CAPÍTULO I: O PRINCÍPIO
1 - MEU NASCIMENTO - Nasci às vinte e duas horas e trinta minutos do dia 27 de novembro de1938, domingo, quando minha família morava em uma casa próxima ao Largo da Igreja Matriz em Álvares Machado-SP, região da comarca de Presidente Prudente-SP, antiga capital da alt...Continuar leitura
CAPÍTULO I: O PRINCÍPIO
1 - MEU NASCIMENTO - Nasci às vinte e duas horas e trinta minutos do dia 27 de novembro de1938, domingo, quando minha família morava em uma casa próxima ao Largo da Igreja Matriz em Álvares Machado-SP, região da comarca de Presidente Prudente-SP, antiga capital da alta sorocabana, a oeste do estado de São Paulo. Fui registrado em cartório, no dia 6 de dezembro daquele ano. Meus pais foram Manoel Graciano do Nascimento e Benedicta Leite de Meira.
2 - MEU PAI - Papai, filho de Gonçalo Graciano do Nascimento e de Maria Rosa da Conceição, natural de Ceará Mirim-RN, nasceu em 30 de abril de 1900 e em consonância com a narrativa de vovó, teria ficado órfão de pai logo após seu nascimento. Essa informação revelou-se um tanto nebulosa, pois que, vovó, chamada de "Dindinha", logo após a morte acidental do marido, segundo ela, pisoteado pelo cavalo que cavalgava, abandonando os demais familiares a quem nunca se referiu e as propriedades que o falecido, fazendeiro que ela afirmava ser, certamente lhe deixara, saiu do seu estado de origem e, de navio a velas, rumou para São Paulo com seu filho nos braços, nunca explicando o que a motivou, nem como alcançou a região de Piraju-SP. Por outro lado, mal terminou a viagem, novamente se casou e desta vez, com um paulista, nosso novo "Dindinho"; vocábulo nordestino que significa "vovô". Ao afirmar que papai era seu unigênito, em uma época na qual as mulheres sexualmente ativas, ou não tinham filhos ou os tinham acima de dez e demonstrando forte compulsão a adoção de crianças, somada à inexplicada saída do nordeste, sua estória deixou muito a desejar, suscitando dúvidas, se ela própria, era a Maria Rosa da Conceição, citada nos documentos de papai e ele, realmente seu filho. Ao contrário de mamãe alfabetizada ainda na infância, papai era semi-analfabeto, pobre, mas muito inteligente e trabalhador. Dindinha, muito autoritária, com ou sem o consentimento do Dindinho, durante sua vida, adotou à revelia, mais um menino (meu primeiro irmão) e duas meninas. Na década de 1950, voltou a enviuvar e anos depois, aos cem de idade, faleceu.
3 - MINHA MÃE - Mamãe, natural de Piraju-SP, filha de Joaquim Felippe Leite de Meira e de Andrelina Rosa Leite de Meira, nasceu em 22.Out.1902 e sua certidão lavrada 20 dias após. Não há referência sobre a família Leite, mas consta da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XVI, Editorial Enciclopédia Limitada - Lisboa / Rio de Janeiro que a família Meira, Família de Espanha recebeu esse nome no bispado de Tuí, na Galícia. O mais antigo que se conhece é Rodrigo Afonso de Meira, Senhor do Solar dos Meiras, daí terem descido para Portugal. Ao tempo de Dom Duarte, décimo primeiro rei de Portugal (1391 a 1438), que assumiu o trono em 1433, Heitor de Meira nobre da corte, foi o tronco dos Meiras que vieram para o Brasil. Não é possível precisar quais foram os primeiros, mas é certo que Marcos de Meira e Luiz de Meira, filhos de Baltazar de Meira, vieram para o Brasil no início do século XVIII. Habitaram Serro Frio, em Minas Gerais, ramificando-se para outros estados, tais como Bahia, Paraíba, Rio de Janeiro e São Paulo, quebrando os laços de família única. O relacionamento com os demais habitantes dessas regiões explica a existência de Meiras nordestinos geralmente de cor parda e Meiras paulistas brancos que assim se mantiveram, impregnados pelo endêmico preconceito racial que imperou nos estados sulistas, até o final do século XX. Abrangendo os melhores climas e as terras mais férteis do país, inicialmente o sul foi ocupado pelas famílias portuguesas e posteriormente por outros imigrantes europeus e asiáticos que saíram de seus países em busca de novas oportunidades e não se adaptando ao clima do norte e do nordeste brasileiro, também lhe deram preferência, resultando no maior desenvolvimento dessa região beneficiada pela cultura desses povos que, contrariamente, eram avessos à miscigenação. Órfã de pai ainda menina, mamãe foi criada juntamente com suas demais irmãs e irmãos, apenas por vovó que assumindo a direção da família, permaneceu viúva e faleceu em 1944, quando todos já estavam criados. Joaquim Felippe, cognominado "Coronel", 16 anos mais velho, era tio de Andrelina e comentava-se que, inconformado com esse casamento, seu pai, o meu bisavô, sofreu forte depressão e logo morreu. O referido cognome próprio de uma classe social à época denominada coronelismo era uma reminiscência dos antigos integrantes da Guarda Nacional, criada em 1831 e extinta com a proclamação da República, cuja importância sobreviveu no país até a década de 1970, quando ainda se podia encontrar coronéis nos sertões nordestinos exercendo grande influência. As terras de meus avós eram a "Fazenda Cachoeira" situada no município de Piraju-SP onde hoje é uma área turística pertencente a terceiros. Ao se compulsar correspondências desses ancestrais, várias delas guardadas como recordação em Assis-SP, na casa do "Tio Tonico", irmão de mamãe, observava-se que as procedentes da fazenda, sem referência ao nome do município eram, exemplificativamente, assim datadas: - Fazenda Cachoeira, 25 de março de l926. Dentre as relíquias do passado preservadas por aquele tio, ora falecido, podia se ver as patentes de nosso avô, consubstanciadas em vários documentos públicos que lhe concediam títulos similares aos dos oficiais do exército até o do referido cognome. Tenente, Capitão etc. O inacreditável é que toda essa valiosa documentação era guardada num pequeno saco de pano displicentemente dependurado atrás de uma porta de sua casa.
CAPÍTULO II - O RELACIONAMENTO DE MEUS PAIS
1 - O CASAMENTO - Conheceram-se e logo se casaram. O enlace foi na mesma cidade de Piraju-SP, em 25 de dezembro de l920. Manoel e Benedicta passaram a constituir uma nova família e no segundo ano depois, 1922, nasceu-lhes o primeiro filho que, em recíproca homenagem, foi batizado com o nome de "Manoel Benedito" e registrado, Manoel Benedito do Nascimento. Logo após a esse feliz acontecimento, houve o primeiro entrevero dentro da família. Dindinha, com sua obsessiva compulsão passou a exigir que esse primeiro filho lhe fosse entregue, pois era um direito dos avós, quando seu único filho se casasse. Uma tradição nordestina, provavelmente inventada por ela. Não houve quem a demovesse. Manoel, filho muito respeitoso e obediente, submete-se à vontade da mãe. Apesar de todo seu sofrimento, Benedicta acabou cedendo e Manoel Benedito foi adotado e criado pela sua avó até a maioridade. Contristados, venderam o que herdaram da fazenda e foram ser lavradores em outras plagas. Outros filhos nasceram. Em 1924, Miguel Graciano do Nascimento. Em l927, Gonsalo Aparecido do Nascimento. Em 24.02.1932, Noel Meira do Nascimento. Em 28.05.1935, Nair Rosa do Nascimento. Em 27.11.1938, eu, Jaime Meira do Nascimento. Em 21.07.1941, Riograndino Meira do Nascimento, sem falar de um aborto natural e mais três outras crianças que morreram na primeira infância (1925-1937-1945).
2 - A ASCENSÃO SOCIAL - Não existe registro ou informações precisas sobre esses fatos, mas nos anos 30, quando já moravam em Álvares Machado, inteligente e autodidata, papai resolveu trocar de profissão fazendo um curso de contabilidade por correspondência em uma escola especializada, provavelmente a conhecida como "Escola por Correspondência de Vitorino Camilo Castelo Branco" que funcionava ou ainda funciona na capital do estado. Antes da segunda guerra mundial correu um boato, segundo o qual, os estrangeiros que não se naturalizassem, especialmente japoneses, italianos e espanhóis, ficariam sujeitos a expulsão do país. Papai que havia saído da roça e se instalado na cidade com seu escritório, começou a ganhar muito dinheiro. Munido de uma antiga máquina de escrever, "catando milho", até que aprendesse usá-la, preenchia as guias e os requerimentos de naturalização. Fila enorme se formava à porta de seu escritório. Além desse trabalho, especializou-se em contabilidade mercantil. Cuidando dos livros dos estabelecimentos comerciais da cidade, passou a ser conhecido como: o guarda livros. Conseqüentemente, aquele mesmo homem, até então desconhecido que muitas vezes vinha do sítio mal vestido, com um "piquá" nas costas, uma sacola de pano que os caipiras carregam quando vão fazer compras na cidade, ali ressurge trajando terno de linho branco, gravata, chapéu panamenho e uma invejável bengala completando sua indumentária, passando a ser assediado, especialmente pelas mulheres. Foi nomeado Representante de Delegado de Polícia; como tal mandava em tudo e em todos. Somente as cidades maiores, sedes de comarcas, contavam com Delegados de carreira, único com poder de presidir inquéritos e autuar criminosos em flagrante. Nas demais, a autoridade era exercida por notório cidadão. Posteriormente, deixando o cargo, mudou-se para Presidente Prudente-SP e fomos morar em uma confortável casa de alvenaria, com amplo quintal, alpendre, sala de visitas, sala de jantar, cozinha, dois ou três quartos, situada na Avenida Manoel Goulart, l207, uma das principais da cidade. A casa era muito bem mobiliada, equipada com jogo de poltronas de vime, cristaleira, licoreira etc, tudo da melhor qualidade. A sede do seu Escritório também foi transferida para Presidente Prudente, no nº 706 da mesma avenida.
3 – A SEPARAÇÃO - Inexperiente com tanto sucesso, papai caiu na armadilha preparada pela vida.Enquanto a cada dia se tornava um homem mais ilustre com o visual melhorado e mamãe ex-roçeira, simplíssima dona de casa, envelhecida, ostentando o corpo deformado pelos seus quase dez partos naturais, com as pernas demarcadas por enormes varizes, o óbvio aconteceu. Várias mulheres mais jovens intervieram em suas vidas, resultando nas brigas conjugais. Conhecendo uma jovem mulata de olhos azuis, sedenta para dar e receber amor, papai por ela se apaixonou e a fez sua verdadeira amante - teúda e manteúda.
Em meados de 1941, embevecido, esqueceu-se de todos nós e foi morar com Silvina, natural do estado da Bahia.
CAPÍTULO III - A AUSÊNCIA DE PAPAI
PRIMEIRA FASE - Abandonados, fomos jogados em um pequeno salão comercial da Rua Álvares Machado, região mais periférica de Presidente Prudente onde permanecemos por pouco tempo, retornando à cidade de Álvares Machado e morando na mesma rua, na mesma esquina, em um casebre em frente à casa onde papai havia montado seu primeiro escritório. Para sobrevivermos, já que papai parou de nos sustentar, mamãe, auxiliada especialmente pelo Miguel, montou em casa, uma lavanderia e enquanto ela lavava, ele passava.
Nesse casebre, nasceu o meu irmão Riograndino. A vida seguia de mal a pior e logo meus irmãos mais velhos, Miguel e Gonsalo saíram de casa a procura de novas oportunidades. Mamãe, com seus quatro filhos menores foi levada a morar em um outro casebre bem menor e sem luz elétrica, situado a Rua Djalma Dutra, em Presidente Prudente. No final de 1942, a mudança saiu de Álvares Machado em um anoitecer chuvoso, transportada por um caminhãozinho amarelo-alaranjado, que apesar de ter a carroceria muito pequena, de no máximo três metros de comprimento, nela coube todos os nossos pertences; inclusive, meus irmãos Miguel e Noel. Mamãe com seu filho recém-nascido no colo, minha irmã de 6 anos de idade e eu com três, viajamos na cabine. Na entrada de Prudente, já na Avenida Manoel Goulart, o caminhão quebrou e fomos a pé até nosso novo lar. Lembro-me vagamente de que Miguel, protegendo-se com um guarda-chuva, transportava-me no colo, desviando das poças dágua, pois que a avenida ainda não era asfaltada e mamãe com o nenê, certamente protegida por outro guarda-chuva, nos seguia acompanhada pelo Noel e pela Nair. Não me recordo de como chegamos. Sem o auxílio direto de seus filhos mais velhos, mamãe continuou lavando roupas para fora. De porta em porta saía a procura de trabalho. Trazia roupas para casa, lavava, passava e as devolvia recebendo alguns trocados como pagamento. Nesse ínterim, papai morava com a amante e suas duas primeiras filhas, Olinda e Marina, em uma casa situada nos fundos do salão onde funcionava seu escritório na Av. Manoel Goulart, a algumas quadras de nosso casebre. Lembro-me da morte e do velório de Marina acometida de desidratação ainda na primeira infância. Dias depois do seu sepultamento, a Olinda indo brincar de enterro, pegou um gatinho recém-nascido, colocou-o em uma caixa de sapatos e o cobriu de flores. Inocentemente Olinda enterrou o animalzinho com vida. Não presenciei a cena, mas o fato foi muito comentado por Silvina e por papai que depois da morte do gato, ficaram sabendo pela própria filha. Com certa freqüência eu visitava papai e sua nova família e recebia permissão para passar a noite com eles. Para mim era festa, pois, enquanto nossa última refeição diária era o jantar das 6, lá, a noite, antes de se recolherem, habitualmente todos tomavam um copo de leite com chocolate, preparado pela Silvina; aliás, creio que ela era carinhosa comigo, pois durante aquelas visitas ensinava-me rezar. Anos depois, muito católico e freqüentador das aulas dominicais, surpreendia-me ao perceber que quando rezava a oração ao Santo Anjo, pronunciava algumas palavras com sotaque nordestino. Ao repeti-las, não entendia o que significavam: "mi aguárdio, mi alumínio". Como não havia aprendido essa oração na igreja e até então só relacionávamos com nossos vizinhos italianos, deduzi e deduzo que foi Silvina quem a ensinou e aquelas palavras significavam: "me guarde, me ilumine". Em novembro de l944, em comemoração aos meus seis anos de idade, papai mandou-me a um fotógrafo, tirando minha primeira foto.
SEGUNDA FASE - Depois de quase dois anos nessa luta, mamãe, talvez incentivada por alguém, procurou por papai, exigindo que nos sustentasse. Sob ameaça de ser denunciado à polícia, papai que tinha sido Representante de Delegado e sabia o que lhe podia acontecer em uma Delegacia, numa época em que, casais amigados eram repudiados e não se falava em direitos humanos, repentinamente mudou. Mamãe foi autorizada a parar de lavar roupas para fora e a alugar uma nova casa que até luz elétrica tinha e como prova de sua reconciliação, papai fez-lhe uma nova filha. Nos últimos meses de 1944 nos mudamos para a Rua l5 de Novembro, nº 1297, região mais central da cidade onde, em 30 de abril de 1945, nasceu minha última irmã que, aliás, faleceu oito dias antes do seu primeiro aniversário, provavelmente de desgosto. Ao começar a entender o significado das palavras e descobrindo que seu nome era Salve Esperança, morreu Papai acometido por forte obsessão nacionalista oriunda de seus ideais comunistas, teria extraído esse nome da primeira estrofe do hino à bandeira. Apesar da aparente comiseração, papai continuou morando com a outra mulher com quem teve vários filhos e filhas, provavelmente mais de dez. Um deles se chamou "Marden Brasil do Nascimento", inspirado na expressão "Made in Brazil" que papai deve ter lido na embalagem de algum produto de exportação e aportuguesado, a sua moda. O tempo foi passando e devido ao mal estar que a situação nos impunha, passamos a nos sentir rejeitados, especialmente porque, sempre que podia, papai, psicologicamente, torturava mamãe que só não perdia o juízo porque era muito forte e possuía grande responsabilidade para com seus filhos. Não obstante todos de casa só freqüentarem escolas, um dos métodos que usava, além de criticá-la constantemente era de, com o auxílio da sua concubina, fiscalizar a quantidade de alimentos que nos fornecia e nos trajar o mais simples possível, de maneira incompatível com o ambiente onde estudávamos.
