Projeto Conte Sua História
Depoimento de Jasmin de Brito Pinho
Entrevistada por Karen Worcman
São Paulo, 04 de novembro de 2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH HV 765 - rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisto e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - ... Deixá-la nem fech...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Jasmin de Brito Pinho
Entrevistada por Karen Worcman
São Paulo, 04 de novembro de 2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH HV 765
- rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisto e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - ... Deixá-la nem fechada, nem aberta, só sentir o ar que entra pelo nariz, aí ele vai descer pela garganta, até a barriga. Ele vai buscar sua energia lá embaixo e vai voltar e vai sair. Vamos sentir isso mais uma vez. Sinta o ar descendo pela garganta e aí respire, como você respira normalmente, só prestando muita atenção. Aí, preste atenção, também, no ruído e no silêncio daqui, as vozes ao fundo, todos os sons que você ouve preenchendo esse silêncio, os sons surdos. Sinta o seu ombro relaxando. É como se essa energia, que vem pela respiração, fosse passeando dentro de você. Da próxima vez que a gente respirar, ela sobe também para a cabeça e busca em você uma imagem, uma sensação muuuuito antiga. Não precisa ser nada, uma cena estruturada, mas algo que você identifique, que é muito familiar. Um sentimento seu que faz parte de você desde que você acha que é você. Explore isso. Pode ser a sensação de bebê, de feto, de criança. Ou pode ser sempre essa sensação que veio voltando, essa imagem, essa cor ou um cheiro. Um quarto, que aquele que você sabe que é seu. E vai com a respiração para esse lugar. Esse lugar que só você sabe que é seu, que é você. E deixe todos esses sentimentos e essas sensações, desse lugar, se espalharem por você e pelo seu corpo. E se veja inteira nesse lugar e sentindo esse lugar. E que imagens você tem: o que sai, cenas, deixe a cabeça viajar para dentro de você, para o início da sua vida, para as primeiras vezes que você se percebeu. E, quando esse lugar estiver bem dentro de você, vá saindo, se veja aqui, nesse som, nesse instante. E quando você sentir que deixou essa imagem do início da sua vida e se viu, a gente começa a voltar e vai passeando assim, vai voltando devagarinho, e o que vier de imagem de mãe, de pai, de riso, de choro, de vida, vai vindo. E quando você quiser, me avise que você voltou.
R – Estou aqui.
P/1 – Então, a gente vai começar. Vou pedir, de novo, para você falar seu nome completo, a data e o lugar em que você nasceu.
R – Jasmin de Brito Pinho, nasci em Salvador, Bahia, em 27 de agosto de 1975.
P/1 – E, Jasmin, você me diz o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai chamava-se Augusto José Alcântara Pinho, conhecido como Gut, todo mundo o conhecia como Gut. E minha mãe chama-se Eli Amorim de Brito. Mineira, Eli. Foi engraçado que eu fui para um lugar muito côncavo nessa ida, que era um pouco um útero, um pouco aquelas cadeiras de vime que ficam penduradas, que tinha na minha casa, que eu tenho hoje na minha casa, porque eu achei uma e comprei. Eu quero que meus filhos tenham essa sensação. E a banheira, tinha uma banheira no jardim, na casa onde eu cresci e na casa de minha avó. E veio muito a sensação de côncavo. Eu fiquei pensando, muitas vezes, sabe, Karen? Durante anos, isso. As amigas até contam essa história, que eu conhecia alguém e perguntava: “Você nasceu?” Perguntava para uma pessoa que eu tinha acabado de conhecer, fazia: “Você nasceu?”.
P/1 – Você perguntava assim?
R – Perguntava assim. “Karen”. “Jasmin”. A gente sentava para conversar e dizia: “E aí, você nasceu?” E cada um vinha com uma narrativa diferente. Aí você nasceu, há muito pouco tempo eu descobri que, para mim, tinha a sensação de incômodo, mesmo. Tem o côncavo, mas eu nasci numa época muito idílica dos meus pais, deste país, numa casa redonda, em cima de um morro, em Pituaçu, Salvador, com um gramado na frente. Minha mãe e meu pai tinham construído uma casa toda de alvenaria, branca, com os portões de vidro, aí você via o gramado, o coqueiral e o mar. E essa banheira ficava no jardim e, há pouco tempo, ela me voltou à memória. E veio de novo agora essa sensação estranha, de côncavo.
P/1 – Me conta mais do côncavo. É uma coisa que te...
R - ... Acalenta, que te abraça. Pode ser um útero, não é? Mas o que é mais estranho é que, na minha história, o útero, para mim, é um lugar que foi muito difícil.
P/1 – Por quê?
R – Porque minha mãe perdeu muito filho. Eu sou, sei lá... Diz ela que teve dez abortos. Ela pariu quatro. Mas ela abortou muito. A Minon, que é a mais velha, entre a Minon e o Aeon tem uns cinco anos e ela perdeu muitos filhos entre um e outro. Inclusive uma nascida, chamada Aia. Aeon e depois eu. E a gente estuda em Biologia... Eu lembrava, na aula de Biologia, inclusive eu gritava, falava: “Eu tive isso aí que você está falando. Chama eritroblastose fetal. Que é quando a mãe é RH negativo, o bebê é RH positivo”. Hoje em dia, na primeira gravidez, você toma vacina e não tem problema. Na época, ela não tomou. Então, esse corpo... Minon é RH negativo, os outros eram positivos e eu era a última positiva, então...
P/1 – Quer dizer: os positivos ela expulsava?
R – Ela expulsava. E eu nasci com sangue envenenado. Porque tinha uma força do corpo dela, de expulsão. E eu tive que trocar o sangue inteiro. Então, minha memória, que não é memória, é só memória construída, desse recém-nascido, ela sempre contava que eu chorava tanto, que meu umbigo saiu. Porque, muito pequena, eu tive que entrar sangue de um lado e sair pelo outro. Eles saiam feito vampiros pelas ruas de Salvador procurando sangue para doar. Doação de sangue, para fazer a transfusão. E foi uma troca de sangue de duas vezes, uma coisa bem complexa. E eu tenho essa memória, que é implantada, celular, em alguma instância, porque está ali dentro do que é esse corpo da gente, que é uma coisa que tem sido um objeto de estudo e de mudança muito grande para mim, nos últimos anos. E eu tenho revisitado muito esse momento. E por mais difícil que tenham sido essas primeiras experiências celulares, eu tenho essa memória tão gloriosa da infância, tão livre, tão inteira. E a gente estava falando de poesia, quando voltou, e quando eu estava pensando, eu estava pensando no Pessoa, que fazia assim: “Para ser grande, sê inteiro, põe um pouco do que tu és em tudo que fazes, porque assim a lua toda brilha, porque nela vive...”. Não sei, não está certo. Mas é quase isso. Porém, sê grande e inteiro. Que está cabendo muito nesse exercício do ser grande e inteiro, desse momento, e que vem dessa infância, eu acho. Porque eu guardei essas sensações de acalento, mesmo, de acalanto, de colo.
P/1 – Então me explica melhor como era. Você nasceu nessa casa, me conta.
R – Eu nasci nessa casa, eu lembro de um cajueiro que tinha atrás. Acho que é a única coisa que eu lembro da casa. Eu era muito pequena quando eles se mudaram de lá, tinha uns quatro, três e meio, quatro, mas eu tenho a memória do cajueiro. Eu tenho memória do cheiro do cajueiro, do cheiro da folha do caju. Porque era um cajueiro meio mãe, ele tinha os braços dele baixos, então ele se adaptava às alturas das crianças. E era uma casa que minha mãe é uma pessoa muito que constrói os seus céus, fala: “Eu desejo isso”. E a coisa ela vai construindo para que aquilo aconteça. E ela consegue. Então, ela era filha de meu avô, Erivaldo Antônio de Brito. Nessa época, era presidente do Baneb. O cunhado, tio de minha mãe, era governador da Bahia. E ela, muito hippie. E muito interessada em outros horizontes, em outras coisas. Mas era uma mimada, no fim das contas, também, mas uma rebelde, porque sempre foi a ovelha negra da família. E conheceu meu pai.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Eles se conheceram, eu acho que foi através de uma amiga em comum, da Soninha Dias, mas eu sei que ela diz que ela olhou para ele e fez: “Nossa, esse homem vai me dar filho bonito”. Ela sempre conta a história. E ele é uma pessoa muito incrível. Ele era um homem muito inteligente. Físico nuclear, na Bahia. Esses dias eu estava pensando: “Queria tanto ouvir a voz dele de novo”. Porque era uma voz muito... O tempo da voz dele era diferente. Ele falava muito devagar, ficava testando a sua paciência a cada... Quando ele falava, ele pausava. E eles se conheceram em torno dessa amiga em comum e foram namorando - ela tinha outro namorado na época que, enfim, estava acabando - conheceu meu pai, eles se casaram rápido até e acho que ela queria se livrar do meu avô também, daquela coisa da família e tem um universo intelectual riquíssimo...
P/1 – Na família dela ou dele?
R – Sabe que nem na dela, nem na dele? Na dela tinha uma coisa do estudo, não é? A família da minha mãe, vindo do meu avô principalmente, que estudou Agronomia em Viçosa, que foi onde ele conheceu minha avó, a dona Carmem. E ela era muito curiosa, minha mãe. Do meu pai sempre foram pessoas inteligentes. Tinha um irmão mais velho, Roberto Pinho, que é um antropólogo gênio, maravilhoso, que também é da intelectualidade, mas nunca foi... Era uma coisa que esse pequeno núcleo familiar que eles criaram com nós três no muito pouco tempo... Difícil dizer, acho muito difícil medir o tempo, não é? A gente sempre estava lendo em casa. Sempre tinha alguém lendo. Sempre tinha livro. Tinha sempre um Fernando Pessoa em algum canto. Tem o Fernando Pessoa clássico, que meu pai deu para a minha mãe, que tem uma dedicatória, que hoje está caindo aos pedaços. Mas é um livro da família, que a gente parava para ler, lia junto. É um livro que eu estudei a vida inteira, que eu li a vida inteira, está do lado da minha cabeceira. As Obras Completas. E, mesmo na separação, eu acho que meu pai deixou para a minha mãe esse legado do estudo, mesmo, de ir fundo numa pesquisa, no que você pretende. Ela já tinha isso dentro da alma dela, porque ela tem de natureza. Mas era uma coisa que aconteceu ali, apesar de ter sido razoavelmente difícil também, porque ele também era uma pessoa muito difícil.
P/1 – Como assim? Só para me localizar: eles se conheceram, ela tinha o quê? Quantos anos, mais ou menos?
R – Vinte, vinte e poucos. Ela teve Minon quando tinha 23. Ela não casou grávida, mas ela engravidou logo depois. Não, 22. Então, deve ter sido 1967, 1968, nesse entorno. E eles se encontraram e fizeram: “Vamos casar”. Foram falar com meu avô, meu avô acho que meio ficou: “Poxa, vou me livrar”.
P/1 – Porque ela era muito...
R - ... Rebelde. Muito, muito. E ela contestava, e era uma família muito tradicional e ela muito contestadora, que viveu pouco com a família, porque foi mandada para um colégio interno com, sei lá, sete anos de idade e saiu com 13. Lá em Belo Horizonte.
P/1 – Católicos?
R – Católicos.
P/1 – Eles eram católicos?
R – Eles eram católicos. Minha avó era tudo. Minha avó era católica, budista, espírita, uma época foi rosa cruzista - estudou Rosa Cruz. Minha avó era uma amplidão de espiritualidade, uma força de espiritualidade e de fé, que, aliás, um legado que ela me deixou e que eu penso tanto nela e rezo tanto, e eu fiquei com o terço dela. Ela acreditava em tudo e ela...
P/1 – Carmem?
R – Carmem. Carmem Amorim de Brito, filha de Antônio Amorim, alfaiate, e dona Aparecida, costureira.
P/1 – Em Minas?
R – Em Viçosa, onde meu avô estudou Agronomia. E ela, ao contrário - meu avô estava lá - casou, porque engravidou da minha mãe, e teve que casar e foi para a Bahia.
P/1 – Nossa, deve ter sido escandaloso.
R – Deram um jeito, não é? Rápido. Casaram, mas ela era muito simples, não é? Ela vinha de uma família muito simples. Ela caiu numa família muito tradicional e dura, mesmo. Até de aceitação da condição de onde ela estava vindo. Minha avó, até o fim da vida, dormia no sofá. Eu acho que ela se sentia confortável, mais no sofá, do que na cama, porque tinha algo de não pertencimento daquela coisa gloriosa e grandiosa. Vou ter que parar um pouco. Tem me dado umas pontadas de dor muito fortes. Duram 30 segundos. Passou. Ela era uma mulher de muita bondade, minha avó.
P/1 – E aí ela chegou nessa família, que era tradicional, rica...
R - ... E com muita regra.
P/1 – De fazenda?
R – De fazenda. Meu bisavô, ‘seu’ Leon Antônio de Brito, comprou dos irmãos todos, tudo. Imagina, ele deixou de herança, acho, para cada um dos três filhos, umas seis fazendas. Um homem muito respeitado. Minha avó gostava muito dele. Mas muito rico, não é? E ela, acho que, ali na dança, ficou muito próxima do meu bisavô, tanto que o ajudava e ele confiava muito nela. Então, quando ele tinha um encontro de negócios - ela contava muito essa história - que ele chamava: “Carminha, vai lá e leva uma água, um café, um bolo para a gente e olha para o sujeito e me diz se eu posso confiar nele ou não”. Ela tinha esse dom, de ver as pessoas além das pessoas. Tinha o dom até de botar um copo... E era totalmente conectada, fazia reuniões espíritas em casa. Desde pequena, eu vejo gente incorporando, aquelas velhinhas amigas dela, todas incorporando. E ela deixava um copo em cima da mesa, assim, aqui na mesa de centro: “Estou vendo aqui um moço assim, alto, de cabelo curto, está olhando para você, com muita admiração”. E ela descrevia uma pessoa que você conhece, fazendo alguma coisa. E a gente sabe lá de onde vinha isso! Ela benzia. Hoje eu fui benzida, ela chegava, só coisa ruim puxando, os dedos assim, ela puxava, estalava, plic, plic, plic, plic. É uma memória muito forte, porque a gente ficou muito com ela. Meus pais separaram-se muito cedo, porque meu pai, dentro dessa...
P/1 – Isso. Vamos chegar a eles.
R - ... Intelectualidade, de uma certa genialidade - porque ele estudava muito, ele tinha uma precisão intelectual muito fina, era uma figura muito genial, muito amada e adorada - mas absolutamente incapaz da Matemática afetiva diária, prática, procedimento da vida. Então, era uma pessoa que vivia... Tinha sempre meio que... Ele conseguia ser a pessoa que era, mas essa coisa de pai que cuida, que se preocupa, imagina! Nunca conseguiu. E eles se separaram muito cedo, brigados, mesmo.
P/1 – Mas o motivo você sabe?
R – Ah, o motivo... Fim de relação sempre tem motivo. Tem todos os motivos. É um motivo e são todos, não é? O casamento tem essa coisa, que tem um disparador. É algo que acontece que...
P/1 – E você sabe qual foi?
R – Foi uma briga numa festa de réveillon. Acho que 1979 para 1980.
P/1 – Então você tinha tipo quatro anos?
R – Eu tinha tipo quatro anos. Minon já era mais velha. Minon pegou mais da crise a chegar à separação, que é minha irmã mais velha. Eu não tenho memória disso, tenho uma memória muito vaga do meu pai, na infância. Muita memória de ausência. Da segunda infância e juventude. E uma reconexão de adulto, que foi um dia que eu consegui vê-lo na rua, depois de estar sem falar com ele há uns quatro anos. Eu olhei para ele, ele tinha uns olhos azuis, ele era um homem lindo, enorme e eu olhei para a cara dele e fiz: “Gente, não era falta de amor”. Aí me deu uma pena daquela pessoa, porque ele tinha perdido tanta coisa! E não era por falta de amor. Era por incapacidade individual, emocional, uma limitação emocional, mas lembro de que o pouco que a gente se via, as conversas giravam sempre em torno de questões muito incríveis. Porque ele te convencia de que essa mesa não estava aqui.
