Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Coraci da Silva Neiva Batista
Entrevistada por Márcia Ruiz e Fernanda Prado
Paracatu, 16/06/2017
Realização Museu da Pessoa
KRP_HV24_Coraci da Silva Neiva Batista
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Dona Coraci, eu gostaria de agradecer em nome do Museu da Pessoa e da Kinross a senhora nos receber aqui na sua casa e participar do projeto. Eu queria que a senhora falasse o seu nome completo, o local que a senhora nasceu e a data de nascimento.
R – Olha, o meu nome completo é Coraci da Silva Neiva Batista. Na época em que eu fui registrada e onde nasci era Coracy, com y. Acontece que quando eu fui estudar no curso primário, que veio a reforma ortográfica, a professora tirou o y e botou o i! Eu nunca mais tirei o i porque os outros documentos foram sendo escritos com i. Dá raiva, eu queria estar com o y. Eu nasci na cidade de Miraí (MG), Zona da Mata, em 13 de junho de 1932.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – O meu pai chamava Josino da Silva Neiva e a minha mãe, Elvira Rodrigues Neiva. A minha mãe era filha de um português. Eu morro de rir porque eu fico contando pras pessoas, meu avô materno chamava-se (diz o nome com sotaque português) Manuel Soares Rodrigues (risos), que os portugueses adoravam casar com outra raça. Esse, Manuel Soares Rodrigues, veio conhecer Paracatu, conheceu a minha avó na fazenda e casou-se com ela. E o meu pai, eu conto e não importo, faço questão de contar, o meu pai chamava-se Josino da Silva Neiva. O avô dele, que é meu bisavô, era Antônio da Silva Neiva, nasceu em Portugal também, mas teve a minha bisavó com uma escrava, acho que é escrava, da raça negra. Ontem eu estava lendo a história de Portugal, como que eles cruzavam português com índio, português com a raça negra, por isso que é tudo miscigenado, né?
P/1 – E os seus avós faziam o quê, por parte de pai e por parte de mãe.
R – O meu pai era um dos intelectuais famosos da época da [Escola Estadual] Afonso Arinos e dos outros daquela época porque pra estudar curso superior tinha que gastar muito dinheiro pra ir pra fora. Naquela época, papai nasceu em 1875, entendeu? Então meu pai era escritor e professor e diretor, foi diretor de escola, professor e escritor.
P/1 – Ele foi professor aqui em Paracatu?
R – Em Paracatu. E diretor aqui e você sabe onde mais? Em Sacramento (MG). Eu não podia contar isso pra vocês. Na época, ele lutava para evoluir, então ele foi nomeado diretor de Paracatu. Mas naquela época, ele era do partido da antiga UDN [União Democrática Nacional] e o outro partido que dominava era o PSD [Partido Social Democrático]. Aí o PSD transferiu ele para Sacramento (risos). Ele foi diretor de Sacramento e a mamãe mudou, tinha perdido três filhos pequenos aqui em Paracatu, que não era muito evoluída, tinha um epilético, eu não era nascida, e tinha o Darci Neiva, pai do Darcizinho dessa loja. Mamãe pegou essas duas crianças e foi pra Sacramento com ele. Ele foi diretor um ano em Sacramento. Miraí ficou sem diretor, ele aposentou, então o pessoal de Miraí foi a Sacramento e levou papai pra lá. Ele ficou lá até aposentar. E eu nasci lá. Eu tinha mais de dois anos, quase três, quando ele aposentou e a minha mãe não quis ficar em Miraí, ela queria voltar pra terra natal dela. Então ele voltou para Paracatu. E eu vim para Paracatu pequenina, nunca mais mudei daqui, amo Paracatu como se fosse a minha terra natal.
P/1 – E a senhora lembra como que era a casa que vocês foram morar aqui em Paracatu? Onde era?
R – A cidade era toda calçada de pedras, pedras enormes. Casas coloniais pregadas uma na outra. E era perto do beco, o Beco dos Malcasados, um bequinho que tinha ali perto. Então, a minha casa era aquelas casas coloniais. Ah, rua de pedras e a escada que descia era toda feita de cimento, enorme. E as pessoas sentavam nos degraus pra ficar batendo papo de noite. Ou punha cadeira lá em cima para se encontrarem e conversar.
P/1 – E essa casa...
R – Ela ainda está lá.
P/1 – Ela existe.
R – Existe. [Rua] Manoel Caetano, 107. Uma moça que alugou fez um salão de beleza.
P/1 – E como é que era a casa? A senhora lembra como ela era?
R – Assoalho de tábuas largas, uma cozinha de cimento e tinha uma sala e quatro quartos, um, dois, três, quartos. Uma sala e três quartos. Depois, um outro cômodo grande, que a gente chamava de varanda, o banheiro e depois a cozinha e a dispensa, que guardava os alimentos. Eu estou falando como a gente falava, onde a cozinha, a dispensa, a sala de jantar. E o quintal, maravilha de quintal. Enorme e até onde abriu a avenida. E que aí eu tive que ceder pro meu irmão a metragem, ele construiu casa, loja, a Eletroneiva e mora na frente. O quintal era como se fosse um pomar, tinha tantas qualidades de frutas, parreira, laranjeira, mangueira, abacateiro... Uma variedade imensa. E eu, quando criança, Paracatu todo ano, vários meses que ficavam aqui, que vinha de fora, um circo. Era a distração do povo, ir ao cinema, aquele prédio enorme que tinha lá perto da igreja do Rosário, ou ao circo. E nós crianças íamos ao circo, acabamos encantadas com os trapezistas. Sabe o que fazia? Eu era um capetinha, viu? Chegava em casa, as crianças iam brincar no meu quintal porque tinha muita fruta e eu subia nas árvores e fazia tudo o que eu via o trapezista fazer no circo (risos). Dava um show de trapezista lá! Nessa casa que era assim, né? Depois quando a cidade mudou, que tiraram o Beco dos Malcasados, e que abriram rua lá, então, acabou acabando os quintais, né?
P/1 – E quais eram as brincadeiras que a senhora, quando criança, fazia?
R – Ah, mas era a coisa mais linda! A gente brincava de boneca em casa, mas à noite a gente saía, não tinha carros, não tinha nada, então a gente ia brincar na rua, de biscoitinho, queimada, de sair correndo atrás do outro, até esqueci o nome do brinquedo.
P/1 – Pega-pega?
R – Pega-pega, é.
P/1 – De roda a senhora brincava?
R – De roda. A gente brincava de tarde e de noite na rua porque encontrava a criançada da vizinhança para brincar.
P/1 – E nessa época as casas tinham luz?
R – Tinham luz. Não era a atual rede de luz de hoje, mas tinha luzes e as pessoas mais velhas se encontravam, como eu te falei, nas casas, tomavam cafezinho, comia qualquer coisa e de noite sentavam nas cadeiras pra ficar batendo um papo. E as crianças brincavam. A gente, de dia, tinha escola, né? Mas quando chegava da escola, a gente brincava com as crianças até de noite. E quando menor a gente tinha os brinquedos de boneca, em casa, que eu nem sei se hoje ainda existe.
P/1 – Com quem a senhora brincava além da vizinhança? A senhora brincava com seus irmãos?
R – Eu adorava meus irmãos e a vizinhança. Praia do Macaco, praia do Vigário, meu pai me levava e ficava sentadinho no barranco e eu nadando, brincando nas águas que corriam. Enquanto eu nadava e brincava, as lavadeiras estavam lavando as roupas e punham na areia pra secar e as filhinhas delas nadavam comigo, eram minhas maiores amigas, eram as crianças pobres. Nós nadávamos na praia, não tinha piscina, né? A piscina nossa eram lindas as praias de Paracatu. Praia do Vigário, Praia do Macaco, as praias.
P/1 – E quando a senhora ia com seu pai, era nos finais de semana, era durante a semana, quando a senhora ia nessas praias?
R – Quando eu estava na escola, devia ser só feriados, dias santos. Eu ia falar outra coisa com vocês e comecei a esquecer. Ah! Durante o dia, que coisa linda, os pobres batiam palma, cumprimentavam para pedir um prato de comida. Assim que recebia, as mães, os pais, recebiam com a maior gentileza, eles entravam, davam tudo o que eles precisavam e eles saíam dizendo assim: “Deus lhe pague!”. Hoje, o povo não está recebendo pobre, acha que é ladrão e muitos são espertos, pedem dinheiro pra usar drogas, que diferença! Tanto que eu vivi até ela morrer, mamãe criou a filha da lavadeira, que mais tarde adoeceu, ficou na cama, a gente tinha que pôr um enfermeiro cuidando dela. A (inaudível) ainda está viva até hoje aí. Era pretinha, uma neguinha gostosa, minha maior amiga, a Mercedes, ficou morando com a gente até o último dia. E a mãe dela foi lavadeira da mamãe, lavava nessa praia e trazia as trouxas de roupa.
P/1 – E como é que elas levavam as roupas, a senhora lembra?
R – Elas levavam na trouxa, faziam a trouxa de roupa e levava.
P/1 – Levava na cabeça?
R – É. Ou no avental.
P/1 – E conta pra gente quais as lembranças que a senhora tem da escola, da primeira escola que a senhora frequentou?