3 – TERCEIRA FASE - Nos últimos tempos costumava também atrasar por vários meses o pagamento do aluguel da nossa casa, o que gerava justa reclamação do proprietário contra mamãe que era a locatária de fato e de direito, pois papai não aparecia nessas relações. Esse estado de coisas perdurou até o final de 1956 quando mamãe convenceu o proprietário do imóvel a cobrar os atrasados diretamente dele. Ofendido, papai determinou que mamãe alugasse uma nova casa. Saímos todos a procura de novo imóvel e consegui localizar o da Rua Cassimiro Dias, nº 249 cujo aluguel era seis vezes maior do que o pago na l5 de Novembro. Imediatamente ele ordenou: - Dita Alugue essa casa Feche negócio com a proprietária. Já adolescente, dando meus palpites, o interpelei: - Minha mãe, não O Senhor é quem vai conversar com a mulher. Dito e feito. Papai contratou e nos mudamos para aquela casa e ele pagou tudo direitinho. Não se acostumando pelo fato de a dona do imóvel morar na casa ao lado e ficar nos bisbilhotando, papai deu nova ordem e mudamos para a Rua Siqueira Campos, com um aluguel sete vezes maior do que aquele que ele fazia de conta que não conseguia pagar na l5 de Novembro. Moramos ali por mais de dois anos e ele nunca atrasou o aluguel. Pagava sempre na véspera. Era honestíssimo com terceiros
CAPÍTULO IV : MINHA INFÂNCIA
1 - O RELACIONAMENTO FAMILIAR - Nasci uma criança saudável. Talvez pela rápida interação com o meio ambiente, talvez pela cor dos meus cabelos que eram aloirados como dos meus avós maternos, gradativamente fui me diferenciando de meus irmãos e em conseqüência, tornando-me o preferido de meus pais, em detrimento aos demais. Papai demonstrando um orgulho muito grande por essas minhas características, sempre que podia, logo que comecei a andar, levava-me a apresentar para seus amigos. Como Representante de Delegado de Polícia tinha acesso a todos os lugares e quase sempre estava eu, com ele. Antes de completar três anos de idade, numa visita de rotina que, como policial, fazia às casas de prostituição, papai levou-me para, oficialmente, apresentar-me às mulheres que ali trabalhavam. Lembro-me da festa com que fui recebido. As prostitutas, como prestimosas mães, afagavam-me no colo. Como felicidade não é perene e não passa, muitas vezes, de pequenos momentos, repentinamente tudo acabou. Narrava mamãe que ao sermos abandonados, muito apegado a ele, desesperado, eu ficava quase o dia todo na frente de casa olhando a rua, na tentativa de vê-lo retornar; que à aproximação de qualquer homem, eu saia correndo de braços abertos gritando: Papai Papai Ao reconhecer que não era ele, voltava triste ao meu posto até que, conformado, apeguei-me a meu irmão Miguel procurando colocá-lo em seu lugar. Miguel, ainda muito moço, com apenas l6 anos de idade, infelizmente não entendeu esse meu comportamento e jamais o retribuiu. Mamãe, cujo procedimento ensinou-me a admirar e a respeitar a alma feminina, tudo fazia para amenizar a minha carência, o meu sofrimento e apesar das privações porque passava, sempre se preocupava em me presentear nas datas festivas, objetivando alegrar minha vida. Em 1943, véspera de Natal, orientando-me a colocar o sapato na janela para aguardar o presente de Papai Noel, prontamente a atendi e na manhã seguinte fui correndo examina-lo e encontrei um pequeno embrulho contendo uma rosquinha de sequilho Foi o presente que ela pode me oferecer. Nos anos seguintes, até a minha adolescência mamãe comemorava meus aniversários com uma festinha, na qual participavam meus vizinhos e nos natais, presenteava-me com brinquedos.
2 – O RELACIONAMENTO EXTRA-FAMILIAR - Nos meus primeiros anos, minha auto-estima era tão enaltecida pelo apoio que recebia de mamãe que não levava desaforo para casa. Lembro-me de que aos cinco de idade, quando estava em volta de uma fogueira, um menino maior pegou-me por trás e rodopiando-me, fingia que ia queimar meus pés nas labaredas. Logo que esse menino me soltou, armei-me com os restos de um tamanco, chinelo cuja sola é feita de madeira maciça e arremessei contra sua cabeça, premiando-o com um belo "galo". Ainda nessa mesma época, uma menina um pouco mais velha, mandou que todos nós sentássemos sobre o tronco de uma árvore que jazia no chão e ordenou que não falássemos e ninguém risse, pois que iria, logo depois, distribuir aos mais comportados, balas e bolachas. Não gostando da ordem, soltei uma gargalhada e a menina bateu-me com a vara que, ameaçadoramente, portava. Imediatamente levantei-me enfurecido e quebrando em quatro um tijolo que encontrei nas imediações avancei contra ela que correu com vara e tudo. Dei-lhe uma tijolada nas costas e a menina rapidamente aprendeu a nunca mais vir me dar ordens. Os anos foram se passando e aprendi que quem batia também podia apanhar, especialmente porque fui me tornando muito pequeno para as crianças da minha idade, magro e raquítico, deduzindo que seria melhor parar com a costumeira valentia, quase me isolando, eis que, nas minhas condições físicas, era provocado com maior freqüência. Desde criança sempre procurei ganhar algum dinheiro. Tentei ser engraxate e ao chegar na praça principal com minha caixa nas costas, quase levei uma surra dos outros meninos que exerciam a mesma profissão. De forma ameaçadora fui expulso por uns quatro ou cinco "loirinhos" que naqueles tempos, já perambulavam pelas ruas da cidade. Procurei ser vendedor ambulante de laranjas e como não tinha noção de comércio, ao invés de oferecê-las na parte mais nobre da cidade, ia aos bairros mais afastados onde pouca gente comprava. Nessa ocasião, um velhinho branco, magro, desdentado, saindo à porta de um casebre, interessou-se pelas laranjas e pediu uma para experimentar. Chupando-a avidamente e exclamando de boca cheia - hummm que doce que gostosa - deu-me a impressão de que compraria, pelo menos, uma dúzia. Sacando uma moedinha do bolso, pediu-me apenas três e na condição de que não fosse descontada a que literalmente comeu. Para não aumentar o prejuízo, decepcionado, concordei e logo desisti da profissão. Comecei a criar galinhas com a intenção de vender ovos e por muito tempo ganhei alguns trocados. Como as galinhas ou eram furtadas pelos vizinhos ou morriam com facilidade e a reposição era demorada, fui diminuindo os meus investimentos. Fato hilariante também aí ocorreu. Com as galinhas já envelhecidas e uma só, às vezes botando, vendi um ovo para uma menina que pagou antecipadamente. Aconteceu que a galinha nunca mais botou e amargamente, tive que lhe devolver o dinheiro já gasto em amendoim salgado. Cr$ 0,50 Aprendi que era verdadeiro o ditado: "Nunca conte com o ovo antes da galinha botá-lo" -
CAPÍTULO V - A EDUCAÇÃO SEXUAL VIGENTE
Desde tenra idade até meus doze ou treze anos, a falta de uma educação direcionada, quer nas escolas, quer no âmbito familiar, impingia-me relevante sofrimento, aumentando a cada dia a confusão mental que fazia sobre o tema. Certa manhã acordei radiante de alegria e o dia pareceu-me o mais importante porque, na noite anterior, lendo uma revista proibida para menores que meu irmão Noel escondia sob o colchão da nossa cama, descobri que sexo era uma ocorrência normal nas nossas vidas e próprio de adultos, quando, até então, pensava que fosse um maldito desejo de moleques de rua, pois enquanto meus colegas de escola silenciavam, somente aqueles, o abordavam. Essa concepção era embasada na idéia que as igrejas difundiam quando condenavam o sexo e afirmavam que éramos todos pecadores pelo simples fato de termos nascido. Nossos pais pecaram quando fizeram sexo e desse "pecado original", nascemos. A população "viajando" nesse barco, chamava sexo de besteira, coisa da besta, coisa do diabo ou de porcaria, coisa de porco, coisa de gente moralmente suja. Se fossem comentar, diziam que tal homem fez besteira com tal mulher ou que tal mulher fez porcaria com determinado homem. A expressão "fazer amor" somente surgiu uns trinta anos depois, quando os poetas pilheriando-a, passaram a afirmar: "O amor é um pecado tão grande que são necessárias duas pessoas para cometê-lo" Não havia um mínimo de comunicação sobre o tema, muito menos entre pais e filhos. Sub-repticiamente, para que entre as crianças não se despertasse nenhuma curiosidade sobre suas naturais diferenças, imperava o lema - "homem com homem, mulher com mulher". Meninas não brincavam com meninos e a recíproca era verdadeira. Se algum menino se aproximasse de meninas, todos o chamavam de "mariquinha". As meninas, sujeitas a uma educação mais rígida, sequer podiam chegar perto dos meninos. Nas escolas havia classes masculinas e femininas e só mais tarde começaram a aparecer classes mistas, mesmo assim, com crianças já maiores de doze anos que estivessem cursando o ginasial. Às mocinhas, tudo era proibido. Não podiam usar pinturas, nem mesmo um simples batom, inclusive, quando as mais ousadas se rebelaram contra essa norma, surgiu uma linda canção as condenando, cuja letra era mais ou menos assim: "Marina morena, você já é bonita com o que Deus lhe deu. Marina morena não pinte esse rosto que é só meu. Marina, você se pintou Eu já desculpei muitas coisas, mas desta vez, Marina, é demais Estou de mal com você, de mal com você". Somente as artistas e as prostitutas, procurando se tornar mais atraentes se pintavam. Alguns pais não permitiam que suas filhas sequer cortassem os cabelos. Namorar era só para casar. A moça tinha que se casar com o primeiro que aparecesse e um dos métodos que muitas usavam com a anuência tácita dos próprios pais que fingiam nada perceber, era perder a virgindade ou engravidar durante o namoro e mesmo não amando se casavam com o pretendente que caía na armadilha. Ao deflorar a moça menor de l8 anos, o rapaz era legalmente obrigado a se casar, pois caso contrário se sujeitaria a uma pena de reclusão de até quatro anos. Era o chamado "casamento na polícia". Se a moça fosse maior, especialmente no caso de notória gravidez, o rapaz por responsabilidade própria ou temendo as ameaças do futuro sogro que se fazia passar por moralmente ofendido, assentia "espontaneamente" ao casamento. A moça que não se casava, quando o noivo conseguia fugir ou se tornava prostituta ou ia para um convento. Não havia outra alternativa, já que o trabalho da mulher "perdida" era rejeitado, até como doméstica e muitas delas, expulsas de casa pelos próprios pais. Inclusive a arcaica legislação penal vigente, ao tipificar os crimes contra os costumes, só protegia a mulher honesta. A expressão "mulher honesta" só foi abolida do nosso código penal em 30.03.2005. Por outro lado, as moças que muito escolhiam e não namoravam, ao passarem da idade, eram pejorativamente taxadas de "Galinhas de São Roque" ou de "Balzaquianas" e comentavam que tinham ficado "pra titia". Desesperadas, muitas seduziam rapazolas inexperientes e ainda conseguiam se casar. Contrariamente, os moços tinham toda liberdade. Ser mulher devia ser um martírio tão grande que sempre que eu orava, iniciava minhas orações assim: "Senhor: Em primeiro lugar, agradeço-lhe por eu ter nascido homem". Com menos de três anos de idade, meu pai fez minha apresentação pública às mulheres da zona. A partir do meu oitavo aniversário, todos os anos, ao ser aprovado na escola, ganhava de meu irmão Gonsalo, um passeio até a cidade de Assis-SP e quase todas às vezes, enquanto solteiro, levava-me aos prostíbulos apresentando-me orgulhosamente às mulheres, numa nítida insinuação de que algum dia eu deveria me relacionar com elas. Até então eu não sabia o que aquelas mulheres faziam, pois nada me era explicado. Aliás, quando os garotos se tornavam adolescentes muitos pais ficavam aflitos, na expectativa de que seus filhos tomassem a iniciativa de conhecer mulheres e alguns até facilitavam para que fossem aos prostíbulos, mas não tocavam diretamente no assunto. Surgiram até piadinhas aparentemente infames, visando ironizar aquele falso pudor social. Contavam que um sitiante dando dinheiro a seu filho de 13 anos, sem nada lhe explicar, de alguma forma fez o garoto entender que deveria ir a zona da cidade O menino passando pelo sítio da avó, contou-lhe o que ia fazer e a velha que não era muito religiosa, resolveu ficar com o dinheiro do neto e se deitou com ele. Na volta, o pai veio correndo perguntar se tudo tinha corrido bem e como era a mulher. O garoto contando que tinha ficado com a avó, seu pai enfureceu e o menino em sua ingenuidade simplesmente retrucou: - Papai o senhor não faz isso toda noite com minha mãe? Eu nunca achei ruim. Agora eu fiz com a sua. O que tem demais? Um outro pai também indiretamente convencendo seu filho a ir a um prostíbulo, quando o menino voltou passou a interrogá-lo, curioso para saber o que tinha acontecido. O garoto, com uma postura aparentemente respeitosa, em pé, relatou: - Cheguei na tal da zona onde encontrei muita gente. Conversei com uma delas e fomos para o quarto onde aconteceu de tudo e até agora estou muito feliz e com vontade de repetir a experiência. O pai querendo mais detalhes, ordenou: - Senta meu filho, senta e continue contando. O rapazinho respondeu: - Não posso papai Não posso Dói muito quando me sento.
CAPÍTULO VI - A EDUCAÇÃO FORMAL
O ensino formal no Brasil era subdividido em primário, secundário e universitário. O Primário, estranhamente conclusivo, no final de seus quatro anos o aluno se diplomava. Considerado o máximo que geralmente a população atingia, muitos não chegavam a completá-lo devido ao rigor das suas disciplinas. Com muita dificuldade, o aluno se promovia de um ano letivo para o seguinte. Havia o ensino público gratuito de melhor qualidade e o particular mais acessível. Em nosso município, o público era ministrado pelo 1.º Grupo Escolar de Presidente Prudente, posteriormente renomeado, Grupo Escolar Prof. Adolpho Arruda Mello, pertencente ao Estado. O particular pelo Colégio Cristo Rei, mantido pela Igreja Católica. O Secundário, onde poucas famílias matriculavam seus filhos, era subdivido em ginasial com 4 anos de duração e colegial com três, este último com vários cursos, objetivando a pretensão de cada aluno. Para iniciar o Secundário, o interessado era submetido a rigoroso exame de admissão à primeira série ginasial, e os mais abastados eram aprovados nos colégios públicos e os demais, nos particulares, pouco exigentes. Depois da conclusão do ginasial, o aluno podia ingressar no colegial onde eram profissionalizantes os cursos Normal e o Técnico em Contabilidade. Mediante prévia seleção, ingressava-se no Normal, o curso preferido pelas mulheres que recebiam o título de professora primária, exigível para o exercício dessa profissão. Nele estudavam as moças mais lindas do lugar, o que serviu de título a uma canção romântica de muito sucesso, do cantor Nelson Gonçalves - "Linda Normalista". O Curso Técnico em Contabilidade formava os contabilistas da época que podiam se inscrever nas suas Associações e se estabelecer com seus próprios escritórios. Com o advento desse curso, papai foi profissionalmente prejudicado, pois sendo apenas um prático em contabilidade, passou a depender dos outros para a assinatura de balanço dos estabelecimentos comerciais maiores e perdeu muitos clientes mas, inteligente como era, reagiu. Papai prestou concurso público, aliás, o primeiro no Estado de São Paulo, para o exercício da profissão de Despachante Policial , recebendo o número 121 e se tornou o único Despachante de Regente Feijó-SP, onde montou também uma Escola de Datilografia, permanecendo com seus clientes contábeis de Álvares Machado e de Presidente Prudente. Os alunos que almejavam freqüentar o curso Superior, se de ciências humanas, matriculavam-se, no Curso Clássico, se o seu objetivo fosse ciências exatas, no Curso Cientifico; este era muito pouco escolhido. O seu primeiro ano começava com duas ou três classes de 40 alunos e o último, terminava com apenas uma, com dezoito a vinte, geralmente homens e quando mulher, no máximo uma que apesar de demonstrar inteligência ímpar, sem exceção, era a feia que não sonhava com casamento; nenhuma loira, nenhuma parda, nenhuma negra. Eram morenas. Após o Curso Superior (3.º grau) que só era ministrado nas capitais dos estados haviam, como hoje, os Cursos de Pós-graduação - Mestrado e Doutorado. Foi nessa época que o mito da "loira burra", começou a ser delineado. As loiras que, na sua maioria, são lindas por natureza, geralmente se casavam ainda na adolescência, atingindo o principal e quase único objetivo das mulheres que lhes eram contemporâneas; em conseqüência, por não se preocuparem com a formação intelectual, aparentavam ser menos inteligentes que as morenas e estas atingiam até as universidades. As morenas não encontrando de imediato seus príncipes encantados, preenchiam o tempo estudando. Atentem que até os anos setenta os órgãos oficiais de identificação reconheciam no país a existência de pessoas da cor branca, da cor negra, da cor amarela e da cor vermelha. As primeiras eram descendentes de europeus, as segundas de africanos e as últimas de orientais e de índios. As pessoas brancas, dependendo da cor de seus cabelos, eram loiras ou eram morenas; se miscigenadas com índios, caboclas. As pessoas da raça negra, quando mestiças com as da raça branca, eram pardas, popularmente denominadas "mulatas", imbatíveis sensualmente e por isso, temas de marchas carnavalescas que as enalteciam - "Branca é branca, preta é preta, mas a mulata é a tal é a tal...".
