosse os meus sobrinhos, porque é muito conectada toda essa questão familiar.
P/1 – Como era o nome do seu avô? Como era o nome dele?
R – Sebastião Xavier Rodrigues.
P/1 – E a sua avó?
R – A minha avó Maria Rita Rodrigues. Maravilhosos.
P/1 – O que o seu avô fazia nessa época, ele trabalhava com o quê?
R – Meu avô, nessa época, nossa, quando eu cheguei ele já trabalhava com isso, ele era cobrador de ônibus, você acredita? Ele ficou anos, anos, anos, imagina, a vida praticamente toda dele em Americana. Ele veio com essa coisa de trabalhar em uma empresa de ônibus como cobrador, era muito conhecido, extremamente conhecido na cidade por conta disso. Ele era uma pessoa muito cativante, sabe? Essas pessoas que têm carisma, ele era dessas, então você imagina, um lugar onde passam milhões de pessoas, era fantástico, então ele era muito conhecido.
P/1 – Como é que era? A sua avó o que ela fazia?
R – Do lar, minha avó era do lar, de cuidar da casa, sabe? Extremamente louca com a limpeza da casa, sabe? Aquela coisa que tinha que estar impecável, não podia ter nada fora do lugar. Eu aprendi muito essa questão de cuidado de casa com a minha avó.
P/1 – E quais eram suas brincadeiras de infância? Você brincava com quem?
R – Então, eu tive uma infância um tanto quanto só, vamos dizer assim, porque a minha tia também trabalhava, né? Que ela estava em casa, mas ela trabalhava, então era uma pessoa que tinha seus vinte e tantos anos. A gente não... A minha avó tinha muito cuidado comigo, ela sempre teve muito cuidado comigo, então ela não deixava sair na rua para brincar e eu também não gostava muito, para ser bem sincera eu não gostava. Eu gostava de brincadeiras, de joguinhos, sabe? Quebra cabeça, de ler livros ilustrados, essa coisa de criança, nessa época, a gente não tinha internet, não tinha nada disso que tem hoje. Então eu vivi muito nesse mundo, sabe? Do fictício, da fantasia, esse mundo da fantasia, de ler sobre a Cinderela, ler sobre o Gato de Botas, sabe essa coisa? Eu vivi muito isso. E é engraçado porque isso se deu desde pequenininha, geralmente, aí que vem a minha questão de identidade de gênero, ela já estava formada ali, enquanto era uma criança, totalmente inocente, sem nenhum saber de identidade de gênero, imagina, não sabia nem do que se tratava. Indo para esse ponto, por esses caminhos da brincadeira ali, que era já, então, na época, falavam brincadeiras mais femininas, brincadeiras de meninas. Era o que eu mais queria, o que eu mais queria era brincar de boneca, mas também, como eu pediria uma boneca? Então fazia de folha de papel almaço, fazia bolinha e montava a minha própria boneca, sabe umas coisas, assim? Que a gente vai fazendo sem ter nem noção do que está fazendo. Mas foram muito boas essas brincadeiras, eram muito saudáveis.
P/1 – Deixa eu falar, você tinha vontade de pedir uma boneca, mas você não pedia?
R – Não, eu não pedia, até porque...
P/1 – Por que você não pedia?
R – Era muito... Eu acho que, na minha época, a gente vivia muito nessa questão desse mundo totalmente estruturado entre homem e mulher, não sabia. Era tudo muito: “Você é homem, você tem que jogar futebol, você tem que não sei o que, não sei o que”. De repente, minha avó e meu avô sempre notaram uma fragilidade em mim por essas questões, eu não gostava, eu odiava, imagina, eu odiava essas coisas, eu odiava esportes.
P/1 – Quantos anos você tinha quando você falou: “Ai eu odeio, não quero essas brincadeiras de menino”, com quantos anos?
R – Desde que eu entrei no parquinho, porque a gente falava parquinho, eu tinha quatro anos, quatro anos. Todo mundo ia brincar, pular, correr, não, eu ficava quietinha, sabe? No joguinho ali no parquinho. A professora chamava a minha avó lá, para falar com ela, porque elas ficavam preocupadas: “Por que ele não brinca?”. Aí a minha avó falava: “Não sei, é porque...”. Eu não gostava, eu não gostava, eu ficava muito quietinha, sabe aquela coisa? Uma lady, uma lady, eu não sujava a minha roupa, todo mundo voltava para casa com os cabelos no barro, eu estava impecável com a minha bolsinha, imagina. É isso, era de mim isso, eu não curtia, eu não gostava, eu gostava era de ficar com as meninas, do papo das meninas, sabe essa história toda? E isso foi muito notado, desde muito pequenininha, desde muito pequeninha isso foi notado, notado demais, demais.
P/1 – Sua mãe notava?
R - Você sabe que eu não sei se a minha mãe notava, pelo menos ela nunca me disse isso, sabe? Creio que sim, creio que sim porque a minha mãe, muito mais moderna, vamos dizer assim, para época, talvez já tenha notado antes da minha avó e tal. Eu nunca soube em que momento eles conseguiram, ou se eles conversavam sobre isso, sabe? Mas era nítido, né? Eu acho que eu fui sempre, como a gente diz hoje, uma criança veada, eu sempre fui muito uma criança veada, de pegar a canetinha hidrocor passar na unhinha, sabe essa coisa, assim? E, ao mesmo tempo, que as vezes eles iam falar comigo, falar: “Olha, isso não pode”, mas era um “Não pode” com a preocupação da sociedade e não dele, sabe? Não é que eu não vou deixar porque eu não quero, é porque a sociedade vai cobrar, “E aí, como é que vai ser?”. Então eu sempre senti esse cuidado, não pelo preconceito da família e sim pela preocupação de como seria aqui fora, sabe?
P/1 – Mas eles chegaram, tipo, eles te abordavam: “Por que você não brinca disso? Não faz aquilo?”.
R – Abordavam, falavam, falavam. Eu falava: “Eu não gosto. Eu não gosto”. Tanto que eles me respeitavam tanto com essa coisa do gostar, que quando eu comecei o primeiro ano na escola foi uma tormenta, né? Porque começa a coisa da aula de Educação Física, e eu odiava aula de Educação Física, para você ter noção era a coisa mais tenebrosa da minha vida fazer Educação Física, não, jamais, porque era aquela aula que a professor ou professor pegava a bola, dava para o aluno, “Vocês vão brincar os meninos, as meninas vão pular corda, sei lá o quê”. Até então eu era um menininho ali, né? Subjetivamente, ali, dizendo. E aquilo era um trauma para mim, porque eu não queria. Eu não jogava e as professoras chamavam a minha avó. Aí teve um dia que eu falei para ela: “Me leva no médico, me leva no médico, não sei, vamos em algum médico, você fala que eu tenho alergia, fala que eu tenho alergia que eu sofro muito quando eu fico no sol”, sabe? Aí ela fez isso, ela me levou ao médico para a gente pegar um atestado de que eu tinha alergia ao sol, eu não tolerava o sol. Era mentira, porque... Não, ela estava realmente me protegendo porque eu não queria fazer aula. Então era um dos meus traumas, enquanto criança, essa coisa de ter que fazer as coisas com os meninos, de ter que jogar bola, Deus me livre, eu odiava, odiava, odiava.
P/1 – Como é que era na escola? Você entrou com quantos anos no Parquinho?
R – Entrei com quatro anos no Parquinho, fiquei dois anos, na realidade, minto, não fiquei dois anos no Parquinho, não, fiquei um ano e meio porque eu dei muito trabalho nos primeiros dias quando entrei no parquinho, então perdi meio ano. Eu consegui entrar. Eu era muito apegado a eles, sabe? À minha vó, à minha tia, ao meu vô. E quando falaram que eu tinha que ir para um parquinho, nossa senhora, foi uma loucura, foi um sofrimento. Eu me jogava no chão, fazia um inferno, tanto que aí eu perdi esse meio ano por causa disso, de tanto escândalo que eu fazia. Aí eu fiz um ano e meio de Parquinho e comecei na escola com sete anos. É, foi isso. É, foi. Com sete anos eu fui para...
P/1 – E como é que foi essa entrada na escola? Você tinha amigo, amiga? Como é que foi esse relacionamento?
R – Amiga. A minha entrada na escola foi um negócio, tanto que é uma história que eu sempre conto, que eu acho super interessante, porque assim, amiga. E muito amiga das professoras, eu era muito amiga das professoras, sabe? Aquela que ficava do lado, que amava as professoras, queria abraçar, queria beijar, fazia correção pela professora, enfim, aquela coisa. Aí, no primeiro ano, no final do ano, estava rolando uma... Ia rolar uma festinha na escola dos formandozinhos de primeira série, do primeiro ano, iam fazer qualquer coisa, alguma coisa artística, levasse, cantasse, dançasse, enfim, fizesse, o que fizesse era bem aberto e criativo. E eu sempre fui apaixonada, desde pequenininha, pelo filme Elvira, Rainha das Trevas, tanto que minha gata chama Elvira por causa desse filme. Aí tem uma cena final, que ela está com vestido, que ela faz um show, canta e dança. O que eu fiz? Eu falei assim: “Gente, eu não vou contar para ninguém, todo mundo vai ficar surpreso comigo”. Meu avô dava mesadinha para a gente, peguei aquela mesadinha que eu já não gastava, fui na costureira da minha avó, falei para ela fazer uma roupinha de Elvirinha para mim, desenhei a roupinha, levei a roupinha, ela fez, não falou nada para minha vó, paguei ela com a minha mesada, mas era muito doida. Fui lá, peguei o gravador, tinha um gravador antiguérrimo em casa, sabe? Coloquei o filme na televisão, no VHS, sofrido, coloquei o filme lá que eu tinha gravado e a parte que ela cantava, do showzinho lá do filme e fui para escola para essa apresentação, tudo escondido. Todo mundo: “O que você vai fazer?”, “Ai, surpresa”. E eles estavam achando que eu ia, sei lá, mostrar um desenho, que eu ia fazer alguma coisa. De repente, a hora que chegou a minha hora, eu fiquei sozinha na sala de aula me montando, coloquei aquele vestidinho preto, maquiagem eu não tinha colocado, imagina. Mas eu estava me sentindo a Elvira, eu era a Elvira. Aí eu coloquei a música, quando soltou a música e eu comecei a fazer toda a dublagem ali, uma drag queen com sete anos de idade. Aí todo mundo perplexo. Imagina? Pai, mãe, na escola, a escola inteira, né? Aí todo mundo perplexo e aquela perplexidade me passava que eu estava arrasando. Eu falei: “Nossa, está muito bom porque as pessoas estão chocadas com esse passo, que maravilhoso”. Aí que eu me performava mais ainda. Quando, de repente, estava todo mundo em choque, porque: “Nossa, como assim? Um menino vestido de menina, cantando a música de um filme”. Então, sabe? Eu acho que ali, se alguém tinha alguma dúvida da minha família, foi o momento que foi à tona, sabe? Não, não tem jeito vai ser outro caminho, né? Eles trataram dessa forma.
P/1 – Quando acabou alguém te falou alguma coisa?
R – Ninguém, ninguém, ninguém falou nada, nada.
P/1 – A professora?
R – A professora ficou em choque, chocada. Aí eu sei que ela chamou a minha avó para conversar, mas eu não sei também o que foi essa conversa, nunca soube, para ser sincera para você, nunca soube o que foi essa conversa. Ninguém me repreendeu por isso, não, ninguém me repreendeu, minha avó e meu avô tiveram jogo de cintura, junto com a minha tia também. Eu acho que a minha tia também ajudava muito nessa coisa, sabe? De apaziguar, já que ela vinha com uma cabeça mais moderna. Não, não tive. Aí tive essa sensação, realmente, “Nossa, arrasei, que maravilhoso, que bacana”. Só que, de repente, depois com o passar do tempo, vem aquela coisa do bullying na escola, que hoje a gente fala de bullying, mas naquela época sofria uma violência horrorosa, essa coisa de você ser diferente dos demais. “Ah, bichinha, veadinho, se veste de mulherzinha”. Sabe essa coisa?
P/1 – Como que era o bullying que faziam com você? Você lembra de alguma situação?
R – Extremamente pesado.
P/1 – Alguma situação, você lembra?
R – Lembro, lembro de quando a gente entrava na escola, eu lembro que quando eu estava na escola, tinha um corredor muito longo até a minha sala. Aí ficavam todo mundo ali fora, esperando os professores, eu lembro que para passar nesse corredor todos os dias, era um trauma, porque vinha essas piadinhas todas: “Ah, lá, la vai o veadinho, lá vai o não sei o quê”. E eu nunca fui de briga, eu nunca fui de peitar e brigar com alguém, pelo contrário, então eu abaixava a minha cabeça e passava quieta. Aí parecia que incomodava mais, porque eu não atiçava, aí gritavam, gritavam e gritavam. Nunca contei para a minha avó isso, nunca dividi isso com ninguém. Eu acho que foi uma coisa que eu sempre guardei para mim e também não entendia, porque eu não sabia, até então, o que era isso, eu não sabia o que era ser veadinho, não sabia o que era ser bichinha, eu não sabia. A gente não tinha essa informação como a gente tem hoje, escancaradamente. Então, para mim, era algo, eles estão me xingando, mas eu não consigo entender o porquê, eu acho que talvez é isso que eu resistia, porque eu não sabia o que significava, né? Daquilo tudo. Sabe? Sem entender. “Nossa, o que é veado?”, para mim, veado era um bichinho. “Por que eles estão me assimilando a um bichinho?”. Ok, está bom, então tá. Sabe coisas quando a inocência é uma inocência tão pura da mais pura, que você não consegue. Eu sentia que era algo ruim, mas também não sabia o quão ruim era, né? Então, talvez por isso que eu sempre guardei para mim, depois que eu fui entender tudo, futuramente.
P/1 – E na escola, que matérias, o que você mais gostava de fazer na escola?