R – Eu frequentei a Escola Afonso Arinos. E mais tarde me tornei diretora dessa escola, fiquei acho que 30 anos lá. A escola era uma beleza, não tinha os problemas que têm hoje, então na minha infância era a coisa mais linda.
P/1 – E como era a escola, a senhora lembra? Tinha uniforme?
R – Tinha uniforme. A minha escola é essa Afonso Arinos. Tinha uniforme e a gente respeitava. Quando eu era diretora, eu não punha o cadeado no portão. Fechava o portão apenas, mas os alunos sabiam qual era o dever deles, tinham que respeitar, não podia sair, nem fugir da aula.
P/1 – E quando a senhora era criança, que a senhora entrou no Afonso Arinos, a senhora entrou no primário ou na pré-escola?
R – Primário. Não tinha pré.
P/1 – E a senhora lembra da sua primeira professora?
R – Dona Aurora, me lembro, tenho até foto dela.
P/1 – E ela acompanhou a senhora no primário inteiro?
R – Foi no primário inteiro. Não, primário tinha uma de primeiro ano, uma de segundo, uma de terceiro e uma de quatro. Excelentes educadoras.
P/2 – E como é que era o uniforme? A senhora falou que tinha uniforme.
R – Era saia pregueada azul e a blusinha branca por dentro.
P/1 – E a saia era comprida, tinha meia?
R – Não tinha meia, não, mas não tinha perna de fora como hoje, não, né? (risos) Era no joelho a sainha.
P/1 – E como é que era esse cotidiano na escola? A professora...
R – Dava aula, tinha o recreio. Tinha também auditórios. Um lanche delicioso.
P/1 – Tinha merenda então?
R – A gente levava, mas quem não podia pagar tinha de graça. Excelentes cozinheiras.
P/1 – E a senhora lembra das cozinheiras da escola, quem eram?
R – Lembro, já morreram.
P/1 – Como era o nome delas, a senhora lembra ou não?
R – Uma era Georgina.
P/1 – Se a senhora não lembrar não tem problema. E desse período primário teve alguma professora que marcou a senhora e por que marcou?
R – Todas eram excelentes, todas deixaram lembranças maravilhosas. A do primeiro ano é a que a gente mais lembra, né? Dona Aurora. Levava a gente pra estudar na casa dela, fazer reforço. Era um encanto.
P/1 – E a senhora fazia muito reforço?
R – E a dona Baiana levava a gente também na casa dela. Lá tinha árvores de frutas (risos), a gente podia subir e pintar o sete, no quintal da casa dela. E dona Dirce, ainda tem as filhas que moram aqui, moram ali embaixo.
P/1 – E a senhora ia na casa delas...
R – Eu sou velha e estou lembrando dela.
P/1 – Muito bem! Essas professoras que levavam a senhora na casa delas pra reforço, que horário era esse reforço?
R – Era durante o dia, porque ela era professora do primeiro ano, tinha o dia que ela dava as brincadeiras na casa dela e reforçava alguma coisa.
P/1 – E dona Coraci, depois que a senhora saía da escola, a senhora ia pra casa. Como era o cotidiano? Sentavam todos à mesa pra comer?
R – Eu acho que toda casa tinha, rica ou pobre, né? Sempre tem uma mesa grande pra sentar e comer. Numas casas sentavam de banco, outras de tamborete, outras de cadeira. Mas era tudo arrumadinho.
P/1 – E que comidas a senhora lembra dessa infância?
R – Uai, essa comida comum que como todo dia, feijão, arroz, carne e verdura, assim, macarronada, né? Minha mãe adorava ser cozinheira, adorava. Era com muito carinho, então todo tipo de coisa que faz com feijão, tutu, né, com feijão comum, arroz, então era isso. Frango, principalmente o caipira.
P/1 – Ah, o frango caipira. E o seu pai tinha fazendas?
R – Tinha fazenda, chamava Poço D´Água.
P/1 – E vocês iam muito à fazenda ou não?
R – Ia de vez em quando porque é longe, né? Não tinha carro na época. Não era igual hoje.
P/1 – E vocês iam à fazenda quando, nas férias?
R – Eu não me lembro quando, a gente era muito apegada à escola, e pra ir à fazenda não era fácil, né? Mas devia ser quando podia, um dia de folga, algum domingo, algum feriado. Que hoje é diferente, né?
P/1 – E ele plantava o quê na fazenda?
R – Ele criava gado e o que tinha lá, era dono quem trabalhava lá.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente como eram as festas nessa época, na cidade? A senhora tem lembrança dessas festas?
R – Que tipo de festa você pergunta?
P/1 – Festa religiosa típica, tinha alguma?
R – As festas religiosas eram lindas, né? Procissões, de acordo com o evento. E as festas em casa de família eram os aniversários, fazia festa com lanche pra oferecer pros amigos ou nós íamos também muito às festas, naquela época, quando a gente era adolescente, bailes. Tinha baile nas casas. Eu mesma, na rua onde eu morava, hoje não tem mais isso, cada fim de semana tinha um baile numa casa do vizinho e a gente ia pra frequentar o baile e dançar. Então tinha muita festa, muita dança.
P/1 – E nesses bailes, que tipo de música que tocava, a senhora lembra?
R – Lembro. Às vezes eram pessoas que sabiam tocar o violão ou acordeom.
P/1 – E esses músicos eram aqui de Paracatu mesmo?
R – Eram de Paracatu.
P/1 – E a senhora lembra quem eram esses músicos?
R – Um dos músicos aqui era o seu Luís Arino, né?
P/1 – Ele era sanfoneiro?
R – Sanfoneiro.
P/1 – E ele era contratado pelas famílias pra tocar nas festas.
R – Devia ser, né? Eu não sei porque a gente era criança, era mocinho, não prestava atenção como era, né? Eu tinha uma irmã doente, não podia fazer festa na minha casa, mas então eu ia na dos vizinhos que convidavam, né?
P/1 – A senhora estava comentando das procissões. Que procissões eram mais famosas nessa época?
R – A de São Benedito, Santo Antônio, na época do, como que chama que tem todo ano?
P/1 – Festa junina?
R – Aquele santo famoso da cidade, qual é?
P/1 – Tem o Santo Antônio, São Benedito...
P/2 – São Domingos.
P/1 – São Domingos. A Folia de Reis também.
R – É.
P/1 – E a igreja que a senhora frequentava com a sua família qual que era, dona Coraci?
R – A gente frequentava mais a igreja mais próxima. Eu ia muito na igreja da Matriz e do Rosário, que a minha casa era perto do Rosário. Eu quando mudei pra cá, depois de velha, é que eu frequento aqui a da Abadia, né?
P/1 – E como era a igreja naquela época? A senhora lembra? Descreve ela pra gente, como é que ela era por dentro, por fora.
R – Como é hoje, né? Cheia de imagens nos altares, as pessoas sentavam em bancos e o padre celebrava lá na frente e dava a comunhão.
P/1 – E ela já tinha sido restaurada ou não?
R – Não, não era assim estragada, com o tempo estragou. Mas era linda, era linda. Agora que estão restaurando. Depois de cento e tantos anos, se não consertar cai, né? Houve uma coisa muito errada aqui no passado, que minha língua é grande e eu acabo falando, né? Não respeitavam muito, a igreja católica deixava derrubar igreja quando estava muito estragada. A igreja da Abadia, era que eu era muito pequena e não me recordo como que ela era, mas a dona Nega Neiva morava ali perto, atrás de onde hoje é a prefeitura, tinha a igreja da Abadia. Numa época, acho que foi 1930, que ao invés de consertar, derrubou. Aí você vai rir, você vai rir, dona Nega morava perto, quando ela viu o povo roubando até madeira, telha, ela correu, catou todas as imagens da igreja, pôs dentro de uma caixa, trancou e ficou. Nove anos, todo ano, fazia um leilão, até que juntou o dinheiro suficiente pra dar pros padres, comprou quase que esse quarteirão todo. Comprou lá onde hoje é a igreja e eles fizeram uma igreja, naquela época foi feito, não me lembro quem era, disse que fez uma igrejinha lá da Abadia muito pequenina. Nisso, quando eu me mudei para cá e passei a frequentar e passei a fazer parte do conselho da igreja. Antes de eu conseguir a reforma, que eles construíram a igreja feiosinha lá, dona Nega foi e entregou assim nas mãos do bispo todas as imagens, grande e pequena. Aquela grande que tem lá na Abadia e que quando eu, Oleni, Derci, Paulo Porto e outros nos tornamos parte do conselho, eu consegui com minha amiga Penha Braga de Belo Horizonte fazer a planta pra reformar a igreja. Dinheiro não tinha, saía de armazém em armazém pedindo ajuda. Aí o Zé Augusto Pinheiro, que é o Zé Baguim que eu te falei, construiu o telhado, pagou o telhado inteirinho da igreja nova. Mas o dinheiro acabou, nós não tínhamos como arrumar o chão e a Marina Minama, uma japonesa, não só dirigiu a construção do cinema, lindo, e dinheiro não dá pra comprar janelas antigas, eu estava em Belo Horizonte e tinha um leilão de janelas, não era do estilo da que existia, mas eu comprei e são aquelas que têm lá. Foi 15 mil, toda as janelas. E não pudemos fazer a frente de acordo com planta da igreja que ela fez, mas reformamos tudo por dentro. Aí acontece que nós ficamos com medo de ladrão na época roubar coroa de ouro da santa e do menino Jesus. Então, eu com Beni e a Derci compramos artificial, aquela que tem lá não é de ouro, não. A de ouro está lá no cofre da Igreja da Matriz. A do menino Jesus e a da Nossa Senhora. Botamos artificial porque como é que ia botar de ouro lá? Ladrão ia catar, né, ia levar. Então eles estão lá e a imagem perfeita, as pequenas os padres largaram, tudo ela devolveu direitinho. Será que alguém faz isso hoje? Aí quando eles elegeram no Conselho, não botaram nem eu, nem Oleni, nem Nedi, nem Paulo. E Paulo ficava o dia inteirinho dentro da igreja, junto com o pedreiro, fazendo a reforma do prédio. Então o outro conselho que entrou que fez uma porção de salas no quintal, aqui e ali porque não tinha mais, é terreno, né?