Quando mestiças com índio, cafuzas. As cafuzas, deixavam cafusas, digo, confusas as outras pessoas, pela sua falta de beleza. Com o retorno da democracia, após a revolução militar de 31 de março de 1964 que perdurou praticamente até 1980 essa classificação foi considerada preconceituosa e entrou em desuso. Hoje loira é qualquer pessoa de cabelos loiros, naturais ou tingidos. Morenas, as demais.
CAPÍTULO VII : O INGRESSO NAS ESCOLAS
Em 1946, com sete anos de idade, iniciei minha maratona estudantil, quando os costumes da época eram, hoje, inimagináveis. A sociedade ainda sofria os efeitos da arcaica orientação da igreja católica que a exemplo das demais, com todo respeito aos verdadeiros religiosos, naqueles tempos, buscava embotar a mente humana em benefício político ou financeiro dos seus líderes. O Diabo, inimigo de Deus, que tem por objetivo nos desviar do caminho do bem e nos induzir a cometer pecados, era e é canhoto Pasmem. Pasmem todos: Eu também era e sou canhoto como ele No meu primeiro dia de aula, após conhecer a professora, Dona Carmem Cerávolo, levei um tremendo tapa que quase fui ao chão. Aos berros repreendeu-me por ter segurado o lápis com a mão esquerda: Menino, isso é coisa do Diabo A força, fui aprendendo usar a mão direita para escrever, mas quando me distraia, não era perdoado. Incontinenti, novo tapa, novos gritos e reguadas. O ano letivo transcorreu, mesmo assim, consegui acompanhá-lo. Aprendi escrever com a mão direita, fui promovido para a série seguinte, quando, ignorado dentro da classe, talvez pela personalidade da outra professora, talvez discriminado pela minha condição social, fui reprovado. A professora do primeiro ano apesar da sua aparente agressividade, o era porque se preocupava comigo, se preocupava com todos nós, seus alunos e nos desejava o melhor. Ela era muito respeitada e considerada. Com certa dificuldade a vida foi passando e conclui o curso primário quando o meu irmão Noel, com sua cosmovisão avantajada, "descobriu que existia o curso ginasial". Eu havia completado doze anos de idade. Terminado o curso primário, também por sugestão de meu irmão Noel, em janeiro de 1951 fiz um rápido cursinho preparatório com a professora Maria Silos, mas percebendo que não estava muito preparado, papai optou por matricular-me no Ginásio São Paulo onde ingressei, após prestar exame de admissão à lª Série do Curso Ginasial. No decorrer do ano letivo, procurando relacionar-me com meus colegas e com meus professores, o tiro saiu pela culatra. Estudando e assimilando tudo o que era ensinado, comecei a cair na graça dos professores e na antipatia dos outros alunos. Passei para a 2ª série, mudei de tática e o resultando foi desastroso. Fui reprovado Papai nada comentou, mas percebi sua decepção, tanto que, naquele final de ano, ao pedir-lhe um par de sapatos novos, ele com razão, retrucou: - É vagabundo? Comprar sapatos você quer? - Trabalhar?... Não - Estudar?... Muito menos Abaixei a cabeça e respondi: - Se o Senhor me arranjar serviço, eu vou.
A conversa terminou aí. Passadas as festas natalinas, papai retornando ao assunto, comunicou-me que eu iria trabalhar em um das tipografias da cidade, pertencente a Boanerges Godoy & Cia., onde, devidamente registrado em carteira profissional que logo providenciei, iria ganhar, como aprendiz Cr$ 415,00 mensais. Gostei da idéia. Nesse ínterim, meu irmão Noel que fazia seus primeiros ensaios para "levantar vôo de casa" e provisoriamente morava num apartamento de um prédio conhecido como "Prédio da sede da A.P.E.A." (Associação Prudentina de Esportes e Atletismo) comentou que a dona estava precisando contratar um menino para limpar dois banheiros coletivos do lugar. Imediatamente procurei a proprietária que era a professora primária, Maria de Lourdes Fernandes, a Dona Lurdinha e por mais Cr$ 200,00, fui contratado para o serviço que seria diário, das 6H00 às 7H45. O ano letivo de 1953 começou e eu me matriculei no mesmo ginásio, agora no curso noturno. Levantando-me às cinco da manhã, rumava para o prédio onde limpava os banheiros. Entrava na tipografia às 8H00, almoçava em casa, das 12H00 às 13H00, retornava para casa às l8H30, jantava, ia ao ginásio onde as aulas começavam às 19H30 e de lá saia às 22H30. Apesar de tantos compromissos, comprei meus cadernos, meus livros, minhas roupas, paguei as mensalidades escolares, guardei dinheiro e honrosamente passei para a terceira série. No final do mês de janeiro de l954, ouvi um diálogo entre meus pais quando ele dizia: - Poxa Dita, como o Jaime é esforçado Aqui em casa ninguém trabalha e ele nem sequer reclama. Olha, no dia primeiro agora, vai fazer um ano que ele está trabalhando. Em 14 de fevereiro de l954 quinta-feira, papai me chamou e perguntando quanto eu ganhava, ao ser informado determinou que no dia seguinte eu pedisse a conta daqueles empregos, pois que mensalmente me pagaria os mesmos salários, conquanto que o ajudasse a visitar seus poucos clientes de Prudente e de Álvares Machado, escriturando os respectivos livros fiscais. Aceitando a proposta demiti-me dos dois empregos e voltei à vida estudantil. Nas férias do mês de julho daquele ano, papai levou-me na companhia de minha irmã Nair, a conhecer a capital paulista e o litoral na cidade de Santos-SP, quando ainda se comemorava o 4º Centenário de São Paulo. Conclui o curso ginasial, após transferir-me para o Instituto de Educação Fernando Costa, onde cursei a 4ª série e matriculei-me no l.º ano do Curso Científico, estudando nessa última escola até 28 de maio de l957 quando já no 2ºano, ao ser convocado a prestar o serviço militar, fui estudar em um colégio particular, pago por papai, na cidade de Campo Grande-MS.
CAPÍTULO VIII - O RELACIONAMENTO COM MEUS IRMÃOS
a) RIOGRANDINO - Contava mamãe que quando ele nasceu, ao comentar com as outras pessoas que "eu era o biroca e ele o di biroquinha" (talvez uma referência à bolinha de gude), Riograndino passou a ser chamado de "Di biroquinha", de "Biroca", mais tarde de "Bir" e finalmente "Bill". Bill, até se tornar adulto, foi um desprivilegiado pela sorte. Meses antes do seu nascimento, quando Silvina estava entrando na família, durante um dos sucessivos desentendimentos, papai agrediu mamãe violentamente e ela, entrando em trabalho de parto, quase o abortou. Bill nasceu no tempo certo, mas com seqüelas. Devido ser uma criança pequena, magra, de aparência doentia, portadora de um estrabismo gritante, tornou-se, desde a mais tenra idade, vítima de preconceitos. Com dificuldades no desenvolvimento, acabou sendo preterido até pelos de casa, cuja atenção era toda voltada para mim, segundo mamãe comentava, “falante e cheio de iniciativas”. Bill tornou-se arredio e de pouco falar. Com suas atitudes sorrateiras, procurava sempre se opor a mim, o que denotava um ciúme inconsciente, quase doentio. Afinal, o caçula da família era ele e não eu, o usurpador. Em 1946, um ano e pouco depois da mudança para a Rua l5 de Novembro, após preparar um pequeno espaço no quintal da nossa residência, ali construí uma cidade de terra, com ruas, casas, jardins e tudo. Trabalhei a tarde toda e combinei com ele que no dia seguinte quando voltasse da escola, iríamos brincar e inclusive separei uns pedaços de pau dizendo que seriam nossos automóveis com os quais passearíamos pela cidade. Quando voltei da escola, qual não foi minha decepção. Parecia que havia passado um furacão pela cidade que, com tanto trabalho, construí. Não havia pedra sobre pedra Bill, naquela época com apenas 4 anos de idade, na minha ausência, pisoteou-a até destruí-la e como era seu hábito, nunca explicou o porque de tanta agressão. Em outra ocasião, quando eu vendia laranjas pelas ruas, enquanto repetia "olha a laranja dois e cinqüenta a dúzia", Bill que, algumas vezes, disfarçadamente me seguia por longo trecho, gritava de longe: "Não. Não comprem não Ele está roubando Ele pagou dois cruzeiros nelas e está querendo ganhar cinqüenta centavos". Pré-adolescente, estava eu na cozinha de casa, conversando animadamente com mamãe, expondo meus planos para o futuro, quando, sub-repticiamente, Bill apareceu por trás e aplicou violenta paulada em meu antebraço esquerdo e saiu correndo, voltando horas depois como se nada tivesse acontecido. Minha sorte é que ele era fraco e muito criança para conseguir me ferir. Bill mudou-se com nossa família para São Paulo em julho de 1959 e como adulto, continuou sendo uma pessoa difícil. Suas amizades sempre socialmente opostas às minhas e o nosso relacionamento apenas formal. Concluiu o curso científico, curou-se do estrabismo, casou-se aos 33 anos com uma excelente e compreensiva mulher, a italianinha Nilse Zanini e tiveram duas filhas, a Fernanda e a Roberta, sendo que esta última faleceu em l997, vítima de acidente automobilístico. No final, saindo do banco onde atingiu o cargo de Auditor e trabalhou por quase trinta anos, tornou-se comerciante, sócio proprietário de um supermercado em Osasco. Cinco anos depois faliu perdendo tudo, inclusive a casa onde morava e ingressou no serviço público, do qual era tão contra e uns dois anos depois, em 05.04.1995, faleceu prematuramente com problemas cardíacos, aos 53 de idade.
b) NAIR - Minha irmã sempre foi muito apegada comigo e costumeiramente elogiava-me para os outros, sempre enaltecendo minha inteligência e exageradamente minha aparência física.
Estávamos sempre juntos. Costumo dizer que neste mundo, além de mamãe, Nair foi a única mulher que realmente me achou "bonito". Nair, cuja parcela da fatura pela separação de nossos pais foi a mais onerosa, tornou-se muito difícil e portando de maneira defensiva, acabava sempre ofendendo aos demais. Conseqüentemente foi confinada a uma triste solidão. Não se casou oficialmente, nem teve filhos. Na sua adolescência, apesar dos elogios que na minha ausência continuava a fazer, pessoalmente maltratava-me ao máximo com palavras e palavrões. Era tão mordaz que escolhia o vocábulo certo para me ferir em grau máximo. Lembro-me que chorava desesperado quando ela me xingava, com todas as sílabas - "Ta-ra-do". Eu não sabia o que significava, mas ouvir aquilo, doia demais. Certa noite, ainda criança, acordei chocado com um pesadelo que tive. Sonhei que havia me casado com ela No sonho eu chorava e dizia: "Era com o meu casamento que um dia eu poderia morar longe dela e agora vejo que terei de passar o resto da vida na sua companhia". Nair ficou mocinha e sofreu demais nas mãos de papai. Certa feita cortou os cabelos e quase foi linchada de tão injuriado que o velho ficou. Ao dizer que estava flertando com um rapaz que, aliás, foi o único amor da sua vida, um tal de José Roberto Bonora, papai, reforçado pelas atitudes do meu irmão Noel que também a fiscalizava, fez tantas ameaças que ela nunca ousou trazer o namorado na porta de casa e ele terminou se casando com outra, apesar de se gostarem. Nair sofreu. Sua desdita era tão pungente que nesse particular eu sentia pena dela, pois, enquanto tudo me era permitido, até o direito de conhecer prostitutas, minha pobre irmã, por ser mulher, não podia sequer olhar dos lados. No final de 1958, antecipando à família, Nair saiu de Prudente com destino a São Paulo vindo morar na casa de nosso irmão Noel que já era casado. Trabalhou como operária em um frigorífico, Frigorífico Armour e posteriormente, como auxiliar de enfermagem, no Hospital do Servidor Público do Estado onde uns 15 anos depois, conheceu um senhor desquitado (não havia divórcio), Dr. Sílvio de Almeida e com ele se casou na igreja. Dr. Silvio faleceu uns dois anos depois e Nair ficou com um apartamento situado na Rua Jauaperi em Moema, bairro nobre de São Paulo e com uma pensão mensal (aposentadoria), pois que ele era servidor público. Nair faleceu em 29.01.1998 com câncer generalizado iniciado nas mamas e por sugestão e insistência minha, deixou um testamento doando todos os seus bens, inclusive o seu apartamento, para nossa cunhada Nilse, viúva do meu irmão Bill.
c) NOEL - Pouco contato tivemos na infância devido à diferença de idade quando obviamente nossos objetivos eram diferentes. Lembro-me mais a partir da sua pré-adolescência. Noel era um menino dinâmico, falante e muito comunicativo. Parece-me que em casa, seu ídolo era papai, pois que trabalhavam juntos e tinham a mesma ideologia política. - Eram comunistas Gostava de estudar, de conhecer outros idiomas e se dedicava muito ao inglês. Seu lazer predileto era cinema onde assistia especialmente, a filmes de mocinho, os famosos "bang bang à italiana". Recordo-me que muitas vezes Noel pedia para que mamãe lhe desse dinheiro para ir ao cinema e de tanto que insistia acabava convencendo-a, mas com a recomendação de que depois não voltasse contando o filme. Nada adiantava. Lá pela meia-noite chegava ele todo eufórico e, acordando mamãe, contava-lhe o filme inteirinho, com sonoplastia, encenação e tudo. Imaginem quantos tiros e quantas lutas não saiam. Mamãe, meio dormente, só balbuciava “hum, hum”. Apesar de aparentar tanta comunicabilidade, paradoxalmente ou devia ser um pouco tímido com as mulheres ou caiu na armadilha da primeira, pois só me recordo que se enamorou apenas com uma modesta italianinha com a qual foi obrigado a se casar. Pode ter tido outras namoradas, mas nunca fiquei sabendo. Recordo-me que tão logo se casou, seu sogro e papai mostraram bem o que eram. Nenhum dos dois deu-lhe o menor apoio. Noel com a mulher, praticamente expulso da casa que ajudou a construir nos fundos da residência do sogro, pediu arrimo ao nosso irmão Miguel que morava em Martinópolis-SP, onde nasceu o seu primeiro filho, Wanderley. Socorreu-se com nosso irmão Gonçalo que morava em Assis-SP. De lá, ao tentar voltar a Prudente, foi violentamente repudiado pelo seu sogro, quando então, papai entrou na briga e indo até a casa deste desafiou-o a enfrentá-lo. Como o sogro fugiu, após dizer muitas verdades à família que lá estava, papai se retirou e Noel foi tentar a vida em outro lugar. Noel mudou-se com a mulher e o filho para São Paulo e com muita dificuldade, mas com a coragem que nunca lhe faltou, conseguiu vencer essa triste fase, a ponto de mais tarde, nos convencer a todos a mudarmos como ele, inclusive papai com a sua outra família. Noel que foi um grande exemplo de hombridade, dignidade e perseverança, especialmente para seus irmãos mais novos, passou por um abalo psicológico tão marcante que sua maneira de interagir com a família de origem, se modificou. Daquele rapaz comunicativo, solícito e atuante, tornou-se um adulto fugidio, calado e irritadiço, sendo quase impossível mantermos qualquer dialogo. Aposentou-se das empresas onde trabalhou e, ainda seguindo a vocação que papai lhe transmitiu, Noel que já era técnico em contabilidade, estabeleceu-se com um Escritório em Barueri-SP e apesar dos seus já setenta anos bem vividos, trabalha com todo o vigor que sempre lhe foi característico. Felizmente Noel relaciona-se muito bem com seu filho Wanderley, com suas filhas Marly e Rosângela, com suas noras (uma delas, viúva de seu filho Edgard que acidentado, faleceu em 5.01.1980), com seus genros, netos, netas e com as outras pessoas que não são da família e vive até hoje com a mesma esposa, a pacienciosa Aparecida Sisto do Nascimento. Deixo aqui registrado que apesar de Noel haver se modificado tanto, continuo a respeitá-lo e a entendê-lo e minha gratidão para com ele continua tão marcante como sempre foi. Em realidade gostaria de, algumas vezes, estarmos juntos mas, como as circunstâncias não permitem, mantenho a distância devida.