P/1 – Fisicamente?
R – Fisicamente. Ela está aqui, porque ela é uma construção. Ela é os átomos e aí vai, ia muito longe. E devagar, falando muito devagar. Então, era uma figura que deixou muita marca em quem o conheceu, mas ele foi um pai absolutamente invisível. Nossa, eu guardo na memória as horas que eu esperei na porta do prédio e ele nunca apareceu. O via uma vez por ano e morava na mesma cidade.
P/1 – Então me explica melhor. Vocês se separaram...
R – Isso tudo em Salvador. Eles separaram, a gente saiu da casa redonda, nesse universo idílico que eles construíram, que era uma casa que foi frequentada por uma elite cultural e intelectual baiana porque, realmente, era um lugar seguro, porque estava ali dentro de uma dinâmica do governo, tinha uma conexão. Estava seguro, numa época que tinha muita insegurança. E os malucos... A porta vivia aberta e então os malucos simplesmente apareciam. A vida inteira eu passei ouvindo: “Ah, você é filha de Eli e Gut? Você mora ali naquela casa redonda. Nossa, eu fiquei muito louco naquela casa!” Porque era uma casa muito louca e as pessoas ficavam loucas e as festas... Eu resgatei as fotos de festas, as pessoas... Em cima era de alvenaria, os móveis saíam da alvenaria e eu resgatei uma foto de festa agora e tinha uma pessoa em cima da parede. Porque tinha a parede, acabava a alvenaria e o telhado de sapé em cima. Então, havia um espaço entre a parede e o teto, o telhado. E você podia andar por ali por cima. Era uma coisa muito fascinante, louca. Atrás tinha um estúdio, que era onde foi a biblioteca, a área de estudo do meu pai, que dava 360 graus de vista de coqueiral e mar, no sul da Bahia. E tem uma coisa que, isso é memória vaga desse lugar, isso é uma memória vaga que eu tenho ou é construída também, não sei. Eu estou muito pesquisando as memórias que são construídas, de tanto ouvir as histórias, de tanto contarem histórias. Acho que três dias, mais ou menos, antes da lua cheia, o sol se põe num lugar e a lua nasce do outro. E lá dava para ver. Então, tinha esse fenômeno e eu penso muito nesse fenômeno. Acho que me falaram muito dessa cena. Não sei bem. Porque agora eu ando pensando muito em que as memórias, que narrativas a gente deixa e ficam para os meus filhos. Como é que eles vão perceber a infância desses momentos que a gente está vivendo, que é tão limite. Mas todo momento é limite. Na vida de todo mundo. Todo momento é limite. Imagino que esse momento da separação desse homem, meu pai, destruiu a festa inteira. E eles nunca mais se falaram!
P/1 – Ele destruiu a festa inteira?
R – Destruiu. Ele achou que ela estava tendo um caso com o Vítor Diniz, que é um amigo dela que ajudou muito a gente, muito amigo mesmo. E ela não queria mais aquele casamento. Ela, simplesmente, não queria mais aquele casamento. E disse: “Olha, eu quero me separar”. Porque era uma pessoa muito difícil de conviver, mesmo. E diz ela que tinha uma proteção para conosco. Porque ele era uma pessoa que, com raiva, dava um murro numa parede, uou! Tinha uma violência também, dentro da genialidade e acho que ela, a certo ponto, fez: “Nossa, eu vou tirar meus filhos disso e preciso sair disso”. E a gente saiu dessa casa redonda, fomos passar semanas na fazenda, que eu me lembro. A fazenda eu lembro de muitas coisas. Muitas histórias. Nossa, quanta história! Voltei lá, peguei com minha avó a árvore genealógica inteira, desde 1881, dona Mariquinha, que era casada com major Cícero Antônio de Brito. Que era o nome da rua de Itajuru, que é uma cidade desse tamanho, no interior da Bahia. E a fazenda era do outro lado do rio. E eu vou contar a história da Dona Mariquinha, que é muito louca. Dona Mariquinha - minha avó contou - era casada com um boêmio. Diz que major Cícero, que era o pai desse que deixou três fazendas para cada filho. Estamos falando de meio para fim de 1880.
P/1 – Esses eram os pais dos avós?
R – O Cícero é o meu tataravô.
P1 – E avô do seu pai? Sua mãe.
R – De mãe. Essa família rica, de gado e cacau, e o tio dela, governador. Dona Mariquinha sabia quando o major Cícero tinha se engraçado com alguma mulher lá em Ilhéus, porque vivia na boêmia, enfim. Gastou muito. Ia para a noite pesadamente e ela ficava na fazenda, só que ela sabia. Dava um jeito de saber. E quando ela sabia o nome, ela mandava alguns mocinhos dela, ali da fazenda, irem até Ilhéus, catar a mulher, cortar os cabelos da mulher, largar a mulher em outra cidade bem longe e fazia rédeas novas com o cabelo dela. Então, todo mundo sabia, na cidade, que quando ela estava passeando na cidade, de cavalo, com rédea nova, é que major Cícero tinha feito alguma coisa errada, que ia dormir na garagem, que ia ser uma confusão. E era uma fazenda Margenlinda ou Margelina, em que minha avó morou muito tempo. Então, foi a fazenda da nossa infância. E acho que minha avó contava essa história da avó Mariquinha porque ela assumiu, um pouco, um posto muito parecido com esse, e era a juíza de paz da cidade. Se o homem traía a mulher, ia bater lá na porta dela. Se estavam tentando qualquer coisa, iam bater à porta de dona Carmem, para ela resolver o problema. E ela resolvia. E ela cuidava de todo mundo. Tinha uma escola do lado. Foi uma infância muito rica. Nossa!
P/1 – Quer dizer: aí vocês foram para lá morar com ela?
R – A gente foi para lá ficar com ela quando eles se separaram, um tempo, e mesmo depois, durante toda a minha infância, dava férias - na Bahia, essa época, eram quase três meses de férias – minha mãe despachava a gente: “Fica com sua avó na fazenda”. Então, foi uma infância muito cavalo, pé de árvore, atravessar o rio, dar banho no cavalo no rio de contas, com seixos de pedra, lindos. E era uma parte do rio que descia e ficavam ilhas. Então, quando o rio estava na baixa, você atravessava, às vezes, de cavalo. Você conseguia atravessar. Quando estava na alta, pegava a canoa de um lado, na fazenda, e atravessava para essa cidadezinha, para ir comprar bala, do outro lado da fazenda. E com os moleques todos.
P/1 – Aí ficava você, Minon...
R – Minon eu lembro pouco. Ficava muito eu e Aeon. E os primos, que eram mais ou menos da mesma idade. Minon ficava também, mas Minon tinha as amigas, umas velhas. Minon é oito anos mais velha do que eu. E também tinha um núcleo de amigos em Salvador, e Minon sempre foi muito careta e sempre teve uma vida meio paralela de amigas e fugia sempre que possível. E, como estava mais velha também, começou a trabalhar mais cedo. Teve uma vida mais paralela a esse núcleo, que era muito forte eu e Aeon. Eu e Minon fomos nos reencontrar, mesmo, muito mais tarde, porque a gente virou muito irmã sócia. Fiquei brincando: “Nossa, a gente, quando pensa em resolver as questões da vida, tenho coisas para resolver com muita gente, mas com você, Minon, Nossa, eu conheço seu céu e seu inferno”. A gente foi sócia-irmã por 15 anos. A gente viveu o nosso ser completo de cada um, no seu extremo. É muito bonito isso. No seu absoluto. Então, está tudo certo. Que vida linda! Mas isso nessa infância, aí ela não entra muito nesse horizonte, era mais Aeon, minha avó e a gente ia muito para a casa de minha avó.
P/1 – Seu avô, você lembra dele?
R – Meu avô lembro quando a gente ia para o Rio, porque ele e minha avó ficaram casados-separados a vida inteira. Ela na Bahia e ele montou um esquema, no Rio de Janeiro, um apartamento no Rio de Janeiro, um escritório no Rio de Janeiro, uma também boêmia no Rio de Janeiro, uma família paralela no Rio de Janeiro, mais tarde, e eles se encontravam, esporadicamente,
ou em Salvador, ou na fazenda. Não sei se namoravam, mas ela nunca largou mão dele de ser... Nunca o esqueceu.
P/1 – E quem cuidava dessa fazenda, então?
R – Ele cuidava. E cuidava das coisas de banco, dos negócios, tinha um apartamento na Atlântica, muito dinheiro durante muito tempo, até que conseguiu perder ou deixar tudo muito bagunçado, que está se resolvendo até hoje. Tem inventário de minha bisavó. É uma loucura. Mas viveu no Rio de Janeiro anos 50, 60, ali, bem aproveitados, digamos. Muito bem aproveitados. Senhor Erivaldo. E minha avó, acho que sempre esperando que ele voltasse. Mas ele, eu lembro de ir para o Rio visitá-lo. Eu lembro de passar férias no Rio visitando-o. Já com uns 12, 13 anos. E essa juventude. Da infância era muito: fazenda, casa...
P/1 – Essa separação você sentiu? Você era pequena e então...
R – Não senti porque eu era pequena. Eu senti ausência.
P/1 – Vocês mudaram para onde, antes? Saíram da casa redonda...
R - ... Ficamos um tempo na fazenda e mudamos para um prédio recém- construído, redondo. O módulo. Que tinha uma vista para a Baía de Todos os Santos, incrível. Você via entrar e sair os navios da Baía de Todos os Santos. Você via o pôr do sol. Era a janela toda, a parede toda de vidro, do apartamento, que era um sextavado. A gente morou lá até eu ir embora de Salvador, que eu fui a primeira a sair desse núcleo familiar, porque ficamos minha mãe, Minon, Aeon e eu.
P/1 – Isso virou a família de vocês?
R – Isso virou a família da gente. Com minha avó de apoio, os primos sempre por ali, mas o núcleo familiar virou nós quatro.
P/1 – Então, agora, Jasmin, vamos entrar nesse núcleo.
R – Vamos entrar nesse núcleo. A gente viveu nesse prédio redondo cinco anos, de 1980... Toda a minha adolescência, na Bahia. Eu vivi na Bahia muito nos anos 80, início dos 90. Saí da Bahia em 1994. Porque eu olhava... Não sei, acho que caçula é sempre um pouco mais desgarrado, não é? O mais velho
sempre meio abre as picadas, o do meio tem sempre diferentes questões e o mais novo - eu vejo esse padrão, às vezes, se repetir em muita família - já abriram o caminho aqui, então é desgarrado mesmo. E eu fiz: “Eu não quero fazer Faculdade nesta cidade”. Eu aproveitei a Bahia da adolescência, muito bem aproveitada. Eu fui muito feliz naquela Bahia, naquela vista, na escola em que eu estudei, com os amigos que eu tive, com as madrugadas tocando violão, fazendo sarau e lendo poesia. Lendo muita poesia. Lendo muito, muita Clarice Lispector, Literatura, Vinícius de Moraes: “É melhor ser alegre do que ser triste”. E, em um certo momento, aquilo, aquela cidade deu para mim. Eu fiz: “Eu quero estudar Comunicação, Jornalismo, eu quero contar história. Eu não vou fazer Faculdade aqui”. E fui fazer Faculdade. Fui fazer vestibular. Fiz vestibular em Salvador, mas eu peguei a prova de Química e Física... Eu peguei um ônibus, fui até o Rio de Janeiro, fiz vestibular na PUC; peguei um ônibus, fui até São Paulo e vim fazer na USP; peguei um ônibus, fui até Salvador, para terminar o vestibular da UFBA. Só que quando eu cheguei no vestibular da UFBA, eu soube que tinha passado no Rio de Janeiro. Fiz: “Nossa, se eu passar...”. Minha mãe já estava difícil de grana. Ficou difícil de grana quando eu tinha uns 15. Aos 16, eu fui trabalhar. E quando eu olhei, fiz assim: “Puxa, se eu passar na escola federal em Salvador, eu vou ter que ficar”. Nossa, peguei a prova de Química – aí, eu soube que passei no Rio - zerei. Nem li a prova de Química. Acho que fiz a de Português, História e Geografia, que eu era muito boa, para entregar para alguém. Passei, devo ter passado cola para alguém, deve ser por isso que eu devo ter feito, mas fiquei na minha cabeça: “Não quero estudar aqui. Eu quero ver o mundo, o que tem fora daqui”. E eu acho que isso foi uma coisa que deu, porque a gente construiu esse núcleo que era muito próximo, essas quatro pessoas sempre conversaram sobre tudo. Tem uma coisa de céu e inferno, muito intensa, na minha família, que minha mãe cultivou muito, de fala. A gente, aqui, se resolve. Então a gente fala, joga tudo para fora e depois a gente arruma. E fica tudo bem. Porque saiu aquilo tudo. E a gente era muito próximo, mesmo. E eu não sei, eu queria ver o mundo. Sempre gostei muito do mundo.
P/1 – Aí você saiu? Agora eu queria, antes de você sair, voltar mais um pouquinho, assim: como que era esse cotidiano, a sua mãe, que era ou não era hippie. O que acontecia, no dia a dia, na sua casa? Quem cuidava? Como vocês se relacionavam?
R – Sempre tinha alguém. Minha mãe cuidava e sustentou, porque ela virou as costas, mesmo. Ela fez: “Não quero nada de você”. Então, meu pai, depois deles se separarem, ele foi mesmo, ela bancou esses três filhos, começou a trabalhar. Ela desenhava. Quando eles estavam grávidos... Ela desenhava muito, sempre desenhou muito bem. Ela estudou Desenho em Paris, quando estava grávida de mim. Minha gravidez inteira se passou ela em Paris com meu pai, meu pai estudando Física Nuclear, fazendo alguma especialização, e ela foi estudar Desenho e sempre teve muito o dom de costura, manual. Tem, não é? Nossa, tem um dom inacreditável. E quando ela se separou, que ela fez: “Como é que eu vou pagar a conta dos meus filhos?”, ela montou uma fábrica de roupa infantil chamada Cara Suja, porque ela era estilista, desenhava e eu passei um bom tempo embaixo - saía da escola, ia lá para a fábrica - de mesa de corte, aquelas mesas enormes, com rolo de tecido. E aquele bando de costureira. E ela pesquisava muito, para criança, coleções. Era muito moderna a loja Cara Suja e a loja me acompanhou, na minha idade. Então, ela tirava foto minha vestida com as roupas que ela tinha criado, porque ia casando com a minha idade. Eu não vou esquecer nunca daquele cheiro de tecido, de textura, de retalho e eu brincava com os retalhos, ficava muito com retalho embaixo da mesa. E ela sustentou a gente assim, os três. Acho que devia pingar uma ajuda de meu avô aqui e ali, mas meu avô também já não estava muito bem.
P/1 – Então, me explica objetivamente: a família foi perdendo...
R – Quando a gente gasta, a gente perde, não é? Você tem uma Matemática. Quem é rico? Eu falo isso para o meu filho: “Rico é quem gasta menos do que ganha. Se você gasta menos do que você ganha, você é rico, meu filho”. E tem um lugar da riqueza que é muito difícil fazer isso, não é? Porque você se acostuma com a riqueza. E você se acostuma com o padrão de riqueza. Então, você vai queimando. E eu acho que foi o que eu falei, foi o que aconteceu, não é? Ele foi queimando, foi gastando.
P/1 – Seu avô?