P/2 – E voltando pra história da senhora que contou, como era a escola aqui, Afonso Arinos? Como foram esses primeiros anos de estudante? Conta como foi seguindo a sua formação escolar, o ginásio.
R – Quando a gente terminou o grupo escolar, em Paracatu, tinha Escola Normal, que preparava as pessoas para o magistério, formava os professores primários. Não tinha outro curso, não. Hoje vocês são todos de sorte, acho que os filhos de vocês têm escola até superior, né? Difícil. Aí eu falava com papai assim: “Eu queria fazer um curso superior e não posso. Vou ficar a vida inteira sendo professora primária?”. Aí a dona Hercília, de Belo Horizonte, que era irmã de dona Mariquita, que era dona do cartório, já todos morreram, estava ouvindo eu falar e era muito amiga do papai porque ela já tinha morado em Paracatu, ela falou: “Vamos fazer um negócio? Eu levo você comigo pra Belo Horizonte, você fica lá e faz um concurso no Instituto de Educação, se você passar você banha bolsa. Pois não é que eu fui, fiquei uma semana, passei e fiz o curso de administração escolar no instituto de educação. Como eu já estava lá, então ganhei tudo. Quando eu estava em Belo Horizonte, olha só, a cadeira de psicologia, eu estava terminando o curso de Paracatu um professor morreu e entrou e entrou em concurso. Eu falei: “Eu vou entrar. Eu não fiz curso de Psicologia, mas eu vou me arriscar”. Pois não é que eu ganhei? E fui nomeada professora de Psicologia da Escola Normal daqui. A Iná, que era diretora, me deu mais quatro matérias! Eu preparava professor pro magistério em teoria e prática, ainda dava aula de Filosofia. Olha só o que eu fiz, voltei formada, fiquei um horário inteiro diretora e no outro horário eu dava essas matérias e preparava aula até de madrugada. Mas fiquei nos dois trabalhos até inteirar 30 anos, danadinha essa Coraci, não? Aí então eu fiz outros cursos em Belo Horizonte, currículo, supervisão, sabe? Tudo quanto é curso que eu podia fazer, eu fazia lá, pois eu tinha base. Por isso que eu arranjei uma porção de diploma de outros cursos menores que eu falei.
P/2 – E antes de ir pro curso, no Instituto, a senhora chegou a ser professora na época.
R – Ah, fui professora primária muitos anos. E fui nomeada diretora. E fui também supervisora, quando criaram a Delegacia de Ensino aqui em Paracatu, eu fui nomeada uma das supervisoras.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente, vamos voltar, enquanto professora...
R – Eu acho que eu, coitado do meu marido, né? (risos). E meus menininhos pequenos também, coitado, pra cuidar de criança, minha mãe ajudava a olhar quando era pequeno. Só quando eu mudei aqui pra essa casa foi que nasceu o mais novo, que é o Márcio.
P/1 – Mas vamos voltar um pouquinho quando a senhora estava fazendo o curso Normal. A gente começou a dar aula em escola primária quando começou o curso Normal. Que escola que a senhora foi dar aula?
R – Ah, no Afonso Arinos.
P/1 – Na Afonso Arinos mesmo.
R – É. Mas eu, pra ganhar dinheiro, as moças de hoje não fazem isso, eu fiz curso de corte e costura, eu fazia tricô, bordado, era costureira. Eu costurava pra mim, pra minha mãe, pra família e ainda costurava pra fora. Hoje a maioria só quer que o marido sustenta tudo, você tem que fazer de tudo, né? Aprendi a cozinhar, a bordar, fazer tudo.
P/1 – E a senhora aprendeu a bordar, costurar onde?
R – Aqui em Paracatu. Aqui tinha aula pra tudo.
P/1 – E onde eram essas aulas, dona Coraci?
R – Era na casa de quem estava ensinando, né?
P/1 – Ah, ia pra casa das pessoas.
R – É. Ah, mas não para de perguntar da minha vida! (risos) É, ainda tem que contar essa parte da minha vida. Eu fui noiva de um rapaz de Belo Horizonte, de quando eu saí de lá, né? Mandou uma carta pra mim sabe o quê? Dizendo assim: “Ó, estou me dedicando agora ao Espiritismo. Se quiseres casar comigo, casamento religioso não haverá”. Eu era um gênio forte, eu falei: “Desaforo, se alguém que diz que me ama vem falar comigo se quiseres? Eu não estou casando por obrigação”. Pois eu fui lá e entreguei à mãe dele a aliança! (risos). Falei: “A senhora sabe por que eu estou te devolvendo a aliança que o seu filho me deu? Porque eu não admito falar comigo se quiseres, não é assim, não. Que conversa é esse? Aceitar, tatata”. Você sabe o que é o destino? Passou-se o tempo e eu fui conhecendo o doutor Álvaro, desquitado, naquele tempo não podia casar com desquitado, a professora casar com desquitado. Então, nós tivemos que casar em Santa Cruz de La Sierra (Bolívia) porque lá podia casar desquitado. Mas o povo falava assim: “Comprou o certificado! Duvido de ter casado lá”, mas lá podia casar desquitado. Só mais tarde, ele ficou viúvo, muito tempo depois, eu tinha meus quatro filhinhos, o que aconteceu? Casamos no civil e no religioso, no Brasil. Mas o povo falava: “É amigado”. Porque ele era desquitado, naquele tempo o desquitado casava, o povo falava que era amigado. Era difícil, a época era outra, cheia de preconceito.
P/1 – E como é que a senhora o conheceu?
R – Conheci aqui em Paracatu. Ele era advogado, homem muito inteligente, muito culto. Mas era desquitado.
P/1 – E seus pais aceitaram a senhora casar?
R – Aceitaram. Teve que casar na Bolívia o primeiro casamento, o segundo foi aqui no Brasil.
P/1 – E dona Coraci, conta pra gente um pouquinho, a senhora falou que no primário a senhora começou a dar aula a senhora ainda era solteira.
R – Era.
P/1 – E como é que era essas escolas, como eram alunos? Como era essa época.
R – Eles me amam até hoje, eu era exigente. Eu não dei aula muitos anos, eu fiquei como diretora mais tempo. Como diretora, eu fazia uma coisa que hoje ninguém faz: toda segunda-feira, após o recreio, eles ficavam todos no pátio e eu dava aula pra eles. Cantávamos o hino nacional, todos tinham que cantar, e nós discutíamos sobre o civismo, a maneira de tratar as pessoas, de respeitar a pátria, era muito bonito. Maneira de respeitar um ao outro, de ser uma pessoa cidadã, perfeita. Isso eu dava aula. Hoje o povo não faz isso mais.
P/1 – E como era, nessa época da senhora jovem, fazendo o normal, mais ou menos numa faixa de 16, 17, 18 anos, como é que era o garimpo? Queria que a senhora falasse um pouquinho da garimpagem nos córregos, como é que era isso?
R – Ah! Isso aí, a garimpagem, né? Era nas praias. As escolas realizavam excursões nas praias, então levava os alunos e ficavam brincando na grama, tenho até fotos aí, mas é porque está dentro de uma caixa minha cheia de fotos, eu vou botar em ordem depois. As crianças brincavam todo tipo de brinquedo ali na grama da praia do Vigário, era uma maravilha. E você me fez uma pergunta, qual foi?
P/1 – Se a senhora chegou a ver garimpo, como é que era.
R – Ah, aí então, como a cidade não tinha piscina, eu acho que não tinha não, só se algum clube que eram poucos, a gente ia nadar na praia. E como foi a sua pergunta?
P/1 – Se a senhora quando ia pra praia, se a senhora via alguém garimpando.
R – Ah, então a gente ia nadar nas águas do córrego Rico e ao lado estavam as lavadeiras lavando roupas e pondo para secar na areia da praia. E as crianças, filhas delas ou parentes, iam todas brincar de nadar naquelas águas da praia, era a coisa mais linda. A gente levava merenda pra merendar.
P/1 – Fazia picnic na praia.
R – É, picnic, no tempo de escola, com professores, tinha os picnics, né?
P/1 – E quando a senhora se tornou diretora, como é que a senhora foi nomeada diretora, a senhora lembra?