d) GONSALO - Para nós Gonçalo, foi o ídolo da minha infância. Aos quatorze anos de idade, defenestrado de casa pela situação econômica da família, nem por isso se abalou. Começou como entregador de pães em domicílio, parece-me que em Álvares Machado; depois tornou-se revendedor e fornecedor de doces para os bares até das cidades próximas e por muito tempo trabalhou no buffet dos trens de passageiros da estrada de ferro Sorocabana. Mais tarde gerenciou um dos respectivos restaurantes. Era um jovem alegre, simpático e estava sempre contando alguma piada; muito bem relacionado com as mulheres, teve várias namoradas e outras tantas amantes passageiras. Era exímio freqüentador de casas de prostituição das cidades onde pernoitava, em especial - Assis-SP e Porto Epitácio-SP. Chegou a se relacionar como amante, com uma das irmãs de um diretor do primeiro grupo escolar de Presidente Prudente, em uma época que essa família era socialmente muito importante. A moça morava em Santo Anastácio-SP. Nunca vi ou ouvi Gonçalo reclamar da vida ou de falta de dinheiro. Constantemente dava dinheiro para mamãe. Um dia sim outro não, passava ele por Presidente Prudente, nos trens onde trabalhava e para nós, seus irmãos mais novos, inclusive para o Noel, eram dias importantes, pois que o esperávamos na estação da ferrovia, ocasião em que ele dava, para cada um de nós, uma nota de um cruzeiro, com a qual, podíamos tomar dois sorvetes de duas bolas. Gonçalo também demonstrava uma visível predileção por minha pessoa. Todos os anos, a pretexto de presentear-me por aprovação na escola, levava-me a passear em Assis-SP, onde passava um fim de semana e, na companhia de uma das suas namoradas, levava-me ao cinema com a irmãzinha da moça, aconselhando-me a namora-la. Sempre que precisava, nessas viagens, comprava-me cinto ou suspensório novos e fazíamos as refeições nos restaurantes da cidade. Não me recordo de Gonçalo ter feito esse mimo para o Bill, para a Nair ou para o Noel, nem mesmo eles sendo aprovados na escola, fato que nem tomava conhecimento. Em 1951 se casou com Dirce Seródio Novo, uma linda italianinha. Foi o dia no qual mais chorei na minha vida. Nessa época Gonçalo era novamente comerciante de pães e tinha duas carroças tipo baú para entrega em domicílio, dois empregados, uma bela e bem mobiliada casa própria na região central de Assis-SP. No início dos anos 60, consegui indicá-lo para trabalhar como vendedor-viajante em uma indústria de rádio e televisão de São Paulo, a Telespark e Gonçalo melhorou ainda mais de vida, pois que, com sua personalidade tornou-se um dos melhores vendedores da empresa com invejável remuneração mensal. Em 1967, um mês depois de completar quarenta anos de idade, acometido de grave enfermidade cardíaca, angina pectoris, Gonçalo faleceu, deixando esposa e um casal de filhos. O Ednei, médico, especializou-se em oftalmologia. A Evanice, graduou-se em engenharia civil. Até no episódio da sua morte Gonçalo não perdeu seu bom humor. Após ler um livro que descrevia os sintomas da sua doença ao perceber que seu final estava próximo, visitou irmão por irmão e se despediu de todos, e entre sorrisos e gostosas gargalhadas nos convidava a ir a seu enterro que, segundo ele, seria muito em breve, conforme ocorreu. Lembro-me de que ele que era muito obeso, ao me convidar, batendo na própria barriga, sorrindo ameaçou: - Olha, Jaime Se você não vier ao meu enterro eu vou deitar com essa barrigona para cima em qualquer estrada onde você estiver e fazer seu carro dar umas três cambalhotas; portanto, não falte Depois de um convite desse, fui ao velório e ao seu sepultamento.
e) MIGUEL - Quando do episódio da separação de meus pais, Miguel tornou-se o arrimo da nossa família e apesar da sua pouca idade, cerca de 16 anos, era o homem da casa. Enquanto mamãe lavava roupas, ele, com um ferro a carvão, as passava e ajudava na administração das finanças. Naquela época, tentou ser cambista de jogo de bicho, que ainda era lícito e foi auxiliado por um rapazola nipônico. Seu nome, parece-me que era Shiguero. Certa feita alguém fez uma fezinha de alguns tostões e o japonesinho que era muito pobre, para matar a fome não repassou o dinheiro e o gastou, comendo bananas. Para infelicidade geral, o freguês ganhou e não conseguindo receber, descobriu a fraude e ameaçou queixar-se à polícia. O amigo de Miguel ficou vários dias escondido em nossa casa até a solução do impasse. Apesar de inteligente e grande auxiliador de mamãe, Miguel demonstrava ser uma pessoa sem muita iniciativa e inclusive, tímido com as mulheres. Recordo-me que somente se enamorou com uma única moça mas acabou levando o fora e chegou a dar vexame. Era uma tal de Lia, filha da dona Joaninha, uma pernambucana, nossa vizinha, amiga de mamãe. Miguel nunca mais namorou outra moça e quando se aproximava de mulheres só o fazia com as de prostíbulos, característica de mórbida timidez. Miguel que tinha só o 2º ano primário, começou trabalhando na lavanderia de mamãe e o máximo que progrediu foi tornar-se passador de ternos masculinos e depois, barbeiro. Tentou a mesma profissão de Gonçalo, trabalhando com um buffet na estrada de ferro sorocabana. Pelas suas características pessoais somente conseguiu espaço no trem misto que além dos vagões de carga transportava apenas dois de passageiros, um de primeira e outro de segunda classe, mesmo assim, somente pessoas pobres. Naqueles tempos, as pessoas da classe média para cima, viajavam nos trens de passageiros e os milionários corajosos, de avião. Não havia estrada de rodagem asfaltada e os aviões eram semanais. Esse trem era considerado rapidíssimo. De Prudente a São Paulo, cuja distância é de 560 km fazia em 24 horas, enquanto que o misto levaria umas 60 horas, com baldeações (troca de trens) de doze em doze horas. Conseqüentemente Miguel só vivia reclamando da vida e queixando-se da falta de dinheiro e da própria sorte. Muito supersticioso, dizia que tinha algum "encosto" (mau espírito) a prejudicá-lo e que por isso, sua situação não melhorava; parecia que o dinheiro evaporava de seu bolso. Quando íamos à estação, a exemplo do que fazíamos com o Gonçalo, Miguel raramente nos presenteava. Lembro-me que certa feita, ao reclamar da falta da gorjeta, Miguel sacou uma moedinha de vinte centavos e gritou: "Toma, moleque e vê se não me enche mais o...".
Ao constatar o valor, arremessei-a em baixo do trem e a Nair que ainda era muito infantil, quase desmaiou de medo da moeda ser atropelada. Contava Gonçalo que começou um tal de furtarem, uns dos outros, os respectivos sacos de garrafas vazias; que ao ser furtado, não estrilou e apenas pensou - "vou me desapertar em alguém pois que... ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão". Dias depois ao chegar em Assis, viu um lindo saco de garrafas na plataforma da estação e enxergou até um aviso - "leve-me, por favor". Sorrateiramente pegou o saco e misturou com os seus, compensando-se do prejuízo anterior. Horas depois deparou com o Miguel chorando e gritando que tinha sido roubado. Apesar da tristeza, ficou num dilema, se devolvesse para o Miguel que não sabia guardar segredos, todos os colegas de profissão iriam taxá-lo de ladrão e pagaria pelos demais sacos roubados. Se calasse, Miguel ficaria com o prejuízo. Das duas alternativas, ficou com a melhor e Miguel, apesar de saber da possibilidade do furto, e não tomando as devidas cautelas, arcou com as conseqüências. Tempos depois, Miguel desistiu de ser comerciante e associando-se com a nossa querida e amável Mercedes, uma jovem descendente de italianos que morava em Martinópolis-SP, assumiu à profissão de tintureiro, profissão essa, daqueles que tingiam, lavavam e passavam roupas. Uns dez anos depois começou a cortar cabelos e montou uma barbearia, mudando de atividade. Amasiou-se com Mercedes e viveram maritalmente até o resto da sua vida. Tiveram um casal de filhos, o Rui e a Osmarina. Sua vida era pacata e como lazer, dedicava-se à música e por muito tempo foi maestro contratado da banda municipal da cidade. Assim como papai, Miguel era comunista e na revolução militar de 1964 por muito pouco não foi decapitado. Consta que na época, o comunismo no Brasil era representado por duas facções. O partido comunista brasileiro (PCB) de orientação Russa que pretendia chegar ao poder pelo voto e o partido comunista do Brasil (PC do B), da linha chinesa com a mesma pretensão pelo uso da força. Marcando a revolução para uma data simbólica, 21 de abril daquele ano, o dia consagrado a Tiradentes, o PC do B organizou em todo país os chamados "Grupo dos Onze" que entrariam em combate, quando fosse necessário. Miguel, chefiando um dos grupos, ao receber a mensagem de que as armas estavam a caminho, escreveu uma carta a Leonel Brizola, postando-a, no dia 30.03.1964. As forças armadas brasileiras que através do seu serviço de inteligência havia detectado toda a manobra, decidiram na manhã do dia 31.03.1964, terça-feira, depor o poder constituído do país, então favorável ao comunismo e assumiram o governo da nação. Nesse ínterim a carta de Miguel que jazia no correio, sendo confiscada, foi objeto de repercussão nacional. A principal revista da época, "O Cruzeiro", soltou a seguinte manchete: "Dentre as inúmeras cartas confiscadas, vamos publicar uma, vinda de Martinópolis, cidade do interior paulista: Digníssimo Camarada Brizola: Recebi a mensagem avisando que as armas estão a caminho, mas não entendi. Porque armas? A nossa arma não é o voto popular, com o qual pretendemos chegar ao poder? Com todo respeito peço que me esclareça. Assinado, Camarada Miguel Graciano do Nascimento". Levado à Delegacia, graças a tanta ingenuidade, foi logo liberado e nunca mais se envolveu em política. Miguel apesar dos pesares, apesar da sua choradeira e das constantes reclamações que fazia da vida, era uma boa alma que nunca prejudicou ninguém. Com alguma freqüência nos visitava, pois que era muito apegado a mamãe, mas, com os demais familiares de origem, era apático, quase indiferente, aliás, mamãe sempre nos aconselhava a termos paciência com ele porque, segundo ela, Miguel tinha sofrido muito na vida. Miguel amava muito sua mulher, seus filhos e seus netos. Nos últimos tempos, não obstante sua índole, sempre que eu viajava ao interior, passava algumas horas com ele e com sua família e assim o visitava duas vezes por ano pois sentia um certo respeito e mesmo gratidão por ele. Sua filha Osmarina casou-se e foi morar em Guarulhos-SP. Seu filho Rui também se casou e continuou morando em Martinópolis-SP com a profissão de barbeiro e pelo que pude observar, o filho mais velho de Rui já tinha se iniciado na profissão do pai e do avô. Miguel que nunca saiu de Martinópolis, aposentado com um salário mínimo, continuou com o salãozinho até o seu falecimento aos 74 anos, em 03 de janeiro de 1999, acometido de câncer na próstata.
MANOEL BENEDITO - O primeiro filho de meus pais, criado por Dindinha, com o qual não tivemos convivência, era tratado por um dos seus apelidos, Dedé ou Nascimento. Desde que o percebi no mundo, ele já era casado com Mariazinha, uma mulata clara bastante ativa. Tinha carro próprio, demonstrando razoável condição econômica. Sempre foi uma pessoa dinâmica e trabalhadora. Na minha pré-adolescência, Dedé ingressou na polícia onde trabalhava como Escrivão e sempre morou nas cidades próximas de Presidente.Prudente, primeiro em Indiana-SP e finalmente em Rancharia-SP. Dedé teve um casal de filhos, Sônia e Sérgio, sendo que este último, faleceu antes dos 25 anos de idade. Dedé que praticamente passou a vida nessa última cidade, bacharelou-se em Direito e depois de aposentado como Escrivão, tornou-se advogado, vindo a falecer aos 63 anos em 1985, vítima de problema cardíaco.
COMPLEMENTAÇÃO
Uma característica marcante em todos nós é a de que, nenhum se livrou de ser atingido pela conduta de papai, com a conseqüência que sempre nominei de "o custo da separação de casais" que a exemplo de uma operação comercial cuja fatura, na inadimplência dos reais devedores, acaba sempre sendo paga pelos fiadores, no caso, os filhos da família. Em maior ou menor grau, somos todos neuróticos, sobreviventes de uma verdadeira guerra psicológica. Nem por isso devemos condenar papai, afinal, a vida é um teste de qualidade a que somos submetidos por Deus e se não fossem aqueles, teriam sido outros os problemas que dignamente teríamos de enfrentar. Deixando o negativismo de lado, podemos observar que essa experiência demonstrou que felizmente não faltou inteligência a nenhum de nós. Diz um popular provérbio que: - "Os inteligentes aprendem com a experiência alheia. Os medíocres com a própria e os tolos, nunca". Nenhum de nós se separou das esposas, o que não quer dizer que todos casamos bem e que não houve necessidade de algum sacrifício pessoal, para se evitar separações por incompatibilidade entre cônjuges. Com a experiência de papai, a exemplo do referido provérbio, aprendemos a preservar nossas famílias, objetivando o bem estar e o futuro de nossos filhos. Pode ser observado também que dos sete filhos de meus pais, os três que morreram com problemas cardíacos eram baixinhos com pouco mais de um metro e cinqüenta de altura, peso acima do normal e com suas características físicas semelhantes às de mamãe que também faleceu do coração, mas devido à vida regrada, conseguiu chegar aos 81 anos. Minha irmã Nair, meu irmão Miguel que morreram de câncer, o meu irmão Noel e eu, o mais alto, com um metro e sessenta e oito de altura e peso de 68 quilogramas, tivemos nossas características físicas bem próximas das de papai que passava de um metro e sessenta, peso proporcional e morreu de câncer na próstata.
CAPÍTULO IX - O RELACIONAMENTO SOCIAL
A vida nos era complicada. Papai para fustigar mamãe e indiretamente a todos nós, mantinha-nos confinados no casebre da 15 de Novembro. O dinheiro era pouco e, por conseguinte, nossas roupas empobrecidas. Nos cursos que freqüentávamos nossos colegas em geral pertenciam a famílias mais abastadas. Entristecia-me quando podíamos freqüentar aulas sem uniformes e entre colegas que pareciam desfilar com roupas típicas da moda. Lá estava eu, sempre com a mesma calça, com a mesma camisa e sapatos rotos. Por mais que tentássemos reforçar nosso círculo de amizade, não tínhamos coragem de convidar os amigos a freqüentar nossa casa; enquanto as da maioria deles eram bem apresentáveis, a nossa, uma simples casa de madeira escurecida, sem pintura, onde imperava desmedida aparência de pobreza, nos impedia desse relacionamento. O resultado é que a cada dia fui me tornando uma pessoa deprimida, desolada e com as feições abatidas. No período matinal convivia com meus vizinhos, verdadeiros moleques de rua que, ou estavam jogando futebol ou estavam brigando. Viviam numa disputa ferrenha para ver quem era o mais forte, quem jogava futebol melhor ou quem abusava sexualmente do outro. Escola?... Nem pensar A maioria deles sequer concluiu o curso primário. À tarde, meus outros colegas não falavam em futebol. Na aula de educação física jogávamos basquete e vôlei. Ninguém falava em sexo, nem se agredia fisicamente. Nosso assunto era química, física ou matemática. Se de um lado não conseguia relacionar com os meus vizinhos, do outro não tinha condições de participar do mesmo lazer dos colegas de escola que, nos finais de semana, freqüentavam o Tênis Clube ou a sede social da Prudentina, a A.P.E.A., onde praticavam natação e outros esportes. Essa foi uma das razões que me levaram a não gostar de futebol que, na minha infância, era esporte de pessoas grosseiras, entre as quais freqüentemente se ouvia orgulhosos gritos: "Eu sou macho Eu sou macho" (sic). Esqueciam-se de que os animais, também eram machos, iguais a eles. Desde aquela época, contrariando essa afirmação, eu que admirava tanto as mulheres, orgulhava-me sim, de ser homem, pois ser macho ou ser fêmea, sendo apenas uma característica física, o somos independente da nossa vontade, enquanto que ser homem ou ser mulher, era e é um ato de sabedoria, de amor próprio, de amor ao próximo e à família. Inclusive a Bíblia nos ensina que o homem (não o macho) foi feito à imagem e à semelhança de Deus. Para implementar nosso sofrimento, éramos também atingidos por uma outra manifestação negativa, própria da humanidade – o preconceito - sobressaindo em todos os momentos da nossa vida apesar de severamente combatido. Inclusive as legislações modernas incriminam algumas de suas modalidades, em especial o racial e o religioso. Quanto ao econômico, o mais abrangente de todos, não há como combatê-lo. Ser pobre é o que não se deve desejar nem ao pior inimigo e muito menos a si próprio. A sociedade apesar de mostrar grande preocupação com a pobreza, taxativamente rejeita as pessoas pobres. A preocupação é com a pobreza e não com os pobres. Fazem campanhas sociais, todavia, movidos pelo exibicionismo ou sentimento menor, lançam-se em ações populistas arrecadando e doando alimentos aos menos favorecidos. Fingem esquecer do sábio provérbio chinês: "Não dê peixe a quem tem fome. Ensine-o a pescar". Efetivamente se lhes dessem oportunidade de trabalho, as entidades beneficentes perderiam a razão de ser e seus objetivos, inclusive os não revelados, seriam prejudicados. Convém-lhes que os pobres continuem existindo.