R – Meu avô.
P/1 – Que morava no Rio...
R – Que morava no Rio. Ballantine’s 12 anos; apartamento Sérgio Rodrigues inteiro; a nata carioca; as damas cariocas; as funcionárias do sexo; as putas; as garotas de programa; as baladas com sei lá o quê. Era tudo muito... Ele fazia muita farra. Coisa que a gente descobriu - sabia-se, mas sempre foi velado aquilo tudo - quando a gente esvaziou o apartamento dele, que a gente achou muita foto, fotos incríveis. Então, ele aproveitou bastante a vida, gastou bastante o dinheiro. Eu acho que ali, dos meus dez aos 15, eles devem ter ajudado até os dez, mas a Cara Suja funcionou, o negócio dela. Ela veio para a Fenit, em São Paulo. A gente vivia relativamente bem.
P/1 – Ela se tornou uma empresária?
R – Ela se tornou uma empresária. E, como a gente vem da fazenda, sempre tinha alguém em casa. A gente tem uma tia de criação, Bete, que na verdade era tia de criação da minha avó Aparecida, em Minas Gerais, que veio morar com a gente e trabalhava com minha mãe na Cara Suja, na fábrica. A Cica, que era filha de criação de minha avó, que veio morar com a gente um certo tempo, porque batia de idade com a Minon. Minha mãe gostava, também, de sair muito, então tinha sempre alguém em casa.
P/1 – Mas essas pessoas eram o quê? Empregadas?
R – Não. Eram família.
P/1 – Ficavam ali?
R – Família. Ficavam ali. Moravam lá com a gente. Então, tinha sempre alguém morando. Tinha uns amigos de minha mãe que iam passar uns tempos em casa.
P/1 – E ela continuou muito hippie, muito ligada a esse mundo?
R – Ela continuou, mas era mais nos anos 80, não é? Mais Berro D’Água, mais as boates baianas. Mais uma coisa anos 80. Ali, forte, o Carnaval, não é? Gostava muito de farra a minha mãe. E gostava muito de ouvir música, sempre tinha música em casa. Sempre. Música e livro sempre teve em casa.
P/1 – Então me conta assim da sua lembrança dessa casa, desse apartamento redondo. Qual é a música que você me diria que está lá e você, numa tarde. O que era?
R – Nossa, muita MPB, muito Caetano, muito Gil, que eram amigos conhecidos dela. O Gil e o Caetano passaram uma época nessa casa redonda, antes de irem para Londres. Porque era um lugar seguro e tinha amigos em comum e eles ficaram lá, eu não era nem nascida ainda. Se ouvia muito Caetano Veloso, se ouvia muito Gilberto Gil, se ouvia muito Chico Buarque, muito Gênesis, muito Yes, muito James Taylor. __________ [51:55] the jukebox, que é a música que ele tem que grava Your My
. O disco que ele tem que tem essa música, que é a música do nome, que eu reachei esse disco, ouço loucamente. Muito Pink Floyd, muito Dja
van, muito muita coisa. Muito tudo. Muito ____________ [52:16]. A barra era alta. De livro... Nenhum dos três foi batizado e certo dia eu perguntei: “Mãe, por que você não batiza a gente? Por que a gente não é batizado?” Eu estudava em uma escola de freira e então, isso, em algum momento, era uma questão. Ela falou: “Vai estudar religião e aí você escolhe que religião você quer e aí você se batiza, tá?” “Tá bom”. Aí eu fui estudar religião. Tem esse legado de ‘vai estudar e viver’. Eu tenho uma memória muito clara de viver e ser feliz naquele apartamento.
P/1 – Era bom?
R – Era muito bom. Tinha muita festa, tinha sempre muita gente, tinha aquela Baía de Todos os Santos na sua frente. Era muito bom. E minha mãe sempre foi muito agregadora e então os amigos sempre vinham - os dela e os nossos. Então, a festa, às vezes, tinha um leque de variação etária interessantíssimo. Porque tinha os meus amigos, mas, de repente, chegava o amigo dela; de repente, chegava o amigo da Minon e a casa estava sempre povoada. Então, eu tenho boas memórias. E era prédio na Bahia, não é? Coisa de bicicleta, a turma do prédio, dos outros prédios no entorno. Era um prédio que tinha um play muito bacana e então todo mundo ia brincar no nosso play. Era o play de juntar a turma. Foi uma vida deliciosa, Nossa!
P/1 – E na escola, Jasmin, como era? Você estudava em escola de freira.
R – Instituto Social da Bahia. Mas eram umas freiras incríveis. Freiras para frentex, como falava, não é? Ok, eu não era batizada, se eu não quisesse assistir aula de religião, tudo bem: “A gente entende isso, recebe isso, mas se você quiser”. Que eu queria, porque eu sempre fui super boa aluna e amiga de todos os maus elementos da sala, porque eu sempre gostei muito de gente, gosto muito de gente, eu adoro gente, e ficava amiga da turma do fundão. Então, acho que fui representante de classe a minha vida inteira. Sempre dava algum BO, eu que tinha que ir lá conversar, resolver, ia conversar com o diretor, com os professores, e eles tinham essa política acadêmica de auto representatividade muito cedo, não é? Tinha uma filosofia na escola muito bacana. E eu era excelente aluna, mas comecei assim, de uns 13 para 14 anos, gosto de gente, gosto do mundo, eu caí para o mundo. Então, tinha festa em casa, que iam os amigos para casa, e minha mãe também puxava muito: “Ok. Quer fazer farra? Venham todos para cá”. E a gente ficava lá até seis horas da manhã, tocando violão, a turma do violão, é uma turma que me acompanha até hoje. São meus amigos até hoje. Mas eu também saía, não é? Comecei a sair. E comecei a beber muito cedo. Nossa, adorava beber. Um prazer louco.
P/1 – Tipo com o quê?
R – Sei lá, com uns 14, 15 anos. Eu era amiga dos maus elementos, então eu acho que, sei lá, a gente assistia aula até o recreio, depois ia para o bar do Visgueira e eu voltava na hora de ir para casa. Não assistia, depois do recreio, as quatro últimas aulas. Mas se pensar, naquela época, na Bahia, dirigia com 16 anos de idade. A gente dirigia bêbado. Não sei aqui em São Paulo, mas a gente dirigia bêbada. E ninguém se preocupava, não tinha celular e vive-se a vida a toda. E eu vivi a vida a toda.
P/1 – Tinha droga?
R – Não. Tinha maconha, mas eu nunca consegui ser maconheira na minha vida. Tentei, mas nunca consegui. Era uma turma que curtia música, curtia tocar violão.
P/1 – Mas era da sua escola essa turma?
R – Não. Era a turma que sempre vinha de vários lugares. As primeiras turmas ainda pré-boêmia eram as turmas dos prédios, não é? A turma da boêmia já virou uma parte a turma da escola, que era a boêmia diurna, e tinha a boêmia noturna, que era uma turma de amigos que somos em dez, entre amigos que vieram pelos primos, pelo Aeon, por mim e foi-se montando uma turminha ali da seresta, da viola, até eu ir embora de Salvador. E até hoje, um em cada lugar do mundo, se cruza. Então, essa fase da vida até encarar a vida dura, caiu na vida. Para mim durou até os 16, porque aos 16 eu fui trabalhar. Não tinha mais dinheiro e minha mãe...
P/1 – Mas como é que foi que aconteceu?
R - ... Parou e fez: “Cara, se eu continuar sendo empresária, eu vou morrer. Eu vou citar o I Ching. Eu vou ter que parar tudo. Vamos ver como a gente faz”. E foi a época em que a gente voltou e processou meu pai, para ele terminar de pagar pelo menos eu e o Aeon, porque a Minon já estava mais velha e já estava trabalhando e ajudando na casa. Eu fui trabalhar no shopping vendendo tênis, mas em duas semanas eu era quase subgerente. Rapidamente. “Como é esse negócio de fechar Caixa aí? Quero aprender esse negócio aí”. E deu certo, fiquei e trabalhei. Só parei de trabalhar nos últimos oito meses de escola, que eu fiz: “Puxa, tem o vestibular e então vou parar de trabalhar, para focar esses meses finais para fazer vestibular”. Porque eu queria fazer fora. Tinha que subir a Barra um pouquinho, então saía de casa dos 15 aos 18, sete horas da manhã, ia para a escola, voltava meio-dia, almoçava, ia para o shopping e voltava onze horas da noite. Porque eu fechava o Caixa. Ajudava o gerente a fechar o Caixa. Que foi uma coisa que me deu uma noção do trabalho, deu também o prazer do trabalho, de ter o próprio trabalho e ter aquelas relações e saber que aquele dinheiro você produziu. Uma sensação boa para ter, jovem. Eu acho que depois dali eu nunca mais parei. O trabalho virou uma coisa muito grande na minha vida. E eu construí uma carreira profissional, um caminho profissional muito grande, rico e bonito. Fiz tanta coisa!
P/1 – Então vamos seguir com isso. Você ficou trabalhando, papapa, e foi para o Rio?
R – Daí fui para o Rio.
P/1 – E como foi a sua chegada no Rio de Janeiro?
R – Eu fui para o Rio... Eu passei aqui em São Paulo também, mas eu fui para o Rio porque minha mãe tinha uma amiga no Rio, então acho que ela se sentia mais segura. Meu avô ainda não estava com Alzheimer, ainda morava no Rio. Então, tinha duas pontas de segurança ali no horizonte e acho que, para ela, era mais confortável. E eu passei em terceiro lugar na PUC e então, eu podia abrir bolsa, que eu pedi. Entrei na PUC, pedi bolsa e fiz a Faculdade inteira sem precisar pagar a PUC.
P/1 – Você foi morar onde?
R – Fui morar na casa da amiga de minha mãe.
P/1 – Que era onde?
R – No Jardim Botânico. Fiquei lá três meses, aí comecei a minha via-crucis de alugar quarto, dividir apartamento com outras pessoas alugando quarto. Nessa via-crucis, sei lá, acho que nos meus três anos de Rio, os primeiros dois anos de Rio, eu devo ter me mudado umas oito vezes. Mas era fácil, não é? Tinha uma mochila, um colchão, a mala, umas coisas de cozinha e abria as conexões e ia alugando quartos em casa de pessoas que já tinham esse esquema. Imediatamente comecei a trabalhar.
P/1 – No que você começou a trabalhar?
R – Assim que eu cheguei lá eu fui fazer a única coisa que eu podia fazer, porque eu não conhecia ninguém, não é? Eu fui fazer a única coisa que apareceu também. Eu pensei: “Nossa, o que dá para eu fazer aqui?” Muito bonita, muito alta, evento. Salto alto, oito horas por dia em cima do salto alto, fazendo evento: “Por aqui, por favor”. Lançamento de prédio, do que for, aquelas feiras de qualquer coisa, de produto, agropecuária, o que quer que seja. Fiz isso uns seis meses. Ganhava, dava para pagar minhas contas. E aí, muito cedo, no segundo semestre de Faculdade, um amigo, um senhor que me ajudou muito, que tinha sido um amigo do meu avô, Joaci Góes, da Bahia, que era dono da Tribuna da Bahia, tinha um amigo dono da Central Nacional de Televisão, CNT. A gente conversava muito, porque ele gostava de conversar comigo, eu lia muito e ele não entendia muito como é que eu tinha tanta bagagem de leitura, mesmo, e então a gente conversava muito de leitura e ele fez: “Eu vou te ajudar. Vou ligar para um amigo meu, que é dono de um canal de televisão”. E ligou, eu fui lá fazer uma entrevista de estágio e fui fazer, no segundo semestre da Faculdade, o jornal local, seis horas da tarde, na CNT, no morro do Tuiuti, em São Cristóvão. Jornalismo na veia, diário, hard news, não é? Chegavam as fitas e eu, rapidamente...
P/1 – O que você fazia?
R – Eu entrei de estagiária, mas no mês em que eu entrei, a coordenadora que... Tudo à máquina de escrever, TP, o que o locutor falava, você ainda tinha que botar a folha que vinha do jornalismo e ir alimentando, enquanto o apresentador falava. E eu fui estagiar com a mulher que coordenava o fluxo. Se a matéria chegou, se está pronta. Se não chegou, se já terminou de editar, botar na sequência, alimentar, ser a ponte com os jornalistas, trazer e descer para o estúdio, seis horas da tarde, no ar. Em um mês, obviamente, eu sabia fazer o que ela fazia e ela saiu. Aí eles fizeram: “Tudo bem se você ficar fazendo o que você faz, como estagiária?” “Claro. Vamos lá”. E aí fiquei lá um ano. Quase um ano. Aí começou a me dar uma irritação, que é tudo muito rápido no jornalismo. No jornal diário, você está estressado às seis horas da tarde, todos os dias. E eu queria mais tempo com aquilo. Quando chegava pauta de cultura, então, eu fazia: “Nossa, que depoimento incrível! Que história linda! Eu não quero ter que editar isso em 30 minutos. Eu não quero falar isso em um minuto e meio. Eu quero fazer isso com tempo”. Aí, caí para produtora. Aí fiz: “Não quero, não quero, não quero, não quero ser jornalista. Eu quero fazer isso. É quase isso que eu quero fazer. Mas eu quero isso com mais tempo”.
P/1 – Você pensava assim naquele momento?
R – Eu pensava assim naquele momento. E caí para produtora.
P/1 – Como assim, você caiu para produtora?
R – Eu caí e fui trabalhar em produtora.
P/1 – Você saiu de lá?
R – Saí de lá.
P/1 – Você estava lá, já conhecia um monte de gente...
R – Estava lá no CNT, tinha muita conexão da Faculdade, da PUC. Aí, uma amiga minha trabalhava numa produtora, aí eu saí e fiz: “Vou sair”. E saí meio na louca. Também tinha guardado um dinheirinho, muito pouco, mas me aguentava uns meses.
P/1 – Você não tinha ajuda nenhuma?
R – Minha mãe me ajudou nos primeiros meses. Ela me ajudou para caramba. Depois não precisava. Estava fechando a minha conta baixinha, mas fechava. De vez em quando me ajudava, mas eu, muito cedo, fechei minha conta. E essa amiga saiu de uma produtora e fez: “Tem uma vaga na produtora que eu saí e vou te indicar”. E aí eu fui trabalhar com o Marcelo Dantas, na Magnetoscópio, que trazia muito artista de fora, para expor no Brasil. Era uma emissora de um documentário, com exposição de Artes Plásticas, Arte e Tecnologia - Vídeoarte. Era um galpão em que você não via a luz do sol.
P/1 – Onde era isso?
R – Na Siqueira Campos, em Copacabana. É uma bela história, da Magneto. Era uma caixa-forte, com o que havia de mais novo em edição no mundo. Meu primeiro Macintosh era aquele quadradinho, preto e branco, com a telinha assim e ninguém tinha. Era uma ilha u-matic, era ilha beta que a gente editava. Ilhão, grandão. Salão inteiro. E aprendi a produzir. De atracamento de navio a parto de hipopótamo, o que tem que fazer? O que tem que fazer, a gente faz. E, nessa época, o Dantas era bem gordo e então ele não subia muita escada. Então, eu era o braço direito, esquerdo, entrava noites com ele editando. Nossa, era uma loucura. A gente trabalhava muito. Eu fico brincando: “Eu tive a vida menos carioca que você pode imaginar, no Rio de Janeiro! Eu não via a luz do sol!” Eu estudava e trabalhava. Eu ia para a Faculdade e trabalhava. E namorava, não é? Sempre gostei muito de namorar.
P/1 – Então me conta aí.
R – Sempre fui namoradeira.
P/1 – Você teve uma história importante no Rio ou na Bahia?
R – Não. Na Bahia tive uma história muito importante, que durou muitos anos. Acho que dura até hoje. A gente se ama até hoje.