R – Eu gostava de estudar, sempre gostei, amei estudar. Sempre amei estudar, eu adorava Português, amava Português, amava Inglês, nossa, eu sonhava para a minha primeira aula de inglês, porque eu amava. Eu sempre gostei muito das cantoras americanas, sabe? Whitney Houston, Mariah Carey, eu sou muito dessa geração anos 90, né? Spice Girls, essa coisa. Aí eu queria saber, eu falei: “Gente, eu preciso estudar porque eu preciso saber o que elas estão cantando, quero saber o que elas falam”. Naquela época, era muito caro esses cursos de inglês, meu avô não tinha condições, depois, mais para frente, ele conseguiu me colocar em um curso. Aí eu tinha muito, sabe? Essa saga de querer aprender. Amava, amava Português para caramba, eu gostava muito de Geografia, História eu gostava, mas nem tanto, sabe? Era uma coisa assim, aí começava, quando vinha muito naquela coisa “Aí, nos anos 1900”. “Ai, gente, para que isso? Não fui nascida lá, por que eu tenho que saber?”. Uma coisa muito doida. E hoje a gente arrepende amargamente, fala assim: “Meu Deus, como eu queria ter aproveitado essa aula”. Então, essas coisas me faziam muito bem, me faziam muito bem, eu tinha professoras... Eu tinha uma professora, ela era substituta, eu lembro muito bem dela, claramente, ela era cigana.
P/1 – Como era o nome dela?
R – Tânia, professora Tânia, maravilhosa. Tânia. Se um dia ela assistir esse vídeo, lá de Americana, inclusive. Ela era linda, linda, linda, linda, assim, sabe? A minha inspiração. Eu olhava para ela não conseguia nem prestar atenção no que ela estava ensinando, porque ela era tão bonita, assim, ela era uma mulher gorda, gorda, imensa, ela era gigantesca, mas linda. Eu nunca fiz diferença com as pessoas, sabe? Essa coisa do gordo, do negro, jamais, na minha cabeça nunca fez sentido essa diferença. “Olha, não pode ter amiguinho assim”. Para mim, todo mundo era igual. Aí ela era toda enfeitada, nos seus ouros, naquelas pulseiras que vinham até aqui no braço, maquiadérrima, um cabelo que era a coisa mais linda, ela usava muitas roupas esvoaçantes. Eu lembro muito bem, parece que eu estou até aqui vendo ela na minha frente. Aquelas roupas esvoaçantes, sabe? Que empoderava ela enquanto mulher, enquanto cigana, sabe? Eu ficava pensando muito nisso, nossa, como é que essa cultura dos ciganos, como isso funciona. Ela foi uma das melhores professoras que eu tive, assim, e era uma pena porque ela era substituta, quando um faltava, ela aparecia para cobrir a professora oficial. Mas, sabe? Eu amava ver ela. Ver ela, para mim, fazia muito bem. Eu amava ver ela passando nos corredores, eu amava, ela era muito cheirosa, consigo sentir o cheiro do perfume dela, maravilhoso, sabe? Incrível, uma pessoa que marcou muito em mim, muito.
P/1 – Na sua casa, como é que era? Sua avó cozinhava? Você falou que você lembra muito dos cheiros, que cheiros que você lembra?
R – Lembro, lembro, eu lembro sim. Meu avô cozinhava, meu avô amava cozinhar. A minha família é uma família de boas pessoas cozinheiras, sabe? Foi, né? Hoje já não os tenho mais. Mas era isso, ela cuidava das tarefas de casa e ele tinha a tarefa de chegar do trabalho... Ele levantava muito cedo, na realidade, madrugada, ele saia de casa umas três horas da manhã, porque ele entrava no trabalho às quatro, eu acho que os ônibus começavam cinco hora da manhã, uma coisa assim, ele já trabalhava nesse horário, ele saia do trabalho uma hora, eu sei que chegava em casa três e meia, quatro horas. Eu lembro muito dessa cena dele chegar, tirava suas botas ali em uma área maravilhosa que a gente tinha, que era feito a cozinha, ele tirava as botas, ia para o banho, deitava um pouquinho, depois daquele cochilinho de meia hora, quarenta minutos, levantava e ia para cozinha. Aí ele cozinhava, ele cozinhava. Era um ritual, porque a minha avó teve um problema na vida dela que ela teve o que chama deslocamento de retina. Aí ela perdeu um lado da visão, o lado esquerdo. Aí todo mundo se comoveu muito e ele veio coisa da ajuda no cozinhar sempre, sabe? Aí ele fazia comidas mais deliciosas, eu sou apaixonada por caldo, por sopa, por causa dele. Sabe aquela coisa maravilhosa? Comida mineira, como ele era mineiro a comida era mineira, comida muito mineira, carne de porco. Até então a gente não podia comer, né? Porque, assim, a minha avó era da Adventista do Sétimo Dia, aí eu, automaticamente, ia para a igreja com ela, ele não, ele não tinha uma religião. Então ele fazia as coisinhas dele, carne de porco na Adventista não se pode comer. Aí ele via que eu queria comer, que eu queria experimentar, ele me dava escondido, eu saia comer escondido, sabe? Umas coisas assim. Ele foi sempre muito... Meu avô foi uma pessoa que... É difícil, né? A gente trazer essas histórias. Uma pessoa que sempre cuidou muito de mim, sabe? Ele nunca encostou a mão em mim para um tapa ou beliscão, nunca, sempre conversou, né? Sempre conversou, sempre com muito afeto, muito abraço, muito amor. Eu não sei. Ele é uma pessoa que me formou, porque a minha avó, talvez por ela não ter tido educação, quando eu digo educação no sentido de aprendizado mesmo, para ela era vago essa coisa do estudar, “Ah, tá bom, se você estudar tá bem, se não estudar também está bom”. Mas é por conta dessa ignorância que ela tinha na vida, né? Ele não, ele sempre, nossa, pautava muito isso comigo, essa coisa do “Não, você tem que estudar, você tem que ir bem na escola para fazer um curso x, outro curso x”. Tanto que ele me ajudou muito nessa coisa de cursos e tal, que eu fiz muita coisa, porque sempre se preocupou com essa formação. Também quando eu resolvi ir para o caminho mais artístico da vida, né? Aí, quero fazer dança. Nossa, para a minha avó era uma bobagem fazer dança. “Que isso, isso não existe”. Ele sempre apoiando muito, sabe? Quando eu resolvi fazer canto foi uma das pessoas que mais me incentivou. “Não, você tem que ir, você tem que fazer”. Ele ia nas minhas apresentações com o coral, etc. Então foi uma pessoa que foi extremamente presente e fez tudo ser possível, na medida do possível, para mim, sabe? Nunca me deixou faltar nada e me deu amor, né? O amor é essencial, que foi essencial e é essencial até hoje na minha vida e a gente já está desmontando (emoção).
P/1 – Paola, e na sua casa, se comemoravam festas, natal, aniversário, como é que eram essas festividades e quem ia?
R – Muito, muito, muito. Se comemorava muito, minha família sempre foi muito festeira, eu acho que é uma das coisas que eu mais sinto falta hoje, porque hoje o meu natal sou eu e minhas bebês peludinhas. Até por isso, porque eu não consigo, muita gente me chama: “Aí, Paola, vem passar o natal aqui na minha casa”. Eu não gosto, que eu sei que eu não vou estar bem, porque me faz falta essa festividade da família. Muito, nossa, de fazer coisa, como é o que eu falei para vocês, essa coisa do cozinhar sempre foi um ar dentro da minha casa, um ritual, então as pessoas gostavam muito. Parentes, sobrinhos da minha avó vinham em casa. O meu avô não tinha familiar, é muito triste essa história dele, porque ele não tinha familiar, ele perdeu as pessoas da família dele muito novo, quando ele tinha doze anos, ele já não tinha mais ninguém, sabe? Não tinha mais ninguém, aí ele se jogou no mundo para seguir a sorte da vida. Eu falo que ele venceu o mundo, né? Porque ele construiu tanta coisa boa. Então vinha muito, né? As pessoas em casa, no aniversário, sempre comemoraram nossos aniversários, com ______ [37:57] gigantesco. Aí como tinha minha irmã também, vinha minha irmã junto, fazia aquela coisa toda junto. Natal, eu não consigo lembrar de um Natal... De novo? Eita nós, eu fico emocionada, ô meu Deus, isso aqui é uma terapia, né? O Natal que ele sempre falava: “Eu vou lá comprar peru para você”. Eu amava, eu amava a coisa do peru, e não é nem que eu amava o peru, não. Era porque essa coisa do comercial que a gente assistia na televisão, via aquele pininho do peru subindo quando assava, eu achava aquilo mágico, maravilhoso, “Ai que interessante”, maravilhoso. Ele vinha na minha onda, aí ele ia lá comprar todo ano o peru, quando ele coloca no forno, eu escutava aquela voz “Estou colocando”. Era um ritual colocar o peru no forno, era meu, era meu, ele comprava para mim, ele deixava claro para todo mundo que estava ali que estava comprando por causa de mim. Então, é uma coisa me vem muito isso na memória, sabe? Nitidamente, dessa coisa da família, né? Aí vinha minha mãe, minha irmã, meu pai também vinha nessas festividades, minha tia já estava noiva, mesmo depois de casada, ela vinha para casa para passar todo mundo junto. Então era muito gostoso, sabe? Essa união de ver as pessoas, estar com as pessoas, estar com os primos, era muito lega, muito bacana.
P/1 – E tinha primos também?
R – Tinha, tinha primos tudo da mesma idade nossa, sabe? Enquanto criança a gente brincava, saia correndo, pega pega, cai, machuca. Era muito isso, essas brincadeiras totalmente singelas de crianças da nossa época, que não tinha internet nenhuma, era tudo tabuleiro, era tudo no corre, era tudo com a bola para brincar de vôlei, sabe, essas coisas assim de primos? Então era muito gostosa, é muito gostosa essa lembrança.
P/1 – E com sua irmã, como era a relação? Ela morava com a sua mãe, vocês se viam, como é que era? Como é que vocês se davam?
R – A gente era muito... Assim, como eu posso explicar para você a minha relação com a minha irmã... Talvez eu esteja sendo um tanto quanto injusta, era bacana, eu sempre me relacionei muito bem com ela, mas eu sentia, que assim, ela vivia em um outro espaço e em um espaço totalmente conturbado, onde tinham brigas, onde tudo acontecia e eu não. Eu estava em um lugar que me dava segurança, onde eu podia, eu estava com outro tipo de criação, então eu sentia aquela necessidade dela de viver um pouquinho do que eu vivia, eu sentia isso, que ela precisava viver um pouquinho daquilo que eu vivia. Mas a gente se relacionava muito bem, a gente brincava e tal, mas não dessa coisa, né? Que as pessoas as vezes dizem, ou talvez gourmetizem esse momento do “Ah, nasceram gêmeos, sentem as mesmas coisas, tem uma afinidade”. Não, não, nunca fomos assim, nunca fomos, até hoje, nunca.
P/1 – Vocês iam na mesma escola?
R – Teve uma época que a gente estudou na mesma escola, mas a gente nem ficava junta. Olha, como você vê? Foi bom até você falar isso, porque agora me vem isso na memória, a gente não ficava juntas não, a gente estudava na mesma escola uma época, não sempre. A gente estudava tal, ela ficava no canto dela, eu ficava meio que no meu. Então era um relacionamento assim, sim, meio nebuloso, mas enfim, que eram momentos legais, momentos não eram. Então, assim, sabe uma coisa? Eu acho que também acontece com qualquer...
P/1 – Não era legal? Como é que era quando não era legal?
R – Ah, eu acho que... Então, é isso que talvez me incomodava nela, essa coisa dela querer viver a minha vida, querer ter as coisas que eu tinha, eu sentia muito isso fortemente, sabe? Eu não sei nem qual é esse sentimento enquanto criança, então isso me incomodava. Ai, não sei o que, não sei o que. Aí tinha a coisa de que eu era extremamente boa na escola, com notas e tal, e ela não era tão boa na escola, sabe essas diferenças, assim? Aí vinha, todo mundo cobrava muito dela, “Olha, fulano tem melhores notas”. Então eu acho que eu sempre senti isso desde quando a gente era criança.
P/1 – E com seu pai, como é que era? Porque você fala hoje que ele era indiferente, mas naquele momento, quando você era criança, como é que era essa relação, você sentia falta dele, não sentia, como é que era?
R – Não, vou ser bem sincera para você, meu depoimento bem sincero, do que eu realmente sempre senti, sabe? Talvez eu não tenha falado isso com ninguém na vida e falo aqui para você. Ele sempre foi indiferente para mim, totalmente indiferente, é triste a gente falar isso, uma pessoa que você tem tamanha indiferença. Ele nunca foi para mim um pai, o meu pai foi o meu avô, tanto que as pessoas falam para mim até hoje: “Ah, não sei o que lá o seu pai”. “Não, meu pai, não, meu pai foi meu avô que está embaixo da terra e acabou. Esse foi meu pai”. É isso, sabe? Foram momentos muito conturbados dele com a minha mãe e eu sempre tomei as dores da minha mãe, né? A minha mãe estava ali, presente, era uma referência para mim a minha mãe.
P/1 – Era conturbado como? Eles brigavam, ele batia nela?
R – Sim, sim.
P/1 – Você chegou a ver alguma briga?