CAPÍTULO X - MEU RELACIONAMENTO PESSOAL Sou uma pessoa que desde o início da minha interação com a vida, já manifestava forte atração pelas mulheres, talvez uma projeção da admiração que sentia por mamãe. A partir de 1941, em Álvares Machado, abandonada, mamãe, que para ganhar a vida trabalhava como lavadeira, algumas vezes participava da colheita de algodão nos sítios próximos e deixando meu irmão mais novo sob os cuidados dos demais, levava-me com ela. Lembro-me que na lavoura não ficava olhando as flores, os bichinhos ou as borboletinhas como as crianças normais certamente ficariam. Ao contrário. Gostava de admirar as mulheres que ali trabalhavam. Certa vez ao comentar que estava gostando de uma delas, ao ver que a moça havia percebido, quase morri de vergonha e procurei esconder-me sob as saias de mamãe. Nessa mesma época, uma jovem chamada Luzanira, talvez interessada em meu irmão Miguel, freqüentemente passava em minha casa, quando vinha de Pirapozinho-SP onde morava. Adorava ficar em seu colo e, na sua ausência, dizia que era minha namorada. Até meus dez anos de idade era comum roubar beijo no rosto das meninas que moravam próximas de casa. Certa feita, ao beijar Iracema, a filha de uma família de italianos, seu irmão mais novo que a tudo assistia, avançou contra mim. Além de ter a irmã beijada, o garoto levou uma violenta surra e seu pai veio tirar satisfações com mamãe, exigindo que me desse mais educação. Aos l5 anos fui beijado pela primeira vez por uma mulher adulta e mais velha do que eu. Era a Luiza Yamashita, uma japonesinha, colega de classe. Nessa época também fui cortejado por uma outra moça aparentando uns 35 anos de idade, a Carmélia que procurava, de todas as formas, me conquistar. Na ocasião emprestou-me Cr$ 3.050,00 que lhe devolvi anos depois, sem juros, sem correção monetária e sem qualquer cobrança da sua parte. Além das duas, tive outras pretendentes compatíveis com minha idade. A Vicentina e a Maria José Gomes, mas ambas fisicamente, não me agradaram. Desde o cursinho para o exame de admissão ao ginásio, passei a ter empatia muito grande com uma coleguinha da classe e sempre a presenteava com goiabas madurinhas, colhidas na goiabeira próxima ao quintal de minha casa, mas devido a nossa diferença social, apesar da reciprocidade, me afastei, sonhando que um dia, quando as condições permitissem, pudesse procurá-la. Seu nome era Deuci Lopes Duran. Como nenhuma menina desse gabarito, até então, havia me dispensado aquele tipo de atenção, por ela me apaixonei e posso afirmar, com todo respeito a minha esposa que em sendo platônico, foi o primeiro amor da minha vida, cuja lembrança até hoje subsiste. Antes que meus sonhos se concretizassem, Deuci se casou com outro e não sendo feliz, suicidou-se sem saber dos meus sentimentos. No final dos anos 70, visitei seu túmulo no cemitério de Presidente Prudente. Tempos depois, interessei-me por outra menina, cujo nome não me recordo, filha mais nova da Dona Delfina, uma inspetora de alunos do I.E Fernando Costa.
Apesar da minha insistência recebi um disfarçado "chega pra lá." A exemplo do que aconteceu com essa, a dificuldade de aproximação com as meninas que me interessavam era tão grande que a cada dia tornava-me mais arredio. Recolhido ao meu quarto onde só contava com a companhia de Deus, com quem mentalmente dialogava, anotava em um diário cifrado os meus sentimentos. Hoje compulsando o referido diário, li em uma de suas mensagens: "21.Ago.1955, Domingo. - Até hoje interessei-me por cerca de 25 meninas, dentre elas: Nenê, Vilma, Judite, Claudete, Dolores, Elza, Carolina, Catarina, Neuza, Grinália, Deuci, Zilda, Ivone, Terezinha e Cleonides." Destas só me recordo de duas ou três, ignorando quem são as demais. Certa feita, indo passear em Assis-SP na casa de meu irmão Gonçalo, um dos seus cunhados levou-me a uma vila de prostituição onde relacionei-me com a primeira mulher adulta de minha vida. Aos 13, convidado, "fiz" com uma menina de 11, cujo nome recuso-me declinar. Lembro-me que paguei a prostituta com uma nota de cinqüenta cruzeiros e naquela ocasião ocorreu-me um fato perigoso, mas jocoso. Dias depois do meu contato com a mulher, comecei a suspeitar que havia adquirido alguma doença venérea. Fui consultar papai e ao tentar comentar o assunto, fui repreendido sob a alegação de que o estava desrespeitando. Não tendo outra saída, como conhecia um outro senhor que trabalhava de faxineiro numa loja ao lado da tipografia do Godoy, cautelosamente perguntei-lhe o que sabia sobre doenças venéreas. O homem afirmou que, quando moço, tinha sido enfermeiro e era sua especialidade cuidar das pessoas contaminadas por essas doenças; que havia algumas tão graves que para fazer o curativo era necessário cortar o pênis com uma faca no sentido longitudinal como se fosse uma banana e depois costurá-lo com uma agulha. Quando percebeu que havia me deixado apavorado, perguntou-me, como se nada estivesse acontecendo, do porque da minha preocupação e narrei-lhe tudo. O velho fingindo-se de responsável propôs examinar-me, logo à noite, num banco do jardim embaixo de uma árvore que ficava no largo da matriz de São Sebastião, no centro da cidade. No horário combinado (vinte horas) lá estávamos. Alegando que estava passando muita gente por perto, sugeriu que fôssemos a um lugar mais ermo e descemos uma rua próxima até chegarmos às margens de um ribeirão. Agindo como quem me examinava, ao sentir que estávamos a sós, repentinamente começou suspirar e fazer propostas indescritíveis, identificando-se como homossexual passivo. Apavorado comecei a me afastar e o homem só se conteve, quando prometi que o encontraria no dia seguinte as três da tarde, no banheiro da estação rodoviária da cidade que ficava no inicio da Rua Cassimiro Dias. Cuidado com as crianças - Dizem que até hoje, um velho permanece nas imediações do banheiro daquela estação, esperando por um menino. Em 1953 fiz um curso por correspondência de rádio-técnico, no Instituto Rádio Técnico Monitor, sediado a Rua dos Timbiras em São Paulo-SP. Tentei a profissão por conta própria, mas criança como era, felizmente não deu certo e a abandonei. O meu diário demonstra uma grande preocupação com as mulheres e com o futuro profissional que até então se apresentava obscuro, perigoso, desconhecido e com papai sempre me dizendo que no dia em que saísse de casa iria me alimentar com sopa de pregos, insinuando que a vida me seria difícil. Sem nenhuma luz a me guiar, apoiava-me apenas na confiança que depositava em Deus. Nessa época, não tendo como conquistar determinadas meninas, contentava-me com as socialmente inferiores, só não avançando mais, para não engravidá-las. Apesar de muitos idosos dizerem que aquele era o tempo em que havia moral, nos recônditos da cidade, freqüentemente lá estava eu, ao lado de alguma desesperançada, fazendo de tudo que se faz hoje. Melhor fariam se calassem ou dissessem que naqueles tempos imperava a falsa moral, uma das conseqüências da luta íntima de cada um que ao extravasarem os seus instintos, ao mesmo tempo, tinham que demostrar respeito aos ensinamentos religiosos. Papai, apenas uma vez me aconselhou: - Filho. Cuidado Enquanto você pensa que está fazendo mal para as moças, são elas que estarão fazendo para você - Filho se você quer que respeitem sua irmã, respeite as irmãs dos outros.
CAPÍTULO XI - O SERVIÇO MILITAR
A CONVOCAÇÃO - Aos dezoito anos fui convocado para servir ao Exército Nacional, no estado de Mato Grosso do Sul. Na tarde de 28 de maio de 1957, terça-feira, exatamente as 14h10 parti de Presidente Prudente viajando em um trem da estrada de ferro sorocabana na companhia de outros duzentos jovens da região. Esse número foi aumentando no trajeto. Durante o percurso, até a cidade de Bauru-SP, os bares das estações por onde passávamos, eram previamente fechados, pois os abertos, acabavam sendo depredados ou assaltados pelos convocados. Em uma cidade onde nosso trem quase pernoitou, tarde da noite em bando saímos correndo por uma avenida onde encontramos um bar aberto. A exemplo dos demais colegas que roubaram tudo, consegui “apoderar-me” apenas de duas garrafas de refrigerante enquanto o proprietário, um velho japonês, gritava por socorro. Conforme minhas anotações, às 21h30 passamos por Ourinhos-SP e em Rubião Júnior-SP entramos em um ramal de acesso à estrada de ferro noroeste, chegando às 07h30 em Bauru e despejados no pátio da 6ª Circunscrição Regional, ali permanecendo até o dia seguinte. Lembro-me que, ao passarmos por uma recontagem, um “Sargentão” que fazia a chamada, por várias vezes repetiu o nome de um convocado que não respondeu. No final, perguntando se algum dos presentes não tinha sido chamado, um rapazola levantou a mão, concluindo que se tratava da pessoa não identificada. Ao lado do Sargento estava um Cabo descendente de japonês que, na tentativa de agradar o superior, com um sorrizinho de escárnio comentou: - Credo Sargento Que sujeito bocal Imediatamente o Sargento em tom arrogante e autoritário o corrigiu: - Bocal não, seu idiota Boçal. O cabo meio desconsertado baixou a cabeça e continuou com seus afazeres.
A nossa primeira refeição, desde o início da viagem, só nos foi servida naquele dia às 13h15 e não passou de sanduíche de pão com mortadela. Em Bauru pernoitamos dentro dos vagões de um trem da estrada de ferro noroeste e seguimos viagem. Desta vez, escoltado por soldados do próprio exército fortemente armados, o que deu fim às nossas algazarras. Esse novo trem, puxado lentamente por uma locomotiva a vapor, era equipado com um vagão de carga onde improvisaram uma cozinha. Na hora das refeições (almoço ou jantar) com o trem parado no pátio de uma estação qualquer, descíamos enfileirados e junto desse vagão distribuiam bandejas de alumínio, onde os soldados que trabalhavam na cozinha, de qualquer forma jogavam de dentro de panelões, conchadas de arroz, de feijão e de uma sopa de mandioca com carne. Foi aí que descobrimos porque os matogrossenses eram chamados de “mandioqueiros”.
Após a primeira refeição ordenaram que limpássemos as bandejas. Como não havia água, nos orientaram a “limpá-las” com a areia do chão, eis que o solo matogrossense margeando a estrada era bastante arenoso e isso facilitava a tarefa. A tarde, munidos daquelas “higienizadas” bandejas voltávamos a nos alimentar. Na manhã do dia 31.05.1957 desembarcamos dentro de uma outra área militar, em Campo Grande-MS.
Estávamos em um Quartel de Cavalaria no bairro Amambaí. Não versado em coisas do campo, só ao ver aqueles enormes animais bufando, tentando morder e coicear seus tratadores, comecei a sentir calafrios. Minutos depois, um Sargento munido de uma prancheta, apontando para um comboio, gritou: - Aqueles que eu chamar, subam na carroceria daqueles caminhões Em carreata, nós, os escolhidos, atravessamos a cidade e chegamos em outro Quartel, onde haviam dois alojamentos, um para os integrantes da Cia de Polícia do Exército e outro para os da Cia do Quartel General da 9ª Região Militar.
A INCORPORAÇÃO - No dia 12 de junho de l957, a exemplo dos demais recrutas que mediam até 1,70 m. de altura, fui incorporado na Cia do Quartel General Regional da 9ª Região Militar. Os mais altos o foram na Cia de Polícia do Exército. Meu nome de guerra escolhido por eles, passou a ser, Soldado Nascimento. Meu número, 538. Dias depois, consultados se algum de nós escrevia a máquina, após titubear, respondendo afirmativamente, submeteram-me a um rápido teste e dentre outros concorrentes, a partir de 26.06.57 fui lotado no Contingente do Quartel General sediado na Avenida Afonso Pena, região central da cidade, permanecendo alojado na Companhia.A 9ª RM era comandada pelo General de Divisão Nilo Horácio de Oliveira Sucupira, um senhor imponente que trajava farda diferente dos demais, quer pelas inúmeras estrelas douradas quer pelas medalhas que ostentava e os ramos de café desenhados em seu quepe. A sua chegada era anunciada por uma estridente corneta e ele passava por um corredor formado por Oficiais devidamente posicionados que lhe prestavam honra militar. Certa feita descendo do andar superior cruzei com o referido General e o cumprimentei com a regulamentar continência. Paternalmente, o General segurou-me pelos ombros, perguntando-me: - Você, menino Ainda não aprendeu a fazer continência para seu General? Diante de tanta delicadeza, lembrei-me de que na escada, o praça que cruzasse com algum oficial, antes da continência devia parar e tomar posição de sentido. No QGR/9ªRM fui designado para trabalhar no Serviço de Justiça, anexo à Ajudância Geral, chefiada pelo Cel Paulo Xavier, onde apenas manuseava Inquéritos Policiais Militares, datilografando despachos interlocutórios e relatórios finais para encaminhamento à Justiça Militar. Diferentemente da Cia, cujo expediente era das cinco às dezessete, no QGR, era das 12H00 às 17H00, com exceção das quartas e dos sábados, das 9H00 às 13H00, coincidindo com o da Cia. Quando na Cia, periodicamente respondíamos a plantões denominados de pernoite. No QGR, passamos a ser escalados a fazer parte do corpo da guarda do quartel ou da casa do Coronel Chefe do Estado Maior. Na primeira vez que participei da guarda da referida casa, no quintal descobri um pomar de cajueiros carregados de apetitosos frutos vermelhos, maduros, prontos para serem deglutidos. A noite não pensei duas vezes. Durante o meu turno que era de duas horas por quatro de descanso, comi o quanto pude e transmiti a “ordem” aos demais soldados que me renderam. Pisávamos no chão molhado em volta dos cajueiros e com os coturnos sujos de barro, rondávamos a casa. O resultado é que o pátio da linda mansão amanheceu que era só barro. Quando minha equipe retornou à Cia. e entramos em forma para passar o serviço, um subtenente de uns quarenta e cinco anos de idade, branco, alto, gordo, pesando uns 130 quilos, subindo na plataforma utilizada pelo comando para dar ordens à tropa, lá de cima gritou: - Paulistas, mortos de fome Vieram matar a fome aqui em Mato Grosso? - Os esfomeados que estiveram de pernoite na casa do Chefe do Estado Maior dêem um passo a frente. Ato contínuo, nós três, os escalados, minutos depois “armados”, cada um com uma vassoura, retornamos ao “local do crime” e deixamos tudo limpinho, trabalhando até o meio dia. Felizmente foi só essa a nossa punição e não chegou a constar dos nossos prontuários. Entre nós, soldados, para ganharmos algum dinheirinho extra, algumas vezes, sem que os superiores soubessem, tirávamos o plantão de quem pagasse. Eram Cr$ 20,00 a mais. Certa vez eu e outro soldado “entramos nessa” substituindo o plantão de outros dois e para infelicidade geral quando olhamos a escala do dia seguinte, estávamos escalados para nos auto-rendermos. Fingindo que nada sabíamos, entramos novamente em forma e reassumimos o plantão. O Oficial de Dia, percebendo pelas nossas feições cansadas e pelas nossas fardas sujas e amarrotadas passou a nos interrogar, descobrindo tudo. No dia seguinte, chamados na Chefia da Ajudância Geral para sermos sentenciados, ao ouvir a acusação, imediatamente contra argumentando, concluí assumindo toda responsabilidade, sugerindo até que fosse o único a ser punido. Devo ter sido tão convincente que o Major que nos ouviu, apenas nos advertiu verbalmente e terminou por nos aconselhar a nunca mais fazermos aquilo. O meu colega e seu parceiro tentando se eximirem e responsabilizarem terceiros, foram punidos com 30 dias de cadeia. Paralelamente ao serviço militar, logo no mês de julho de 1957 requeri transferência do I.E. Fernando Costa e matriculei-me em um colégio particular em Campo Grande, cuja mensalidade era de Cr$ 400,00. Papai até o final daquele ano custeou os meus estudos e por uma agência do Bradesco que era apenas conhecido por Banco Brasileiro de Desconto, mensalmente continuava enviando minha mesada. De todos os filhos, parece-me que fui o único que ele gratificava mensalmente, desde o episódio do meu trabalho na tipografia. Desacostumado com qualquer disciplina e muito menos com a militar, enfrentando as cansativas instruções e um programa escolar completamente diferente do que vinha sendo aplicado no colégio de Prudente, esgotado e perdido, desisti de estudar naquele ano. Permaneci alojado na referida Cia até o final de dezembro de l957, quando após rigoroso curso e exame final, fui promovido a Cabo Burocrata, recebendo a divisa enfeitada com o desenho de duas penas cruzadas que simbolizam a função. Meu soldo cresceu. De Cr$ 150,00 (cruzeiros) passei a perceber Cr$ 3.200,00 e meses depois, Cr$ 4.500,00. Em 1958 rematriculei-me no 2º científico, porém, no Colégio Estadual de Campo Grande, onde consegui vaga e não pagava mensalidades. Imediatamente desalojei-me e alugando um quarto por Cr$ 600,00 numa vila de rapazes solteiros, também na região central da cidade para lá me mudei, após comprar por Cr$ 100,00, uma cama de solteiro usada, com colchão, lençol, cobertor, travesseiro, percevejos e tudo. As refeições (café da manhã, almoço e jantar), passei a fazê-las numa pensão próxima, ao preço de Cr$ 1.500,00. Apesar de não mais freqüentar igrejas, aprendi com os pastores evangélicos sobre o dízimo e sempre guardava, pelo menos, dez por centro do que recebia e mesmo com tantas despesas, nesse período consegui guardar algum dinheiro e o emprestava a juros aos meus colegas militares, sem perigo nenhum, pois a cada transação, assinava-se na tesouraria do quartel, um documento denominado “cautela” que vinha descontado do soldo do mutuário e creditado ao do mutuante. Tudo transcorria como pedi a Deus. Levantava as oito da manhã, tomava meu café, estudava um pouco, almoçava e as 12 horas entrava em serviço , onde calmamente trabalhava até às l7 horas e a noite ia ao colégio quase em frente ao Q.G.R, na mesma avenida. A vida melhorou ainda mais ao descobrirem minha facilidade em resolver problemas de matemática, tipos daqueles encontrados num livro intitulado O homem que calculava, escrito por Malba Tahan, pseudônimo através do qual se ocultou um professor e escritor brasileiro (1895-1974). Naquela época, traziam-me problemas que exigiam alto raciocínio e eu pedia para que o interlocutor os lesse. Quando a pessoa terminava, instantaneamente escrevia o resultado numa folha de papel, sem fazer contas ou usar máquina de calcular que, aliás, não conhecia.Um dos problemas que mais me agradou e gostaria que o leitor o resolvesse como eu resolvia, ou seja, sem uso de calculadora, sem uso de computador ou de rascunho, no máximo em um minuto: - “Tenho o dobro da idade que tu tinhas, quando eu tinha a idade que tu tens. Quando tiveres a idade que tenho, a soma de nossas idades será 45. Que idade temos?” Somente vi uma outra pessoa com aquela minha extinta facilidade. Anos depois, num canal de TV em São Paulo, apareceu um professor que dava shows pela televisão, resolvendo problemas matemáticos da mesma forma que eu. Praticamente tiraram todo o meu serviço e durante o expediente do quartel, ficava em uma sala sozinho aguardando a chegada de mais algum interessado em testar-me. Os curiosos vinham a minha procura de todas as unidades militares do estado de Mato Grosso do Sul e do estado de Mato Grosso onde minha fama correu, ficando conhecido como o Cabo Matemático.