P/1 – Mas ele foi o quê? Seu primeiro namorado?
R - Foi meu primeiro, não foi nem namorado, porque ele é sem vergonha. Diego. Diego morava numa casa em Salvador, incrível. Acabaram de vender. Era assim na beira da Baía de Todos os Santos, uma casa amarela. Cubano, filho de cubanos, e foi meu primeiro homem. Assim, o homem que eu amei loucamente, mas ele tinha uma outra namorada também. Eu fui muito namoradeira, mas nunca fui de ter um namorado. Até eu casar, já mais tarde. Minha avó dizia que eu era... Como é que chama?... Que não é casar... Amasiou. Amasiada. Então, quando eu fui morar junto pela primeira vez, já foi mais tarde. Mas, na juventude, eu sempre namorei muito, sempre gostei de namorar. Tinha namoradinho, assim, tudo por pouco tempo, mas tinha. Só que, no Rio, eu trabalhava tanto, que tinha uns namoradinhos, saía, ia fazer umas farrinhas no Rio, mas a minha graça sempre foi o trabalho, eu gostava muito.
P/1 – Você tinha uma coisa. Era aí que estava?
R – Tinha um drive ali. Tinha muito. Gostava muito. Gosto muito. Nossa, esses dias eu estava pensando: é tanta vida numa vida! Porque eu não cheguei nem... É muita vida numa vida, porque sei lá, 23 anos. Eu trabalhei na Magneto uns quatro ou cinco, seis, quase seis anos.
P/1 – Trabalhou muito.
R – Trabalhei muito. Trabalhei com o Dantas quase uns seis anos. A gente trouxe Bill Viola, Jane Roser
, Peter Greenaway. Teve várias exposições e documentários que a gente fez com estrangeiro ou sem estrangeiro, até que deu um momento em que ele obcecou que ia trazer o Peter Greenaway para o Brasil. E é um diretor de que eu gosto muitíssimo. Eu fiz: “Gente, eu não tenho Inglês para fazer um trabalho com o Peter Greenaway. Imagina! Eu preciso ter Inglês para isso”. Aí fiz as continhas, fiz minhas continhas ali e fiz: “Não, faz o seguinte. Eu quero fazer esse trabalho. Dantas, eu vou ali em Londres, vou passar três meses estudando Inglês e volto para fazer esse trabalho’’. Ele fez: “Tá bom”. E aí fui para Londres estudar. Fiquei três meses lá, voltei, fiz o Greenaway, ópera, um documentário sobre ele. Só que nessa minha parada em Londres, eu conheci meu primeiro marido. No primeiro dia que eu cheguei em Londres.
P/1 – Me conta como é que foi.
R – Ele estava passeando com os cachorros e eu cheguei em Londres e vou passear no parque. E uma das cachorras estava doente e eu olhei, um cachorro lindo, um shar-pei, e falei: “Nossa, está doente?” E a gente começou a conversar.
P/1 – E ele era brasileiro?
R – Ele era americano born in the Bronx. Morando em Londres já há dez anos. Mercado financeiro. Pesado. Goldman Sachs, alto cargo. Uma pessoa amável, adorável.
P/1 – Me conta exatamente.
R – Aí a gente se conheceu no parque, assim: “Sou brasileira, tá, tetete”. E aí eu fui dar a volta no parque e ele para o outro lado: “Tá, o cachorro”. Uma conversa básica. E aí, nesse mesmo dia, quando eu dei a volta no parque, ele também estava do outro lado do parque e a gente se reencontrou. Fiz: “Opa, espera aí que tem alguma coisa aqui, não é?” Aí ele me deu o telefone dele e fez: “Puxa, você falou que acabou de chegar, chegou ontem, você conhece alguém aqui?” Eu falei: “Não. Conheço as duas mulheres onde eu estou na casa” - que era um casal muito bacana – “mas não conheço mais ninguém”. Ele fez: “Pô, pega meu telefone. Vou te mostrar um pouco da cidade”. E aí a gente namorou esses três meses em que eu fiquei lá, eu voltei para trabalhar e uma amiga minha que morava em Paris, um ano depois, ia casar, e eu liguei para o David: “Eu estou indo para a Europa. Me encontra em Paris”. Menos de um ano depois. Ele fez: “Ótimo, vou tirar férias, eu te pego em Paris, a gente desce até o sul da França, volta e vamos passar um tempo, juntos, vamos viajar”. Aí, na volta, a gente já voltou para Londres. Foi uma viagem incrível de carro. Quando voltou e chegou em Londres, ele olhou para mim e fez: “Cara, fica”. Olhei para um lado, olhei para o outro: “Fico”. E fiquei. Fiz: “Fico, mas vamos fazer o seguinte: vou ficar um tempo para ver se eu arrumo um trabalho”. Aí eu me dei uns dois meses para arrumar um trabalho. Fiquei pensando: “Poxa, a gente já foi morar junto, então eu já tinha casa, ele tinha uma situação financeira ultra, extremamente, confortável, para não dizer confortabilíssima, uma riqueza londrina, mercado financeiro mesmo, muito dinheiro, uma casa enorme”. Eu fiz: “Eu não vivo sem trabalhar”.
P/1 – Porque para ele, você...
R – Para ele... Ele fez: “Você não precisa trabalhar”. Falei: “Não, preciso. Eu sempre preciso trabalhar. Não gosto de ninguém pagando as minhas contas, meu bem. Eu pago as minhas contas, então não gosto, não”. Eu fiz: “Poxa, mas essa é uma oportunidade, não é? Eu podia estudar, porque estudar também é muito caro em Londres”. Aí fui andando na rua e vi uma livraria que eu já conhecia da primeira ida e era uma livraria que era em cima, na Charing Cross. Em cima era só livro de fotografia. Embaixo era só livro de filme. Chamada Zwirner. Bati lá e fiz: “Vocês estão precisando de ajuda?”. Aí a mulher fez: “Sabe que estamos? Vai lá embaixo e conversa com o Mark, que a gente está procurando uma pessoa para dar uma força aqui em cima”. Cheguei lá, o Mark era brasileiro. Aí ele fez: “Gostei de você, mas você tem que conversar com a gerente”. Que era uma egípcia, Chloe, 65 anos, chiquérrima, com casaco de pele, um cabelo egípcio, uma senhora maquiadérrima, chiquérrima. E fui conversar com a Claire __________ [1:16:27]. E a Claire, conversamos, e ela fez: “Gostei de você, você é inteligente, mas eu vou lhe contratar porque você é bonita”. Eu fiz: “Você me contratando, Claire, para mim, realmente, não importa porquê”. E eu fiquei oito meses estudando fotografia e filme. Lendo, vendo referência e eu sou muito boa de imagem. E então referência é uma coisa que eu sou boa, sou boa de edição. É algo que eu tenho memória visual muito forte. Então, eu sabia exatamente que livro era referência do quê, para quem. As pessoas chegavam para me pedir orientação e eu sabia tudo que tinha ali. E as agências começavam a ligar, já sabiam quem eu era, diziam: “Jasmin, estou fazendo um trabalho sobre mulheres tailandesas. Preciso de referência”. Eu já separava todos os livros que tinha sobre a Tailândia, sobre a mulher. E já ia um pacote fechado. Então, era legal, era muito legal. E, enquanto isso, ia ficando com o David, que é uma pessoa divertida, gostosa, bacana.
P/1 – Você estava apaixonada?
R – Super, super, super. Ele era muito... A gente tinha uma relação muito legal.
P/1 – Você já tinha formado aqui?
R – Já tinha formado, estava só trabalhando. Então, eu já tinha terminado essa etapa aqui. Aí, quando eu estava na Zwirner ainda, me ligaram do Brasil dizendo que... Eu trabalhei muito, já tinha conquistado um lugar de trabalho no Rio e me ligaram dizendo: “Cara, é do Museu Britânico, do British Museum, indicaram seu nome porque a gente vai fazer uma exposição sobre arqueologia brasileira”. Aí eu fui lá e comecei o trabalho. Fiquei mais dois anos, dois anos e meio no British, que a gente, para fazer exposição aqui, leva seis meses, não
é? Os ingleses, no British Museum, precisam de memo para conseguir uma caneta ou explicar que você precisa de um scanner, é uma burocracia muito inglesa. Demora mais. E a gente fez um livro sobre a Amazônia, acadêmico, sobre a exposição. A gente fez primeiro o livro _______ [1:19:05] Amazon, que eu acho que é um dos poucos, ou talvez a melhor publicação até hoje, de arqueologia brasileira, em Inglês. É incrível o livro. Porque meus curadores - dois brasileiros e um inglês - eram obcecados e saiu um livro lindo, a gente fez uma exposição incrível e me deu o visto, não é? Então, eu nem precisei casar com o David. Quando ele me pediu em casamento, o casamento já tinha acabado, aí eu já queria voltar. Porque já era
no fim, mesmo. Aí ele me pediu em casamento. Eu fiz: “Gente”.
P/1 – Mas o que foi acontecendo com esse casamento?
R – Ah, eu acho que eu fui ficando triste, Karen. Londres é difícil. Londres é lindo, é incrível, mas são difíceis as coisas. Escurecer muito cedo, não é? Do sol e do seu assunto. Eu comecei a deprimir um pouco. Da falta de sol.
P/1 – Como era? Me explica do cotidiano. Vocês moravam, os dois?
R – Nós morávamos os dois, com dois cachorros.
P/1 – Numa casa?
R – Numa casa de quatro andares.
P/1 – Uma super vida, assim.
R – Super vida. Grandes restaurantes, grandes viagens. Viagens incríveis, restaurantes incríveis, amigos incríveis.
P/1 – E ele era um cara, assim...
R – Ele era divertido, amoroso, bom, mas também trabalhava muito. Mas com uma série de frustrações dele mesmo, porque ele gostava mesmo era de música, mas muito acostumado com dinheiro e muito refém daquela vida. E eu tinha 27 anos.
P/1 – E ele?
R – Ele era 14 anos mais velho do que eu. Exatamente 14 anos mais velho do que eu.
P/1 – Ele tinha 40?
R – Tinha 40. Eu olhava para ele e fazia: “Mas David, larga isso, cara, você não está feliz fazendo isso. Você tem dinheiro guardado para ir fazer outra coisa”. E ele não conseguia. Aí eu fui ficando triste e saí da exposição, acabou a exposição e fui fazer uns freelas para produtora.
P/1 – Que você já tinha visto?
R – Que eu já tinha visto e aí também tinha um círculo, tinha uns amigos da livraria que trabalhavam em produtora, que eu liguei fazendo: “Olha, saí, fui fazer uma exposição, tatata”. Fiz uns trampos lá, que apareceram na produtora de um brasileiro também, que eu ajudei a organizar a produtora inglesa, mas ele era brasileiro que morava lá. Fiquei fazendo uns trampos, mas comecei a ficar triste e olhava e fazia: “Do que eu quero falar?” E era uma época, no Brasil, que eu olhava o Brasil e estava muito rico. A gente está falando da eleição, quando o Lula foi eleito.
P/1 – 2003.
R – 2002. Era esse movimento do Brasil. Naquele momento, o Brasil não interessava. Eu olhava da Inglaterra e fazia: “Eu quero falar de onde eu vim. Eu quero fazer coisas que tratem um pouco sobre de onde eu vim. Esse país é muito incrível”. E para eu construir alguma coisa em Londres, vou ser estrangeira sempre aqui. Então, vai me demorar 30 anos para construir uma coisa. Até eu convencer esses ingleses de que meu assunto interessa a eles. Depois, passou a interessar. Até saí bem na hora em que começou a interessar. Eu fiz: “Puxa, vai demorar muito”. E fiquei triste. E aí, um dia, fui numa psicóloga do Goldman Sachs que, basicamente, olhou para mim e fez: “Mas do que, mesmo, você está reclamando? Que mora numa casa de quatro andares, com dois carros na garagem, viagens e jantares? Você está reclamando?” O subtexto era esse. “Você está me reclamando do quê?”
P/1 – Qual é seu problem?
R – Qual é seu problem, Maria? What is the problem, Maria?
P/1 – Ela falou isso para você?
R – “Toma aqui um remedinho, que você vai se sentir melhor. Você vai ver que não está com a vida muito ruim”. Eu olhava para o remédio: “O quê? David, eu vou passar um tempo no Brasil, eu estou louca, eu não vou num lugar onde não se está feliz - nem você, nem eu. Se você, pelo menos, estivesse feliz... Larga tudo, vamos fazer outra coisa”. Ele também não queria.
P/1 – Você chegou a falar isso?
R – Cheguei. Aí ele me pediu em casamento. Mas ele não queria mudar a dinâmica do que estava estabelecido. E aí eu fiz: “Não vou tomar remédio, não. Eu entrei nessa depressão e vou sair dela. Eu estou deprimida porque eu estou aqui, vivendo uma vida que eu acho que não é minha. Eu quero falar de outras coisas, eu quero produzir outras coisas, quero voltar para casa, quero sentir cheiro de cajueiro”.
P/1 – Você pensava assim?
R – Pensava. “Quero sentir o calor, quero contar histórias que são do meu lugar. Aqui não é meu lugar. Aqui nunca vai ser meu lugar. Por mais que eu tente ser essa pessoa, essa pessoa não sou eu. Então eu vou atrás da pessoa que eu sou, do lugar de onde eu vim”. E voltei. Aí, eu voltei para o Brasil, ele veio logo depois. A gente resolveu que ia separar mesmo, voltei para pegar as minhas coisas um ano depois, mas já tinha me apaixonado de novo, por um fotógrafo, aqui no Brasil, numa dessas vindas me apaixonei e tinha também uma chave de saída, não é?
P/1 – Porque você ficou vindo e voltando para lá?
R – Fiquei indo e voltando para lá. Aí, a gente resolveu se separar, mesmo. Eu saí da casa, fui morar na casa de uns amigos e aí acabou a história e eu voltei para o Brasil.
P/1 – Já namorando?
R – Já namorando outra pessoa. Tentei ficar no Rio. Essa pessoa morava... O Cristian, o Kiko, é fotógrafo e morava em Santa Teresa. Eu estava bem apaixonada, ele bem apaixonado e a gente ficou um ano e meio juntos, foi lindo.
P/1 – Você foi morar lá com ele?
R – Fui, não. Voltei para morar. Aí, no paralelo, minha família toda foi morar no Rio.
P/1 – Sua mãe...
R – Minha mãe, meu irmão e a Minon. A Minon, quando eu voltei de Londres, já morava em São Paulo. Aeon e minha mãe estavam no Rio. Então, eu fui morar com a minha mãe. Até eu decidir o que eu ia fazer da vida.
P/1 – Por que motivo sua mãe foi para o Rio? Você não sabe?
R – Não sei. Aeon foi primeiro. Acho que a Bahia foi, aos poucos, cada um com sua história, foi expulsando, aos poucos, cada um. Minha mãe foi trabalhar com técnicas taoístas e acho que a Bahia ficou, sei lá... A Bahia ficou. Minon, como veio para São Paulo, nesse momento foi o momento em que nasceu a produtora Casa Redonda. Porque eu fui para o Rio, tentei ficar no Rio, fiz uns jobs, mas aí aquilo começou a me irritar muito, o Rio de Janeiro.
P/1 – O que aconteceu?
R – Porque tudo se resolvia em cima do chopp e tinha uma coisa do crachá. Ser carioca, não ser carioca. Do: “Puxa, vamos fazer isso?” “Vamos”. “Vamos levantar esse projeto?” Tudo meio que a energia que você põe nas coisas não volta muito, não é? Pelo menos não voltou naquele momento. E eu sempre tive um ritmo muito paulistano. A Minon fez: “Vem cá, que tem um trampo aqui para você fazer”. E a gente foi fazer um trampo, que era um livro de fotografia lindo, com o Gilberto Dimenstein, e daí nasceu a Casa Redonda. E o que a gente fez de lá para cá foi tanta coisa! Foram 15 anos de produtora.