R – Eu fiz o curso de Administração Escolar no Instituto de Educação e fui nomeada diretora. Eu devo ter feito alguma prova, alguma seleção, mas com o diploma que eu tinha, quem que ia tomar?
P/1 – E a senhora ficou diretora no Afonso Arinos?
R – Fiquei muitos anos.
P/1 – E quais foram os desafios que a senhora teve como diretora da escola?
R – Desafio como?
P/1 – As dificuldades que a senhora encontrou?
R – Tudo na vida tem dificuldade, não tem nada que não tenha dificuldade. Eu sempre aprendi com o meu pai a enfrentar todas elas e procurar vencer. Então, eu lutava e vencia, não conseguia perder, nem desistir, porque toda direção tem dificuldades, não só com o prédio que você está pra olhar, pra controlar os empregados, os professores, os alunos, né? Nunca teve nenhum ato, como hoje a gente vê, de contato entre os alunos de briga, de um machucar o outro, não existia isso. Eles obedeciam porque eu era enérgica, não só como professora, como diretora, a gente tinha o regulamento a seguir e os meninos obedeciam. Eram tratados com respeito, mas tinham que obedecer ao regulamento da escola.
P/1 – E dessa época que a senhora era diretora, logo no começo, tinha uma delegacia de ensino aqui ou a senhora tinha que viajar?
R – A delegacia foi mais tarde que surgiu, né?
P/1 – E como é que a senhora resolvia os problemas de ensino? A senhora tinha uma delegacia que a senhora tinha que ir?
R – Tinha Delegacia de Ensino.
P/1 – Onde era?
R – Eu ocupei um cargo.
P/1 – Mas isso foi mais tarde, né?
R – Mais tarde. A gente respeitava a Delegacia de Ensino com todos os seus regulamentos, uma beleza, quando foi criada. Eu acompanhei a evolução de tudo em Paracatu, né? E aprendi a lutar e procurar vencer, nunca perdi nada, não, a gente luta. Até na Academia de Letras que foi criada a Academia de Letras em 1896, instalada em 97, lá na Casa de Cultura. Não tinha pra onde ir, eu saí pela rua, lutei, até achei alguém pra pagar o aluguel de uma casa que ia ser alugada, onde é hoje a Academia, né? E ela passou a funcionar lá. Depois, a dona da casa, que era a minha amiga, falou: “Quando eu morrer vai ficar”, já fizemos um inventário, eu e a irmã que morreu, a irmã dela era minha diretora na escola Afonso Arinos, foi minha diretora quando aluna e quando professora. Deixou a casa pra Academia, ganhamos a casa. Depois que ganhamos a casa, começou a aparecer muito estrago, muita goteira, telhado podre, casa centenária. Foi quando eu procurei os órgãos públicos, e nenhum se dispunha a ajudar, eu procurei a Kinross, a bendita Kinross foi que me ajudou, pedi a Otávio, à Ana Cunha que estiveram lá, aí a Kinross deu uma quantia e deu pra recuperar a casa todinha, só não deu pra construir, mas eu ainda vou pedir pra vocês, mesmo eu não sendo a presidente, só não deu pra construir ali no quintal um grande salão, o mais simples que puder, porque os eventos eu realizava eram ao ar livre, mas dando chuva, como fazia? Não sendo ar livre, você tem que ir ou pra Câmara [dos Vereadores] ou pra Casa de Cultura. Então a gente queria ter um local onde pudesse ter reuniões aos alunos, os alunos não frequentam a Academia. Você sabe quem frequenta lá? Os de Brasília! Então, tinha que os professores levarem os alunos e a gente realizar palestras, atividades culturais pra ajudar na educação deles. Então, o dinheiro deu pra consertar a casa, graças a Deus. Agora no futuro ou eu, ou outra que ficar aqui, faz uma planta de um salão e tenta pedir ajuda, né?
P/2 – Eu queria saber e voltar a falar dos alunos. A senhora teve algum aluno ou aluna que ficou marcante pela dedicação ou porque eles faziam alguma coisa diferente dos demais? Ou em relação à pintura, ou em relação às letras?
R – Me apertou agora, hein? Todos os alunos marcaram a sua passagem, alguns realmente desenhavam bem, pintava bem, escreviam bem. Eu não estou me lembrando agora se um fez um marco diferente dos outros, mas devo ter tido. É, porque tem alunos que escrevem bem, fazem poesias, né? Outros gostam de pintar e desenhar, né?
P/2 – É que a gente conversou com uma pessoa que foi sua aluna. A Maria do Céu.
R – Aiiiii, é mesmo! A Maria do Céu Santiago foi minha aluna, que gracinha. E se tornou uma grande artista plástica, uma grande artista plástica. Ela contou a você? Foi minha aluna, é Maria do Céu. Pois é, tinha dado um branco aqui, agora que você falou. Gracinha. O Aníbal, primo dela, marido da Jane, era uma gracinha. Ele já está de cabelo branquinho. Começava a aula e ele pedia licença pra contar os causos engraçados da casa dele. Um dia ele chegou e contou assim: “Dona Coraci, o cachorro fez cocô no guarda-roupa da minha mãe! Mas deixou tudo sujo de sangue”. Eu falei: “Nossa, que horror!”. Era assim, aquela pureza pra contar as coisas. É, realmente, tive grandes alunos que hoje são pessoas importantes.
P/1 – E, Dona Coraci, conta uma coisa pra gente. Vamos voltar um pouquinho...
R – Vocês entrevistaram Maria do Céu?
P/1 – Entrevistamos.
R – Ontem uma pessoa falou comigo que ia ser entrevistada por vocês, agora me esqueci quem foi. Depois eu lembro.
P/1 – Vai lembrar depois.
R – É, essa pessoa falou. Eu falei: “É mesmo?! Eles vão lá em casa dia de sexta-feira”. É uma pessoa simples, mas estou muito feliz que vocês vão entrevista-la, eu esqueci.
P/1 – Dona Coraci, conta um pouquinho pra gente, a senhora disse que quando a senhora casou e teve seus filhos a senhora morava com os seus pais.
R – Sim.
P/1 – Como é que era morar com seus pais sendo casada, tendo filhos pequenos?
R – É costume, muitas famílias, a pessoa fica na casa, os pais dão um quarto pra morar. Pra não sair de perto, né?
P/1 – E por que a senhora saiu?
R – Porque eu já tinha três crianças e seria o número de quartos dessa casa, ficava um pouco apertado os três num quarto só. Então, meu marido tinha condições financeiras suficiente para comprar uma casa ou construir. E eu fiquei sabendo que esse prédio estava à venda, cheguei, peguei a chave e entreguei pra ele, ele pagou e nós mudamos.
P/1 – E quem era o dono da casa?
R – O Cassiano, marido da Pedrina, te falei, que era um homem nordestino, sem curso nenhum, casou-se com a famosa professora de português. Mas era um homem dinâmico, trabalhador, que você não precisa ser formado para você fazer grandes obras. Então ele construiu muita casa, não só aqui como em Brasília. Brasília em 1960 fez mudar a nossa vida aqui em Paracatu, até você não me perguntou ainda sobre isso, né? Cassiano construiu muitos prédios em Brasília, ficou rico. Tanto que eu te falei, que ele morreu mas a família mora no Lago Sul, casa maravilhosa.
P/1 – Vamos voltar pra casa, depois eu quero que você fale sobre Brasília. A senhora quando visitou a casa, a casa era da forma que está hoje ou o que tinha de diferente?
R – Era essa casa grande, com lojas embaixo, ali onde é a Exata Service era a garagem. Mais tarde eu fiz uma loja na Exata Service e fiquei 15 anos com uma loja de roupa de criança. Depois, eu falei: “Gente, chega. Eu preciso olhar mais meus filhos, não é ficar só trabalhando, não”. Não é mesmo? Era esse prédio, só que eu te falei, doutor Zé Quintino comprou a casa ao lado desse homem, do pai da mulher desse homem, e construiu um prédio colado no nosso. E o meu filho Josino quando ficou mais velho, ele formou em Administração, abriu uma loja e achou que ela era pequena porque tinha quintal no fundo. E espichou a loja e ao espichar eu espichei o terraço também, aumentei, aí ficou melhor. Aumentei o terraço e ainda construí um quarto grande, onde essa mulher que eu te falei, filha da lavadeira, quarto, banheiro e tudo, dormia. Até morrer. E as enfermeiras iam ficar com ela porque eu não tinha condição de ficar porque eu trabalhava em dois lugares, né?
P/1 – Dona Coraci, vamos voltar. A senhora comprou essa casa mais ou menos em que época, a senhora lembra?
R – Em que época? Eu já tinha três filhos, Julieta, Giovani e o Josino. Só depois que eu mudei para cá, não sei.
P/1 – E a senhora falou de Brasília, construção de Brasília, que mudou a cidade. O que mudou na cidade?