O RELACIONAMENTO INTERPESSOAL
Numa época na qual eu já vislumbrava três tipos de personalidades femininas, ou seja, as prostitutas que faziam sexo por dinheiro, as liberais que faziam por mero prazer e as "moças de família", só depois de casadas, cheguei em Campo Grande-MS e por algum tempo limitei-me à área militar onde só havia homens e aquilo me incomodava muito até que a cantina dos praças que funcionava no interior do quartel general, passou a contar com uma jovem garçonete que de tão linda que era, não havia um, que não quisesse conquistá-la. A moça era constantemente assediada por soldados, cabos, sargentos, subtenentes e até por alguns oficiais que disfarçadamente passavam por ali, menos por mim que era muito recatado com moças de família. Minha conduta, aparentemente respeitosa, chamou a atenção da jovem que passou a me dispensar mais atenção e numa das vezes em que eu tomava café na cantina, aproximou-se e me convidou a levá-la ao cinema na noite do sábado seguinte. Aceitei o convite e no cinema, gerido pela minha concepção sequer peguei em sua mão e muito menos tentei beijá-la. Na saída caminhamos pela avenida principal da cidade e quando chegamos a uma esquina central, a jovem procurou despedir-se dizendo que ia dormir na casa de uma tia ali perto. Na segunda-feira ao chegar no Quartel General, todos os graduados que me encontravam olhavam-me admirados e um sargento que trabalhava comigo no Serviço de Justiça começou a debochar dizendo que eu não era de nada a ponto de decepcionar a moça que teria comentado que eu não passava de um brocha. Assustado com os comentários, mas fingindo não acreditar, o sargento acabou me convencendo de que falava a verdade. Pelo visto, o Sargento, 3º Sgtº Gutierrez, nos seguiu durante o passeio pois que descreveu tudo o que aconteceu até dentro do cinema, inclusive citando que quem pagou as entradas foi a moça e que nos sentamos em tais cadeiras e na esquina da avenida tal com a rua tal terminamos o passeio quando a moça teria dito que dormiria na casa de uma tia e concluiu afirmando que foi mentira porque ela teria ido se encontrar com outro indivíduo que a aguardava mais a frente. Convencido, passei um dos piores dias da minha vida e a noite, na solidão do meu quarto, sofri ainda mais e nunca mais a procurei. Dias depois quando atravessava a Praça l4 (ou 16) de Fevereiro, dirigindo-me ao Quartel General, encontrei-me com um conhecido, o Soldado Claudionor que estava acompanhado da sua noiva; uma menina de 16 anos de idade, muito bonita loirinha de cabelos compridos ondulados. Após os cumprimentos, Claudionor me apresentou a garota e segui em direção ao quartel. Horas depois passei a receber telefonemas da moça que não se identificava e insistia que eu dissesse quem era ela, até que na terceira ou quarta ligação, identificou-se como sendo a noiva do meu conhecido, dizendo que queria se encontrar comigo. Imediatamente procurei pelo Claudionor e ele relatou que haviam terminado o noivado e que eu podia fazer o que quisesse. Fui encontrá-la. Namoramos por uma semana e mais uma vez, respeitando-a no que pude ... “levei o fora”. O resultado é que dias depois, percebi o Claudionor comentando com outra pessoa que a moça teria dito que desistiu de mim porque eu era viado. Naquela noite chorei no meu travesseiro e falando sozinho, exclamei: – Papai, se o senhor acha que devo respeitar as irmãs dos outros, respeite o senhor, porque daqui para frente não vou respeitar mais ninguém. Dito e feito. Dias depois conheci uma outra moça e no primeiro encontro fizemos sexo junto a um poste de uma rua deserta. Só nos separando porque o pai dela, enciumado, ameaçou correr atrás de mim armado com um pau de lenha. Na mesma ocasião, relacionei-me sexualmente com uma paraguaia e com uma boliviana e fui descobrindo que havia alguma coisa em comum entre as mulheres. Todas com as quais me relacionava, sem falsa modéstia, queriam algo mais e as duas com as quais obedeci os conselhos de papai, sentindo-se rejeitadas, ficaram bravas e se vingaram me criticando. Começou o ano letivo de 1958 e a minha sala de aula do Colégio Estadual de Campo Grande, onde reiniciei o 2º ano do curso cientifico, contava com 19 alunos e apenas uma aluna; uma mocinha de pequena estatura, cabelos curtos ruivos, muito inteligente que lia e traduzia com a maior facilidade textos em inglês ou em francês. Seu nome era Evairdes ou Hilda, para os íntimos Logo no primeira noite fizemos sexo em pé no corredor do prédio que dava acesso a sua moradia, quando ainda segurava os cadernos escolares sob um dos braços. Foi um dos dois mais estranhos relacionamentos da minha vida. Ao me abaixar para pegar os cadernos que caíram, a moça agarrando-me pelas orelhas e enfiando minha cabeça entre as suas pernas, teve um orgasmo sobre os meus cabelos. A lua de mel durou quarenta dias e de comum acordo pusemos fim ao romance. O outro relacionamento diferenciado foi com uma mulher casada da cidade de Tietê-SP, que ao entrar em êxtase, passou a gritar e xingar o marido como se ele estivesse presente – “Tá vendo? Você vive afirmando que eu sou fria? Olha como você sempre esteve enganado Agora toma chifre seu canalha. Toma chifres”
Conheci na nova pensão onde passei a fazer minhas refeições, duas irmãs filhas de uma família cuja mãe era de origem italiana, uma de doze anos de idade, lindíssima de cabelos loiros naturais e a outra de quatorze anos, de cabelos castanhos escuros. Interessando-me pela loirinha que ainda era muito infantil, tentei deixá-la perceber mas, a de quatorze que estava sempre presente, deduzindo que era para ela, imediatamente aceitou namorar comigo. Aquela menina de ar tão puro e de uma gritante ingenuidade, mostrou-se tão afoita que dias depois nos tornamos amantes. Dentre as oito amantes com os quais me relacionei nos dois anos que vivi em Campo Grande-MS, aquela era a mulher que eu procurava. Atentem que para mim, amantes eram as namoradas com quem começava ou acabava fazendo sexo. O namoro seguia com todo fervor e ficamos noivos de aliança; mas, como era muito machista, um pensamento começou a me atormentar. Daria uma boa esposa? O machismo era tão marcante que conclui que faria mal negócio me casando com ela. Numa noite do mês de junho de 1959, logo após haver dado baixa do serviço militar, escondendo minhas verdadeiras intenções, peguei um ônibus na estação central de Campo Grande e rumei para o Estado de São Paulo de onde, tempos depois, escrevi-lhe mentindo que havia me dado mal e que não encontrando emprego mudaria para o estado do Paraná. Nunca mais fiz contato com ela e por muito tempo recebi suas cartas implorando pelo meu retorno. Que Deus me perdoe Eu estava cego e dominado por um único pensamento - “Se ela saiu comigo antes de se casar, é claro que, com a mesma facilidade, sairia com outro”. Essa foi a minha conclusão, mas, na realidade, Maria Luíza de Oliveira foi mais uma vítima do machismo imperante em sua época. Naquela situação a moça só se casava se engravidasse ou se contasse a seus pais. Não se engravidou e provavelmente eles não ficaram sabendo do seu defloramento. A sua ultima carta trazia a frase: - “Homenzinho sem palavra. Você não será feliz com mulher nenhuma” Nessa vida de altos e baixos, tive apenas umas quatro ou cinco namoradas sem me apaixonar por nenhuma e mesmo sofrendo com as críticas das que rejeitei, acabei me relacionando sexualmente com cerca de trinta mulheres, apenas duas de prostíbulo. Felizmente nenhuma delas me procurou dizendo - “toma que o filho é seu” - eis que, desde o início da minha adolescência, procurei evitá-los, objetivando paternidade consciente e, por outro lado, mesmos nas coisas erradas, Deus nunca me abandonou. Somente uma mocinha, na minha quase infância, andou comentando que eu a havia engravidado e que iria exigir o casamento apesar da minha menoridade. A criança nasceu com carinha de japonesa e a jovem desistiu de me apontar. Nunca tive tempo para amizades com pessoas do sexo masculino; nem dentro nem fora do quartel. O único mais próximo, foi um colega de quarto, o Cb. Orlandi que logo depois foi promovido a 3º Sgtº, uma pessoa muito simpática que vivia contando piadas e rindo. Quando morávamos no mesmo local, algumas vezes ao chegar, encontrava vela acesa no canto e em completo desrespeito à sua religiosidade eu a apagava e o criticava. Mas ele nada dizia. No início do primeiro semestre de 1959, ao retornar das férias, percebi que Orlandi havia se mudado sem me avisar. Fiquei preocupado mas dias depois ele reapareceu contando: - Sabe Jaime. Hoje vou revelar para você um grande segredo da minha vida... Orlandi relatou-me que aos 15 anos de idade, indo a uma casa de prostituição pela primeira vez, traído pelo nervosismo ou pela emoção, nada conseguindo, foi expulso do quarto pela mulher que, saindo à porta e o apontando para os outros homens que lá estavam, gritou; - Olhem esse menino Nessa idade já é brocha Aquelas palavras cravaram tanto em sua mente que até então, ainda não tinha tido relação com mulher nenhuma; que apesar da vontade, quando entrava no quarto, fracassava. Aliás, aquelas velas que acendia, eram promessas pedindo cura. Contou-me que durante minhas férias, quando passeava na estação ferroviária, encontrou uma mulher que ali fazia trottoir. Ao conversarem, contou-lhe toda sua vida e a mulher dizendo que era espírita, o convenceu de que o curaria; que indo ao quarto de um hotel, ali recebeu um “passe” e aquela noite foi a melhor da sua vida. Grato pela cura, no dia seguinte procurou um cartório e se casaram o mais rápido possível, especialmente porque o “espírito” o avisou de que se olhasse para outra mulher, nem aquela o curaria de novo. A partir de então, nunca mais vi o meu amigo Orlandi, cujo nome completo era Orlandi Fiorini e sua família de Andradina-SP.
A BAIXA DO EXÉRCITO - No início de 1959 fui matriculado em um curso intensivo para formação de sargentos. No final do curso que durou uns três meses, um cabo mais antigo que não passava em concurso nenhum, convencendo-me a desistir e assim deixei de fazer os exames finais. O resultado é que dos 50 alunos, quarenta e nove foram promovidos e continuei Cabo, obrigado a fazer continência aos meus antigos colegas. Frustrado com aquela desilusão, troquei correspondências com meu irmão Noel e sob sua orientação e apoio, pedi baixa do quartel sendo liberado em 19.06.1959.
CAPÍTULO XII - A MUDANÇA PARA SÃO PAULO
Ao excluir-me das forças armadas, dias depois, embarquei em um ônibus em Campo Grande MS com destino a Presidente Prudente-SP, onde apenas meu irmão Bill, me aguardava na casa da rua. Siqueira Campos, pois que mamãe já estava em São Paulo. No dia seguinte, tomamos um trem da estrada de ferro sorocabana e partimos em definitivo para a capital do estado e fomos recebidos pelo Noel que nos aguardava na estação Júlio Prestes. Noel demonstrando muita satisfação com a nossa chegada, procurou ser o mais atencioso possível. Contratou um táxi e daquela estação fomos até sua casa em Vila Jaguará e logo depois nos mostrou a casa onde mamãe e Nair já moravam e onde passamos a viver. Nos primeiros dias, Noel, quando retornava do seu trabalho, levava-me a passear de ônibus para conhecer o bairro da Lapa onde eu teria possibilidade de encontrar emprego mais próximo de casa. Até então, eu apenas observava e quando ficava ansioso, Noel me acalmava dizendo que ele próprio indicaria a empresa onde eu iria trabalhar. Em 14.07.59 providenciei minha carteira profissional de trabalho, tornando-me apto a procurar emprego. Dias depois, Noel chegando do trabalho comunicou-me:
- Amanhã cedo vamos a Lapa onde você vai fazer um teste no escritório de uma firma.
Submeti-me ao teste e pelo nervosismo errei uma simples continha de somar e o gerente não querendo me aprovar, ao comentar sua predisposição, Noel que me acompanhava, contra-argumentou e terminei sendo contratado pelo salário de Cr$ 8.000,00 mensais, na função de auxiliar de escritório da indústria multinacional S.A. Irmãos Lever, que posteriormente fundindo-se com a sua concorrente Gessy, transformou-se nas Industrias Gessy Lever Ltda. No dia seguinte pensando no que havia me acontecido, resolvi tirar minhas próprias dúvidas e vencer meu complexo. De manhã tomei um ônibus com destino a Lapa e no trajeto, enquanto passava pela Vila Anastácio, vi uma outra indústria e fui tentar um novo emprego. Apresentei-me, fiz o teste e sem qualquer contratempo, fui aprovado. Enquanto pedia dez mil por mês, contra ofertaram exatamente o mesmo salário da firma anterior. Satisfeito com a nova experiência, recusei a vaga e fui trabalhar na anterior, a partir do dia 20 de julho de 1959. Naquele ano cursava o 3º científico e no segundo semestre fui estudar no Colégio Campos Sales no bairro da Lapa, em São Paulo-SP. Graças a meu irmão Noel que sempre que precisei, interveio aconselhando-me, aprendi a caminhar pela vida e tomar minhas próprias decisões. Mamãe e Nair escolheram morar com Bill que somente se casou aos 33 anos de idade. Amada e respeitada por todos nós, filhos, filha, noras, netos e netas, mamãe viveu feliz até sua morte em 24 de abril de l984, aos 81 anos de idade e papai, na sua solidão entre os seus, faleceu aos 93 anos. Ouvimos dizer que foi em setembro de 1993 e dos nossos, somente a Nair esteve em seu velório.