P/1 – Então vamos parar um pouquinho.
R – Vamos. Parar um pouco, porque isso aí é um capítulo à parte.
P1 – E o namorado, você abandonou também, no Rio de Janeiro?
R – Não. Ele me abandonou. Ele arrumou outra e engravidou em dois meses. Coisa muito rápida.
P/1 – Lá no Rio?
R – Lá no Rio.
P/1 – O que isso te...
R – Ah, sofri. Eu sofri muito por amor. Eu gosto de sofrer por amor. Sei lá. Eu li muito romantismo, muito Vinícius de Moraes, sabe? Muito Tom Jobim. Muita poesia, muito romantismo, muita leitura do romantismo mesmo e eu sou uma pessoa muito alegre, eu gosto muito da vida, mesmo. Contando a vida, quantas vidas eu tive aí, tem uma ‘pá’ de vida, não é? Já é um bocado de vida. E, se você vive, você tem que sofrer também, porque a vida também... Parte da vida é alegria e sofrimento, é alegria e tristeza e é esse fluxo das coisas. Quanto mais com amor, que é a coisa mais linda, mais sublime. É o sentimento mais sublime que uma pessoa pode ter. E que é muito mais do que esse romantismo bobo e casamento e namoro e o outro. E aí, quando eu sofro, eu sofro, eu sofro. E do Gal especialmente, porque a gente teve uma relação que durou dois anos, um ano e meio, dois, ele foi embora muito rápido, mesmo, assim: a gente acabou, ele já começou a namorar a Lola, já estava grávido e eu tinha feito o movimento todo na minha vida, de vir. Mas ao mesmo tempo, era um movimento na minha vida que eu fiz, de vir, que independia dele. Aí eu sofri por amor, porque eu era apaixonada por ele ainda, mas, ao mesmo tempo, ele me deu a maior herança que alguém pode te dar. Ele me deu os melhores amigos que você pode ter. E todos vieram dele, todos os meus amigos dessa volta de Londres acabaram vindo dele e viraram meus e a gente virou amigo, porque o casamento é muito difícil. Muito difícil ficar casado com uma pessoa. E as pessoas que a gente ama na vida, se a gente não pode ser pelo menos amigo... Você amou aquela pessoa, você tem que, pelo menos, ser amigo dela, entendeu? E a gente conseguiu. Eu consegui essa herança. Tinha um círculo de amigos muito bonito, daqui de São Paulo e do Rio, e dele mesmo, da relação que a gente conseguiu construir. E, quando eu estava sofrendo muito por amor nessa fase, naquele momento... Eu nunca vou esquecer uma coisa que a Renata ___________ [1:32:10] olhava para mim, que era amiga dele, vinda dele, e fazia: “Tiazinha...”. Não, ela me chamava de Minhoca, porque ele me chamava de Minhoca: “O amor é seu. Se você está sofrendo, é uma merda, mas esse amor é seu, você pode dá-lo para quem você quiser. O que importa? Isso não importa”. E eu sempre fiquei com isso na cabeça: “O amor é seu”. E agora que eu estou pensando muito nesse sentimento do amor sublime, do amor maior, o amor é de cada um, não é? A gente que escolhe onde o coloca, onde o trabalha, para quem você dá, que gesto é esse, que você entrega esse amor. E tudo ficou mais simples. Demorou muito para chegar nesse momento de agora, desse mais simples. (risos). Demorou o quê? Quinze anos. Que foi esse meu último percurso de 15 anos de, enfim, ser dona de produtora, virar produtora, criar umas raízes que eu nunca tinha criado, porque aí São Paulo me trouxe e eu criei uma raiz aqui. Eu plantei uma árvore aqui. Jasmin saiu de Salvador, foi para o Rio, para Londres, tentou voltar para o Rio, não conseguiu ficar no Rio, vem para São Paulo e aí São Paulo me acolheu, porque a energia colocada nas coisas todas voltava, de algum jeito. Eu tenho essa sensação sobre esta cidade: que a energia que você põe nas coisas volta para você, de algum jeito. Não no momento. No momento nada está funcionando, mas não sei quem estará vendo isso, quando estará vendo isso. A gente está num momento em que não está nada funcionando, mas funcionava, (risos) sim. Pelo menos até o momento. Agora a gente vai ver como é que vai funcionar em 2020. Mas funcionava. Então, São Paulo sempre foi uma cidade na qual a energia que você põe na coisa, volta para você. Seja grana, reconhecimento, amor ou amizade. De algum jeito, aquela energia volta. E eu coloquei muita energia.
P/1 – Então me conta. Chegou aqui e pegou com Minon...
R – Cheguei aqui e Minon fez: “Puxa!” Minon tinha ido para o Rio, me ligou quando eu estava em Londres ainda, fez eu estar indo para o Rio. Minon migrou, minha irmã, de área, e chegou mais perto da minha área de trabalho. E quando eu voltei de Londres, ela já tinha andado um pouquinho na área que eu fiz a minha vida inteira, que é a cultura. Uma mistura, porque ela vinha com o background da Educação, que foi o que ela fez quando chegou em São Paulo. Então, uma mistura de Educação, Cultura e Arte. E aí, a gente montou essa produtora e fez tantos projetos lindos de Educação, de Cultura, de Arte, mas esse legado está escrito, está aí, tem livro para caramba, tem filme para caramba, tem exposição. Teve de tudo. E foram 15 anos lindos, mas 15 anos em que eu foquei muito. Acho que foi a primeira vez na minha vida que eu botei o pé e criei raiz. Eu tinha uma pessoa física e jurídica, tem a pessoa física, mas tinha a pessoa jurídica. Também tive que trazer, muito, uma energia yang, masculina, porque eu a tenho também, como todo mundo, mas eu também sou uma pessoa muito delicada. Eu sou uma pessoa, muito, das delicadezas. Eu gosto muito da matéria esvoaçante, do que a gente não consegue pegar, mas que sente tudo e de algum jeito foi como eu encontrei de fazer trabalhos, que eu conseguia ter a matéria esvoaçante e o mundo prático, pragmático, de ter uma empresa, pagar funcionário, pagar as contas e ter essa parceria com Minon, que foi uma coisa muito linda na minha vida, fo
i um presente que eu tive, que durou até muito pouco tempo e que vai durar sempre, só se transformou em uma outra coisa. Mas, chegando em São Paulo, esse meu ‘workaholiquismo’, essa obsessão pelo trabalho, pelo fazer, pelo produzir, pelo realizar, ficou muito forte, cresceu muito. Eu lembro de várias crises na sociedade, com sua irmã, que lhe conhece, que é tudo meio confuso, tem família no meio, muita doença, da qual a gente vai falar daqui a pouco, muita questão familiar no meio e a sociedade e os projetos. Ela me perguntava, nas horas de crise: “O que você quer fazer? O que você deseja?” Ela queria que eu tivesse algum objetivo final. Ela, de algum jeito, sempre esteve muito à frente, resolve a vida de todo mundo, sabe tudo que você precisa fazer para resolver a sua vida. É uma coisa incrível! (risos) E ela é muito perspicaz. Então ela, às vezes, sabe muitas coisas. E tem sempre uma coisa perspicaz para te dizer, mas uma coisa muito intensa, assim. E eu sou de outra matéria. E ela me perguntava isso e eu tentava explicar para ela - coisa que ela não entendia de jeito nenhum. Acho que hoje ela entende, talvez, um pouco mais. Eu fazia: “Eu gosto de fazer. O que tem para fazer?” Claro que a gente queria projeto, claro que eu tive... Na PUC, eu fiz a minha tese de graduação sobre o Walter Smetak, que minha mãe tinha estudado com ele e eu queria muito restaurar a obra do Walter Smetak, que estava caindo aos pedaços, na Universidade Federal da Bahia. Eu fiz uma tese na Faculdade, que eu fui ter uma produtora e fiz uma grande exposição sobre Walter Smetak. Não fiz documentário, mas gravei todo mundo que conviveu com ele, para a exposição. Então, não é que eu não sabia o que eu queria falar ou fazer, mas eu gosto de fazer. Eu gosto do caminho.
P/1 – Mas me explica, por que vocês tinham conflito de quem definia para onde ir na produtora? Como se dava isso?
R – Exatamente. Não chegava a ser um conflito. Não era um conflito. Mas tem, não é? Numa sociedade você tem um rumo. E a produtora, uma empresa, você tem um simbólico para onde você está indo, o que você está construindo. Que legado você está deixando. Para onde aponta a seta. O que você quer deixar, o que você quer falar. Então, em um momento ou outro tinha, entrava essa crise. Porque Minon é quem é e ela levanta as crises, e tem as opiniões, é tudo muito intenso. Escorpiana com leão. E eu sou de sentar na planilha, fazer e resolver tudo na miúda, na base. Resolvo, Nossa, muita coisa. Sou uma pessoa que tenho esse dom: eu gosto do problema, do desafio. Não esqueço, _________ [1:40:43] falava, acho que foi _______ [1:40:44] quem falou essa frase. Tem uma frase do Paul Valéry, em que ele diz assim: “Só o difícil me atrai”. Eu gosto do difícil, eu gosto quando tem uma coisa ali que precisa ser esmiuçada e resolvida. Eu tenho um prazer imenso em resolver problema. E eu acho que a produção deu muito certo na minha vida inteira porque a produção, desculpa, você vai resolver problema, vai ser seu cotidiano. Você vai resolver problema todo dia. Então, ele não pode ser um problema, porque você vai ter que resolver um problema uma vez por dia. Vai ter sempre um problema. Seu trabalho é resolver problema. E foi muito gostoso ter essa empresa e resolver tanto problema e fazer tanta coisa bonita, mas eu tive que trazer uma energia de dentro de mim, que eu desconectei muito também do que é matéria esvoaçante. Do que é yin. Do que são as minhas miudezas. Eu gosto muito das minhas miudezas. Do belo. Eu sempre gostei muito do que é belo, da Arte, do objeto, da flor e das pequenas poesias da vida. E ser empresária não te deixa muita poesia na vida, não, porque o negócio é um pouco... Tem que pagar os funcionários. Eu abracei a causa, muito, de verde e amarelo, mas a sensação que eu tenho hoje, olhando para trás, é que eu mesma dei uma descompensada nos meus equilíbrios naturais.
P/1 – Durante esse trajeto?
R – Durante esse trajeto. Porque dentro da história amorosa também, casei com uma pessoa que era muito prática e pragmática, paulistana, dura. Meus amigos, que são amigos dele, inclusive, diziam: “Ele é uma pessoa que sempre parece ter uma nuvenzinha preta em cima da cabeça”. E eu estava muito ocupada trabalhando, então...
P/1 – Então, só para localizar de novo, vocês começaram aqui? Me conta esse seu lado. Vamos paralisar sua vida amorosa. Então, você chegou aqui sofrendo de amor?
R – Eu cheguei em São Paulo, eu pisei em São Paulo sofrendo por amor. Para fazer meu filme Aristocrata Clube, que era um documentário sobre um clube de negros daqui de São Paulo, 1964. Hoje você vê, o filme continua atual, é bonito de ver, ele continua vivo. Mas eu cheguei sofrendo por amor. Aí eu tive alguns namorados importantes, tive algumas histórias, trabalhava muito por conta de ser empresária, você tem que começar o projeto do zero à entrega final, então trabalha-se muito, com uma relação muito intensa com a minha família, com a Minon diretamente, minha irmã, mas com meu irmão, que teve um câncer.
P/1 – Nesse período?
R – Nesse mesmo período. Teve um linfoma, então eu acompanhei muito de perto, porque tanto minha mãe, quanto Minon têm mais dificuldade com a coisa da medicina. Se você opta por ir para a medicina tradicional, que era a opção dele, era muito difícil, então eu fiquei muito nessa dança, nos anos que ele esteve em tratamento. A gente vinha de 2007 ter perdido meu pai, com câncer. Meu pai morreu de câncer, que ele sabia porque ele trabalhava com isso, na Física Nuclear de Tratamento Radioterapêutico. Ele sabia. Ele só deu um jeito de achar bem tarde, quando já não tinha mais jeito. Embora, sei lá, com 62 anos que ele tinha. E foi uma sequência, assim, de doenças. Em 2007 meu pai morreu e meu irmão ficou doente.
P/1 – 2007 também?
R – 2007 também, no mesmo ano. E a gente já estava toda com a produtora, desde 2003. Foi quando eu cheguei em São Paulo. Então, foram anos onde teve essa relação familiar que passava pela empresa, pelos projetos, mas pelas doenças familiares, porque o câncer traz muitas doenças familiares. E em 2007 também, eu conheci o André, que eu já conhecia, fui apresentada a ele várias vezes, e ele chama André Pinho. E eu ficava brincando: “Primo”. Ele muito sério. Eu fazia: “Gente, esse homem me detesta”. Mas ele não é de sorrir muito. Até que um dia, em 2007 também, a gente se encontrou, apresentaram a gente de novo e ele foi simpático. E a gente conversou. Fiz: “Nossa, que pessoa interessante!”
P/1 – E por que você o achou interessante?
R – Porque a gente começou a falar do Walter Smetak, ele sabia quem era Walter Smetak e contou que tinha estudado música muito tempo e a gente teve uma conversa muito fluída, muito gostosa mesmo, naquela noite. E aí eu fui para o amigo em comum e a gente fez: “Caio? Quem é o André Pinho?” Nossa, eu ficava brincando que eu era prima dele, que a gente tem o mesmo sobrenome. Ele fez: “Você não sabe, porque eu te conheço, André, casado, tenho três filhos”. Eu fiz: “Ahnnnnnnnnn, desculpa. Nossa, eu realmente não sabia. Então tá, morreu o assunto”. E morreu o assunto. Oito meses depois eu estava na Bahia, montando a exposição do Walter Smetak, no MAM, e ele me ligou, fez: “Olha, naquele dia, a gente conversou e eu acho que ficou uma coisa ali e eu preciso ver o que é. Eu senti uma coisa. Eu não sei. Eu pensei muito em você esses tempos todos e acho que precisava te ver”. “Pô, velho, desculpa, você é casado, você tem três filhos, não”. Ele fez: “Não. Você não está entendendo, eu acabei de me separar”. “Você acabou de separ
ar há quanto tempo?” “Eu separei tem duas semanas”. Eu fiz: “Duas semanas você ainda está em resquício pós-separatório, isso ainda é aquele momento em que a gente não sabe bem o que está fazendo”. “Faz o seguinte: eu volto daqui a um mês. Daqui a um mês a gente vai jantar e vê”. “Eu também senti, eu sei do que você está falando, tem ressonância do lado de cá, mas na boa, você está tendo uma crise no seu casamento, está dando tudo certo”. “Daqui a um mês eu volto, daqui a um mês a gente vê”. E aí tiveram uma semana de negociação e fez: “Não, eu vou pegar um avião e vou para aí”. E ele pegou o avião e foi para Salvador. E aí tinha alguma coisa ali, mesmo. Ele estava certo. Aliás, tinha muita coisa. Bastante coisa. Inclusive geraram meus dois bens mais preciosos, que é o Martim e o Samuel. O Samuel que tem nove e o Martim, que tem dois. E a gente começou a namorar, a gente foi morar juntos. Ele trabalha muito, eu trabalho muito, deu super certo.
P/1 – Ele trabalha em...
R - ... Publicidade.
P/1 – Antes de continuar isso... O que aconteceu na Bahia? Como é que foi esse momento?
R – Acho que na Bahia ele chegou, eu estava solteira, eu tinha namorado o Cazalini, uns dois anos, tinha sofrido também, muito.
P/1 – Já tinha trocado?