R – Nossa, Juscelino até aqui veio, né? Eu tenho retrato de Juscelino também. Brasília, a cidade aqui era linda, uma cidade histórica, poderosa. Porém, afastada dos grandes centros, igual eu te falei, os muito ricos iam fazer curso superior na Europa (risos). Então como é que pobre podia estudar? Tem que pagar pra ir pra capital, que era Belo Horizonte, São Paulo, não tinha Brasília. Pagar pra morar, ainda pagar o estudo? Muito sacrifício. Então o que aconteceu? Em 1960, inaugurou Brasília e eu estava lá no momento, na semana da festa da inauguração. E muita gente de Paracatu. Com Brasília, vieram as rodovias que ligavam Paracatu a muitos lugares, Belo Horizonte, Rio [de Janeiro], Brasília, então a cidade evoluiu. Agora o que acontece hoje que você não me perguntou e eu sei que você vai perguntar é que a cidade cresceu de um lado mas cresceu do lado ruim e do outro. Por que, o que está acontecendo no mundo? A cidade cresceu, as estradas ligaram Paracatu a outros grandes centros, mas também foi crescendo a violência. Não na época que instalou, mas agora, de uns tempos para cá, com a internet, televisão pra todo lado. Mas adoram dar notícia ruim, os crimes, tanta coisa horrível que está acontecendo, parece que desperta na pessoa que tem dentro de si vontade de fazer um mal, de matar alguém, de vingar alguém e imita, desperta o lado mal nas pessoas.
P/1 – Vamos voltar. A senhora falou...
R – Se tem de um lado as coisas maravilhosas do progresso, mas do outro lado tem o despertar da maldade.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. A senhora falou que estava na inauguração de Brasília. A senhora lembra como era Brasília? Conta pra gente como foi essa festa de inauguração.
R – A festa foi linda! Muita gente. Não tinha o progresso que tem hoje, que foi inauguração, então depois disso foi surgindo milhares de obras, né? Transformou num grande lugar.
P/1 – Mas o que tinha construído já, a senhora lembra?
R – Sim. Casas, prédios, alguns, mas não como usualmente.
P/1 – A Esplanada dos Ministérios já estava toda construída?
R – Não devia estar toda não, uma parte. Eles foram aperfeiçoando. Paracatu, perto de Brasília.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse um pouquinho como era o comércio aqui em Paracatu nessa época, o que tinha?
R – Vendia de tudo, mas não evoluído como hoje. Acompanhou a evolução dos grandes centros, mas vendia tudo. Tinha venda de vender mantimentos, não tinha esses prédios enormes que nós temos hoje, né? Shopping center não existia, mas o que você queria de alimento tinham as vendas e o que você queria de roupas e sapatos tinham loja do seu Piolo, loja do seu Fulano, então tinha loja que vendia essas coisas.
P/1 – A senhora falou da loja do seu Piolo que era uma loja muito conhecida aqui na cidade.
R – É.
P/1 – O que ela vendia lá?
R – Roupa, tecidos. Não era igual hoje, se for lá no shopping, no shopping é de tudo.
P/2 – A senhora falou que nessa loja tinha tecidos e falou também que a senhora sabia costurar, né? Como era fazer uma peça de roupa, acompanhar aquele pedaço de pano em virar um vestido.
R – A gente aprendia com as costureiras, uai. Aprendia. Media na pessoa e fazia o modelo.
P/2 – Conta de um vestido que a senhora fez pra senhora, um especial, que a senhora viu a seda ou viu o pano e falou: “Ah, isso aqui vai ficar bonito pra ir para um baile”.
R – Ah, eu não lembro, mas devo ter feito muitos, porque eu era novinha.
P/1 – A senhora falou das vendas. Como era o nome da loja que era o secos e molhados da época, quem era o proprietário?
R – Um deles era o pai de Oliveira Melo, seu Itamar, a venda de seu Itamar. Na rua onde eu morava tinha a Venda do seu Periquito.
P/1 – Eles vendiam alimentos.
R – Vendiam, tudo nas prateleiras.
P/1 – E era tudo a granel, como é que é, conta pra gente.
R – É igual vende hoje, mas só que eles tinham que ir nas prateleiras, pesava na balança, aquela balança antiga, e a pessoa punha num saquinho e levava pra casa. Agora, antes de mim deve ter sido bem diferente, né?
P/1 – E dona Coraci, a senhora contou pra gente que a senhora tinha dois empregos e tinha os filhos pequenos. Como é que era a rotina na sua casa pra tomar conta dessas crianças?
R – Quando morei com a minha mãe, minha mãe ajudava a olhar. Quando eu não morei com a minha mãe tinha empregada pra ajudar a olhar as crianças.
P/1 – E seu marido trabalhava com o quê?
R – Ele era advogado e tinha fazenda. E quando o pai morreu ele herdou mais fazendas, né? Mas ele deixou de ser advogado.
P/1 – Ah, ele deixou de ser advogado e orientou a fazenda.
R – É.
P/1 – Era uma fazenda de gado?
R – Era.
P/1 – E onde ele vendia o gado? O que ele era, gado leiteiro?
R – Eu não lembro como ele mexia, não tinha tempo de ficar com os negócios dele.
P/2 – E mesmo com todas essas atividades a gente sabe que a senhora tem toda uma questão artística bastante forte. Conta pra gente um pouco de como foi se desenvolvendo essa habilidade de pintora?
R – Na Escola Normal, daqui eu fui aluna de um grande artista, Afonso Roquete. Ele ensinava a gente principalmente a fazer criaturas humanas, nariz, rosto, corpo, é um espetáculo. Fui aluna dele. Então, se a gente tem, dentro de si, aquela intuição de ser uma coisa, você luta por ela. Depois quando eu saí daqui e fui ser aluna no Instituto Educação fazer o curso de Administração Escolar, eu fui aluna de Jeanne Louise Milde, era nossa professora de desenho e pintura, uma grande artista. Quando voltei pra Paracatu, a gente tinha Jaci Rosa e outros que vieram aqui pra dar aula pra gente e depois veio a Cibele, eu me matriculei no curso dela e eu arranjava tempo até pra isso. Será que é por isso que eu estou velha e forte? (risos)
P/2 – Dos seus quadros, pra quem não pode ver, o que a senhora gosta de pintar, o que tem neles?
R – Na época, eu procurei o Pontilhismo Impressionista. Então, você viu o tanto de tela. Os filhos cataram, cada filho catou um bocado e levou pra casa deles. Tem lá na Academia de Letras alguns meus expostos lá, enfeitando a casa.
P/1 – E a senhora se inspirava como pra pintar?
R – Pintar é opção. O que eu queria pintar, casas, flores, né? O que eu gostava e me sentia feliz.
P/1 – A senhora comentou com a gente que tinha aulas ao ar livre e a senhora escolhia um tema.
R – Não, a Cibele um dia falou: “Hoje, nós vamos pintar ao ar livre. Vocês vão olhar pra natureza e passar pra tela”. Eu brinquei com você, nós fomos no alto do córrego, lá perto da Kinross e cada um pintou o que quis. E eu falei: “Eu vou pintar o Morro do Ouro”. Eu nem cheguei a contar pra vocês do ouro de Paracatu. Isso aqui é ouro feito pelos ourives de Paracatu do passado, que coisa maravilhosa, trabalho perfeito. Eu não uso isso mais, dei pra minha filha porque ladrão se me vê com isso no meu pescoço arranca e sai correndo. Mas naquele tempo a gente usava e saía pra todo lado com as joias. Esse aqui cabe um retratinho de pessoa dentro. Então eu tinha flores de ouro. O dia que eu morrer vocês vão brigar, minha nora, uma nora de cá, outra nora de lá (inaudível). Hoje ela mandou, eu vou pôr pra vocês verem as joias que eram feitas com o ouro que extraía do solo de Paracatu. Você não me fez a pergunta, mas eu falei pra você que eu vou contar. Vocês já sabem que o ouro que vem da mina desce também até debaixo da igreja da matriz, vocês não sabem disso? Mas a igreja matriz foi construída, um patrimônio, não podia tirar ela. Aí eu ia contar um caso engraçado, aquela casa cor de rosa que tem lá, enorme, era da minha avó quando meu pai morou aqui, né, filho dela. E ficou pra tia Jovina. E um dia Margarida Neiva, essa que vai comemorar cem anos amanhã, ela que conta isso e se vocês perguntarem ela deve ter muita história de Paracatu, aproveita enquanto ela está viva e faz pergunta. Ela falou assim, um dia eu estou aqui com a tia Jovina, que ela é minha prima, Margarida, e o cachorro morreu. Aí a tia falou assim: “Fulano”, falou com um empregado dela, “enterra esse cachorro lá naquele buraco”. Ele falou: “Dona Jovina, tá cheinho daquela água amarela” (risos). Era o ouro que estava saindo debaixo da igreja matriz. Água amarela, aquele pozinho amarelo. Eu brinco muito, eu brinquei muito na época, a Kinross, não, era a RPM [Rio Tinto Mineração] naquele tempo, a RPM deve ter máquinas poderosas que enxergam longe e é bem capaz de comprar um terreno aqui perto e enxergar lá debaixo da matriz e puxar o ouro pra eles, eu brincava. Depois eles venderam pra vocês.
P/1 – E esse medalhão que a senhora está mostrando, que é feito com ouro, de quem era esse medalhão?
R – Minha mãe. Meu pai deve ter comprado na época, que ninguém tinha essa vaidade de falar em ouro, isso e aquilo, não. Ele deve ter comprado na época, que era feito em Paracatu, e ter dado à minha mãe de presente. A minha mãe deu pra mim de presente e eu dei pra minha filha. Isso e um broche de flor, todo de ouro, um broche desse tamanho.