CAPÍTULO XIII - MEU CASAMENTO
Por ser originário de uma família desestruturada, naquela época já pensava em me casar e constituir o meu próprio lar, tanto que procurei comprar as casas onde estávamos morando, o que ocorreu em 05.08.1960, conforme contrato de compromisso de compra e venda lavrado no 19º Tabelião da capital. Depois de consolidada a desistência do noivado com a matogrossense passei a refletir melhor sobre os futuros relacionamentos com as mulheres. Corroído pelo remorso do mal que pude ter causado àquela ainda menina, temporariamente passei a refletir sobre meu passado e a planejar o futuro, mas sempre norteado por um exagerado sentimento machista, felizmente há muito superado. Como me conhecia, terminei um rápido namoro com uma vizinha, a Alice. Recusei namorar uma linda e muito jovem italianinha moradora em uma casa próxima à minha por achá-la muito “avançadinha”. Recusei uma outra moça também jovem e bonita que insistentemente propunha namorar comigo, mas que me parecia deveras oferecida. Lembrei-me então da minha conhecida desde os meus 12 anos de idade, a filha do Senhor Manoel Francisco Ramos, um comerciante cliente do escritório de papai em Presidente Prudente. Santina Francisca Ramos, moça estudiosa, normalista, recém-formada professora primária que apesar de seus 20 anos de idade ainda não tinha tido nenhum namorado. Era exatamente quem eu procurava para me casar. Incentivado pelo meu irmão Noel que tudo fazia para que eu não sofresse nenhuma recaída e voltasse com a matogrossense, meses depois da minha chegada a São Paulo, no final de 1959, escrevi-lhe uma carta propondo namoro. Imediatamente recebi sua resposta e começamos a namorar por correspondência e seu pai interviu exigindo que casássemos o mais rápido possível, fixando como limite o final de 1960. Depois de alguns contratempos nos casamos em 22 de julho de 1961, sábado. Correspondendo ao amor que continuo sentindo por ela, Santina demonstrou ser uma pessoa meiga, amorosa, carinhosa que sempre procurou me fazer feliz. É uma excelente esposa e foi uma mãe exemplar para nossos filhos.Aliás, tivemos um casal. Em 28.08.1962, terça-feira nasceu a Solange Ramos Meira do Nascimento que atualmente assina Solange Ramos Meira do Nascimento Lima de Menezes. Em 08.12.1972, sexta-feira, nasceu o Jaime Meira do Nascimento Júnior. De tantos sucessos que nossos filhos tiveram, falar deles pareceria coisa de megalomaníaco. No ano que completamos nossas bodas de prata, praticamente passamos o mês de julho na Europa onde visitamos as principais cidades de Portugal, da Espanha, da França e o Principado de Mônaco. Contrariamente à nossa primeira noite de núpcias que passamos em um hoteleco de quinta categoria na cidade de Sorocaba-SP, desta vez, a noite de 22.07.1986 foi em uma Hotel de cinco estrelas em Roma depois de termos passeado de gôndola em Veneza e conhecido inúmeras outras cidades italianas. Confesso todavia que eu e minha mulher não merecemos provar do bolo de casamento que nos espera no céu. Diz a lenda que lá existe um que será oferecido ao casal que aqui na terra viver em plena harmonia e nunca brigar. Em realidade, procuramos valorizar a família que construímos, deixando de lado muitas das nossas necessidades e vaidades pessoais e da minha parte, pus em prática a experiência que adquiri frente a atitude de meu pai. Se tivesse que me casar hoje, novamente me casaria com Santina Francisca Ramos.
CAPÍTULO XIV - A VIDA PROFISSIONAL - ATIVIDADE PRIVADA
PRIMEIRO EMPREGO - Até meus 20 anos só havia trabalhado profissionalmente como burocrata do exército, afeito apenas à rotina militar, desconhecendo tudo que se referisse à vida civil. A partir de 20 de julho de 1959, comecei a trabalhar no escritório do depósito da Gessy Lever situado a Rua Gago Coutinho, bairro da Lapa na capital paulista, escriturando livros de controle de estoque. Meses depois, mudamos para uma das fábricas da empresa na Estrada do Anastácio em Vila Anastácio e a administração descobrindo minha aptidão para matemática, incumbiu-me de fazer a previsão diária do valor do IPI (imposto sobre produtos industrializados) que, naquele tempo, era recolhido no dia do faturamento. Atentem para o fato de que no Brasil ainda não se falava em computador e as calculadoras, apesar de já serem elétricas, só mecanicamente faziam as quatro operações e utilizavam um rolo de papel onde imprimiam os algarismos. Munido de uma dessas máquinas, somava o dia todo os valores de parte dos milhares de pedidos prontos para serem faturados e projetando um valor, às l6h50, via fone, informava à Matriz, orientando que no dia seguinte, recolhessem tantos milhões e a importância sempre cobria corretamente o IPI daquele expediente. Se faltasse, a multa era pesada, se ultrapassasse, a empresa perdia os rendimentos bancários que eram altíssimos devido a galopante inflação da época. O difícil era fazer essa projeção que exigia muito raciocínio matemático e dependia quase que exclusivamente da habilidade do calculista que como um futurólogo não se embasava apenas em elementos materiais. Desconhecedor da política empresarial, ao perceber que a chefia passou a ser exercida por uma mulher, a Srta. Beatriz, balzaquiana, solteira, rebelava-me contra suas ordens e apesar da sua docilidade meu machismo irracional continuava falando mais alto. Diante daquela estranha conduta que nem hoje sou capaz de explicar, decidiram me despedir. Disfarçadamente contrataram uma moça e pediram que a ensinasse calcular o imposto, com a promessa de que iriam me promover. Três meses se passaram e como a nova funcionária não desenvolvia, demitiram-na. Uma segunda foi contratada e no final do prazo de experiência, teve o mesmo destino da primeira. Contrataram uma terceira. Ansioso para ser promovido decidi aprová-la mesmo constatando que a moça não estava apta, afinal já haviam passado quase nove meses de expectativa e a promoção não vinha. Após entregar o cargo à nova calculista, atendendo a meu pedido, verbalmente concederam-me férias, com a informação de que no retorno, iria assumir novas funções ainda não definidas. Naquela mesma tarde, dia 30.09.60, por volta das 16h55 fui chamado a comparecer no escritório do gerente do depósito e este, muito constrangido, temendo alguma reação adversa da minha parte, passou a comentar que a empresa estava passando por reestruturações resultando em alterações nas previsões anteriores etc, etc e no final, deu-me a notícia: - Você foi despedido Tranqüilamente aceitei a demissão e como já havia programado, decidi descansar por 30 dias. Aproveitei bastante. Viajei a Presidente Prudente, visitei meus familiares da região e minha noiva, Santina.
SEGUNDO EMPREGO - Numa manhã, no final de outubro de l960 tomei um ônibus com destino a Lapa e aleatoriamente desci na Via Anhanguera, em frente à Vila Anastácio, a procura de emprego que não envolvesse cálculos. Atravessando a pista, alcancei a Rua João Tibiriçá, onde havia vários galpões industriais e perguntando ao porteiro de um deles sobre vaga para correspondente, obtive resposta negativa, mas com permissão de confirmar junto a Seção do Pessoal. Quando a responsável ia dando a mesma resposta, surgiu de uma das portas internas do escritório um rapaz branco, alto, gordo, aparentando uns 35 anos de idade, ordenando
- Dona Catarina, contrate um correspondente para o Departamento de Vendas.
Apontando-me, a senhora respondeu:
- Sr. Vicente Cavalini, aqui está um candidato.
- Então o apresente ao Sr. Walter Câmara - retrucou o rapaz.
Eu que nunca havia escrito carta comercial fui convidado a submeter-me a um teste de redação. O senhor. Câmara, educadamente explicou que ali era uma fábrica de rádios; que recebiam correspondência de todo o país e mostrou-me algumas inclusive suas respostas. Rapidamente assimilei o explanado e sentado junto a uma máquina de escrever, pus-me a redigir. Fui aprovado e passamos a discutir o salário. Como na Gessy Lever ganhava Cr$ 10.600,00 exigia dezoito mil e a empresa queria pagar apenas treze. Depois de várias contra-propostas, acertamos treze mil iniciais e Cr$ 15.000,00 após o período de experiência.
No dia útil seguinte apresentei-me ao trabalho, mas devido a uma greve operária o expediente foi suspenso até que a situação se normalizasse. Somente no dia 08.11.1960, pude assumir as novas funções na Feigenson S/A Industria e Comércio, fabricante dos rádios Telespark. Tempos depois contrataram mais um correspondente, o senhor. Jaguar, um senhor de uns 45 anos de idade, muito hábil e inteligente, com o qual me aperfeiçoei ainda mais. As atribuições foram dividas e enquanto fiquei responsável por todas as correspondências do Departamento de Vendas, o senhor Jaguar passou a cuidar da parte técnica tornando-se redator dos relatórios sobre o histórico e as aspirações da empresa que eram distribuídos aos maiores clientes em periódicas reuniões com a Diretoria.
Fui autorizado a contratar novos auxiliares e optando por pessoas do sexo feminino, em breve, estava cercado por nove moças que datilografavam o que eu rascunhava. A partir de 23 de novembro de 1962, quando ainda contava com apenas 23 anos de idade, fui promovido a Coordenador Executivo do Departamento de Vendas e administrativamente o dividi em três setores. Cada um, chefiado por uma das moças que por sua vez contavam com duas auxiliares. De redator, tornei-me “ditador”. Ditava correspondências para cada uma das chefes que, sentadas junto a minha mesa, explanavam os procedimentos sob sua responsabilidade. As jovens anotavam minhas palavras e repassavam para suas auxiliares que as datilografavam. As correspondências prontas, endereçadas às mais de quinze filiais da empresa distribuídas por todo o país, eram por mim assinadas. O resultado é que até na hora do almoço, estava sempre acompanhado por três ou quatro meninas até a porta do restaurante, pois que minhas refeições eram servidas no refeitório destinado à chefia o que despertava um certo grau de ciúmes nos demais funcionários, em especial em seis ou sete rapazes do setor de faturamento. Nas quartas-feiras, freqüentemente algumas funcionárias me convidavam e íamos almoçar em um outro restaurante próximo da empresa onde serviam suculenta feijoada. Como naquele tempo era desonroso ao rapaz não pagar a conta, horas antes de sairmos elas me antecipavam o valor das respectivas despesas e publicamente eu pagava o almoço de todas elas. Os “machões” do faturamento que voltavam do almoço exalando cheiro de aguardente, de há muito, sequer me cumprimentavam. Comandados por um tal de Haroldo, passaram a me observar e a mandar recados ameaçadores. Diziam que qualquer dia, “iam me pegar na saída” porque, segundo eles, eu era o responsável pelas advertências que alguns deles receberam acusados de cortejarem, na hora do expediente, as funcionárias do meu departamento. Quando a empresa já havia se mudado para a Av. Miguel Frias e Vasconcellos no bairro do Jaguaré, cercarem-me na rua em frente à fábrica e dizendo-me uma série de impropérios, só não me agrediram, não sei o porquê. A Diretoria, provavelmente sabendo do ocorrido, procurou me afastar daquele ambiente e me destacou para ser sub-gerente da Loja situada na Rua Aurora, 589 região central da capital onde permaneci por mais de um ano e retornei à função anterior quando os ânimos estavam mais calmos. A empresa entrou em declínio e no final de 1966 depois de propor acordo aos funcionários mais antigos, tornou-se concordatária e logo faliu. Indenizado e com um novo emprego já garantido, desliguei-me da Telespark em 29 de novembro de l966 e como se estivesse em férias, descansei o mês de dezembro inteirinho.
TERCEIRO EMPREGO - A partir do dia 3 de janeiro de l967, fui trabalhar como Chefe de Escritório na Auto Rádio HC Ltda, situada na Rua Albuquerque Lins, nº 80, região central de São Paulo. A Agacê, empresa pequena, seu proprietário Sr Hirvil Castanheda passava quase todos os dias ajudando os instaladores no pátio. Como de hábito sempre me vestia executivamente e o meu patrão pelos seus trajes era confundido com os operários, cerca de quinze. Numa manhã de sábado, por volta das onze horas, quando o expediente terminava às 12h30, com o pátio ainda cheio de veículos, surgiu um cliente querendo ser atendido. O Sr. Hirvil, cansado pelo trabalho e pelo vai e vem de pessoas não o atendeu com a costumeira cortesia. O cliente localizando-me de gravata entre os demais funcionários, reclamou “Por favor, aquele seu empregado foi muito mal educado. Fiz-lhe um pedido e ele me respondeu grosseiramente. Espero que o senhor.tome alguma providência”, disse-me.
Ao ouvir a reclamação, o Sr. Hirvil não se conteve e gritou “O dono disto aqui, sou eu Já disse que não vamos atender esse cliente e você Jaime, não interfira”.
Não gostando da forma agressiva com que o patrão se manifestou, gritei mais alto do que ele “Considero-me despedido sem justa causa. Não sou mais seu empregado”.
Entrei no Escritório, peguei meu paletó e saí. Na segunda feira retornei exigindo e recebi tudo o que tinha direito, desligando-me definitivamente da empresa no dia 3 de novembro de l 967.
QUARTO EMPREGO - A partir do dia 06.11.1967, segunda-feira, tornei-me vendedor pracista da Campos Salles S/A Ind. Com., Refrigeração em Geral, situada na Rua Gal. Júlio M. Salgado, 78 – Capital-SP, onde trabalhei até o dia 15.04.68, quando me demiti e procurei outra ocupação mais compatível com meus conhecimentos.
QUINTO EMPREGO - Em 25.04.68, fui contratado como Assistente do Departamento de Vendas de uma indústria de móveis, a Brafor - Brasileira Fornecedora Escolar S/A, situada na Avenida Santa Marina, 780 – Lapa-Capital-SP. Ao contrário da Telespark, nessa empresa somente contratei funcionários do sexo masculino; cinco ao todo. As mulheres, apesar da agradável companhia, de certa forma sempre davam mais trabalho, quer por se envolverem em intrigas, quer pelo hábito de todas irem ao banheiro ao mesmo tempo. Se chamava a atenção choravam, se deixava, conversavam o dia todo. Com os homens não havia problema dessa espécie e todos procuravam ser o mais eficiente possível. Tinha até um funcionário que por excesso da bajulação, nas segundas-feiras trazia-me um presentinho, geralmente uma fruta típica da região de São Manuel-SP, onde sua família morava. Nos meus últimos dias na empresa que estava prestes a falir, para forçarem a um acordo trabalhista, destituíram-me do cargo e contrataram um rapazola inexperiente para o meu lugar. Na primeira semana, o bajulador, com um pacotinho nas mãos, passou por mim ignorando-me completamente e dirigindo ao seu novo chefe que estava ao meu lado, repetiu o refrão de sempre: “Bom dia chefinho Espero que o senhor tenha uma boa semana Aceite este vinho preparado pelo meu avô”.
Naqueles tempos observando que nas empresas onde trabalhava raramente encontrava alguém com mais de quarenta anos de idade, voltei a me preocupar com o futuro e durante o ano de l968, fiz um curso na Academia de Polícia de São Paulo que na época era obrigatório para quem quisesse prestar concurso público para o cargo de Escrivão. Ao me desligar da Brafor em 31.07.1969, quinta-feira, não tive a menor preocupação com novo emprego por que já havia prestado o referido concurso e alcançado o 5º lugar entre os mais de quinhentos aprovados.