R – Eu vi, uma briga que para mim já era horrorosa, mas na época diziam que não era. Discussão mesmo, gritar e tal, ir para cima dela no grito. Mas ela já apareceu roxa em casa, várias vezes ela aparecia roxa, a gente ainda questionava, a gente não, porque eu ainda era criança, as pessoas do lar, eu só lembro porque fica gravado na cabeça da gente. Aquilo foi me marcando muito, sabe? Me marcava, cada acontecimento me marcava, para mim, ele sempre foi um vilão para ela. Até porque, é engraçado, porque eu ouvi uma história uma vez, eu até falei isso com a minha psicóloga, que quando ela estava grávida da gente, eles brigaram muito, uma briga horrorosa que ele pegou e deu um chute na barriga dela, ela já estava de nove meses. Aí eu falo isso que esse chute pegou em mim, sabe? Quando você tem a certeza de que aquele chute pegou em mim, que eu já nasci, me formando enquanto criança, não tenho essa proximidade, esse afeto, afeto nenhum. Sabe quando você tem afeto por pessoa que você acaba de conhecer na rua? Ou sei lá, o quê. Mas eu não tenho esse afeto e olha que eu já tentei várias vezes depois na adolescência, recentemente depois que eu perdi o restante todo da minha família. Mas é uma coisa muito superficial, não é de verdade. Tanto que uma vez ele passou, as minhas irmãs me ligaram: “Aí, você vai vir?”. Não, gente, eu vou fazer o que aí? E não é por maldade, é porque eu realmente não sinto, eu desejo bem para ele, que seja feliz.
P/1 – Mas ele te procurava?
R – Enquanto criança muito pouco. Era aquela coisa muito há há há, parecia que não era de verdade, parecia que estava fazendo por obrigação, talvez é isso que eu sempre entendi, eu estou falando do que eu sempre entendi. Mas depois na adolescência, na minha vida adulta, ele procurou muito mais do que quando criança.
P/1 – Aí, você foi crescendo na escola, como que foi essa passagem sua de ser criança para adolescência, para a juventude?
R – Foi crítica.
P/1 – Em que momento que você descobriu não quero ser isso, quero ser aquilo.
R – Por isso mesmo que foi crítica, porque foi a hora da descoberta, porque até então a gente está na inocência, né? Na inocência você acha que: “Ah, não”. Na realidade, você não acha nada, aí quando começa aquela coisa de “Cadê a namoradinha, como vai namoradinha?”. Aí eu já me incomodava, por que eu tenho que ter uma namoradinha? Se eu não quero ter namoradinha, se eu não sinto nada para ter alguém como namorada. E, ao mesmo tempo, não pensava na possibilidade de namorar um menino. Então você ficava naquela: “Nossa, mas o que eu sou?”. Sabe crise interna consigo mesma? Aí eu ficava: “Meu Deus, e agora?”, as pessoas ficavam cobrando. Vai ter festinha na escola, fulando está com fulaninha, não sei o quê. E eu? Imagina, estava comigo mesma. Eu comigo mesma. Então foi um momento muito difícil, porque até então, é o que eu costumo dizer até hoje, eu não tinha uma referência de uma mulher transsexual, de uma mulher travesti, que eu conhecesse e que tivesse mudado a história. A gente tinha aqueles bochichos de Roberta Close, enquanto hermafrodita, de Roberta Close enquanto símbolo sexual, enquanto beleza, não enquanto essência do ser, ser uma pessoa travesti e trans que possa te servir como referência. Então, eu não tive, não tive isso, aí é o entender, né? Aí até então você fala, você começa: “Não é isso, eu sou isso aqui”. Aí era errado porque a igreja condenava, Adventista do Sétimo Dia, imagina? Falava, né? Tanto que assim, a igreja para mim, você acredita que até hoje essa coisa do tempo que eu vivi lá dentro com a minha vó, me remete muito medo.
P/1 – Qual igreja que era?
R – Adventista do Sétimo Dia. Me remeteu muito medo, medo, sabe? É um Deus que te julga, é um Deus que te condena, é um Deus... Me dava muito medo, medo, medo horroroso. Tipo, ainda tem esse lance da Adventista, tipo, na sexta feita no pôr do sol você não faz mais nada até o sábado. Então você ficava naquela, né? Vegetando durante vinte e quatro horas, você tinha que deixar aquele dia para Deus, para fazer as campanhas de Deus. E era um porre aquilo para mim, era torturante ficar nessa coisa de ficar aguardando passar para poder... Era horroroso. Então, a igreja para mim, ela veio muito como condenação, me julgava totalmente e isso me confundia muito para formar a minha identidade. Então eu ficava muito nesse questionamento, ai de repente, eu comecei a sentir atração por meninos, no sentido de olhar e falar: “Nossa, eu posso achar ele bonito?”. Não achava as... Mulheres bonitas eu achava bonitas pelo glamour, pela sua representatividade, mas não pela questão do afeto para quem oriento o meu desejo. Isso sempre aconteceu com os meninos. Aí eu ficava me cobrando.
P/1 – Com quantos anos você estava quando começou?
R – Nessa época, eu tinha 13, 12 anos, por aí, 12, 13 anos. Aí eu ficava me condenando, sabe? Meu Deus, por que você me fez assim diferente? Como eu vou lidar com isso? Como vai ser isso? Sabe? Coisinhas que você vai colocando na cabeça e que vão te amedrontando. E foi uma coisa que foi muito difícil para mim, porque eu era muito sozinha, né? Eu não falava isso com ninguém, imagina? Eu não dividia isso com ninguém.
P/1 – E os meninos? Você continuou tendo bullying na escola?
R – Sempre, tive bullying na escola até meu último ano de escola, sabe? Foi uma coisa horrorosa até o último ano de escola. Talvez eu tenha... Você sabe que eu vivi um ano na escola intensamente? Foi o meu último ano, foi do terceiro colegial, que eu estava mais desprendida, que nada mais me importava no sentido de julgamento, eu vivi, eu vivi totalmente. Foi o ano melhor de toda o meu histórico escolar, foi o meu último ano, porque aí eu estava começando a ser quem eu era e isso me fazia bem, isso me deixava feliz.
P/1 – Mas aí lá nos seus 13 anos, quando você começou a sentir isso “eu gosto de menino”, a igreja, como é que você foi elaborando isso?
R – Nossa, então, foi um sacrifício, né? Foi um sacrifício, porque eu não sabia até quando eu conseguiria esconder isso, como que seria, né? Essa descoberta da minha família. Mas aí, eu acabei conhecendo um amigo... Nossa, olha isso! A gente vai retomando coisas, um amigo que a gente se identificou, por quê? Por causa da música, eu amava música, como eu falei para vocês, eu amava pop, black music americana. E ele também era muito daquela coisa pop americana, ele também era também muito da coisa pop americana, “Ai amo a Britney Spears”, não sei o que, e eu gostava de Christina Aguilera, sabe aquelas coisas? Aí a gente ficava na disputa, “não, mas ela é melhor” e a gente se tornou muito amigo, ainda mais por conta das diferenças, porque a gente fazia, costumo dizer hoje que era uma disputa de divas, quem era melhor, quem não era, quem apresentou melhor, quem não apresentou, quem é o melhor álbum, quem não era. Aí foi um momento muito bacana, porque eu consegui ter um pouquinho de conforto porque a gente tinha os mesmos gostos. Aí a gente começou a compartilhar desses mesmos gostos, dessas mesmas coisas. Aí as conversas foram vindo: “Nossa, mas você se sente assim também dessa forma?”. Ele era fantástico, a família dele era maravilhosa, eu ia muito na casa dele, ele morava próximo a minha casa. E a gente ficava horas conversando, isso com treze, quatorze, quinze anos que a gente foi vendo essa coisa. Aí eu acho que a gente se descobriu junto, sexualmente falando. Muito doido, coisas que eu nem lembrava vocês estão tirando do baú (risos). Foi um momento muito de cumplicidade que eu tive com ele, dessa descoberta nossa, até então, eu me descobri enquanto uma pessoa gay, uma orientação homossexual e não conseguia pensar na possibilidade de existir Paola, porque Paola era uma coisa muito grande para a minha cabeça. Era uma coisa que estava fora de cogitação. “Então, tá bom, se eu conseguir me assumir enquanto homossexual e a família ainda conseguir me amparar”, porque nosso medo era que a família colocasse para fora, que a gente só ouvia relatos: “Não, botou para fora”, “Fulano apanhou, fulano tomou uma surra que quase morreu”. Então era tudo isso que a gente ouvia nessa época, em relação a homossexualidade.
P/1 – Você e seu amigo, vocês discutiam isso?
R – Sim, muito. Até então, a gente discutia tudo isso e ninguém se assumia. A gente discutia os casos, essas histórias. “Nossa, olha fulano, o que você acha de ciclano, beltrano”. Mas nem ele se assumia, nem eu me assumia, a gente ficava muito nessa coisa ali, camuflada. E, de repente, a gente teve força, sei lá, a gente tinha muita afinidade, muita, muita, afinidade. A gente falou: “Eu acho que é isso, né? É isso, é”. Aí ele ia comprava essas coisas de revista dos meninos pelados, essa coisa, ele tinha essa audácia de comprar essas coisas, a gente ia junto, via junto, tudo junto. É engraçado, né? É engraçado porque você gera essa cumplicidade com uma pessoa que você não imagina que você vá ter. Aí a gente foi tendo força, tendo força ali, tendo força cá, até de repente falar assim: “Não, eu acho que é hora, acho que agora a gente consegue falar”. Aí eu não lembro ao certo como isso aconteceu na minha família, eu sei que eu fui muito objetiva. Eles estavam me enchendo tanto o saco com essa coisa, precisa namorar, precisa ter alguém, eu falei: “Gente, vocês não entenderam ainda? Vocês querem que eu explique o quê? Não quero, não gosto disso e ponto”. Aí pronto, aí foi aquele silêncio.
P/1 – Para quem você falou isso? Como foi?
R – Para todo mundo, estava em um jantar, eu, minha avó e meu avô, uma coisa assim. Aí eu falei isso, aí eu falei: “Para mim já chega, eu não quero ter ninguém, não quero namorar ninguém, não estou a fim de ninguém, essa cobrança eu não quero mais, eu não gosto disso, eu gosto de outra coisa, vocês tem que entender”. Aí saí, aí começou, era telefone para cá, ligava para minha mãe, para minha tia.
P/1 – O que elas falavam?
R – A minha mãe? A minha mãe sempre foi muito de boa, minha mãe foi a pessoa, pelo contrário, que chegou, me colocou para sentar, sentou comigo, conversou. “Olha, independente do que você seja, eu te amo, estou com você, enfim”. Até foi... Engraçado, a minha tia, na época, foi o contrário, ela ficou meio, né? Acho que ela acreditava, sabe? Que eu iria me casar com uma menina, que ia ser... Sabe essa coisa da família tradicional brasileira? Acreditava. Aí ela ficou meio estarrecida na época, mas depois, foi outra que tirou de letra e foi acontecendo. Até porque, na minha família tinha uma pessoa lésbica, que era a minha prima que era casada com outra mulher, aí essa outra mulher tinha filhos de um marido, de um casamento, aí ela veio essa mulher morar com a minha prima, com todas essas crianças e essa minha prima foi mãe também dessas crianças todas. Então aí tinha essa referência ali na família. “Nossa, não é o fim do mundo porque fulana está lá, fulana está bem, fulana é aplicada com a família”, enfim. Então tinha essa comparação, eles gostavam de comparar muito com a história dessa minha prima. Infelizmente, teve um final horroroso, mas enfim, por conta da sociedade, da estrutura da sociedade tão preconceituosa que a gente vive. Mas foi meio que isso, sabe? Essa descoberta da adolescência e esse meu amigo foi o meu primeiro contato sexual.
P/1 – Como era o nome desse amigo?
R – Washington, olha só as revelações, Washington.
P/1 – E o Washington contou também para a família dele?
R – Contou, contou para a família dele. E ele é engraçado, porque assim, ele era daqui de São Paulo, a família mudou para interior, sabe? Ele pegou meio que a adolescência lá no interior, aí a família estava meio querendo voltar para São Paulo de mudança também, aí ele acabou contando quando ele voltou para São Paulo. Ele contou até depois de mim, aí foi um baque muito grande, porque assim, como eu andava muito com ele, a gente era super amigo, de repente, quando eu assumi essa questão da identidade ou da orientação, todo mundo começou a barrar, a bloquear ele na minha vida, tipo, ele me ligava, desligavam o telefone na cara dele, achavam que a gente estava tendo um caso, ele era muito presente. Então isso me machucava para caramba, até que depois tudo foi amadurecendo, quando ele mudou para cá, eu vinha para cá, vim para cá algumas vezes, na casa dele. A mãe, o pai me amavam, maravilhosos, eram maravilhosos comigo, sabe? A gente conversava. E uma família totalmente evangélica, era evangélica da Cristã do Brasil, uma coisa assim, totalmente cristã a família dele. Então a gente sabia muito bem lidar com essas questões por conta das nossas semelhanças enquanto família. É isso, aí tudo isso foi meio que acontecendo, sabe? No seu tempo. Aí quando chegou nos meus dezesseis para dezessete, eu já tinha terminado a escola e que eu falei, defini: “Ah, para mim já chega, eu quero fazer o que eu gosto”. E como eu já estava na coisa da música, já estava na coisa da dança, eu tinha vindo para São Paulo, eu já tinha comprado um ______ ___ [01:00:45], falava _______ [01:00:45]. Fiquei apaixonada, eu quero fazer isso, eu quero fazer isso e comecei a fazer show. Foi aí, nessa hora, que Paola bateu cem por cento, Paola bateu cem por cento, porque foi o momento mais mágico da minha vida.
P/1 – Oi, desculpa, fala!
R – Desculpa, amor.
P/1 – Não, vai lá, gata.