R – Já tinha trocado o namorado, já tinha trocado de sofrimento, já tinha arrumado outro sofrimento para sofrer. O Caza, Nossa, maravilhoso! Ali, sim, foi poesia hardcore na veia. Nossa! Porque a gente gostava muito de poema declamado, então a gente ouvia muito poesia declamada. E eu declamo bem, eu gosto de declamar poesia. Eu gosto de falar poesia, eu gosto da poesia falada. Ela fica viva, não é? Como cada um entende. Aquela palavra ali vira um objeto, uma sensação que bate no outro e, nesse namorado por quem eu sofri, a gente ia muito na poesia. Ele foi estudar fado, fazer uma pós-graduação sobre o fado com samba e muito... Nossa, muito tudo de poesia: de Eliot a Walt Whitman, que eu sempre amei muito, a Kits, a Manuel Bandeira, a Drummond, tudo. E a gente lia, e ele é um boêmio, sempre foi boêmio e é boêmio até hoje. Brincando, vagabundo, gosta dos ares de vagabundagem pela vida e pode... E, ao mesmo tempo, atormentado. Sei lá, eu acho que eu fui a primeira namorada dele, com 33 anos de idade. Ele tinha as namoradas, mas namorar assim, de apresentar a família, de conhecer, de Natal, eu acho que eu devo ter sido a primeira namorada dele, aos 33 anos de idade. Uma pessoa incrível, maravilhosa, que a gente não conseguiu ficar junto porque era uma pessoa emocionalmente a ideia de... E eu, puxa, com empresa, trabalhando para caramba, ele não trabalhava, e eu na minha casa, no meu apartamento, num belo dia ele ia se mudar, eu fiz: “Sim?” “Ah, não, eu vou voltar a morar com a minha mãe”. Eu fiz: “Opa. Aí, sei lá, um caso, não dá, cara. Eu quero outra coisa, quero ter filho, casar. Se é para encarar casamento, vamos casar, sabe?” E não é uma coisa da alma dele, mesmo. Então, não podia dar certo. Mas tinha uma coisa tão da minha matéria esvoaçante, tinha um preenchimento ali dessa matéria esvoaçante, que eu amo, do universo poético que eu amo, que eu sofri muito. Então, quando o André chegou, eu já estava curada dessa dor e ele entrou com muita solidez. Ele tinha muita solidez, sempre teve.
P/1 – Então, o contrário do...
R - ... do Cazalini, que não tinha solidez nenhuma. E essas três crianças que ficaram comigo nove anos e meio.
P/1 – Porque ele entrou, então?
R – Ele entrou com os três filhos. E eu comprei. E a gente fez uma família muito bacana, mesmo.
P/1 – Vocês se juntaram, casaram?
R – A gente se juntou, alguns anos depois eu engravidei do Samuel, que tem hoje nove anos. E já tinha a Constance, o Teodoro e o Stefano. Que ficavam com a gente todo final de semana praticamente, porque a gente estava sempre junto, arrumava programa. A mãe é alemã e então é outra relação afetiva, então a Karen também não estava muito preocupada, tinha os programas dela, e com o pai tinha sempre uns programas que eu arrumava. Então, eles vinham sempre. De repente, eu tinha uma família muito grande. De repente. E o Samuel, que veio muito brilhante. Ele é uma criança brilhante, sempre foi. E a gente teve um casamento... Ninguém entendeu muito, porque ele é muito diferente. Tudo que eu amo, as pessoas... Eu acho que o André não gosta muito das pessoas. Eu ficava brincando: “Você não é amigo dos meus amigos”. Eu falava para ele: “Você não gosta de nenhum amigo meu”. Ele falava, fazia assim: “Eu acho que não gosto nem dos meus amigos”. E é verdade. É uma pessoa para muitos poucos e com muita dificuldade, de armadura, que ele foi se colocando na vida, para conseguir sobreviver, ou viver. Cada um, enfim, sabe de si, mas tinha no casamento, naquele núcleo familiar, uma coisa que era nossa e que era eu atravessar essa armadura e que sustentou nove anos de relação. Até que... Não é?
P/1 – Mas antes disso, me conta do nascimento do Samuel.
R – Eu não queria saber se era homem ou mulher. Passei a gravidez inteira...
P/1 – Você engravidou porque estava a fim de engravidar?
R – Ele falava assim: “Eu te garanto um filho”. Aí, a certa altura, a gente estava junto há uns dois anos... Porque ele já tinha três. A gente, no início da relação, conversou sobre isso. Eu fiz: “Eu vou querer ter filho”. Ele fez: “Tá, um eu te garanto. Eu tenho. A gente pode ter um filho”. E aí foi indo a relação, aí, num certo momento, eu fiz: “É o seguinte: eu estou cheia de caca, de hormônio, eu vou parar de tomar pílula, ok?” Ele fez: “Ok”. E aí, uns meses depois, eu engravidei do Samuel. E foi divertida a gravidez. Gostei muito de ficar grávida. Era muito feliz grávida, adorava aquela coisa farta, cheia. Seios fartos, filhos fortes. E como eu já tinha três - uma menina e dois meninos - e tinha expectativa também das crianças, de ter um outro irmão, de outro casamento, eu fiz: “Não quero saber se é menino ou menina, não. Topa, Dé?” Ele fez: “Vamos nessa”. E eu obcequei que era parto natural, sem remédio, e fiz. Fiquei lá me debruçando treze horas com a doula, até que tinham que cortar, porque eu estava tendo pré-eclâmpsia. Quando eu botei a mão assim, quando nasceu, aí minha obstetra falou uma coisa muito bonita. Eu estava lá sofrendo muito e ela sabia o quanto eu queria um parto natural. E ela disse assim: “Jasmin, eu sei o quanto você quer o parto natural. A partir de agora está ruim”. Eu fiz: “Então mete a faca”. E ele nasceu lindo e foi uma pequena infância, demorou para caramba para falar, deu um grande trabalho para falar e os meninos vieram e abraçaram. Tinha uma coisa muito gostosa ali, daquela quantidade de criança, aquela demanda, porque aí tinha a demanda do trabalho, chegava em casa e tinha uma grande demanda de criança e de bebê, do Samuel. Foram gostosos esses primeiros anos de vida dele, muito. E a gente se divertiu, todo mundo, muito. André provavelmente menos, porque ele é uma pessoa que se diverte menos com a vida. Eu me diverti bastante.
P/1 – E tinha uma família? Você sentiu isso?
R – Eu tinha uma família. Imagina! Era minha família. Eu abracei a família, total. E o Samuel foi crescendo. Os meninos, como são filhos de mãe alemã, primeiro a Constance foi, há pouco o Teodoro foi e vai o Stéfano, mas quando o Samuel nasceu, em 2010, em 2015, eu, de repente, tive um piripaque. Eu tive uma infecção no útero, que apareceu, que eu usava DIU desde que o Samuel nasceu. Não apareceu por causa do DIU, mas eu tive infecção no útero, que eu cheguei no pronto-socorro, ele fez: “Tem uma infecção aqui”. Eu fiz: “Não, tudo bem”. Era um domingo, não vou esquecer, na segunda-feira eu tenho consulta com o ginecologista, ele fez: “Não, já vai lá, que deve ser do DIU”. Aí fui, antibiótico, tudo certo, infecção, tiro o DIU, com antibiótico, mas chegou cinco dias depois, com antibiótico, minha febre subiu loucamente. E aí começou meu percurso - com esse corpinho hoje muito magro – pela vida de paciente. Porque veio uma infecção no útero, que é uma coisa muito feminina, não é? Tem algo do feminino nisso e eu entrei numa cirurgia de emergência, porque já tinham duas bolas nas minhas trompas. Eu entrei numa cirurgia em que eu tive que ficar com a barriga aberta muitas horas e aí o corpo enlouqueceu. E aí começou a minha história extraordinária. Deu tudo certo. Eu me recuperei da cirurgia lindamente, rapidamente, estava trabalhando 15 dias depois. Tudo certo, toca a vida. Mas eu comecei a pesquisar, não é? Deu um chacoalho. E aí eu fui pesquisar, já estava na exposição da Marina Abramovic, muito com a coisa da espiritualidade e eu comecei a fuçar uns buracos dentro da alma mesmo e, seis meses depois da cirurgia que eu fiquei com a barriga aberta, para chegar o gastro, porque estava ligada no intestino. Se eles não tivessem me aberto naquele dia, se durasse dois dias, eu morreria.
P/1 – De septicemia?
R – De septicemia. Então eu cheguei muito perto da morte, aí mudou tudo. E ainda era externo. Eu fiz a cirurgia, era interno. O corpo produziu aquela infecção, abre, tira a infecção, reajo muito bem, tudo certo, vamos em frente. Eu já estava em crise nesse casamento, aí o André foi muito legal, eu não esqueço, ele foi muito parceiro e eu não esqueço de uma amiga minha que fez assim: “Puxa, ele ganhou uns dez anos de casamento aí, não é?” Eu fiz: “Puxa, ele está ganhando alguns anos de casamento”. Porque já estava encaminhando para o fim. E deu seis meses dessa cirurgia, eu comecei a sentir uma azia. E já era o fim da empresa também, da minha parceria com a Minon. E aí eu comecei a sentir uma azia e essa azia, fiz: “Não, gastrite emocional”. Aí o médico fez: “Não, de repente é uma úlcera”. Aí eu fiz uma endoscopia e não era uma úlcera. E aí era um câncer. Que achamos muito pequeno, no meu estômago, mas eu lembro do dia em que eu tive o diagnóstico, que eu olhei no espelho (choro) e fiz assim: “Cara, agora tudo mudou”. Eu olhei no espelho e fiz: “Puxa!” Aí eu abri o olho e fiz: “Agora é tudo diferente. Agora é outra coisa”. Porque eu já vinha pesquisando e sabia... Tinha duas possibilidades: uma delas é um câncer que é muito desconhecido. Chama leiomiosarcoma. É um câncer que dá na parte mole. Normalmente, dá no útero. O pouco que dá, dá no útero. Tinha aparecido no meu estômago, que é um lugar que é muito raro de dar. E aí eu fui estudar, entender o que eu tinha, entender como eu cuidava.
P/1 – Esse era o câncer e você não sabia?
R – Esse era o câncer. Nas duas possibilidades, a patologia deu que era a chance de ser isso, muito grande. Aí a gente fez: “Vamos fazer cirurgia, já que tem uma chance grande de ser isso” O que é muito ruim, porque a Medicina ainda não conhece essa mutação específica, não sabe, e ela é muito resistente a qualquer estímulo externo, então ela não é porque você trabalhou muito, fumou muito, bebeu muito ou comeu muito. Ele é raro porque ele é constitucional. Ele estava na minha constituição, aquela da barriga da minha mãe, que já foi toda torta. Então, é uma coisa que é da minha história de vida. Eu já vinha. Estava lá no útero, estava lá me debatendo com sei lá o quê e eu também não sei o que o trouxe, não sei se a barriga, e não vou saber nunca. Porque nunca ninguém sabe, e a pior coisa que tem sobre o câncer é alguém olhar para você e dizer: “Mas você tem câncer porque você tem algum problema emocional”. Tudo é porque você tem um problema emocional, meu amor, não é só o câncer, é a vida. É tudo. Agora, porque esse... Está tudo interligado, tudo tem propósito. Tudo nessa vida tem propósito. E o médico me examinou e olhou os exames e fez: “Está pequeno. É raríssimo encontrar tão pequeno assim, porque não dá sintoma. Você teve sintoma. É raro. A gente teve uma grande sorte. Vamos tirar”. Fiz: “Vamos tirar”. Tiramos com margem, tudo certo. Isso foi em agosto de 2016. Um ano depois da primeira operação, da infecção. Em outubro de 2016... Agosto de 2016 tiramos e fomos nessa, não é? Eu me recupero muito rápido da cirurgia. E ele estava já...
André fez: “Vamos viajar, dar um tempo para a família, não é? Vamos viajar a família: Samuel, os meninos. Vamos todo mundo para Berlim, ver Constance, que está morando lá”. E fomos para Berlim e Londres. Em Londres, eu fui mostrar o filme da Marina Abramovic, que estava no Festival, na noite de premiação, por uma obra de graça e do destino, porque os médicos olham para mim e dizem: “Suas trompas são tortas”. Eu engravidei do Martim. Eu tenho um filho que é mais novo do que o meu câncer. E ele resolveu vir. Eu olhava para os médicos e fazia: “Tudo bem?” Ele fez: “Os médicos não sabem como você está grávida, porque a gente lhe operou, não é? Então eu sei suas trompas. Mas você está grávida, então seu corpo está vivo. Bem, está tudo certo, vai nessa. Um corpo, para engravidar, está bem”. Eu fiz: “Puxa, então, milagre, vamos nessa. Sei lá o que esse menino vai fazer no mundo, mas ele deve ter vindo com alguma razão”.
P/1 – E você sentiu isso?
R – Senti isso claramente. Que era para ele vir. E foi tão grande, que eu fiquei muito assoberbada de eu estar grávida, depois de ter passado por tudo. Mal sabia o que vinha pela frente. Eu engravidei do Martim em outubro, quando deu fevereiro de 2017, eu, com quatro, cinco meses, André sentou na minha frente, na casa onde a gente morava, fez: “Olha, eu vou ter a conversa mais difícil da minha vida agora, vou te falar a coisa mais difícil da minha vida”. Eu fiz: “Opa”. Ele fez: “Eu reencontrei a Sofia”. Eu respirei fundo, porque eu sabia o tamanho do escaninho que essa história ocupava naquela alma que estava ali na minha frente. Sabe um escaninho guardado lá no fundo da alma? Eu fiz: “E você vai embora? E você precisa viver isso, então?” “Eu preciso viver isso”. Eu estava pós-câncer, grávida de quatro meses, cinco, tipo em crise na empresa. Aí começou o terremoto sobre ruína. (risos) Que é assim: você acha que vem um terremoto, aí bateu o terremoto, puxa, destruiu tudo. Papaparalam. Cara, aquela pessoa sólida daquele jeito, aquele exemplo de ética, de solidez, de segurança, está me largando aqui grávida, depois de um câncer. Como? Não, não casam as duas pessoas, não é? Com quem eu estive casada durante nove anos? E, ao mesmo tempo, cara, a vida é o que nos acontece. E, ao mesmo tempo, tinha uma parte de mim que dizia: “Vá viver. Se você acha que é isso que você tem que viver, o que eu posso lhe dizer, velho? Vá viver a história de amor de quem te deu um pé na bunda aos, sei lá, 26 anos de idade, que agora, puxa, se apaixonaram de novo, se reencontraram no mundo, na vida. Vai”.
P/1 – Mas dentro de você, o que você sentiu?
R – Muita dor. Nossa, uma dor!
P/1 – E raiva?
R – Depois. A raiva demorou um pouco a chegar. A raiva demorou mais a chegar. Demorou um pouco. A raiva veio mais depois, porque naquele momento, como eu estava num processo de já começar muito a pensar sobre a vida... A olhar a morte e pensar sobre a vida.
P/1 – Já vinha num processo?
R – Depois da quase morte eu já vinha num processo.
P/1 – Quer dizer: o que lhe transformou, voltando. Houve uma grande transformação naquele momento em que abriram sua barriga, certo?
R – Certo. Naquele momento em que eu fiquei com a barriga aberta, houve uma grande transformação. Porque eu sabia que eu quase ia morrer. A morte chegou muito perto. Quando chegou o diagnóstico do câncer e depois de tirar o câncer e saber que era o câncer, que eu tinha o que eu tinha, eu sabia o tamanho do boletim de ocorrência que estava na minha mão. Do desconhecido desse câncer que eu tenho. Do tamanho desse desconhecido. Quando veio o Martim, me veio um sopro de esperança e tem um bocado de caso desse mesmo câncer, o pouco que se sabe, porque eu fui entrar nas redes internacionais e discussão de paciente, tem um bocado de gente que tem uma vez, tira e nunca mais volta também. Então, de repente, puxa, engravidei, está tudo certo. Mas estava tudo certo. Durou, até o Martim fazer cinco meses de nascido.