P/1 – E a senhora sabe que tinha muito ourives aqui, tinha muita gente que fazia joias aqui?
R – Tinha, tinha. Seu Tidas mesmo era um deles. É, eles faziam joias, faziam tudo. Não tem mais, né? A máquina chegou e tudo mudou. Mas tudo muda mesmo, tudo é valor e modifica. Coitados, até não ganhava muito dinheiro não porque dá um trabalho trabalhar com ouro. Que pena que não ficou ensinando pra outros, pra até hoje ter. Modernismo é assim, constrói de um lado e destrói do outro.
P/1 – Vamos voltar pra essa coisa de pintura. A senhora citou que aprendeu com vários professores em BH, inclusive aqui. Conta um pouquinho pra gente a primeira vez que a senhora expôs e aonde a senhora expôs?
R – A única exposição foi na Casa de Cultura, que a Cibele era professora lá e ela incentivava a gente a fazer exposições.
P/1 – E essa exposição, conta pra gente como foi escolher os quadros pra ir pra lá.
R – Os meninos viram, deve estar aí.
P/1 – Tá aí, mas depois a senhora mostra pra gente. A senhora que escolheu os quadros que ia expor.
R – Eu quis expor na época, eu quero expor o casarão antigo de Paracatu e fiz aquela porção de casas antigas. E como eu já tinha pintado muitas flores e outras coisas foi tudo junto.
P/1 – E a senhora chegou a vender algum quadro?
R – Vendi, vendi muito. Eu não tenho todos, uns eu vendi e outros os filhos levaram pra casa deles. E esses que ficaram enfeitam minha casa. Mas eu preciso voltar a pintar, sabe? Eu quero morrer pintando, que coisa.
PAUSA
P/2 – A gente estava falando das questões artísticas e a gente também ouviu que a gente faz poesias também, né?
R – Sou cronista. Tem dos livros meus ali, já lançados, eu mostro pra vocês. E tem um terceiro prontinho que eu ainda não lancei, está faltando o nome que eu não pus ainda (risos) e como vai ser a capa do livro, os detalhes. E Zequinha está atrás de mim: “Melhora sua biografia, está muito pequena. Tem mais coisas”. Eu falei: “Tem uns textos que eu tenho lá, eu vou ver se você lê e olha se eu posso publicar”. Um deles está ali, é 212 anos de Paracatu, eu fiz um resumo de Paracatu, então vou pôr no livro.
P/2 – E como é esse processo de escrita pra senhora?
R – Sei lá, o povo tem um tal de me mandar fazer discurso disso, discurso daquilo e eu me vi fazendo. Por fim, me convidaram pra escrever pro jornal. E comecei a escrever crônicas de momentos vividos, que me emocionaram. E aí eu fiquei cronista do jornal Movimento, escrevi muito pouco para os outros, eu era a maior do jornal Movimento e parei com raiva porque o jornal parou também, agora eles estão atrás de mim pra relançar o jornal para eu escrever, eu falei: “Eu vou pensar”.
P/2 – Conta uma dessas crônicas ou de um caso desses que motivou a senhora escrever.
R – Ói, eu tenho um muito engraçado. Um desses chama: “Eu vi no Beco dos Malcasados”. O seu Biló me contou um caso que ele vivia no Malcasado, era quase colado na minha casa, mas saía do beco e ia lá pro Largo do Rosário. E ele era afilhado do seu Periquito. Aí então o seu Periquito arranjou um dinheiro, vendeu qualquer coisa, e resolveu fazer o túmulo pra quando ele morresse, já ter, né? Ele foi no cemitério e pôs no túmulo a fotografia dele e da esposa. E Biló como era amigo dele veio de fora visitar Paracatu, mas deu vontade de visitar o cemitério e foi lá no cemitério ver os parentes, rezar por eles. Menina, quando ele estava voltando pra cá, ele encontrou com o seu Periquito lá dentro desse beco. Mas ele gritou, gritou e correu desesperado achando que era o espírito do seu Periquito apareceu pra ele. Aí ele me contou o caso e falando comigo assim: “Eu vi, Coraci, eu vi no Beco dos Malcasados”. Quer ver ele agora?
P/2 – Não depois a gente vê. Mas a história é boa, imagina que susto!
R – É e eu fiz a crônica disso também (risos).
P/1 – Dessas crônicas, a senhora também falou que teve alguns momentos que marcaram a sua vida. Tem algum outro que a senhora podia contar pra gente?
R – Deve ter. Se abrir o livro você vai achar uma porção de coisas que aconteceram.
P/1 – Mas a senhora não quer contar um pra gente agora?
R – Assim, lembrar na carreira eu não sei contar. Por isso que eu trouxe o livrinho, que eu folheando assim eu vejo o nome e lembro. Me dá lá.
P/2 – Depois a gente vai contando outras coisas.
R – Essa foi engraçada, não foi?
P/1 e P/2 – Foi.
R – Eu vi. Eu pus o nome, “Eu vi no Beco dos Malcasados”.
P/2 – E foi por esses escritos que a senhora foi convidada pra participar da Academia Paracatuense?
R – Não, não foi por causa desses escritos não, foi reunião de pessoas cultas lá no local. E teve eleição, votaram em primeiro lugar Darinho, mas Dario não ficou nem um ano todo: “Ah não, não quero isso mais não”. Fizeram outra eleição. Aí Oliveira Melo estava lá todo exibido e falou assim: “Eu indico, dona Coraci Neiva” (risos), aí todo mundo aplaudiu e apoiou. E eu fui ficando. Quando tinha eleição, todo ano, eu de novo, eu de novo. Aí por fim eu falei: “Gente, não aguento, 20 anos é muito tempo. Eu preciso cuidar da minha vida, da minha saúde, estou velha, dos meus meninos. Outra pessoa tem que trabalhar aqui. Igual eu trabalho é difícil”. Então fizemos outra eleição. E tinha oito pessoas de Paracatu que não pertenciam ao quadro, convidamos e colocamos. Agora os de Paracatu, os famosos escritores de Paracatu que moram fora não vêm aqui, raramente. Tinha que vir sempre, né? Eu ia sempre sabe onde? Na Academia Mineira de Letras, tanto que eu passei a pertencer. Foi criada a associação dos acadêmicos e eu fui eleita vice-presidente de (inaudível). Eu falei: “Gente, eu vice-presidente aqui na academia é demais”. Mas acontece que ele morreu e eu não tinha condições de substituí-lo, então eu me desliguei. Mas o povo de Paracatu que é da nossa academia mora em Belo Horizonte, mora em Brasília, mora em Vazante (MG). Porque fala: “Tem que ser do Noroeste”, então botou gente de tudo quanto é cidade aqui perto. Não vem quando tem eventos, não é mesmo? Não é difícil. Quando você tem tempo pra poder correr atrás aí não é tanto, mas eu não estava dando conta.
P/1 – E dona Coraci, a senhora falou pra gente que a senhora substituiu a vaga do seu pai na Academia, não foi isso?
R – Cada acadêmico tem que ter um patrono e o meu é o meu pai. Grande escritor, amicíssimo de Afonso Arinos, aqueles homens, (inaudível) de Paula e outros famosos. Eu tenho a mala aí, eu posso até depois mostrar pra vocês, tenho uma mala ali dentro com cartas, discursos, toda semana ele fazia uma palestra linda. Toda semana não, todo evento civil. Quando ia ter um feriado, falava sobre a história daquele homem famoso. Tudo tem cópia de caneta tinteiro, não, caneta de pena. As cartas que ele mandava pros homens famosos e que eles mandavam pra ele, estão todas guardadas ali, e as que ele mandava ele deixava cópia. Você sabe o que eu fiz? Ele morreu, eu juntei naquela mala pra não perder. Agora na época não tinha quem digitalizasse pra mim, mas eu achei Márcio Santos, digitalizou tudo pra mim, cada trouxa tem um CD, você vê? Agora nós vamos terminar. Eu falei com ele que eu quero que revela, faça livros da grossura que for, para eu colocar num museu para que as pessoas possam pesquisar as coisas maravilhosas que os homens escreviam nas cartas, nos textos, na época em que ele viveu. Então, Márcio está vendo aqui, arrumando pra mim. Estou guardando, não pode jogar fora não. Não é?
P/1 – Conta um pouquinho mais pra gente, dona Coraci.
R – Não acabou ainda não?
P/1 – Mais um pouquinho, jaja está acabando.
R – Mais um pouquinho, você viu?
P/1 – Mais um pouquinho só (risos).
R – E o fuxiqueiro está ali gravando. Ó, não deixa aparecer essa palavra que eu falei, não.
P/3 – Não, pode deixar.
R – E aquele só rindo, o tempo todo ele acha graça.
P/1 – Dona Coraci, a gente viu vários quadros da senhora pintada e a gente viu que a senhora trabalhava tirando fotos de determinados lugares.
R – Alguns, que você não podia ir no lugar tinha que pegar a foto antiga que a gente achava e fazia a reprodução.
P/1 – E dos casarões que a senhora pintou foi assim?
R – Foi. Pegava foto antiga e reproduzia na tela, ampliava.