R – Era uma personagem chamada Kendjia Laurent olha isso, que doido. A personagem que criei a Kendjia Laurent era uma coisa muito top, ela era top de estar nos palcos, chique, com casaco, joias. E, de repente, quando tudo isso terminava que eu ia desmontar a Kendjia Laurent, eu falava: “Gente, para que eu estou desmontando, sabe? Quando eu não sou uma personagem, essa pessoa sou eu, essa pessoa sou eu. Eu não quero tirar esse brinco, eu não quero tirar esse colar, eu não quero tirar essa roupa, não quero ter que vestir uma calça, quero ficar com meu vestido”. Sabe essas coisas? E me doía muito, eu chorava muito, eu ia tirando e as lágrimas... Ah, é até difícil falar disso porque mexeu muito comigo. Foi muito intensa essa fase da minha vida. Quando eu pensei e falei: “Gente, para mim já chega, eu sou isso aqui, eu sou uma mulher, sempre fui”. Sempre tentaram me mostrar o contrário, né? Porque a gente vive em uma sociedade totalmente preconceituosa onde você não pode ser o que você é. E sempre colocaram na minha cabeça: “Não, não, não, isso é errado. Não, não, não, isso é errado”. Aí eu começava ouvir também, nessa época, nos meus dezesseis para dezessete, relatos de pessoas que se casavam e depois descobriam com homens, que era essa coisa e tal. Eu falei: “Gente, eu não quero envolver ninguém na minha vida para viver uma vida de mentira. Ninguém, ninguém, ninguém, para poder agradar as pessoas. Não quero isso na minha vida. Jamais! Eu não tenho que agradar ninguém, eu tenho que agradar a mim, a mim enquanto, né? Eu sei quem eu sou”. E foi onde que isso veio muito forte. Aí eu comecei a falar: “Não, para mim já deu, já chega, não sou esse menino, não sou esse rapaz, sou uma mulher que realmente está nascendo agora”, porque esse é o momento dela nascer e ela vai nascer com muita dignidade e com muita coisa boa. Ali, naquele momento, também... Eu sabia de tudo que eu ia enfrentar, sabe? Eu sabia que não ia ser fácil lidar com a sociedade, não, mas que, né? Que qualquer dor, qualquer aflição ou violência que eu viesse a sofrer não ia se comparar com a liberdade de eu ser quem eu realmente gostaria de ser. Então, eu sempre falava isso, se for para eu morrer por eu ser quem eu sou, que eu morra por isso, mas eu vou morrer sendo eu mesma. Foi aí que eu comecei, aos poucos, ir conversando com a minha avó. Nessa época, meu avô faleceu, foi uma época muito difícil, ele faleceu, ele não chegou acompanhar esse momento da minha vida.
P/1 – E a sua avó, diante disso tudo, com a questão da religiosidade?
R – Então, aí que transforma esse relacionamento, porque, até então, da descoberta, das coisas quando eu comecei contando, ela ficava muito revoltada muitas vezes por eu ser essa pessoa diferente, que ela falava que eu era diferente, mas aí quando eu comecei a transição, vamos dizer assim, de mudar... Digo a transição no sentido não é nem da hormonioterapia, não, é a transição de figurino, de você pintar uma unha, de você furar uma orelha, coisas que eu nunca tinha feito, que fiz muito grata...
P/1 – A primeira vez que você se vestiu de mulher foi nesses shows? Ou antes você brincava?
R – Foi nos shows, não, foi nos shows, foi nos shows, nunca brinquei em casa, era no show.
P/1 – Nem escondido? Nada?
R – Não, assim, escondido a gente fazia desde criança, né? Tipo assim, pegava o salto da minha tia e ficava andando dentro de casa escondido, aí vinha um e reprimia: “Não, isso é da sua tia”, sabe? Mas não era no sentido que a coisa era ruim eu estar de salto, igual eu falei, eles sempre me protegeram, porque, aquilo que eu falei: a preocupação era aqui fora. Mas isso daí a gente fazia. Imagina, tenho história de já com oito anos, eu tinha, minha avó comprou uns calçados, uma caixa de sapato maravilhosa e atrás estava com dicas de beleza, eu falei: “Gente, eu tenho que fazer isso”, queria ter a pele da modelo que estava ali na caixa de sapato, fazer a receita, preciso fazer isso. Minha avó tinha as coisas em casa tipo esmaltes de unha essas coisinhas que toda mulher tem em casa. Aí eu li assim a frase da caixa de sapato: “Ah, para você ter uma pele maravilhosa basta você passar”... Como que fala? “Base, basta você passar base no seu rosto e tal, tal, nã, nã, nã”. Eu assim: “Gente, base faz efeito”. Mas não imaginava que era base de maquiagem, eu não sabia nada, não entendia nada, achei que era base de unha. Fui lá, peguei a base de unha da minha avó, passei toda no rosto, toda craquelada, um negócio que não saia nunca mais (risos). E eu com aquela base: “E agora para eu tirar, para esconder isso?” (risos). Uma coisa de louca, uma coisa de louca, assim, sabe? Sabe coisas que você fala: “Gente, olha isso”, né? Você vai se identificar com isso, com essas coisas. Então, sim, enquanto criança, sim, sempre fazia essas peripécias escondida, assim. Mas quando eu me informei, enquanto adolescente, não tinha mais essa coisa do escondida, eu fui para a coisa do show, tentei me profissionalizar e me profissionalizei, me profissionalizei muito nessa coisa do show, eu amava os shows, eu amava essa coisa impecável da dublagem, a dança, aí eu fazia tudo isso.
P/1 – Mas você fazia aula de dança, música?
R – Fazia, fazia jazz, eu fiz jazz, eu fiz jazz, depois eu comecei a fazer o balé clássico, mas não dava porque eu não tinha flexibilidade, eu já saí fora logo, fiz dança caribenha. Dança caribenha é a melhor coisa que eu fiz na vida, dança caribenha. Fiz dança do ventre, olha que loucura!
P/1 – Mas isso na adolescência?
R – Isso na adolescência, meu avô acolheu tudo, tanto que foi ele que me ajudava com essas coisas, escondida da minha avó, que ele pagava essas aulas escondida da minha avó para a minha avó não saber que fazia isso, falava que eu estava indo na biblioteca fazer trabalho de escola. Meu avô foi uma pessoa muito de me ajudar com isso, então eu fazia, fazia essa dança e tal. Aí começa os amores da vida, né? Começa os amores, você conhece pessoas, aí eu comecei a vir para São Paulo para acompanhar esses shows, conhecia pessoas. Estava com esse meu amigo Washington, nessa vida de conhecer pessoas. Aí eu conheci um rapaz que era muito bacana, na época, que falou assim: “Olha...”, aí lógico, nitidamente eu vi que ele tinha um interesse muito grande por mim: “Olha, eu quero fazer a produção do seu show, ser seu empresário”, alguma coisa do tipo. Aí foi onde, realmente, isso aconteceu. Ele era riquíssimo, filho de dono de empresa riquíssima aqui de São Paulo, até hoje. Aí ele começou a me ajudar com isso, com figurino, porque é tudo muito caro, eu não tinha dinheiro, de onde eu ia tirar? Ia pedir para a minha avó? Aí começou com essa coisa, tal, nos shows, aí eu comecei a fazer os shows e a ganhar muito bem com esses shows, porque na época era uma coisa que era muito rentável e aprimorava, aprimorava cada vez mais. Fazia em São Paulo, fazia no interior, fazia na cidade mais interior ainda. Então era muito legal, foi um momento muito bacana na minha vida. Aí já tinha essa aptidão para produção, eu tinha pegada de: “Olha, vamos fazer assim, vamos fazer o show assim, tal, tal”. Sem nem saber que um dia eu viria a trabalhar como produtora, até então... Porque assim, na minha época, a gente veio muito com essa onda do: “Olha, se você é gay, travesti, seja o que for, você tem que ser cabelereira ou maquiadora, não tem outro ramo para você, não tem”. Era uma coisa que me incomodava muito também. Aí depois desses shows todos, tudo estava fluindo, fluindo, fluindo. Aí até comecei a ter um relacionamento com ele, mas eu vi que não rolava, não era o que eu queria, não era por causa de grana que eu queria ficar com alguém também. Aí eu já estava de saco cheio, eu falei: “Meu, não vai dar mais, não estou gostando e tal”. E aí eu acabei descobrindo em um desses shows que eu vim aqui para São Paulo, quando eu estava fazendo show, aí eu descobri que ele estava trabalhando com tráfico também, tráfico de drogas. Foi o estopim para mim, eu falei: “Não, chega, estou fora, esse mundo não é para mim, não quero”. Enfim, foi aquela coisa horrorosa, ele falou: “Você nunca vai ser ninguém sem mim”, aquela coisa que a gente sabe que todo homem faz com mulheres, né? Nessa época, então, eu já estava me identificando como uma mulher. Aí fui juntando uma graninha, com esse dinheiro de shows, eu abri um salão.
P/1 – Aí você já tinha mudado para São Paulo?
R – Não, não, eu estava no interior.
P/1 – Tudo lá?
R – Tudo lá, tudo acontecendo lá no interior. Aí, então, meu avô faleceu, a gente mudou de cidade, de Americana, a gente saiu e foi para uma cidade chamada Iracemápolis, que fica entre limeira e Piracicaba, que é onde a minha tia mora até hoje, morava, e tal, e minha avó queria ficar próxima a ela e tal. Aí eu abri um salão de beleza em Limeira, aí começou a clientela, tal. Aí era aquela coisa, né? Aquela gourmetização, né? Aquela coisa de: “Ai, eu vou no salão de fulana porque fulana é trans, é travesti”. Até então não era tão trans a palavra, sabe? Era mais travesti mesmo, e é isso. No Brasil, a gente classifica... O trans vem muito da coisa do importado, né? Mulher transsexual que vem de fora, no Brasil, são travestis, nós somos travestis, a palavra politicamente é travesti, nossos corpos são travestis, é isso. As pessoas vinham: “Ai, preciso ir no salão da fulana”, para gerar status, status aquela coisa ridícula da sociedade de achar que estar do lado de fulana de ciclana, que é tudo maravilhoso, tudo bom, porque ela é diferente, né? Então eu tive isso também na minha vida.
P/1 – Mas como é que é... Deixa só eu voltar um pouquinho, quando você descobriu, que você assumiu, aí você começou a fazer suas aulas, montou esse grupo que você tinha, começou a vir bastante para São Paulo, por onde você circulava aqui em São Paulo, aí, como é que você foi tendo contato com esse universo, quando você vinha em São Paulo, quais lugares você frequentava, como é que era sair de Americana e vir para cá?
R – Nossa, sair de Americana e vir para São Paulo era uma história. Sabe, tipo assim de fazer história? Esconder, falar que você estava vindo fazer outro tipo de trabalho, aquela coisa. E não, a gente estava vindo para balada, para a ferveção, tinha que esconder da família. “Ai, meu Deus, estou indo lá porque eu estou com um teste de canto, tenho um teste de canto para uma novela”. Mentira, eu estava vindo para ir para balada com os meus amigos. Então, era torturante essa coisa, sabe? Até então, quando eu decidi falar que eu tinha conhecido pessoas e que eu começaria fazer shows, que aí era remunerado, aí todo mundo vê em uma outra perspectiva: “Ah, não, é bacana, é legal. Eu vejo no Silvio Santos, está fazendo a mesma coisa que a gente vê lá no Silvio Santos, que a gente vê, está maravilhoso, está incrível”. Aí foi nesse momento que eu conheci essas pessoas aqui, sabe? Eram nessas fugidas, as fugidas de teste.
P/1 – Que lugares que você vinha?
R – Eu vinha muito para o Arouche. Arouche era uma coisa, eu frequentei muito a boate ali chamada Freedom, a gente entrava com os RG’s todos falsificados, imagina? Uma loucura. Nessa época, eu estava com dezessete, não tinha completado dezoito nessas loucuras ainda. Aí RG falsificado, entrava essas coisas, tudo escondidas. Freedom, eu vinha muito em uma boate aqui na Consolação que chamava Puerto, ficava do lado ali da estação da Consolação, era muito legal. A gente vinha para uma festa, as raves que eu não sei nem os nomes, não sabia nem onde, não sei até hoje onde é que era aquele lugar que a gente vinha para cá. A gente entrava em um carro, porque aí você conhecia fulano que te levava para lá e para cá e eu não sabia nem onde que eu estava, foi muito legal. E era saudável, porque foi um momento que era isso, era curtição mesmo, sabe? Não tinha droga, pelo menos no nosso grupo não tinha, não tinha envolvimento com droga, não tinha esse envolvimento com álcool, talvez eu tomasse um negócio, um drink, mas está tudo bem, você tomou um drink, você já estava, nossa, você tomar um drink já era errado do errado o que você estava fazendo. Então estava tudo maravilhoso, sabe? Imagina! Então foi muito nessa pegada, nessa onda, sabe? Essa fase de São Paulo e interior, muito às escondidas.
P/1 – Como é que é essa banda que você formou o grupo que você tinha?
R – Não, não, não era nem uma banda, era um grupo de amigos, um grupo de amigos.
P/1 – Ah, a banda era no sentido de grupo de amigos?
R – Isso, um grupo de amigos, era um grupo de amigos, porque é isso, os shows mesmo eu fazia sozinha, né? Era só eu.
P/1 – Ah, tá, era sozinha, era solo?
R – Sozinha, só dublagem, só dublagem, era isso.
P/1 – Aí você tirava a maquiagem, a roupa e aí ficava com aquele desejo de continuar?
R – Total, total, queria ficar o tempo todo ali montada, imagina, montada...
P/1 – Quando você assumiu, quer dizer, o figurino, tudo que você queria ser, foi quando você mudou de cidade com a sua família, como que foi isso?