P/1 – Explica, Jasmin, esse momento. Vamos lá! Cinco meses de bebê na barriga, separação...
R – Ele sai de casa.
P/1 – E você? O que acontece?
R – Eu fico na casa, tinha o Samuel, tinha a gravidez, eu estava muito confusa. Estava tudo muito confuso. E o André sentou do meu lado e fez: “Não, a gente continua uma família, vai dar tudo certo”. E eu comecei a questionar a coisa toda, mesmo, e questionar, inclusive, assim: “Puxa, tudo bem, a vida é o que é, então esse cara tem que ir embora, mesmo, mas a gente vai manter um... Eu estou grávida, não é? Não dá para eu dizer: ‘Some da minha frente, eu não te vejo nunca mais’. Tem um bebê junto. Então, que relação é essa, que a gente vai viver e vai transformar e vai virar outra coisa?” E eu fui deixando para ver como é que essa relação ia virar uma outra coisa. Porque eu sou uma pessoa extremamente otimista. Sempre fui e continuo. Minhas conversas com Samuel sobre a doença que eu tenho, que eu vou deixar escrito para ele quando eu for, são geniais. Teve um dia, sobre otimismo e pessimismo. E você escolhe o que quer, sob que ponto de vista você quer olhar o que lhe acontece. E não é o que lhe acontece, é o que você faz com o que lhe acontece. E tinha aquela história, que era muito importante para o André, que ele foi viver. Sofri para caramba, óbvio. Nossa, uma dor dilacerante, horrível, terrível. Viver naquela casa que era dele, para onde eu nunca quis ir morar, porque era uma casa no Morumbi. E ele foi viver uma outra história. E eu, com aquela história e com aquele menino pequeno para explicar, mas aí, nas dores, a gente conseguiu ali uma possível convivência, não pouco pontiaguda, muitas vezes, porque tem a dor de todo mundo, tem as dificuldades de cada um e, como cada um lida com a dor, mas eu abracei ainda ali e fiz carta para o Samuel, ainda grávida, tem a doença. Sei lá, eu fui vivendo. E tive uma gravidez, Nossa, estava farta, estava muito magra e muito bonita grávida e estava muito feliz porque eu estava grávida, apesar de tanta dor. O Samuel, um dia, olhou para mim e fez: “Mamãe, são muitos sentimentos, não é?” Eu fiz: “É, meu filho, são muitos sentimentos”. Só que eu fiquei aqueles meses ali nesse limbo, procurando casa, apartamento. Mudo, não mudo, vou-me embora, não vou, o que faz? Eu fiquei esse tempo ali meio sem saber o que fazer e ficando, porque tinha o nenê e eu fui ficando. Porque eu não conseguia me mexer muito. Era muita coisa. E aí, um dia, amamentando o Martim, apalpei aqui e fiz: “Puxa”. Não, a história do Martim é engraçada e boa. Eu fui para a ginecologista, eu não vou esquecer, que era 12 de novembro de 2016. Eu comecei a sentir um peso assim na barriga, cheguei na ginecologista e fiz: “Estou com metástase, voltou o câncer, só pode ser isso. Não tem outra explicação. Estou sentindo um peso aqui, embaixo da barriga”. Ela fez ultrassom, olhou para mim e fez: “Jasmin, é um saco gestacional. Eu não sei como dizer” – doutora Carla – “você está grávida”. E aquilo era tanto milagre também, ao mesmo tempo, que aí André reencontrar a namoradinha da adolescência, juventude ou não... Eu estava grávida, gerando uma criança, depois de tirar um câncer. Vida que segue, velho. Vamos nessa. Vamos ver o que a vida vai trazer. E trouxe um menino que nasceu já pronto. Só que dando de mamar, ele com cinco meses, eu peguei e aí já foi esse percurso mais complexo, não é? Porque o câncer já apareceu de volta. Em dois meses, eu tinha, pelo menos, duas bolas de oito centímetros na barriga. E vários pequenos. E aí foi químio, foi rádio, foi nenê, foi criança...
P/1 – Tudo junto.
R - ... Solidão, conversas dificílimas sobre dinheiro, porque era só o que o André conseguia falar. Foi tudo junto: químio, rádio e cirurgia. A cirurgia todo mundo achou que eu ia entrar e que eu não ia sair. Vai durar 16 horas. Vou morrer, me preparei. Eu fiz: “Não, mas tem que fazer, não tem jeito”. Eu voltei dessa cirurgia, eu me mudei em 15 dias, porque eu voltei para casa e aí foi a ruína em cima do terremoto.
P/1 – O que aconteceu? Você voltou para casa...
R – Eu e André brigamos.
P/1 – Com o André?
R – Com o André, porque não adianta. Imagina: filho recém-nascido... Ah, tem esse detalhe: porque ele saiu, a gente reformou a casa inteira no ano anterior para a mãe dele vir morar com a gente. Então, ele saiu por uma porta e a mãe estava vindo morar com a gente. E a mãe já tinha desmontado a casa dela. A mãe dele. Então, ele saiu por uma porta e a mãe dele entrou pela outra. E eu, naquele momento, fiz: “Não, Vilma, pelo amor de Deus, você já desmontou sua casa inteira. É uma casa enorme, venha morar aqui”. Esse era o plano. “Vem aí”. O que eu faço? E ela morou comigo até eu voltar desse hospital, que aí, obviamente, era mãe dele com a minha mãe, ele com a namorada... Confusão generalizada, eu acho que teve uma hecatombe ali na minha chegada do hospital, que o Samuel presenciou. Aí eu fiz: “Não, agora eu fui. Agora eu preciso sair daqui já. Samuel, você vai ter sua casa de volta em 15 dias”. Porque metade da nóia era um pouco do mundo prático, pragmático ou da incapacidade de lidar com questões emocionais tão complexas. Porque são questões emocionais muito complexas num cenário desse. E eu não sei. Eu sei que eu me mudei pós-operada, com um bebê de oito meses e deu tudo certo. Até o câncer voltar, porque ele voltou, ele volta muito. A verdade é que a grande incógnita da vida... E o Samuel, um dia, no banho, me perguntou: “Mãe” – logo que eu comecei a quimio, comecei a emagrecer, não é? – “quando é que você vai morrer?” Ele tinha uns sete anos, na época. Eu parei por um segundo e fiz: “Eu não sei, Samuel. E você? Você sabe quando é que você vai morrer?” Ele fez: “Não”. Eu fiz: “Pois é, meu filho, o segredo da vida é que a gente não sabe. Ninguém sabe quando vai morrer. Mas você está perguntando isso por quê? Por que a mamãe está doente? Pois é. Mamãe pode morrer, mas se depender dela, não vai, não, porque eu estou aqui e estou com você. Então, vamos seguir em frente, porque a vida é essa incógnita, ninguém sabe quando morre, nem como morre. Então, vamos seguir vivendo, não é? Um dia, o que a gente tem, o agora, o hoje, porque é só isso que a gente tem”. Só que eu tenho que lidar com isso com uma criança crescendo, entendendo as coisas melhor e um bebê entendendo o mundo. Eu, hoje, sou oficialmente desenganada pelos médicos. Eu sou aquela paciente que o médico diz assim: “Puxa, a gente já não pode fazer nada por você”. A medicina tradicional, que a gente conhece, tem limite. Tudo tem limite. E já fiz tudo que podia fazer. Então, agora, continuo fazendo. Estou fazendo agora outras coisas. Emagreci loucamente, tenho oito tumores na minha barriga hoje e eu acordo de manhã e vou cuidar dos meus filhos. E quero estar com eles, porque chega nessa hora, essa lida da morte com a maternidade, é uma das coisas mais loucas do mundo. Porque você fica pensando o que você deixa, não é? E se eu morrer logo? É que agora eu posso morrer logo. E agora, pela primeira vez, no processo inteiro, final de 2019, meu corpo depauperou. Até então eu estou nessa luta há quatro anos. E eu nunca caí. O corpo. Caí, chorei, me descabelei, fiz tudo, aconteceu tudo que tem para acontecer, mas eu estava em pé. Pela primeira vez eu caí, o corpo fez fuuuuuuuuuu.
P/1 – O que você sente que o corpo... Assim, o fato de você emagrecer, mas como isso tudo... O que é que você sente?
R – Eu não sentia nenhuma dor. Eu estou com muitas dores, está muito difícil. Mas eu não sei se são dores de crescimento ou de diminuição. E, de novo, você prefere acreditar no quê? Você tem tumores dentro de você, os médicos não podem fazer nada, você está fazendo um bocado de coisa. Esse um bocado de coisas, uma delas, a médica que acompanha, faz: “Dói para caramba esse negócio de você reorganizar seu campo eletromagnético. Dói”.
P/1 – Você está fazendo?
R – Estou. Dói. Aí você sente uma dor, liga para o médico, o médico não sabe do que é a dor. Só pode ser dos tumores crescendo. Ela diz: “Não. Sente dor, os tumores estão diminuindo”. Você vai acreditar em quê? E a gente não sabe nada, Karen. A gente sabe tão pouco dessa vida! A gente não sabe o poder que nosso corpo tem. Não desiste. Desiste na hora em que estiver aqui, aí você entrega. Mas na hora em que você estiver aqui, vai, chama morte natural. O seu corpo produziu uma doença que ele vai ter que dar um jeito agora, de voltar e, se ele não voltar, você vai morrer. E todo mundo vai morrer. Eu não quero morrer agora. Aliás, não quero morrer tão cedo. Aliás, falava para os médicos: “Não quero morrer nos próximos 18 anos, porque eu tenho um menino para criar”. Mas eu não tenho essa escolha, não está na minha... E se é da minha missão eu partir agora e é da vida esses meninos crescerem sem mãe? Eu não sei. Dói. Muito. Pensar nisso. (choro) E, ao mesmo tempo, que oportunidade, de encarar a morte. As pessoas não falam sobre a morte. Elas nunca falam sobre a morte. Você fala sobre a morte, todo mundo começa a sumir, assim. A pessoa fica desconcertada. E eu tenho que lidar com ela, porque nada permanece. E esses dois meninos vão ter a história de vida que eles vão ter. Ah, se eu fosse Deus! Minha mãe gosta de dizer isso: “Ah, se eu fosse Deus!” Não pode. Eu vou brigar com Deus? Eu vou brigar com o que eu acredito, essa fé que eu tenho, herdada de dona Carmem? Tudo tem propósito. As coisas estão acontecendo e aconteceram e as decisões que você tomou na sua vida foram as melhores decisões que você podia tomar naquele momento. Não adianta olhar para trás e pensar: “Se eu tivesse feito isso ou não, será que o câncer teria voltado?” Não. Eu, hoje, tenho um filho de dois anos e meio, um filho de nove anos e meio e um câncer bem agressivo, que está me depauperando. Eu só quero ter força para, enquanto estiver aqui também, cuidar deles e viver a vida. Porque esse mesmo Samuel olhou para mim e fez: “Mamãe, se você tivesse que escolher entre saber quando você morre ou como você morre, o que você escolheria?” Eu disse: “Nossa, nenhum dos dois,
Samuel, sai para lá”. “Não vale. Tem que ser um dos dois”. Eu fiz: “Eu acho que eu escolheria quando”. Ele fez: “Eu também”. Eu fiz: “Filho, mas entre hoje e você saber quando você morre, o que você vai fazer, entre aqui e lá?” Ele fez: “Eu ia viver a vida. Aí, uma semana antes, eu ia ficar um pouco angustiado”. “É, filho, é mais ou menos assim, mesmo. Eu também acho que, se eu soubesse, ia ficar um pouco angustiada uma semana antes”. Dá muitas outras angústias, mas dá muitas outras alegrias também.
P/1 – Conte-me um pouco disso.
R – A gente esquece. A gente é muito desatento com essa vida. Eu fui muito desatenta nesses 44 anos. E eu vivi coisas incríveis. Eu vivi coisas maravilhosas. Extraordinárias. Geniais. Que marcaram e que eu guardo na memória. Mas tem um estado geral de desatenção. Que a gente não percebe. É como se fossem pérolas encravadas no dia a dia. Caio Fernando Abreu diz isso num texto dele, Pequenas Epifanias: são pérolas encravadas no dia a dia. Que, às vezes, é o riso do Martim, a gargalhada dele, porque você está fazendo cócegas. É uma coisa muito ordinária, que é muito grande. E enche um peito de energia. E enche uma vida. E eu fico brincando que está difícil, eu estou gastando muita energia que eu não tenho. E gastar essa energia com eles, conversando com o Samuel ou brincando com o Martim, só fazendo nada. Gastar essa energia deixa uma equação zerada, porque a quantidade de energia que eu gasto é igual a que eu ganho. E é lindo. E poder ver a vida desse jeito, que é do amor sublime. É que onde você tem para se agarrar é o amor sublime. Onde você pode se agarrar é, gente, o amor. Se tem uma coisa que cura, é amor. O que eu vou deixar para esses meninos? Eu vou deixar o amor que eu tenho. Porque o amor é meu. Como eu vou deixar isso para eles? E quanto tempo vão me dar para acompanhá-los, eu não sei. Eu não sei, mas ninguém sabe. Eu só estou um pouco mais atenta, porque eu estou um pouco mais perto. E agora o corpo tem enfraquecido. Me ver magra, se ver no espelho tão magra é muito difícil, você administrar esse impacto que causa na consciência, mesmo, e eu tenho que medir, porque tudo, agora, é caminho do bardo. Eu estou no caminho do bardo. Eu estou me preparando para morrer. Mas tenho que me preparar para viver também. Porque a gente não sabe. Mas eu tenho que me preparar para morrer. Como é que uma pessoa se prepara para morrer? Como é que você ritualiza a própria morte? O que você resolve?
O que você deixa para as pessoas? E esse último mês e meio que eu caí, fica muito difícil pensar tudo isso, processar tudo isso com dor, não é? Então, eu estou descobrindo um jeito de cuidar de mim paliativamente, de ficar forte, para poder viver o que é que tem na minha frente para viver. E para eu estar o melhor possível dentro disso. E o mais inteira possível, porque isso aqui é uma passagem. Aqui na Terra, a gente está aqui, está todo mundo de passagem. É o que você deixa, é o que vai ficar com as pessoas que viveram com você, que lhe conheceram. Morte é curva na estrada. Não é nada. É só não ser mais visto. É só não estar mais aqui. Só que você fica. Você fica dentro do coração de todo mundo que viveu com você.
E que lhe amou, que lhe conheceu. E amor não me falta. Eu tenho tanto amor, tantas pessoas que me amam. (choro) Que é uma coisa tão linda de ver hoje. E olhar para essas pessoas e dizer: “Nossa, como eu te amo!” E sentir isso tão plenamente. Não sem dores, mas é uma experiência, eu estou subindo vários degraus. Eu devo ter subido vários degraus. Eu sinto como se eu tivesse subido vários degraus. Mas é que é tanta coisa que você acha que você pode ensinar ao outro, não é? A gente se acha tão importante. É que mãe é. Aí choro quando eu ouço aquela música, Nossa, loucamente - Todo Homem Precisa de uma Mãe. Eu fico: “Puxa, precisa. O que eu vou? Nossa! Viver sem mãe é muito difícil”. Eu vejo a dor da minha mãe. O quanto ela está sofrendo. E aí tem a dor dela de perder um filho nessa situação e tem a minha, de não estar para os meus filhos. “É muito sentimento”, como diz o Samuel. E, no fundo, o que a gente deixa... Eu sei lá o que a gente deixa. A gente deixa amor e bondade. Minha família tem muito amor e tem muita bondade. E eu sei que é um legado que já é deles, eles já têm isso. André, com todas as suas dificuldades emocionais - porque cada um tem as suas - ama esses meninos. Então, está tudo certo. Se não é falta de amor... Ruim é quando tem falta de amor, não é? O resto? Ah, não, gente, tudo se resolve, tudo dá-se um jeito.