P/1 – E os quadros que a senhora pintou da senhora?
R – Foi de fotografia. Olha eu lá, bonitona, né ali? Ali foi a primeira vez que eu fui ao Rio de Janeiro. Devia ter 18 anos.
P/1 – E quem tirou essa foto?
R – Ou 20, 20 anos.
P/1 – Quem tirou essa foto?
R – Ah, isso eu não lembro. Eu vou contar pra senhora uma coisa engraçada. Eu era aquela bonitona ali de 20 anos. Rio de Janeiro, né? Aí teve um evento, quando eu estudei aqui na Administração na Escola Normal, como chama que eu falei? Segundo grau da Escola Normal daqui, né? Nós fizemos uma excursão. Não, aí eu fui pro Instituto de Educação, né? Lá no Instituto de Educação nós planejamos uma excursão por vários estados de Minas Gerais. Quando nós fomos a Vitória, no Espírito Santo, ó, você que gosta de risco, quando nós fomos a Vitória, nós fomos conhecer o navio José de Alencar, um navio. Lá no navio tinha um jovem num barco, ele tinha 18 anos, ele era da Marinha lá. Apaixonou pela Morena de Amarelo, eu devia estar com uma roupa de amarelo. No dia seguinte, ele descobriu que nós íamos onde a gente ia almoçar e ele foi pra me ver. E no outro dia nós nos despedimos diante de outro prédio famoso. Você acredita, quando eu fui pra Belo Horizonte eu recebia sempre cartas dele, lembranças? Mas eu tinha um namoradinho em Belo Horizonte e não estava a fim. Por fim, quando eu mandei de endereço eu não mandei pra ele mais. Ele passou 60 anos da vida dele me procurando, sem achar. Diz que casou, viveu nove anos com a mulher, uma enfermeira, mas ela morreu. Tem só um filho com ela, mas ele continuou a procurar a Morena de Amarelo. Um dia ele foi na televisão, agora no modernismo e achou Joaquim Barbosa, o ministro de Paracatu. Quando ele achou Joaquim ele foi procurar Paracatu. Menina! Pauliran Resende, que ele é da Academia, quando foi criada a Academia que eu tomei posse, botou meu retrato e minha biografia e dos outros acadêmicos. Então, ele achou a Morena de Amarelo, com a biografia e o endereço. Aí mandou pra Academia de Letras um pacote, eu não sei onde guardei senão mostrava pra vocês, um pacote com 11 fotografias dele e uma carta de 11 folhas, contou a vida toda e o tempo todo que ele passou. Aí eu fui a Belo Horizonte, ele foi lá e encontrou comigo três vezes. Diz Julieta que nós fomos lá onde ele mora no Rio de Janeiro, acho que na Gávea. Aí, pois não é que o danado do homem tem dois anos que me telefona todos os dias. Ele já deve ter me mandado qualquer coisa, como que chama? WhatsApp, é? Tadinho, ele tem 83 anos de idade, que eu fiz 85. Câncer no pulmão. Tem dois anos que ele trata desse câncer, mas não para de telefonar e de escrever pra mim, você vê? Ele tirou o tumor, mas continua muito cansado e fala para eu não ligar porque ele não quer que eu veja ele, que ele está horroroso, emagreceu dez quilos, caiu o cabelo, está muito magro e cansado. Não tem força nem pra conversar. Toda semana ele tem que ir no hospital. Mas você morre de rir, né? Apaixonou pela menina da excursão e nunca esqueceu.
P/2 – E pra menina que era acostumada a ir às praias de rio daqui de Paracatu, como é que foi ver o mar?
R – Ah, eu, a Penha, essa que eu fiquei amiga, a arquiteta que fez a planta da igreja, essa moça me conheceu, ela foi a Belo Horizonte pra matricular-se no curso de Arquitetura e eu fui, procurei uma casa pra morar pra fazer Administração Escolar, perto do Instituto de Educação. Uma minha amiga deu pra ele o endereço, ela chegou num dia e eu cheguei no outro e nós fomos morar juntas. Ela é de Vitória. Então eu fui a Vitória, fiquei as férias em Vitória e eu tinha uma madrinha que morou no Rio de Janeiro e de Belo Horizonte eu ficava também um tempo com a minha madrinha do Rio. Eu era sócia do Minas Tênis e nadava muito. E eu ia assim, com essas minhas amigas.
P/1 – E dona Coraci, quantos filhos a senhora teve?
R – Eu tive quatro, três homens e uma mulher. A primeira é cirurgiã plástica, ela está operando aqui no hospital, está atendendo consulta, vem aqui todo mês fazer cirurgia.
P/1 – E qual é o nome dela?
R – Julieta Neiva Batista.
P/1 – E os outros, como é o nome e o que eles fazem?
R – O que cuida da fazenda é o Giovani Neiva Batista. Esse que entrou aqui, que é engenheiro da Monsanto Internacional, é o Márcio Neiva Batista. E o dono da papelaria é o Josino Neiva Batista, tem o nome do meu pai.
P/1 – E dona Coraci, a senhora contou um pouco da sua história, falou um pouco dessa vivência que a senhora adotou Paracatu como sua terra natal. Eu queria que a senhora falasse um pouquinho o que marcou a senhora nas mudanças da cidade durante todo esse tempo que a senhora viveu aqui em Paracatu. Quais foram as grandes transformações que aconteceram na cidade que marcaram a senhora?
R – Evolução como eu te falei, evolui por um lado bom e às vezes acontecem coisas terríveis. Então marcou muito que surgiram escolas, faculdades facilitando a vida das pessoas que não têm dinheiro pra sair daqui, viajar e formar, então agora já tem, quantas e quantas faculdades, como o ensino evoluiu, coisa fantástica. Só não forma em curso superior aqui quem não quer, querendo, é só estudar que vence, tem o que fazer e adquirir o diploma pra poder sobreviver com um ordenado. Isso marcou muito a gente. Marcou mesmo. Só que com esse negócio de internet, de celular, houve uma regressão enorme porque o povo ao invés de prestar atenção onde vai, fica o tempo todo mexendo no celular, até pra andar de carro fica com o celular na mão. Então não dá pra prestar atenção nas coisas, não dá.
P/1 – E como é pra senhora que foi professora, foi da regional de ensino, a senhora falou agora que ensino evoluiu muito. Como é pra senhora ver essa transformação no ensino?
R – Evoluiu nesse lado de crescer em faculdades. Cresceu muito, muito. Mas eu não sei se o povo diminuiu o interesse pela leitura, pela pesquisa, depois que apareceu o celular. Só fica com o aparelhinho na mão noite e dia. Aqueles livros que a gente escreve, que a gente tenta vender não vende. Na academia tem livros maravilhosos que estão lá debaixo acima assim, não vai ninguém pra comprar. Aí então o que acontece? Foi a Kinross? Não, quem foi que falou que vai realizar? É vocês mesmo, negócio do livro, né? O que é mesmo que vocês vão fazer?
P/1 – Nós estamos contando a história de Paracatu, a gente está fazendo entrevistas com pessoas.
R – Não, vocês vão realizar algo de vender livros.
P/3 – Deve ser a Kinross.
R – Ah é, pois é, não é a Kinross.
P/2 – Mas a gente é do Museu da Pessoa fazendo um trabalho em parceria com a Kinross.
R – Ah, pois é, mas a Kinross não vai fazer?
P/2 – A gente não sabe, mas deve fazer.
P/1 – Ela vai fazer uma casa agora, é uma casa que ela vai abrir pra comunidade e vai ter uma exposição permanente contando a história de Paracatu. E ai vai ter também alguns computadores que vão dar acesso a esse material que a gente está coletando.
R – Sei. Pois é, mas então eu acho que está precisando de atividades que levem o pessoal a comprar livros e ler porque tem livros maravilhosos e não vende. O que eu estou te mostrando do Oliveira Melo, que maravilha de livro, nossa senhora! Paracatu inteira está ali representada. Mas eu nunca vendi nenhum desses.
P/2 – A gente sabe que aqui perto tem uma feira.
R – Pois é, a feira do livro que vai ter...
P/2 – Não, não, feira na rua, todos os sábados.
R – Tinha que ter, não tinha que ter? Tinha. Tinha que ter, uma feira do livro. E o povo ser incentivado, os alunos serem incentivados a ler.
P/2 – Mas a feira que eu queria perguntar agora pra gente ir encerrando é a feira aos sábados, que acontece aqui perto com os produtos da cidade, com barraquinhas. Aí, eu queria saber se a senhora frequenta essa feira.
R – Ô gente, vocês não frequentam? Meu nome é falado todos os sábados, o Davi quando me vê, eu sou a musa da feira. Por que ele me elogia e fala tanto, ele me beija e fica encantado? Porque eu estava na reunião com o prefeito, quando ele teve a ideia, igual como estamos tendo aqui, de fazer uma feira em Paracatu. Como eu já tinha viajado muito, já tinha visto muito essas coisas, eu falei: “E sugiro ao senhor que seja aqui nesse local atrás da prefeitura, mas que tenha em primeiro lugar, um palanque grande, com música e uma pessoa que saiba trazer para este local poetas, cantores, música, enfim, tudo de bom que tem na cidade para ser divulgado. Então a feira vai crescer, vai aparecer barracas, não apenas com a venda dos produtos, mas pras pessoas sentarem e baterem um papo”. E aí coloca o Fulano de tal, que era ele. Ele conta pra todo mundo que no dia 26 de (inaudível) faz 13 ou 15 anos que ele está, que eu que coloquei. Então colocamos ele e ele faz aquela propaganda de tudo o que acontece em Paracatu. Foi bom, então eu fiquei sendo a musa da feira. Eu tenho que ir lá todo sábado, nem que não seja pra comprar alguma coisa, mas eu compro alguma coisinha, mas eles me adoram.