R – Foi, foi quando meu avô faleceu. Na realidade, eu acho que uns dois meses antes dele falecer, eu já comecei a vir com essa coisa do: “É isso que eu sou, é isso que eu quero ser”. Aí ele faleceu, ele já não estava bem de saúde, aí a gente mudou de cidade. Aí foi um momento muito difícil para mim também, porque mudar de cidade para mim foi o fim, porque eu odiava a cidade que a minha tia mora que é Iracemápolis. É uma cidade pequeniníssima, né? Aí assim, eu falei: “Gente, o que eu vou fazer lá?”. E é muito engraçado, porque, nessa época, então, eu estava em Americana para fazer aula de dança, eu tinha os meus amigos, eu fazia aula de canto, eu cantava em um coral de uma faculdade lá de Americana, eu amava, era o melhor momento da minha vida, foi o melhor momento da minha vida: cantar no coral. Eu conheci outras pessoas que eu tenho contato até hoje, inclusive, foi um momento muito significativo na minha vida. Aí, assim, você deixar tudo isso, para ir viver em um lugar novo, onde ninguém... A minha avó não pensou em como eu ia ficar, como não ia ficar nessa época, ela estava aí: “Estou indo porque eu quero ir, acabou, vai comigo ou é isso”. Então foi muito difícil, muito, muito difícil, sabe? De rebeldia, daquela fase, nossa, que rebeldia. “Eu não quero, não quero, não quero”. Então foi bem tenso esse momento dessa mudança. Mas aí lá isso ainda continuou, mudei para lá, ainda continuei com a coisa dos shows por um tempo, um ano, aí depois eu parei com os shows e fui para o salão, aí eu fui para o salão.
P/1 – Como é que você foi parar no salão e por que no salão?
R – Porque é o que qualquer travesti ou pessoa gay poderia fazer no momento. Não tinha emprego, você trabalhar em uma loja? Imagina, não, você tem que ir para outra área, a da beleza, a da moda. Aí foi uma coisa muito imposta da sociedade para mim. Aí precisava ganhar dinheiro, precisava trabalhar, aí eu falei: “Ah, então tá bom, vou fazer um curso aqui”.
P/1 – Você já tinha acabado o colegial?
R – Já, já tinha acabado já, já tinha acabado há uns três anos o colegial.
P/1 – Mas você não estava estudando, foi trabalhar?
R – Não, eu só terminei o colegial e aí já fui para os shows e depois fui para o salão.
P/1 – Mas você tinha, na sua adolescência, conforme você foi indo, tipo: “Quero ser tal coisa quando crescer”?
R – Tinha, eu tinha que eu queria ser artista, eu queria ser artista, eu queria cantar, eu queria dançar, eu queria levar alegria para o pessoal, para o povo. Eu gostava disso, eu gostava de subir no palco pela sensação de bem que isso trazia para as pessoas, sabe? Das pessoas verem, das pessoas rirem, das pessoas apreciarem. Quando as pessoas estão bem, para mim, eu acho que eu sou muito empática, sabe? Eu vivo muito, ali, o sentimento do outro, se o outro está bem, eu fico bem, né? Então era uma das coisas que sempre era pautado. “Eu quero, porque eu quero fazer bem para as pessoas”. E não era nem por causa de grana, porque eu nem sabia o que isso poderia dar, o que não poderia dar, quanto ganhava, quanto não ganhava, porque a gente era tão boba nessa época. Era questão de essência, era questão de querer fazer, era isso, por causa do sentimento. Aí foi, aí eu fechei tudo e comecei com o salão. Aí foi também uma coisa traumatizante, que eu não queria, eu fazia por fazer. Ganha dinheiro no salão? Ganhava, ganha muito dinheiro, mas não era uma coisa que eu gostava, não, de verdade, não era.
P/1 – E você fazia o que no salão?
R – Eu fazia tudo, fazia maquiagem, fazia cabelo, só unha que não, unha nunca dei para fazer.
P/1 – Mas com quem você aprendeu?
R – Fiz um curso, maquiagem eu não fiz nada, nada até hoje nunca fiz nada, autodidata. Agora, cabelo eu fiz um curso, cabelo eu fiz um curso. Aí desse curso que fiz, eu comecei a trabalhar no salão por causa disso, porque eu tinha feito um curso, corte, coloração, enfim. Nada também muito teórico, era um curso muito rápido de dois, três meses, aí já comecei executar, fui na prática, na prática mesmo.
P/1 – Aí no salão o que você pensou? Você pensava assim, como é que eu vou tocar a minha vida? Vou ficar aqui, quero sair?
R – Eu pensava que eu ia fazer isso sempre, sabe? Eu acho que eu pensava que eu ia fazer isso sempre. Era uma das coisas... Talvez essa época, seja a época que eu mais me estagnei na vida, de falar assim: “Poxa, estou vivendo mais do mesmo sempre”. Sabe? Que saco! Acho que é um momento que eu fiquei, enfim, sabe? Congelada. Não vivi muito nessa época, não vivi muito, só trabalhava ia para casa, trabalhava e ia para casa. Foi uma época que eu estava ali e não tinha muito essa perspectiva, sabe? Ah, quero isso, quero fazer aquilo, quero fazer aquilo outro, tanto que deixei tudo para trás, não fazia mais aula de canto, não fazia mais dança, não fazia mais show, não fazia nada. Foi um momento que você deixa a sua vida meio que de lado, todos os seus dons, as suas vontades. Era uma coisa que meu professor sempre falou muito, meu professor de canto, inclusive, até pouco tempo eu tive contato com ele e a gente estava falando sobre isso, ele falava: “Nunca enterre o seu dom. Você nunca enterre seu dom. Você pode fazer milhões de coisas, mas ele vai voltar para você, não adianta, ele sempre vai voltar para você, então aceite e tente seguir o que é programado, o que é proposto para você fazer da vida”. Eu nunca esqueço esse conselho. Foi isso, sabe? Aí comecei nessa fase dessa vida, dessa rotina, desse cotidiano, desse vivendo por viver. Aí, com isso tudo, consegui comprar o salão, consegui comprar computador, aí já começou a ter internet mais acessível para as pessoas. Aí foi quando eu comecei a ficar nessa coisa de bate papo de internet, aí eu conheci o excelentíssimo meu marido, né?
P/1 – Como foi? Você estava no salão?
R – Estava, estava no salão. Aí ficava as pessoas no bate papo, bate papo Uol, sofrido, todo mundo lá naquelas salas, contando, falando. Aí tinha o MSN, adorava o MSN, era maravilhoso, tinha aquele que chacoalhava a ela, era maravilhoso, eu adorava o MSN. Aí conhece ele, ele no Rio de Janeiro, eu aqui no interior, em Limeira, em Iracemápolis, melhor dizendo. Aí começou, conversa vai, conversa vem, conversa vai, conversa vem, conversa vai e gerou essa coisa desse amor absurdo, absurdo, absurdo. Aí, nessa época, eu paguei uma viagem para minha avó, não sei para onde que ela foi, paguei uma viagem para ele vir para cá, para ficar comigo, para a gente se conhecer. Olha, que coisa de adolescente, para gente se conhecer, aí ela viajou, aí ele veio, a gente se conheceu e foi um amor, amor contagiante. Voltou para a terra dele, o Rio. Aí pronto, aí começou: “Nossa, a gente precisa viver junto”. Aí foi onde eu falei com a minha vó, eu falei: “Olha, está rolando isso, isso e isso. Eu tenho esse relacionamento”. Até então ele aprovava, ela não o conhecia, mas aprovava, porque via pela internet, via ele conversando na internet. Aí onde eu falei: “Ah, eu vou falar para ele vir para cá, para arrumar um emprego aqui, se você não se importar de que ele fique aqui em casa até ele arrumar esse emprego”. Eu estava no salão, estava ganhando dinheiro no salão. “Até a gente arrumar uma casa, a gente sai, eu saio daqui e a gente vai viver nossa vida, tal”. Aí, menina, ela aceitou na hora, falou: “Tá tudo bem, está ótimo, está bom, eu aceito, seja o que Deus quiser, venha, tal”. Aí ele foi, veio para o interior e eu lá no salão, com as coisas no salão, eu tinha funcionário no salão, eu tinha tudo lá. Aí, de repente, eu ficava muito com ele, eu ficava ajudando muito nessa saga de: “Ah, vamos procurar um emprego, ajudar, toda essa coisa”. Aí eu acho que ela ficou muito incomodada, porque a gente era muito grudada, de repente, ela ficou incomodada porque eu ficava muito com ele, eu ficava muito tempo com ele, muito tempo com ele, aí ela surtou um dia, falou: “Olha, não quero mais esse rapaz mais aqui, eu quero que ele vá embora”. Aí eu surtei também e falei: “Tá bom, se você quer que ele vá embora, eu também vou”. Foi o dia que eu peguei meia dúzia de roupa, sem rumo e vim para São Paulo. De onde eu tirei São Paulo, eu não sei, só sei que eu vim parar em São Paulo.
P/1 – Por que você falou São Paulo, você já tinha algum lugar para vir?
R – Não, não tinha, talvez porque eu achava que eu tinha alguns amigos aqui, achava que seria mais fácil e eu fiquei pensando muito na coisa do preconceito, que São Paulo seria um lugar que eu sofreria menos preconceito sendo quem eu sou. E tudo foi ao contrário, os amigos sumiram, porque quando você vem em uma situação dessa, sem dinheiro, sem grana, porque eu deixei tudo para trás e cheguei aqui com nada, só com meia dúzia de peças de roupas, tipo, foram pessoas que eu fui conhecendo ao longo dessa trajetória que foram me ajudando, com grana, com estrutura, estrutura que eu digo no sentido de comida e tal, para poder sobreviver. Aí, nessa época, por minha avó ter feito isso, eu não falava com ela, fiquei uns dois meses sem falar com ela, na realidade, com toda a minha família, longe por uns dois meses, sem contato nenhum. Foi totalmente uma ilusão, porque São Paulo foi o lugar que eu mais sofri preconceito, muito mais que no interior, onde as portas todas foram fechadas, inclusive, no ramo de beleza, no ramo de estética, que eu trabalhava já, ia nos salões para tentar arrumar trabalho. “Ah, olha, se as minhas clientes não gostarem de você, não posso fazer nada, vamos fazer um teste. Não sei se elas vão gostar da sua presença”. Sabe? Essas coisas. Então eu ouvi muito isso aqui, ouvi demais da conta, então naquele lugar que eu achei que seria muito mais fácil, foi muito mais difícil, muito mais desafiador.
P/1 – Quando você veio morar em São Paulo?
R – Eu morei em São Paulo, primeiro eu morei em uma pensão.
P/1 – Quando você chegou com as suas coisas e falou: “Vou para São Paulo”?
R – Foi, foi. Eu fui morar em uma pensão naquela Avenida Francisco Morato, lá perto do Butantã, foi lá que eu consegui a primeira pensão. De repente, quando eu cheguei lá, eu senti muita coisa do, então, lá eu senti o negócio do preconceito. Por quê? Porque a dona da pensão não notou que eu era uma mulher trans, estava tudo bem, ela achou que eu era um casal e tal. Aí foi indo, foi indo, aí eu acho que, de repente, alguém falou para ela e ela veio com uma desculpa que a gente ia sair, a gente passou, sei lá, uns vinte dias lá. Aí ela chegou com a desculpa que ela ia vender a pensão e que a gente tinha que ir embora. Aí, enfim, a gente fazendo... Olha, foi uma fase muito difícil, muito, muito difícil, Rô, foi uma das piores fases da minha vida, porque a gente fazia tudo a pé, eu saia lá da Francisco Morato, vinha aqui para o centro de São Paulo para tentar arrumar trabalho, a pé, porque não tinha dinheiro para pagar ônibus, sabe? De você comprar pão de forma, um saco de pão de forma para você passar a semana inteira, você comia uma fatia de pão de forma por dia. Foi um momento muito, muito complicado. Aí, de repente, eu saí dessa pensão e consegui... Aí um amigo me ajudou, eu consegui locar um quarto na Vila Mariana. Na pensão da Vila Mariana, imagina, eu fiquei sete anos, só sete anos, sete anos nessa pensão da Vila Mariana. Então, foi, assim, um momento muito, muito difícil. Rô, acho que meu interfone está tocando, dá para a gente parar um minutinho?
P/1 – Aí, você estava falando que você mudou já, você estava naquela pensão da Vila Mariana, onde você ficou muito tempo, aí como é que você estava... Mesmo sem dinheiro, comendo um pão por dia, como é que você foi arrumando bicos, como é que você foi ganhando a vida?
R – É, então. Bom, na realidade, foi isso. Aí as coisas começaram a ficar difíceis, porque nem eu, nem o meu marido arrumava nada. E eu naquela coisa, será que terei que voltar? O que eu vou fazer? Como vou fazer, como vai ser esse momento. Aí começou essa coisa de procurar trabalho em Telemarketing, né? Telemarketing, eu acho que eu comecei a ganhar a vida aqui em São Paulo com essa coisa do Telemarketing. E foram momentos muito difíceis, como a gente precisava muito trabalhar, a gente, sabe as coisas assim? Ter que falar para a mulher segurar três dias a pensão, porque não tinha dinheiro. Aí, de repente, você ia para arrumar emprego, as pessoas vinham e falavam: “Olha, não, a gente não contrata pessoa trans, a gente não contrata esse tipo de gente”. A gente tinha que ouvir, aí uma das nossas sortes foi que ele arrumou um trabalho e ia conseguindo manter as coisas. Mas em várias vezes eu achava que eu ia ter que voltar, sabe? Para o interior, porque não tinha como a gente continuar aqui. Foram momentos muito, muito difíceis, por conta, realmente, desse preconceito, eu sofri muito preconceito aqui em São Paulo por ser quem eu sou.
P/1 – Como é que era trabalhar com Telemarketing? Você tem alguma história que te marcou?