P/1 – Jasmin, queria assim... A gente fala pouco da morte, não é? Então, quando você olha a morte, o que você olha? O que você conversa com a morte? O que você sente da morte? Vamos falar disso para você.
R – Eu não estou com medo de morrer. Eu não estou com nenhum medo de morrer. Diz que a morte anda do lado, na ponta do dedo do seu braço esquerdo estendido. Que ela anda com a gente o tempo inteiro. E é a única coisa com que a gente conversa. A gente tem dançado bastante, eu não estou com medo, eu estou me trabalhando para estar, na hora dessa passagem, que é que nem nascer. A gente vem de um lugar que a gente não sabe e vai para um lugar que a gente não sabe. Ninguém sabe. Eu quero estar tranquila, Karen. E hoje, a única coisa que me angustia, é a maternidade. Porque é muito doloroso sair de cena agora. Eu não me importo de sair de cena. E a morte é só sair de cena. Mas não ver os meus meninos crescerem, não ver as pessoas que eles vão se tornar... Quem vai ser o Samuel com 16 anos? Quem vai ser o Martim com dez? Eles mudam tão rápido! Isso dói uma imensidão e eu tenho que olhar para a dor e dizer: “Vai doer. E você não tem escolha. Vai doer. Então, aproveita. Que você está aqui, que você está com eles”. E a morte, a gente fica dançando, conversando. Quando você a olha de perto, ela não é tão assustadora assim. Eu fui conversar com o lama e ele falou uma coisa bonita, fez: “Normalmente, quem encara a morte, a morte desiste, não é?” Então, eu estou encarando-a bem, para ver se ela desiste de mim. Fiz assim: “Vou encará-la com vontade. Não vou ter medo de falar dela, não vou ter problema de falar disso. É a vida, é a única certeza que a gente tem e vai ver que, se eu olhá-la muito nos olhos e dançar com ela, de um jeito muito bonito, ela vai desistir ou vai dar um tempo. Vai me dar 18 anos. De repente, ela vai me dar 18 anos. De repente, não. E tudo bem. Porque a vida é vida para ser vivida”. Eu tenho muita vida para viver ainda. Se me derem a Graça. Tem muita vida para viver, mas já vivi um bocado também. Estou aqui há quantas horas contando história para você? Eu, realmente, botei duas pessoas muito especiais neste mundo, eu tenho certeza disso. Eu botei duas crianças muito especiais neste mundo. Que vão ser grandes homens, sim, e que vão lembrar de mim o que eles tiverem que lembrar, se eu vier a morrer. Só peço que vivam a vida com bondade e amor. Fora isso, é só viver o que se vive.
P/1 – Justo isso eu ia lhe perguntar: se você morrer, tem algo que você pensa... Talvez tenha mil coisas, mas pense um pouco, assim, com eles, o que você não poderia deixar de dizer para eles? Ou, eventualmente, você não tem essa vontade.
R – Difícil essa pergunta, não é? É muito difícil essa pergunta. (choro) Essa vida é mágica. Essa vida é cheia de mistério. Cheia de milagre. Não adianta a gente se apegar a nada. Que não tem importância para quem você é. E é difícil achar quem a gente é. E não é fácil, no fim das contas, porque é só olhar muito dentro e a gente se perde muito fácil. E só tem que olhar de novo para dentro e olhar para dentro, o seu ser está lá e ele tem as respostas todas. Tem algo divino, absolutamente divino, em cada um. A gente só tem que passar a vida não se atrapalhando muito, não botando muita coisa na frente disso, entendeu? Tirando os lixos. Isso importa, mesmo? Eu queria que eles perguntassem assim, sempre: “Isso é importante? O que é realmente importante? Isso é importante?” Se não for tão importante assim, toca a vida, segue o barco, vá em frente. Do que é importante, a gente cuida. Cuida com amor. Que é a única coisa que salva. É a única coisa que eu quero, que eles vão ter, é o meu amor. Eu estarei com eles, sempre. Porque esse ser divino que nos habita, a todos nós, ele está aqui, está em você, está em mim, está neles e eles vão conectar comigo, porque eu estarei; há uma centelha que há de ficar. É uma centelha que está nessa rede aqui que a gente não vê. Por que as coisas acontecem como acontecem? Por que as pessoas se encontram? Por que a gente vem? Não adianta a gente ficar se fazendo muita pergunta. Porque a gente não vai ter resposta. Então, eu não quero me fazer essas perguntas. Eu quero que eles só saibam o tamanho do amor, porque se eu estou lutando (choro) e eu estou lutando há bastante tempo, eu estou cansada, mas não estou pessimista. Eu estou cansada, mas não estou nada pessimista. Então, eu sei que esse amor que eu sinto está neles. Eles só precisam lembrar disso. Não, está tudo certo. Eu tenho esse amor e esse amor é meu. O que eles vão fazer com esse amor? O que eles vão fazer com a vida deles? Aí cada um vai fazer a melhor vida que você puder fazer, no momento em que você estiver. E para cada um é um momento diferente. Não sei se eu vou deixar umas cartas. Eu vou deixar umas pistas pelo caminho. E aí, se quiserem puxar o fio, vem puxando os fiozinhos. Mas uma coisa eu tenho certeza e isso me faz olhar para a morte de um jeito mais tranquilo, mesmo: eu sei a categoria de ser humano que eu coloquei nesta Terra e eu coloquei uma categoria de ser humano, boa. Samuel e Martim, eles são seres humanos bons, são pessoas boas. Eles sabem. O que eu tenho para ensinar? Estou aprendendo tanto! Estou aprendendo muito mais do que estou ensinando. Aliás, se a gente prestar bastante atenção, acho que a gente, com filho, aprende mais do que a gente ensina. Eu estou aprendendo coisas incríveis com o Samuel. Eu olho para o Martim e vejo a sede de viver que ele tem e a inteireza que aquele bebê tem com a vida. Está tudo certo. Se eu estarei aqui, ou não, isso não está na minha mão. Se tivesse, você pode ter certeza, meu filho, que eu atravesso qualquer inferno. Aliás, estou atravessando um, não é? Olha o meu peso! E com bom humor. E vamos ter bom humor nessa vida, porque essa vida sem bom humor também, ai, já é tão difícil! Tanta nóia, tanta questão. Porque tem você, o emocional, o espiritual, aí tem o seu ‘eu’ físico; aí tem o seu ‘eu’ prático, financeiro; aí tem família, sempre é um nó, vai ser sempre um nó. Cada microcosmo de família é um próprio nó. Vai ser uma pena não viver até um pouquinho mais o meu microcosmo Jasmin/Samuel/Martim. O nosso pequeno núcleo. Mas eles estão bem servidos de gente. Tem muita gente aí para ensinar. Tem muita gente boa para guiar os caminhos e eu estarei do lado, dentro. Não estarei do lado, não. Vou estar dentro. Eu estarei dentro, porque eu estou dentro. Porque não tem fora e dentro. Aí, metade da angústia vai. E eu fico assim: “Então, ok, vamos seguir a dança? Vamos seguir esse dueto aqui”. Deixar uns livros de poesia, para ler de vez em quando. E que história extraordinária eles têm. Eu já estou deixando a história extraordinária para eles, está tudo certo. Está tudo certo. A dor, não é? O que a gente faz com as nossas dores? Só tem uma coisa para fazer com a dor: é sentir a dor. E viver a dor. E ela vai passar. Tudo passa. Não tem nada que não passa. Não tem nada que fique. Então, tudo vai passar. A gente se esquece disso e então não tem mais o que falar para eles, não. A vida ensina. A vida me ensinou tanto. Tem me ensinado tanto. Está tudo certo.
P/1 – Nesse momento em que você entrou, nesses últimos anos, lhe levaram a muitos lugares. Você consegue me dizer o que, de você, se transformou? Algumas das coisas que você descobriu nesse seu trajeto? Novas coisas da Jasmin, novas coisas do seu olhar sobre o mundo, no meio dessa...
R - ... Dessa trajetória? Descobri que a gente é muito teimoso. A gente fica querendo muito achar que a gente tem controle das coisas e a gente não tem controle de nada. E viver nesse estado de não controle é sensacional. É libertador. E que o mundo tem um fluxo. E não adianta a gente querer. Essa coisa do querer, do desejo... A gente tem muito desejo de que as coisas sejam, de que as coisas tenham dedos do ser. É mais simples. Eu aprendi que é mais simples. É tudo muito mais simples. A gente complica muito. Não é tão complicado, não. A gente nasce... É meio caieiro, a gente vive, a gente morre e, entre um dia e outro, acontece a vida, mesmo. É impossível não parecer piegas nessa hora. É impossível não parecer autoajuda barata. E tudo bem parecer autoajuda barata. Porque é mais simples. E se a gente soubesse pelo menos aproveitar que todo dia de manhã a gente acorda, todo dia é um milagre você acordar... Se a gente soubesse aproveitar isso e ser bom com o outro. O resto são as coisas que acontecem entre você nascer e morrer. Será que foi isso que eu aprendi? Que a vida é um livro de autoajuda muito simples? Não, mas a vida também é um livro bem complexo de poesia, com muitas variáveis. Você só não tem controle delas. Só não sabe o que vai acontecer.
P/1 – Jasmin, e o medo? Você sente medo? Você sentiu medo? Qual é o papel do medo na sua vida?
R – Ah, eu morro de medo... Eu não tenho medo da morte, como eu te disse, não estou com medo da morte, mas eu me perguntei agora se eu tenho medo dos meus filhos seguirem outros rumos, entortarem mais. Entortarem. A vida vem entortando a gente, de vez em quando. Aperta. Estica, puxa e vira, revira. Mas eu não tenho, não. Porque tudo tem propósito. Então, se eu não estiver aqui para dar uma arrumada, a vida vai arrumar. Alguém vai arrumar. Medo é um sentimento muito louco, não é? Eu já tive medo por eles ficarem sem mãe. Ele está se acalmando em mim, esse medo. Que é uma sensação boa. Está me acalmando por essa certeza que tem me dado, de que vai dar tudo certo. Tudo sempre dá certo. A vida dá certo. A gente está vivo. A gente estar vivo já é um milagre, então está tudo certo, gente. Vamos em frente. Segue, segue, segue. Eu fico assistindo aquele Dori, com o Martim: “Continue a nadar, continue a nadar, continue a nadar”. E a vida é isso, e a gente vai nadando, as coisas vão acontecendo e a gente vai encarando as coisas que nos acontecem. De vez em quando, tem que saber parar para respirar, para olhar de novo, para dar aquela arrumada de dentro e fazer: “Vamos”. Ou então puxar o freio de mão de arrumação. Está andando bem rápido, puxa o freio de mão de arrumação, para tirar tudo do lugar e ver como ficam as coisas. Ter passado por esse terremoto sobre ruína me deu isso. Não tenho medo, não. Manda aí o que tem para mandar, que a gente está aqui. Estamos aqui. Enquanto eu estiver com esses meninos do meu lado, estamos aqui. Estamos juntos. E, quando não puder mais estar junto, aí a maré levou, aí eu vou pensar o que eu vou... Como eu aviso lá de onde eu estiver, que ninguém sabe onde é, se eu vou poder, se eu não vou poder ver, se eu puder dar uma arrumadinha, se não, não importa. Minha vida está aqui. Minha vida está vivida, ainda tem muita vida para viver, se for para ser. Se não for para ser, dá benção e tchau. Cantem em latim sobre meu caixão, se quiserem. Se quiserem podem cantar e rodar e dançar à roda dele. Eu já não tenho preferências, para quando não puder ter preferências. Ah, mas a minha preferência de agora é que a coisa mais importante agora é ir para casa ficar com meus filhos. E é isso que eu vou fazer. E você, cada dia, se pergunta: “Como é que você quer o seu dia? O que você quer fazer hoje? O que vai lhe deixar feliz hoje? Como é que você quer acabar o dia que começou? Isso é uma escolha. Que a gente esquece que a gente tem”. Eu não estou podendo esquecer que eu tenho. Então, é quase bom. Se não doesse tanto a lombar e as costas, e o corpo magro. E a gente vai saber, daqui a dez dias, para onde a gente está indo. Se a gente vai estar na curva ascendente ou na curva descendente. Daqui uns dez dias eu descubro como esse corpo que a gente não conhece, que é mágico... Essa cabeça da gente, essa mente da gente, que a gente não sabe nada. Eles, talvez, saibam mais. Hoje não sabe nada. Então, quem é que diz que eu sou uma desenganada? Não sou. Estou aqui, estou viva. Sabe lá o poder que a gente tem! De manipular, de criar, de reestruturar, de reprogramar. Essas células todas estavam programadas para tal coisa e eu estou reprogramando para ser outra coisa. E aí eu te conto. Falei sei lá quantas horas, ave Maria!
P/1 – E a experiência agora que a gente deu de você contar sua vida.
R – É uma experiência louca essa, porque parece um fio, não é? Parece um novelo e vão vindo as histórias das suas vidas, porque para todos, são muitas. E uma coisa vai puxando a outra, vai puxando a outra, devo estar falando por três horas, não sei quanto tempo estou aqui falando e eu não estou nem cansada. Aliás, eu estou mais alerta do que nunca. E como é grande a vida de uma pessoa. É louco esse pós, esse após contar uma história. Pós contar suas histórias. E olha que ainda ficou tanta história para contar! Ainda tinha mais umas quatro horas aqui de história, fácil!
P/1 – Não tem problema.
R – E não tem problema.
P/1 – Não. É sério. De qualquer forma, a gente combina, você me fala: “Respirei de novo, tem outras histórias”.
R – A gente volta. E assim não é a vida?
P/1 – Mais ou menos é.
R – A gente para, respira e fala assim: “Não, espera aí que tem mais essa aqui, aí tem mais isso aqui, aí tem mais isso aqui”. E não acaba nunca. Não acaba, nem com a morte. Ainda vão ficar todas as histórias que você deixou nos corações das outras pessoas que viveram com você. Não acaba nunca. E como é que a gente pode achar que a morte é o fim de alguma coisa? A morte só é o fim disso aqui, dessa matéria, desse pedaço de corpo. O resto...
P/1 – Você me falou que não estava cansada, não é? A gente tinha falado que você ia cansar. O que você está sentindo?
R – Eu estou cheia de energia. Fora uma pequena dor na lombar. Fora isso, eu estou cheia de energia, podia ir mais duas horas. Eu não sei de onde ela está vindo, mas ela vem. Acho que a energia vem de contar a vida, mesmo. É libertador contar. Você revive, você vive de novo e você olha com outros olhos e como é que isso vira narrativa. E eu ando muito preocupada com auto-narrativa. Meu Deus do céu, que histórias minhas eu vou deixar para os meninos? Porque alguém vai contar uma história para eles, eles vão ouvir muitas histórias, como eu ouvi. Então, qual é a narrativa que é sua? Da sua própria vida? E o único jeito de saber isso é sentando aqui na sua frente e falando. Mas é um trabalho de entrega que eu, nesse momento, estou considerando como a energia dos meus filhos. A energia que eu coloquei voltou para mim, então a equação está zerada. Então, está tudo certo. Obrigada! A gente não sabe nada desses campos vibratórios. Olha o campo vibratório que ficou aqui! Sábia. A gente não sabe nada.
P/1 – Não sabe nada.
R – O que é que isso aí muda?Recolher