P/2 – Eu nunca fui a essa feira, o que tem de bacana nela?
R – Lá tem a seda japonesa, se você gostar de coisa japonesa você compra o sushi, o que você quiser. Tem mesas onde você pode tomar ou em pé ou sentado aqueles quitutes deliciosos da cidade e comprar o que você gostaria de comprar, um frango caipira, ovo caipira, temperos, enfim, tem muita coisa.
P/1 – E tem artesanatos também?
R – Tem tudo, tem artesanato. Tem de tudo. Foi crescendo, sabe? Virou um ponto de encontro das pessoas da cidade, os daqui e os de fora que aparecem. Tem música, tem tudo. É um ponto maravilhoso, ter uma feira, né? Vocês nunca foram, não?
P/2 – Ainda não, mas vou amanhã!
R – Você podia aparecer na hora que eu chegasse, porque na hora que eu chego e ele me vê, ele fica gritando lá. Que eles não esquecem, porque ele está ali porque fui eu que indiquei.
P/1 – E, dona Coraci, eu queria que a senhora falasse um pouco pra gente já ir terminando, porque a senhora falou que tem artesanato lá. Hoje, o que a senhora olhando pra história de Paracatu, o que é que representa a cultura de Paracatu? Tanto a nível de artesanato, como de culinária, o que pra senhora é importante, que representa essa cultura?
R – Em que sentido?
P/1 – O que é, por exemplo, se a senhora fosse falar de Paracatu pra alguém vir aqui conhecer Paracatu, o que a senhora falaria pra pessoa vim procurar e olhar?
R – Aqui de tudo evoluiu, né? A alimentação, por exemplo, tem quitutes deliciosos em Paracatu. Empadinha, pão de queijo, (inaudível). Não é mesmo? Não é todo mundo que faz empadinha muito bem-feita, não, mas tem empadinha. Bordados, né? Tem muitos bordados, muitos. Costureiras, cabeleireiras, enfim, tem de tudo um pouco. Agora lançam livros, o que eu falo pra você é que o povo parece que está lendo menos. A preocupação é um mandar um recadinho para o outro no celular, mas ler determinados textos bonitos, escritos, se emocionar. Antigamente escreviam muito, mas atualmente eu não acho que o povo adquire essas obras.
P/1 – E pra senhora falar da questão da preservação do patrimônio histórico. Qual é a importância?
R – É muito importante preservar, é uma pena modificarem o patrimônio, as igrejas demolidas. Quantas casas transformadas. Que pena! Ali mesmo onde é a Caixa Econômica Federal, era uma cadeia linda, eu tenho foto dela aí na minha caixa de fotos, era uma cadeia linda, desmanchou. Então você olha aqui, olha ali, tem gente que eles não deixam mexer porque é do patrimônio, mas outros eles deixam. Lá na Academia, eles entraram lá, o engenheiro do patrimônio porque eu chamei pra conferir. Não deixou botar nada novo no chão onde estava quebrado o assoalho, falou, nem pra remendar. Quebrou até os remendinhos lá, não pode mudar, não nem. Eu falei: “Tudo bem, tudo bem”. Mas a gente às vezes passa por aí e vê tanta casa desmanchada e uma moderna no lugar, como é que uns podem e outros não? Agora a cidade eram as casas coladinhas uma na outra, todas as casas antigas. Mas com a evolução e Brasília aqui perto começou só a construir prédios bonitos, todo mundo começou a desmanchar a sua casa antiga e fazer um prédio novo no lugar. Então, a cidade se transformou, era tudo pregadinho, cheio de beco, de pedras, de calçadas. Todas coladinhas umas nas outras que dava pra você escutar o que estava falando, o que está acontecendo no vizinho.
P/1 – E pra gente finalizar eu queria que a senhora falasse que sonho que a senhora tem hoje?
R – Olha, eu ainda sonho em realizar tudo o que eu gostaria de realizar quando era mais nova e continuar lutando para realizar, para aperfeiçoar tudo o que eu penso e tudo o que eu sonho. Porque enquanto você tem vida você tem que ter saúde e lutar e realizar os seus sonhos. Então eu ainda quero [ver] muita coisa acontecer. Eu falei pra você que eu vou voltar a pintar, vou voltar a escrever, não vou parar, não.
P/1 – E pra senhora qual é a importância de se fazer um projeto como esse que a gente está fazendo aqui com a Kinross de contar a história de Paracatu através da memória das pessoas que viveram a cidade?
R – A pessoa passa a amar melhor a sua terra, conviver melhor com o seu semelhante, partilhar a alegria e partilhar também a tristeza; mas partilhar a tristeza com amor, não é com ódio. Eu acho que isso ajuda a melhorar a cidade e a vida do cidadão. Se você continuar convivendo melhor com as pessoas e não isolando das pessoas. É o convívio, convivendo qualquer momento ao invés de ficar menosprezando, pelo contrário, elevando o sentimento, elevando o amor que cada um possui dentro do seu peito e às vezes não achou quem despertasse. Então eu acho que tem que ajudar a cidade a voltar a ser o que era antes.
P/1 – Eu queria agradecer em nome da Kinross e do Museu da Pessoa a sua participação, obrigada, dona Coraci!
P/3 – Posso fazer uma pergunta pra senhora? É a última, juro! Eu queria que a senhora explicasse de novo, por favor, quem fez esse colar que a senhora está usando?
R – Pois é, eu falei com ele, que foi um ourives de Paracatu, que eu não sei quem fez na época porque meu pai nasceu em 1875 e ele deu pra minha mãe. E eu, quando fiquei moça, não tinha ladrão furtando nada do pescoço da gente, então ela deu para mim. E eu usei quanto, eu até tenho um retrato ali que eu vou mostrar pra vocês, que usei muitos anos. Depois, quando eu cheguei a um certo ponto na minha idade eu falei: “Gente, o que eu estou fazendo com isso, hein? Vou dar pra minha filha porque a hora que eu morrer vão brigar pra poder ficar com essa joia tão linda”. E dei pra ela. Isso é dela. Ela pôs aqui em mim hoje, foi pra vocês verem, mas eu não sei quem foi o artista que confeccionou na época porque é muito antigo, eu não sei. E não vou andar com isso de jeito nenhum, no pescoço. Hoje a gente só usa, numa festa a gente usa, numa festa que alguém te leva com cuidado e te traz com cuidado, né? Mas eu já estou muito cheia de ruga pra usar esses tremeliques todos.
P/2 – A senhora não sabe quem fez, mas sabe que é do ouro daqui de Paracatu.
R – É do ouro de Paracatu. O ouro das entranhas, das minas, das nossas minas de ouro. Eu acho que estamos em cima de ouro aqui. Ah, eu não contei pra vocês, na casa que eu morei na Rua Manuel Quintana, quando chovia descia pelas ruas, sobre as pedras, uma cachoeira de água vermelha. A meninada, eu era uma delas, corria pra colocar barquinho de papel pra ver descer na água. E sabe o que os homens faziam? Saíam correndo com uma bateia, que todo mundo tinha bateia, e iam tirar da água ouro e esmeril. No ouro que eles tiravam pra bater saía o esmeril, que é aquele pozinho preto, e o ouro. Quer dizer que ouro cai em cima, descia lá, então por aqui tem mina. Eu acho que tem ouro por todo lado aqui em Paracatu, tem que saber tirar. Então o povo às vezes fica xingando a Kinross, xingam, como chamava o outro antes?
P/2 – RPM
R – RPM. Meu Deus, o ouro está lá debaixo da mina e em quantidade. Aqui na cidade não tem ninguém com dinheiro suficiente, nem técnica suficiente, pra tirar esse ouro e ganhar dinheiro. Levam pra país que é o dono da empresa, o que pode fazer? Tem que mandar pro país que é o dono da empresa. Só que, em troca, deve ter mais de mil pessoas trabalhando, empregadas, sustentando a família com emprego da mineradora, não é mesmo? Então de um lado todos estão aí trabalhando, lutando, então eu não sei por que falar mal. Vai deixar o ouro lá dormindo, até morrer, debaixo do chão? E o país que é o dono da empresa quer levar as suas vantagens porque o país paga material, paga as pessoas que trabalham, pagam tudo. Eu não sou contra. Eu era grande amiga dos proprietários da RPM. Tem um mesmo que telefonou outro dia, está morando em Brasília, ainda não respondi, fiquei lá Itália, outro fiquei na Suíça na casa deles, porque eu sou amiga de todo mundo.
P/2 – Tá certo!
P/1 – Tá bom, então, obrigada, dona Coraci!
R – Eu que agradeço a vocês.
FINAL DA ENTREVISTA
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