R – Ah, nossa, várias, eu tenho várias na realidade, várias, várias. Foi um momento, assim, eu aprendi muito. Eu acho que com todas essas mazelas da minha vida, eu aprendi demais, né? E a valorizar muito esse trabalho, porque é um trabalho que, pelo amor de Deus, ninguém merece. Ficar aguentando pessoas na sua cabeça, cada um com uma história, cada uma com uma necessidade. Eu trabalhei em vários, em bancos, telemarketing de banco, trabalhei em companhia aérea. Eu acho que os mais engraçados que eu vivi foi o de companhia aérea, sabe? Quando a gente trabalhava em companhia aérea, e eu gostava muito de trabalhar em companhia aérea por causa dessa cultura de aviação, eu aprendi muito com essa cultura da aviação. Então era muito bacana para mim. Mas era aquela coisa, né? Você é maravilhosa, Paola, uma excelente profissional, mas ali, sentadinha, ali atrás, escondida, então está tudo bem. Mas eu acho que uma das histórias que eu mais vivenciei de interessante na coisa do Telemarketing, foi quando uma mulher ligou e aí ela falou assim: “Eu quero uma passagem para amanhã para o meu marido para Fernando de Noronha”. Aí ela falou assim: “Eu quero o pior voo, qual é o pior voo que você tem”. Aí eu assim, né? Aí ela ria. “Eu quero o pior voo”. Aí eu falei: “Meu Deus”. E a gente tinha que manter a postura, porque essas gravações são gravadas, você tem pontuação, enfim, recebe até bônus pelo atendimento. Eu estava achando estranha aquela história. Aí tinha um voo que saia daqui de São Paulo, que ia para Porto Alegre, de Porto Alegre ia para o Rio, do Rio ia para Brasília, de Brasília ia para não onde para depois chegar em Fernando de Noronha. Aí ela falou: “É esse que eu quero, é esse que eu quero comprar”. Aí eu falei: “Gente, que estranho”. Aí eu tentando manter e ela lá nervosa, ela ria, mas ela estava nervosa. Eu falei: “Gente, que mulher louca”. De repente, eu falei assim para ela: “A senhora gostaria de marcar um assento?”. Ela falou assim: “Eu quero, eu quero marcar o assento, eu quero do lado da turbina, porque se o avião explodir, esse filho da puta vai ser o primeiro a morrer” (risos). Aí eu não aguentei, eu chorei de rir com ela. Porque ela: “Não, ele mereceu, viu, Paola?”. Ela começou a desabafar: “Ele merece, filho da puta, desgraçado, não sei o que, não sei o que. Estou gastando o dinheiro dele que essa passagem vai ficar mais cara”. Eu sei que a passagem para Fernando de Noronha deu quase dez mil reais, todos esses voos que ela queria comprar e ela comprou, passou o cartão e ele deve ter pagado, sei lá o que ele fez para ela. Então tinha essas situações inusitadas que a gente ria, assim também como tinha as estressadas, sabe? Coisas estressantes, gente que queria levar camarão em cima da cabine do avião, sabe umas coisas loucas? Que você fala assim. Porco, gente que queria levar porco em cima da cabine, sabe coisas assim? Loucas, loucas. Mas foram momentos de uma construção, eu acho que eu fui construindo a minha vida com todos esses empregos e essas passagens desses lugares todos. Não só construindo também enquanto profissional, mas também enquanto ser humano e construindo quem estava ao meu redor. Até então, você falar: “Olha, eu tenho preconceito”. De repente, pessoas que eram mais preconceituosas, estavam ali do meu lado, sentada do meu lado, que depois de um tempo estava me amando, não via mais essa questão da transexualidade, da trevestilidade, era uma pessoa, a Paola, mulher, ponto, acabou, saiu da caixinha. Essa convivência com pessoas fez quebrar muito e muitos preconceitos de muitas pessoas que passaram na minha vida e isso me deixa muito feliz.
P/1 – E na companhia aérea, o que você fez na aviação, você falou?
R – Então, telemarketing também.
P/1 – Ah, era tudo Telemarketing? Como Telemarketing.
R – Tudo Telemarketing. Vendia passagem, ajudava suporte ao site, voos nacionais, voos internacionais, voos de companhias parceiras, que foi pela Tam, na época que entrei a Tam acabou, depois, virando Latam. Tudo, sabe? O pacote todo, de fazer tudo. Era muito trabalho e pouco dinheiro, pouquíssimo dinheiro, mas muito trabalho. Mas também muita experiência e muito aprendizado.
P/1 – Paola, quando que você, não se você começou a usar hormônio, em que momento você começou a ter contato com isso?
R – Muito, muito tarde, muito, muito tarde. Eu comecei a fazer hormonioterapia, porque, na realidade, eu sempre morria de medo de hormônio, sempre morria. Porque eu ficava com medo da deformação, eu ficava com medo do efeito colateral, isso porque nem tinha informação em relação, mas porque eu via em outras pessoas. Você via na rua, você passava e via algumas meninas, aí eu ficava com muito medo. Aí, eu entrei em 2010, 2010, eu entrei no CRT, que é o Centro de Referência, aqui na Santa Cruz, que tem o ambulatório para trans e travesti. E lá que eu comecei a fazer o acompanhamento em tudo. Lógico que aí eu entrei para a fila de cirurgia, porque eu queria fazer a cirurgia na época. Aí eu comecei todo esse processo de acompanhamento, o que você quer? Como pode ser feito? Aí eu fiz hormonioterapia durante três anos, durante três anos com remédio totalmente prescrito pelos médicos e tal. E ainda assim, eu tive problema, porque cada organismo é um organismo. E a medicação que vem para o Sistema Público de Saúde é muito genérica no sentido de... São todos iguais, vou te dar a mesma medicação que eu dei para outra, para outra e para outra, entendeu? É o único remédio que tem que é fornecido pelo sistema. Então aí que todo mundo passa tomar aquele mesmo remédio, e claro, não tem o mesmo efeito, porque cada um tem um organismo. Então, você tem um tipo de organismo, eu tenho outro e aí foram esses embates que eu passei a ter. E foi também uma outra construção e uma desconstrução, porque eu deixei de tomar tudo isso. Eu parei com a hormonioterapia, até hoje, foi uma das melhores coisas que eu fiz da minha vida. É isso, eu não quero mais, eu não preciso estar no padrão, eu não preciso, qual é o padrão de ser feminina? O que é ser mulher? Não é? A gente entra nessas reflexões. Ser mulher é ter uma vagina? Não, ser mulher está muito mais além. Ser mulher é uma expressão, ser mulher é ser política, ser mulher é ser guerreira, é ser determinada, é ser o que você é, é ser essência, é ser amor, é ser perfumada, é ser desconstruída, um dia eu estou bem, outro dia não estou. É isso que é ser mulher, sabe? É muito além dessa perfeição de cirurgias, olha, eu tenho que fazer feminilização, eu tenho que colocar um silicone, eu tenho que estar magra. Não, você tem que estar do jeito que você está feliz, entendeu? Se você está feliz assim, ótimo. Eu sou uma pessoa que sou muito vaidosa, mas em determinados momentos, determinados eu não estou, estou de saco cheio, estou com cabelo para cima, estou jogada na minha cama e está tudo bem. Eu acho que essa é a minha conclusão com o hormônio, estava me fazendo mal, mal no sentido de que eu acordava roxa, com manchas roxas no corpo.
P/1 – Mas o peito? O peito transformou, como é que ficou?
R – Cresce, cresce um pouquinho, cresce quando você toma hormônio.
P/1 – Como foi para você ter peito?
R – Era uma das coisas que eu mais queria, então, assim, foi uma sensação muito boa, só que assim, não ainda no que eu queria na época. Porque eu queria aquele peitão, silicone, eu não tinha dinheiro para fazer nada disso, mas o pouco que teve, que fez a hormonização, ok, eu gostei, na época, eu achei que ficou interessante. Mas era muito sofrida a coisa do hormônio, porque ele também te dá aquela sensação da depressão, né? É química atrás de mais química e eu tive uma depressão muito forte, eu não sei se foi só por conta do hormônio, mas também por conta da sociedade, o que eu vivi, vivenciei aqui nessa cidade, foram coisas que me levaram para um lugar não tão bacana que eu queria me desvencilhar, sabe? Eu queria tirar tudo isso de mim. Então foi bem complicada essa parte da hormonização, sabe? Então, eu falo até para as meninas que estão ouvindo, que vão escutar essa história, façam com prescrição médica o que você quer fazer, porque mata, hormônio mata muito,
tanto que nós estamos com uma expectativa de vida de 27 a 35 anos de mulheres trans e travestis nesse país, por conta da violência, por conta da saúde, por conta dessa automedicação que faz desde muito cedo. Então, assim, eu tive a sorte de não ter feito isso antes por conta própria, porque eu sempre tive medo, mas eu sei relatos de pessoas que já fizeram e sofreram muito com isso. E sofrem.
P/1 – E você tinha amigas, assim, como é que era a cena para transexual, que ano que a gente está? Como é que era? Você andava por onde na cidade, você ia em show?
R – Não.
P/1 – Como você se relacionava socialmente?
R – Não, não tinha, não tinha, não. Eu tive pouquíssimos amigos aqui, eu acho que fiquei nessa coisa do relacionamento, sabe? Era eu e meu marido, eu e meu marido, eu e meu marido, eu e meu marido e não saía. Não saía porque não tinha dinheiro, não ia para show porque não tinha grana, não ia para o cinema porque não tinha grana ou eu pagava a pensão e comia. E era isso, essa era minha vida durante, nossa, sete anos. Eu acho que eu entrei em uma coisa assim durante sete anos, sem lazer nenhum, sem nada, nada, nada, nada. Era muito isso de ficar ali, trabalhar. Aí eu tive esses momentos que eu tive a depressão, que eu fiquei uns bons meses acabada mesmo, que foi que eu quase morri, sabe?
P/1 – E como é que era a relação com seu marido? Ele era a favor do hormônio, ele achava ruim, como é que...
R – Não, sempre foi neutro, ele sempre queria que eu fizesse o que eu queria fazer, sabe? Sempre foi muito neutro em relação a isso, nunca palpitou. Eu que tinha essa coisa: “Não, eu quero, eu preciso. Eu preciso estar assim, eu preciso estar assado, eu preciso estar melhor, não sei o quê”. Então, eu que pautava muito isso para a minha vida, mas ele nunca interferiu em nada em relação a isso, nada mesmo.
P/1 – Você frequentava lugares, assim, no centro?
R – Não, igual eu estou te falando...
P/1 – Aqueles lugares que você vinha de Americana para cá?
R – Não, não mais. Eu criei um invólucro do mundo ali, que eu estava passando por tanta coisa ruim, tanta coisa muito triste, que eu não queria sair e tal. Aí já vem com sintomas da depressão, eu não queria sair, eu não queria ver ninguém, eu não queria falar com ninguém, eu queria estar ali fechada naquele quarto de pensão, trancada, assistindo uma TV. De repente, nem a TV me fazia mais feliz, sabe? Eu fiquei muito, muito mal, de querer só tomar um calmante para dormir. Só queria tomar calmante e dormir, tomar calmante e dormir, fugir dessa realidade, fugir do mundo, fugir do preconceito, fugir do que o povo achava certo ou errado, da estética que está boa ou se não está, eu queria fugir de tudo isso, era esse meu sentimento durante muitos anos.
P/1 – E aí, o que mudou na sua vida? Qual foi a mudança?
R – A mudança na minha vida veio com uma força que eu não sei de onde vem, eu não sei de onde vem, eu acho que, assim... E nesse tempo todo, né? Que foi passando as coisas, eu fui perdendo as pessoas, fui perdendo a minha mãe, minha mãe faleceu em 2012, meu avô já tinha falecido, em 2016 a minha avó faleceu, aí você vai mais ainda. E agora como é que vai ser? Por mais que elas vivessem ainda no interior, e eu estava aqui em São Paulo, mas a gente era mega unida. Aí quando a gente separou, veio um amor ainda maior, sem dimensão na nossa vida, porque a gente queria muito estar junta e fazia ela entender que se um dia ela não tivesse aqui, eu tinha que estar fazendo a minha vida, porque ninguém ia me ajudar em nada, ninguém ia bater na minha porta e falar se eu precisava de alguma coisa, pelo contrário. E foi realmente o que aconteceu, a única que eu tenho contato até hoje é a minha tia, que eu contei na história que é como se fosse a minha irmã. As minhas irmãs, depois que a minha mãe faleceu, entraram no mundo delas, né? Não tem muito influência na minha vida. Então, assim, eu tirei uma força de onde eu não sei que tinha e comecei a buscar coisas, buscar possibilidade, foi uma época que a Tam estava indo embora daqui de São Paulo do Telemarketing, né? O Telemarketing estava indo embora daqui para João Pessoa, eles começaram a demitir todas as pessoas, eu fui uma dessas. Aí foi onde eu acabei entrando em contato com o diretor aqui do Museu da Diversidade perguntando se ele sabia de alguém, porque, até então, eu tinha feito um estágio em 2012 pela prefeitura, em um programa chamado POT [Programa Operação Trabalho] que entregava pessoas trans em situação de vulnerabilidade, que era o meu caso na época, era um estágio, tal. E foi ali, nessa época em 2012, nesse estágio, que eu conheci o Museu, fiz vários trabalhos no Museu enquanto estava nesse estágio, que eu ficava lá na Secretaria de Cultura, lá na Rua Mauá.
P/1 – O estágio era da prefeitura?
R – Da prefeitura, era um programa da prefeitura. A gente era meio que emprestado, vamos dizer assim, para o Estado, né? Aí eu fui para Secretaria em 2012, aí não conseguiam efetivar, porque o Museu era muito pequeno, não tinha orçamento, não tinha verba. Aí acabei...
P/1 – Onde ficava o Museu naquela época?
R – O Museu sempre lá na estação...
P/1 – Na República.
R – Mas eu trabalhava lá na Secretaria de Cultura, lá na Rua Mauá, porque lá...
P/1 – Como que era esse Pode?
R – POT, era Programa Operação Trabalho. Era Programa Operação Trabalho.
P/1 – POT.
R – Hoje, a gente o tem em uma forma de remasterização que é o Transcidadania, é o Transcidadania de hoje que emprega mulheres trans.
P/1 – Mas que esse programa era em 2012 da prefeitura?
R – 2012. Era da prefeitura, isso.
P/1 – O que você fazia lá?
R – Então, aí eu ficava nessa coisa meio que de estágio, sabe meio que estágio? Para aprender a trabalhar, era meio que assim: “Vou ensinar você a trabalhar”. Aí foi bem na época que começou a coisa do Museu, aí eu ficava muito nessa de ficar no Museu, no espaço enquanto uma educadora, que nem era educadora, não sabia nem _______ [01:52:58], imagina, a pessoa está tão na vulnerabilidade que não sabe nem o que é capaz, o que não é. Ficava nisso, ficava no atender telefone, ficava nessas coisas assim, básicas, assim.
P/1 – Mas esse educativo, como é que você fazia?
R – Recebia as pessoas, recebia as pessoas, falava das obras que entravam no Museu, sabe? Que estavam lá no Museu, ficava muito nessa coisa de receber pessoas, é o que eles fazem hoje, né? Eu fiz isso lá no Museu em 2012.
P/1 – Que obras que tinham naquele momento?
R – Eu peguei na época uma exposição chamada Crisalidas, que era da Madalena Schwartz, uma artista aqui de São Paulo, que inclusive o filho dela é o... Ai desculpa, esqueci o nome dele. Enfim, ele sempre passava no Museu, ela fotografava artistas da noite aqui de São Paulo, as drags e tal. Ela ia muito, fazia muito o circuito do underground e tal, era maravilhosa essa exposição e eu amava. Ai, amiga, olha só... Louca, esperar o espirro... E eu amava, eu amava essa exposição e a troca com as pessoas, né? Eu gostava muito da troca com as pessoas. (espirro) Olha isso, de novo, ai que ódio. Essa troca com as pessoas era muito bacana para mim, sabe? Esse contato, histórias de movimentos, essa coisa social de explicar para as pessoas também que estavam passando por situação de vulnerabilidade, assim como eu, que entravam lá dentro do espaço, essa troca com essas pessoas foi muito importante para mim. Aí, acabou, né? Que esse programa acabou em uma época, acho que em 2013 ele deixou de existir porque teve uns problemas políticos nessa época, né? Na gestão da época na prefeitura. Aí eu saí e fui seguir a minha vida pelos Telemarketings da vida. Aí entrei em contato com o diretor perguntando se ele sabia de alguma coisa, ele falou que estava abrindo uma vaga para produção, produção no Museu e se eu tinha interesse. Eu falei: “Meu Deus, imagina, vou ter o primeiro emprego que eu não esteja escondida, que eu vou poder estar a frente de alguma coisa e fazer alguma coisa totalmente diferente do que eu já fiz”. E muito preocupava também, né? Eu tenho interesse, mas será que eu vou dar conta? Será que é para mim? É isso, sabe? A sociedade minimiza tanto a gente, deixa a gente tão impotente de achar que a gente não tinha nada, ninguém, sabe? Margem da margem? E, de repente, você passa a acreditar e você não acredita no seu potencial. Aí abriu a vaga, eu me inscrevi na vaga, não só eu, mais de mil pessoas se inscreveram para essa vaga, eu vim fazer a entrevista e aí passei e entrei para o Museu. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida, foi um dos momentos mais felizes da minha vida, porque eu comecei a sair daquela estagnação e comecei a ter perspectiva na minha vida, pensar em um futuro diferente, em um futuro onde eu poderia pluralizar, que eu poderia ajudar outras pessoas e não só enquanto uma profissional ali do espaço do Museu, mas enquanto vida, de falar: “Olha, vai, tenha força, você consegue, você pode ser alguém”. Então é isso que o Museu propiciou para mim e ainda tem me propiciado, porque eu consegui ter essa força e me identificar enquanto profissional. E estar fora do âmbito da graduação, fora do âmbito da Academia, porque até então eu não consegui fazer uma faculdade por questões financeiras. Então, assim, eu sou muito autodidata e eu tenho muito orgulho disso, né? Porque fazer produção não é fácil, produzir não é fácil, mas é algo que eu faço com tanto amor e com muito dinamismo, que eu também não sei nem de onde eu tiro e na hora que eu acabo de fazer, eu fico pensando, quando acaba o trabalho, eu falo: “Gente, da onde eu consegui isso, sabe?”. Mas é, realmente, dessa coisa da garra, do querer saber, do querer estudar, no pesquisar, eu sempre fui uma pessoa que foi e sou muito disciplinada com meu trabalho enquanto profissional sou extremamente disciplinada, em tudo que eu for fazer, eu tenho muita disciplina e muita perfeição, eu sou extremamente perfeccionista naquilo que eu estou fazendo.
P/1 – Paola, quando você entrou, que você passou nesse concurso, que ano era?
R – 2017.
P/1 – 2017. O que estava acontecendo no Museu da Diversidade naquele momento?
R – Estava abrindo uma exposição chamada “Será que ele é?”, que é um dos temas até do nosso bloco de carnaval que é o “Será que é?”. E, na época, a gente tirou o “ele”, porque dá impressão de ser só ele, quando é o todo. Era uma exposição chamada “Será que ele é?”, do carnavalesco Sidney, ele é de uma escola de samba, enfim, já passou em várias escolas de samba daqui de São Paulo. E era isso, era uma exposição sobre o carnaval, retratando a nossa comunidade no carnaval, naquela coisa das marchinhas, que a gente é retratado nas marchinhas e no carnaval tudo pode, todo mundo pode ser homem, pode ser mulher. Então vem muito com essa pegada dessa exposição. Eu entrei justamente nessa época, eu entrei para o Museu no dia 2 de fevereiro de 2017.
P/1 – Quem trabalhava lá naquele momento? O que você fazia?
R – Então, eu já entrei na coisa da produção, né? Entrei para produção, para produzir, o Franco Reinaudo, que é o diretor, já estava lá há muitos anos e estava o Jeferson, que era do educativo, trabalhava no educativo, estava lá também no Museu. Aí a gente tinha estagiários, que era um estagiário só, acho que o nome dele era João, se não me falha a memória, era isso, sempre foi uma equipe muito pequena, extremamente reduzida. Aí lá no espaço do Museu, porque é muito complicado, porque a gente fica na organização social e o Museu está lá. Lá no Museu, com educativo, a gente tinha o Pietro, enquanto educador, educador maravilhoso, e hoje está na Pinacoteca e tinha um menino chamado Luís, que também era do educativo, era uma gente bem legal, viu? (pausa). Eu não estou te ouvindo, meu amor.
P/1 – Esse universo para você era novo, você foi descobrindo, quer dizer, esse universo cultural das organizações, dos museus, como é que foi acontecendo?
R – Nossa, esse universo era muito novo, tanto que eu me pegava várias vezes com muito medo, né? Via as pessoas respondendo email, e-mails importantes, para pessoas importantes e ficava: “Nossa, meu Deus, será que eu vou conseguir?”. Opa, tem que ter jogo de cintura para trabalhar nisso aqui, né? Fazer contatos, como faz, como não faz? De repente, é isso, eu fui pesquisando, eu fui falando com um, com outro, correndo atrás, né? Porque eu acho que ninguém nunca me ensinou essa minha função, né? Enquanto produtora. Ninguém ensinou: “Olha, vou sentar, vou sentar, vou te ensinar o que é produção”. Não, eu fui indo muito na pesquisa, no dar a cara para bater, sabe? E foi fantástico, porque aí eu consegui, o que eu nunca pude anteriormente, ter acesso à cultura, porque eu acho que o acesso à cultura ainda não é democrático, não é, está longe disso, não é um lugar democrático para população, eu venho disso, por isso falo com essa propriedade, não é acessível, você vai pagar uma peça de teatro de cem reais, sendo que você precisa de um gás para poder comer, entendeu? Então não vejo ela de uma forma acessível, por mais que tenham convites, tem um convite aqui da lista amiga, tal. Ai, de repente, você já está tão vulnerável que você acha que você vai lá pedir um convite da lista amiga? Você não vai, é humilhante, sabe? É humilhante. Então eu vejo que não é algo que te pertence, não é para todo mundo. Aí eu comecei a perceber e sentir isso aqui, é uma das minhas pautas de vida hoje da gente pensar na cultura democrática, né? Como ela pode ser democrática? Como ela pode ser sociável? Como a museologia, quando a gente fala de museologia social, como que ela pode ser social? O que você está fazendo para que ela seja social? Porque até então eu nunca tinha entrado em um Museu, porque eu não me sentia pertencente, imagina, vou entrar no MASP? Imagina! Primeiro que eu não tenho dinheiro, segundo que eu não tenho roupa para isso, eu não sei como me comportar dentro de um museu. O museu sempre passa essa coisa da imponência, do segurança já na porta, das catracas, então é uma coisa que sempre pegou para mim nesse sentido. E ter acesso e poder ser hoje uma fala dentro de um movimento, não só de um movimento enquanto comunidade LGBT, mas de um movimento cultural, enquanto profissional da área, é muito gratificante para mim, poder ponderar e fazer as pessoas refletirem, fazer essa provocação, eu faço isso sempre com as pessoas. Está social? É para todo mundo ou não é? Porque a gente tem que ser clara enquanto espaço, acho que diversos espaços. É isso que eu consegui ter sendo essa profissional que eu sou, sabe?
P/1 – Paola, me fala uma coisa, você sofreu algum tipo de preconceito por ser do Museu da Diversidade, quando você começou a trabalhar em algum espaço?
R – Você sabe que não, você sabe que não, eu acho que preconceito não seria a palavra, talvez a gente sofra uma certa dificuldade ainda de tratar desse assunto, e de esse assunto estar vinculado a uma pauta política, porque o Museu, querendo ou não, é do Governo do Estado, então a gente sofre com essa coisa, né? “Ah, dinheiro público gasto com porcaria, museu de veado, museu de não sei o quê”. Então isso a gente sofre muito, sabe? E sente, sente. Mas no sentido de ser uma profissional do Museu, não, mas sim pelo todo, pela estrutura toda que o Museu é e o que ele conduz, e nessa preservação da memória dos nossos enquanto comunidade LGBT, porque para a população geral LGBT não tem que ter memória, imagina! Para quê? É uma gente que não está no mapa, não tem que estar no mapa, tem que tirar essas pessoas, a galera de fora. Então, assim, é muita persistência para estar aqui, sabe? Nesse espaço. É muita resistência para ser o que a gente é. É muita resistência para ter essa voz e poder falar, sabe? E não ter medo, nem vergonha. Eu falo que eu milito vinte e quatro horas, porque, assim, eu coloquei o pé para fora da minha casa, estou militando. Fora não mais porque a gente está nessa pandemia, a gente não sai de casa, mas estou aqui nas redes, estou com a produção desse novo programa que eu estou tendo toda sexta feira aqui no Instagram, que também é uma militância, né? Uma apresentadora trans? Tem apresentadora trans? Não tem, por que não tem? Por que não pode ter? Qual é o problema? Entendeu? Você vem arduamente com essa militância todo tempo.
P/1 – Paola, o que mudou na sua vida, quer dizer, como está a sua rotina nessa pandemia?
R – Olha, nos primeiros dias eu fiquei muito mal, eu fiquei muito depressiva, até porque enquanto produtora, tudo é muito agito, muita viagem, produzindo as paradas no interior, enfim, as coisas do Museu que eram muito 220, de repente, você vem e muda toda sua rotina, muda toda a sua vida e você tem que parar e pensar: “Nossa, o que eu vou fazer agora? Como que a gente pode fazer agora?”. O Museu está trabalhando de casa, home office, é o que a gente pode, mas também como eu disse é mais uma pesquisa para planejar para o futuro as coisas que a gente vai fazer lá dentro, até porque a gente não sabe de que forma que vai fazer, como é que vai ser o protocolo, _______ etc [02:05:54]. Mas também me deixou feliz no ponto de que eu tive essa construção toda na minha vida onde hoje eu posso ter um lugar para eu poder morar, né? Onde eu vejo a galera toda aqui fora e a gente ajudando. A galera que está na rua por ser dessa coisa da vulnerabilidade, por LGBT. Então, sou muito grata, grata por ter um lugar onde morar, grata por ter uma comida que eu possa comer e grata porque eu tenho a minha criatividade para usar. Nos primeiros dias, eu não conseguia me concentrar, eu não conseguia produzir nada, eu não conseguia ler, eu não conseguia assistir nenhuma série, eu não conseguia fazer absolutamente nada. E, de repente, eu venho cuidando da minha casa, com outro olhar, eu passo até gostar das plantas, coisa que eu não tinha, olha, para você ver, coisas que eu não tinha na minha casa, eu comecei a redecorar a casa toda com plantas e estou amando. Estou plantando tudo, virei a louca da jardinagem, a louca da jardinagem. Plantei alface, se você quiser, minha querida, hortifruti aqui finíssimo na minha casa, fresquinho. E eu amei que é uma coisa que meu avô sempre pautava para mim, ele amava, ele amava as plantas, plantava, adorava. Aí ele falava: “Você tem que gostar, é bom”. “Ah, não, eu não gosto, não quero”, eu falava: “Não quero”. De repente, agora, com 34 anos eu estou aqui fazendo o gosto dele, que ele tinha vontade que eu fizesse e realmente porque eu quero fazer, porque está me fazendo bem. Aí também entrei nessa coisa de me aprofundar mais em mim mesma, em mim mesma no sentido de quem sou. Hoje as pessoas me veem como uma militante, tá, então vou trabalhar essa militância, Paola Valentina enquanto militância, militância no fazer, no produzir, não só para o Museu da Diversidade, sou uma profissional do Museu, sim, estou lá. Mas também fazer enquanto Paola para outras pessoas, para o mundo, para fora da bolha que foi o projeto que eu fiz desse programa do Paola Com Vida, que é justamente isso “com vida”, no sentido de estar viva, eu estou viva, superei todas as estatísticas, estou viva com 34 anos, estou fazendo as coisas, estou viva, porque lutei para estar viva, né? Estou convidando alguém para falar comigo e no jeito Paola de ser, que sou uma pessoa extremamente louca, divertida, eu gosto de dar risada, eu gosto de estar com os meus amigos e brincar, então eu queria que fosse um programa nesse formato e também, claro, trazendo a seriedade, mas também o entretenimento de leveza, de relaxar e de poder fazer coisas que a gente talvez não faça mais no nosso dia a dia. Então essa é a pegada desse projeto que estava na gaveta há muito tempo, todo mundo me falando: “Ah, olha, você tem que fazer um canal, você tem que ter não sei o que”. Eu nunca quis. Agora eu acabei por fazer e é uma coisa muito engraçada porque eu estou aprendendo muito apresentação, apresentadora, aprendendo a ser técnica de luz, aprendendo a fazer edição de vídeo para poder jogar nas redes. Então, assim, a parceira, a fazer parcerias com gente bacana que está aí também comigo nesse projeto, que está acreditando. Então, eu estou muito feliz com esse novo projeto, nesse momento de quarentena. Principalmente por ser em um momento como esse, que a gente não sai, que a gente não está na rua, e ainda está desenvolvendo alguma coisa, e que está fazendo bem para as pessoas, porque o feedback está sendo muito bacana, estou muito feliz.
P/1 – Paola, voltando agora, porque eu sempre volto, né? (risos)
R – Imagina, está certíssima.
P/1 – Antes de você trabalhar na primeira Parada, você frequentava a parada, você já tinha ido?
R – A minha primeira Parada foi no ano de 2005, você acredita? Eu venho para a primeira Parada no ano de 2005, ainda morava no interior, nossa senhora, curti horrores, curti horrores essa parada de 2005. Nunca tinha vindo, sempre só ouvia falar, não tinha vindo, por questões de condições também. Aí, depois a minha segunda Parada foi quando eu entrei no Museu em 2017, 2017 que eu vim. Só que aí não mais enquanto espectadora de uma Parada.
P/1 – A primeira foi em 2005?
R – 2005. Você acredita?
P/1 – E por que você achou um horror?
R – Não, eu adorei. Eu adorei.
P/1 – Ah, você adorou!
R – Eu adorei, me diverti horrores. Imagina, comprei uma bota, na realidade, eu tinha essa bota por causa dos shows que eu fazia antigamente, aquelas da Joelma, sabe aquelas botas da Joelma imensas? Aquele salto de 15 centímetros. Inclusive, comprei em uma boutique que fica na Augusta, que eu adoro aquela loja, agora não mais porque são saltos muito altos e não dou mais conta. Mas, imagina, menina, andei, nossa, na Paulista andava e voltava com aquela bota que nem sente o pé. Aí, de repente, estava com tanta dor no final da noite, com aquela bota no pé, tiro aquela bota para dar uma relaxada, minha filha, nunca mais meu pé entrou dentro da bota, porque inchou, imagina, o dia inteiro, o dia inteiro fervendo nessa Parada, aí a bota não voltava mais, segurei a bota na mão, foi uma loucura, foi muito bom, foi muito boa a minha primeira experiência na Parada em 2005. Aí, a segunda também que foi enquanto produtora, aí já no trio, em um carro, né? Para o Museu e ver aquilo ali de cima, a quantidade de pessoas. Ah, é muito emocionante, sabe? Não tem, eu não consigo nem descrever para vocês, foi um sentimento que eu tive de, assim: “Nossa, tudo está valendo a pena, por mais que esteja difícil, por mais que seja doído, por mais que muito dos nossos estão indo, já fizeram a passagem por conta da intolerância, da violência, mas está valendo a pena nossa luta porque aqui está a voz de uma galera imensa”. E é isso, sabe? Acho que no Brasil, a gente precisa... Se a comunidade LGBT fosse mais unida, porque eu não vejo muito dessa união, infelizmente, a gente conseguiria muito mais, a gente conseguiria muito mais. Então é muito gratificante.
P/1 – Quando você veio para Parada em 2005, você veio por uma causa ou era um programa? Como é que foi para você vir em 2005, o que te motivava a vir?
R – Você sabe que eu vim porque eu me identificava com a causa, mas eu vim também no intuito de conhecer, saber como era, né? Saber como era e nessa coisa do close, “Ah, close”, ir para parada era chique, era uma coisa maravilhosa. Então tinha muito essa pegada, mas claro que lá no fundo sempre já essa coisa da causa, né? Estava ali para poder dar a cara e para fazer diferença, inclusive, para as pessoas que estavam lá no interior, né? Porque eu sempre fui muito dessa coisa, de levantar a bandeira mesmo: “Seja quem você é. Seja quem você é”. Sempre, sempre, sempre.
P/1 – Aí em 2017, você veio já participar da produção da Parada?
R – Isso, aí já foi a produção.
P/1 – O que você fez? Como é que foi essa produção?
R – Nossa, menina, tudo. Aí já começa, aí é a produtora louca, de produção de lotação do carro, dos convidados, fazer a lista de convidados de quem está, o rider técnico do carro, o que vai ter, qual DJ vai ter, qual não vai ter, que horas que um entra, que horas outro sai, sabe? Todo o cronograma de produção mesmo, literalmente, nessa primeira Parada que foi uma coisa que me surpreendeu porque, imagina? Eu nunca tinha feito, de repente, tudo fui encaixando, eram coisas que eu ia fazendo na minha cabeça. “Olha, fulano toca tanto tempo, depois ciclano entra, depois fulano volta”. E estar ali e receber pessoas, fazendo esse métier ali da recepção, receber pessoas, conversar com pessoas, botar tudo acontecer, receber o suprimento para abastecer o carro, sabe essa loucura? Eu amo essa loucura. Eu amo essa loucura. Então, foi uma ó, uma experiência que depois que acabou, inclusive, eu chorei horrores, mas de emoção mesmo de ter conseguido ter feito algo tão grandioso quanto isso.
P/1 – Como é que era, tipo, mudou alguma coisa, o que mudou de 2005, quer dizer, desse momento, que você se assume como transexual, se descobre transexual, que é o que você é, aquela violência que tinha o preconceito, o que mudou de lá para cá?
R – Olha, a gente está vendo muito... A mudança é muito pequena, mas a gente consegue vê-la, que é ter pessoas trans nos espaços, ocupando os espaços que antes elas não ocupavam no mercado, na padaria, enfim, lugares que elas não ocupavam ou até mesmo sendo advogadas, sendo médicas, está rolando essa inclusão das pessoas trans, coisa que eu não via em 2005. Eu acho que tudo isso se dá por essa militância árdua de toda a comunidade, estou vendo também a transformação e também uma evolução na questão da legislação, em questão ao nome social, questão do nome mesmo que você queira como identidade, na sua identidade. Então a gente consegue ter avanços aí, a gente consegue ter avanços dos corpos livres, essa questão do corpo “Olha, não me identifico nem como homem, nem como mulher”. E está tudo bem, é isso aí, está tudo certo. Isso é maravilhoso, as pessoas serem libertárias. São evoluções que vão acontecendo ao longo do tempo e que me deixam extremamente feliz, extremamente feliz.
P/1 – Paola, como você vê hoje o papel e o futuro do Museu da Diversidade Sexual?
R – Olha, eu vejo o Museu hoje como uma grande referência para muita gente, o espaço realmente social que ajuda muita gente, sabe? Ele é pautado muito pela questão da museologia social, exatamente porque a gente recebe muito essa nossa galera em situação de vulnerabilidade, em situação de desconforto, de não descobrir a sua identidade, enquanto nosso educativo lá é extremamente potente. Nós temos um educativo extremamente potente que desenvolve muita coisa bacana, muitas ações, muitas métricas, muita educação para essa galera que entra no espaço, no Museu. Então é algo que, nossa, eu mergulho muito no educativo que a gente tem lá. Então, eu o vejo, claro ainda a gente lida com muito preconceito institucional de ser quem somos, o Museu cuida da memória da comunidade LGBT+, mas eu penso ele em uma evolução, ele evoluir para um outro espaço, que ele possa abraçar mais pessoas, que ele possa ter mais estrutura, que possa integrar mais pessoas e principalmente, pessoas da comunidade LGBT. Bato muito na tecla das mulheres trans e travesti, porque são pessoas que são muito mais difíceis de conseguir um emprego. Então, assim, eu penso nele nesse formato de crescimento e de evolução para poder abraçar a todes e poder realmente referência mundial, quando o assunto é museologia LGBT.
P/1 – Paola, olhando a sua trajetória de vida, assim, hoje a gente deu uma pincelada, da para ficar aqui dois anos, né? Passaram duas horas e meia e nem parece, né? Passaram duas horas e nem parece que a gente está... É claro, é uma seleção, é uma pílula, né? Mas a gente tentou voltar. Se você tivesse que mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, você mudaria?
R – Não. Eu acho que eu não mudaria nada, não. Eu acho que tudo que eu vivi foi importante para eu ser quem eu sou hoje, sabe? Tudo, tudo, tudo mesmo. Tudo que eu vivi. Até os momentos piores que eu passei, eu aprendi demais, eu aprendi valorizar tanto a vida, por isso que eu tenho muito esse orgulho de estar viva. Eu passei por situações que eu quase não estaria mais, então tudo isso me ensinou, sabe? A valorizar as pequenas coisas da vida, a valorizar um copo de água, a valorizar uma casa aconchegante, e quando eu falo aconchegante não é de luxo, não, é aconchegante de amor, de afeto, de carinho, um lugar onde você possa entrar e se sentir bem, a valorizar o que ninguém vê, o que ninguém vê. Todo mundo sempre muito na coisa da grana, nos grandes luxos, nas grandes viagens, não, não, não. Tanto que eu comecei a fazer essa coisa de viagem agora por conta do trabalho e as possibilidades estão entrando agora, mas eu vejo muito, sabe? Dessa experiência de tudo que eu passei, para dar valor para tudo que eu estou tendo e todo esse retorno que estou tendo também em relação ao carinho das pessoas, à visibilidade que as pessoas estão me dando. Então eu acho que tudo isso se deve a tudo que passei, então, assim, não mudaria nada, não. Tudo me fez construir para ser quem sou.
P/1 – Paola, o que você achou de fazer sua entrevista? Gravar sua entrevista de história de vida para o Museu da Pessoa?
R – Ah, eu achei de uma sensibilidade, eu achei de uma... Ah, eu sou tão suspeita de falar do Museu da Pessoa, porque é um museu que trabalha com vidas, né? É isso, assim como o Museu da Diversidade também trabalha com vidas, nós somos vidas e nós importamos com essas vidas. E o Museu da Pessoa importa demais com essas vidas, importa com as suas histórias. E desmistifica, porque uma história como a minha de uma mulher transexual/travesti, em uma sociedade como o Brasil é muito plural, é muito plural, é muito essa mudança, né? Que a gente está tendo. É muito esse enfrentamento que a gente está tendo de a gente estar em todos os espaços. E começa a estar naquela onda que eu falei que é na democratização cultural, então o Museu de trazer tudo, indígenas, pessoas negras, velhos, novos, enfim, a diversidade, né? É um museu de diversidade também o Museu da Pessoa. Então para mim, falar nesse espaço, poder contar um pouquinho dessa história tão louca de vida minha, mas também que eu tenho tanto orgulho, porque jamais eu vou olhar para trás e vou falar assim: “Quero apagar meu passado”, não, pelo contrário, eu quero evidenciar para ajudar muitas outras pessoas. Eu só sou grata ao Museu da Pessoa, a todos os profissionais do Museu da Pessoa, porque vocês fazem a diferença, vocês salvam vidas, porque quem está assistindo isso aqui pode estar lá tentando fazer uma hormonização que não está dando certo e vai ouvir um relato que eu não faço mais porque está tudo bem. Está tudo bem a gente ser o que a gente é, eu não vou ficar me modelando, me fazendo e ficar mal de saúde, jamais. Então a gente está salvando vidas e a gente nem sabe que está. Então essa é a maior missão que o Museu da Pessoa tem e está fazendo, assim, olha, maravilhosamente, primorosamente.
P/1 – E para você, pessoalmente, como foi reviver esses momentos?
R – Olha, foi um momento de muita emoção, vivi muita emoção hoje, muita lembrança, eu consegui lembrar de coisa que eu nem lembrava mais, acredita? Consegui lembrar de coisas que nem lembrava mais, acredita? Consegui lembrar de coisas que nem lembrava mais e isso me deu aquele aconchego no coração, aquele calorzinho, me trouxe as emoções. E olha que sou um pouco difícil de me emocionar, pela minha trajetória, porque eu tenho essa coisa de ser um pouquinho fechada com os meus sentimentos mesmo, os dos outros eu me emocionei, mas os meus mesmos eu acabo não me emocionando. Aí eu consegui me emocionar demais com isso e as lembranças são muito boas. Agora eu sinto todo mundo aqui presente, perto de mim, sabe essa coisa da espiritualidade? Todo mundo aqui comigo, parece que está todo mundo aqui do meu lado, as pessoas da minha família que já foram estão todas aqui.
P/1 – Paola, queria super te agradecer em nome do Museu, do meu.
R – Imagina.
P/1 – Está maravilhosa.
R – Imagina, meu amor, imagina, eu que agradeço de coração, você é maravilhosa, você sabe que você já mora no meu coração, não preciso falar porque isso já é papo consumado. Espero que você tenha gostado, espero que tenha chegado ao objetivo que você precisava, tá bom? E a gente está junta sempre para tudo.
P/1 – Amore, vou te mandar depois umas fichas para você preencher, ou passo por telefone. Paola, qual o nome do seu cargo no Museu?
R – Produtora Cultural.
P/1 – Produtora cultura, o Pa, aí eu te mando toda a ficha, a gente faz depois.
R – Ótimo, sem problema, meu amor, aí você me manda. Amo você. Amo você. A gente precisa sair para beber depois disso tudo.
P/1 – Não vejo a hora, Pa.
R – Também não vejo a hora para a gente poder curtir a vida como ela pede. E você é uma pessoa dessas, você é uma pessoa que curte a vida, você também é referência para mim.Recolher