ATIVIDADE PÚBLICA
AGENTE DE AUTORIDADE - No dia 19 de setembro de l969, sexta-feira, tomei posse do cargo de Escrivão de Polícia na Delegacia do município de Carapicuíba, região oeste da grande São Paulo. Naquela época, em plena revolução militar, iniciada em 31.03.1964, os oficiais do exército no bom sentido usavam e abusavam de seus poderes. Uma noite de sábado quando me encontrava de plantão, o Sargento PM e o Investigador que faziam ronda na cidade, apresentaram-me um bêbado que se dizia funcionário civil do exército. Ato contínuo pedi que fossem até a casa do Delegado, Dr. Olivais Fontoura Filho que morava no município ao lado e este chegou na Delegacia por volta da meia noite.Ao saber do status do detido, dele não se aproximou e ordenou que o submetêssemos a exame de dosagem alcoólica e o autuássemos em flagrante. Na companhia do Sargento e do Investigador, conduzimos o homem até o IML em São Paulo e na volta, alegando que era pai de família com oito filhos para sustentar, pediu-me que o liberasse. Na tentativa de acalmá-lo, simplesmente perguntei se tinha pelo menos dez cruzeiros no bolso (o salário mínimo vigente era de Cr$187,20), explicando que na hora do flagrante pagando a título de fiança, no máximo aquela importância, iria embora. O homem exclamou:
“Oh seu Escrivão, eu só tenho cinco”
Retornando à Delegacia por volta das duas horas da madrugada, ponderei ao Delegado que de nada adiantaria um flagrante afiançável, pois que trabalharíamos até as seis da manhã e o detido chegaria em sua casa mais cedo que nós. O Delegado concordou, mas ordenou que o deixasse preso até a manhã da segunda-feira. Na segunda, quando me preparava para sair com destino à Delegacia (o expediente iniciava as 12h30), surpreendi-me com uma viatura policial na porta de minha casa e meus colegas avisando que deveria fugir porque o exército estava a minha procura, porque aquele elemento detido no meu plantão havia se queixado ao Coronel que o investigador e o sargento o haviam espancado e apresentado ao escrivão que lhe pediu dez cruzeiros, teve que dormir no xadrez sábado e domingo porque só tinha cinco. Agradeci a sugestão. Peguei meu carro e quando me aproximava da Delpol percebi que estava cercada por uns cinqüenta soldados do exército armados de fuzis e metralhadoras, prontos para me prenderem. Depois de seu comandante dialogar com o Dr. Olivais ficou acertado que o sargento, o investigador e eu, seríamos conduzidos pelo Delegado até o Quartel do Exército em Vila Anastácio - São Paulo. Saímos na viatura policial desfilando pelas ruas do município escoltados por dois caminhões do exército. Ao bater os olhos em mim, o único dos acusados que estava executivamente trajado, o Coronel imediatamente encerrou a audiência, afirmando: “Não Esse rapaz jamais pediria dinheiro e muito menos dez cruzeiros”, fazendo-nos um convite em seguida “para acabar com o mal entendido os senhores são meus convidados Quero-os aqui no quartel no próximo sábado, para almoçarem uma feijoada comigo”. Não comparecemos, mas desse incidente conclui que mais um jargão popular, era verdadeiro: “Homem de gravata eu respeito”
AUTORIDADE PÚBLICA
PRIMEIRA FASE - Desde que iniciei a carreira policial, observando que no município onde trabalhava, o Delegado era muito respeitado e admirado pela população, na primeira oportunidade prestei exame vestibular na faculdade de direito de Osasco onde, em 1970, iniciei o primeiro ano. Cinco anos depois já diplomado e inscrito na OAB como Advogado, prestei concurso público para Delegado de Polícia, mas na realização da primeira prova escrita, fui eliminado sob a alegação de que a tornei identificável. Prestei um segundo concurso em l976 e entre duzentos e quarenta aprovados, consegui o l4º lugar. Devido a minha boa qualificação, imediatamente fui comissionado na classe superior (4ª classe) e pude escolher a região de Osasco, tornando-me plantonista na Delegacia local a partir de 05.08.1976.
SEGUNDA FASE - Poucos meses depois, havendo uma rebelião no presídio local, quando nove presos foram queimados, falecendo cinco, fui convidado a assumir as funções de Diretor. O Delegado titular do município inicialmente deu-me todo apoio e orientação necessária. Como Diretor imediatamente removi os carcereiros de conduta suspeita substituindo-os por outros da minha escolha. Impus nova política carcerária de modo que os detentos além de serem tratados com energia passaram a ser respeitados e aprenderam respeitar. Proibi o comércio clandestino de cigarros ou de qualquer outro objeto de uso pessoal dos detentos que passaram a adquiri-los a preço de mercado, sem ágio, sem propinas e consegui com o Prefeito da cidade uma excelente assistência social, jurídica, médica, odontológica e farmacêutica. O resultado foi altamente compensador. Os presos tornaram-se dóceis, calmos e controlados. Eles que por falta de grades para contê-los, não tomavam banho de sol, passaram a receber mais esse benefício. Com apenas um fio de barbante amarrado de uma parede a outra limitando o pátio e a porta de saída, mandava que soltassem todos na área interna, cerca de 150 homens, assaltantes, latrocidas, assassinos psicóticos e estupradores, pedindo-lhes que não ultrapassassem a linha divisória. Respeitosamente obedeciam e nunca houve qualquer incidente. Minha sala, a maior do prédio, minha mesa com três metros de comprimento, minha poltrona ladeada pelas bandeiras nacional e estadual semelhantes à de um presidente, dava-me um aspecto muito imponente. A prefeitura nomeou-me um assessor social, um jurídico e uma equipe de assistentes sociais, um médico, um dentista e um enfermeiro, mandando construir em uma das salas da Delegacia, um ambulatório médico-dentário. O estado forneceu-me datilógrafos e até um padre da pastoral carcerária, sem se falar na escolta militar e do pelotão de choque a minha disposição. Com todo esse pessoal, ocupávamos várias outras salas principais do prédio. A repercussão do meu trabalho foi tão grande que me tornei alvo de todas as atenções em especial das mulheres e diariamente era visitado por juizes, promotores públicos, deputados, prefeitos, vice-prefeitos e vereadores. As damas da sociedade voltaram os olhos para o presídio e uma delas, Cidinha Port, jovem, loira, bonita, honestíssima esposa de um Deputado que sempre era vista na televisão participando do programa, “Almoço com as Estrelas”, unindo o útil ao agradável, em campanha política favorecendo ao marido, passou a se dedicar à família dos presos e com a anuência da corregedoria da justiça fundou em Osasco, a AMAR – Associação Municipal de Assistência ao Reeducando, mantenedora da Casa do Albergado. Meu sucesso pessoal acabou despertando ciúmes, especialmente no Delegado Titular do Município que ocupava duas modestas salas do mesmo prédio e terminou ficando isolado até do Delegado Seccional, Dr. Francisco Severino Duarte que me dava mais atenção. A própria Cidinha Port que sempre me fazia companhia só fazia comentários positivos a meu respeito, especialmente porque me mantinha no meu lugar, tratando-a com respeito e cordialidade. A presença de Cidinha na Diretoria do Presídio era tão constante que o Delegado Assistente do Titular freqüentemente me interpelava: - Jaime, ou você está saindo com ela ou você não gosta de mulher Em respeito a ele, nada respondia, apenas esboçava um sorriso. No final, o Assistente do Titular começou a me dizer: - Jaime. Meu ouvido é um microfone, minha boca um alto falante Vou passar a dizer, que você anda dizendo que só não sai com a Cidinha, porque é um Delegado bonito e gostoso que não se envolve com qualquer mulher. A ira do Titular foi aumentando e eclodiu no dia em que o Delegado Seccional, entregou-lhe uma Portaria ordenando-lhe que me desse ciência de que a partir daquele dia eu estava nomeado Delegado de Menores dos onze municípios da Seccional e que dentre minhas atribuições, presidiria reuniões mensais com os respectivos titulares. O Delegado Titular chamou-me em sua sala e de forma agressiva deu-me ciência, dizendo que aquela portaria era absurda porque jamais um Delegado de 4ª classe com alguns meses de carreira poderia presidir uma reunião com outros como ele de primeira. classe e vinte anos de profissão.
Imediatamente ordenou-me que não a cumprisse porque a partir daquele momento eu estava destituído do cargo de Diretor do Presídio e voltava a assumir uma equipe de plantão. Quando pessoalmente comuniquei ao Juiz Corregedor da Comarca o meu afastamento do presídio, este, na minha frente, telefonou para o Delegado Titular e aos gritos fez-lhe uma série de ameaças. Dias depois, convocados, estivemos no Forum para assistir à solenidade de fundação da AMAR, onde vários oradores usaram da tribuna.
Dona Cidinha que era a Presidente foi a última a falar e ao terminar foi amplamente aplaudida. A seguir serviram um coquetel e o marido dela talvez um pouco embriagado, num grupo de pessoas dentre as quais, juizes, promotores, oficiais da PM, políticos, a própria Cidinha e eu, pediu a palavra dizendo que ia dar uma de marido ciumento e publicamente a interpelou:
- Mulher No seu discurso você falou cinco vezes o nome do Dr. Jaime. Em casa você só fala nele. Dorme falando nele. Acorda falando nele. O que está acontecendo?
O grupo sorrindo disfarçadamente se dissipou e Cidinha constrangida enrubesceu. Ao tomar conhecimento de mais esse episódio e em especial porque Cidinha continuou me visitando em todos os plantões subseqüentes, quer nos diurnos, quer nos noturnos, o Titular que não mais me dirigia a palavra, sem qualquer explicação, valendo-se de que o Seccional havia sido removido, imediatamente conseguiu remover-me para outro município, forçando-me a viajar 80 quilômetros diários para chegar ao trabalho. A remoção que foi para Itapecirica da Serra, não foi casual, pois que ali havia um foco de corrupção não só envolvendo o Delegado Titular do Município, como também o Juiz Corregedor da Comarca, Dr. Faro e a intenção do Titular de Osasco certamente era de que me contaminasse e fosse demitido conforme aconteceu com o próprio Juiz.
TERCEIRA FASE - Alguns meses após a minha remoção soube pelos jornais que o Juiz Corregedor de Osasco havia invadido a Delegacia do Município, quase autuando em flagrante o Titular por manter correcionais detidos, o que, comigo era tolerado. O resultado é que o Titular acabou também sendo removido e por muito tempo ficou em funções secundárias nos Distritos da Capital. - Em Itapecirica da Serra, apesar de ser bem tratado pelo Titular daquela cidade, fiquei sem função até que o novo seccional, Dr. Aristides Lopes, ao fazer a correição semestral naquela Delegacia convidou-me para assumir a Delegacia de Itapevi, advertindo-me de que aquela seria minha última oportunidade. Após insistir em saber do porquê daquela advertência, Dr. Aristides que era muito brincalhão, pedindo desculpa pelo que ia dizer e que não ficasse com raiva dele, completou: - Você é louco Esclareceu-me que fui removido de Osasco, porque andava dizendo a todo mundo que a mulher de um Deputado estava doidinha para sair comigo e que só não a aceitava porque eu era um Delegado bonito e gostoso que não andava com qualquer mulher. Contou-me que ao ser informado desse meu comportamento, o Diretor do DEGRAN (Departamento de Polícia da Grande São Paulo) imediatamente me removeu para evitar uma crise política. Em julho de 1977 assumi a titularidade do Município de Itapevi e logo depois o Dr. Aristides foi removido.
QUARTA FASE - Em seis meses deixando a Delegacia de Itapevi em ordem, engajei-me na campanha de integração polícia-povo, tornando-me palestrante em reuniões com o povo quando incentivava a fundação de Sociedades Amigos de Bairros. Voltei a me relacionar com os políticos, inclusive com o Presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo e com o Poder Judiciário, pelo qual passei a ser muito respeitado, porque, sem falsa modéstia, acertadamente tomava decisões nos inquéritos sob minha presidência e muitas com repercussões. Emerson Fitipaldi, famoso automobilista da fórmula I, nos anos 70 respondia a um inquérito policial por esbulho possessório em Itapevi. Ao perceber uma falha processual consegui demonstrar que os próprios juizes e promotores que atuavam no inquérito vinham se enganando desde o seu início e que o feito sequer podia ter sido instaurado. O inquérito foi arquivado e meu conceito aumentou ainda mais. Minhas opiniões eram publicadas e positivamente comentadas pela mídia. Freqüentemente era homenageado com almoços ou jantares por integrantes da subseção da OAB e pelo Rotary Club. Meu nome chegou a ser publicado em uma revista internacional sobre uma ocorrência do meu município. Em junho de l979 instaurei inquérito policial por corrupção ativa envolvendo o Prefeito da cidade e um vereador. Naquele tempo o Delegado tinha essa autoridade. Conduzi coercitivamente o vereador à Delegacia e o Prefeito fugiu por uma semana, deixando a cidade acéfala. Os jornais, tais como o Estado de São Paulo e a Folha, publicavam o andamento do inquérito e meu nome sempre enaltecido. Em julho, ao concluir o inquérito contra o Prefeito, entrei em gozo de férias, retornando trinta dias depois. Ao reassumir o cargo em 31.07.79, logo de manhã recebi um telefonema do Delegado Seccional, Dr. Sérgio, que após me cumprimentar, tecendo-me muitos elogios e dizendo que eu merecia estar em uma Delegacia melhor, mandou que escolhesse outra, sugerindo várias. No mesmo dia, a seu convite, fui até Osasco e, ao mencionar o município de Barueri, com um simples telefonema, o Seccional brigou com o inocente Delegado que ali trabalhava, Dr. Carlos Puteri e o removeu, empossando-me no seu lugar.
QUINTA FASE - No dia 1º de agosto de l979, reapareço como Delegado de Polícia Titular de Barueri, onde passei a ser visitado com certa freqüência pelos colegas dos demais municípios da região que me tratavam com muito respeito. O Prefeito da cidade, Sr. Arnaldo Bittencourt, recebeu-me de braços abertos. Nesse município deixei de lado as sociedades amigos do bairro e aconselhado por um investigador, o Cláudio di Filipo, dediquei-me a algo mais nobre. Com o apoio do radialista Gil Gomes, que se fazendo presente atraia multidões, fundei sub-sedes da Associação Antialcoólica do Estado de São Paulo, não só em Barueri, como em Jandira, município próximo. Minha atuação em Itapevi havia chamado a atenção das Forças Armadas e o Exército passou a me investigar minuciosamente e o seu serviço reservado a me acompanhar passo a passo. Sua última cartada foi a de me convidarem para a comemoração do aniversário de um Oficial Superior que seria feita por dois coronéis e com a participação de quatro “chacretes”, mas estranhamente seria na suíte de um dos motéis da cidade. Lembro-me que o convite foi feito através de um capitão, encarregado de preparar o local que seria no Motel Castelinho e contratar as moças, moças essas, ex-bailarinas da rede Globo que acompanhavam o famoso apresentador Abelardo Barbosa, o Chacrinha, já falecido. Agradeci a oportunidade que me era oferecida e fazendo-me de muito lisonjeado, sabiamente recusei o convite alegando que já era comprometido com minha esposa. Tempos depois integrantes do próprio serviço reservado comentaram comigo que quando do episódio de Itapevi, o prefeito acusado teria manifestado a intenção de me oferecer vultosa importância em dinheiro “que não me deixaria rico, mas muito bem de vida” para que eu não o indiciasse no inquérito e que o suborno só não aconteceu porque ameacei prender o seu porta- voz, o advogado que tentou conversar comigo. Comentaram também que o convite para a festa de aniversário foi mais um teste a que me submeteram para uma avaliação final. O resultado é que devo ter sido aprovado porque a partir de então passei a ser assediado pelos seus comandantes a ponto de, muitas vezes, ter de rejeitar seus convites para almoçar em seus quartéis. A disputa pela minha presença era tamanha que chegava perceber ciúmes entre os comandantes quando visitava outro. O quartel que mais freqüentava era o do Grupo Bandeirantes, chefiado pelo Cel Hélio Caldas, comandante geral da região de Osasco que incluía Barueri. Descobrindo o prato que eu mais gostava, certa feita mandou servir-lo no refeitório dos oficiais, ocasião em que fui recepcionado por cerca de cinqüenta outros oficiais previamente escalados para o almoço e reservaram-me um lugar ao lado do comandante. Fui condecorado pelo Grupo Bandeirantes com uma medalha de honra ao mérito. No meu 41º aniversário, na sub-sede da Associação Antialcoólica de Barueri, fui homenageado por populares que em fila indiana se aproximavam da tribuna e cumprimentavam-me com um aperto de mão. Para minha surpresa, disfarçado de civil, recebi publicamente os cumprimentos do Cel. Hélio Caldas que demonstrando ser muito meu amigo, infiltrou-se na multidão e depois se identificou. Cinco ou seis meses depois de assumir aquela Delegacia, mandei que conduzissem coercitivamente a minha presença um indivíduo que estava agitando a população local. Posteriormente descobri que esse elemento era irmão de um dos Delegados da ARENA, partido político que em eleição indireta havia eleito Paulo Maluf, a governador.
Naquela tarde recebi um estranho telefonema de alguém que se identificando como Otávio Zampirollo, subchefe da Casa Civil, ao criticar-me pelo que tinha feito, perguntou se eu não estava usando a camisa do partido. Incontinenti, respondi-lhe:
- Sou funcionário do Estado e não do Governador Coloquem gente honesta para representá-los e talvez eu vista a camisa do partido.
O telefone foi desligado e minutos depois recebi novo telefonema, desta vez, do Dr. Sérgio Garcia, o Seccional de Osasco:
- Jaime. Você acaba de ser removido de Barueri Você vem trabalhar comigo? Passe hoje aqui na Secional para assinar o pedido de remoção, quando então conversaremos
Cumprida a formalidade e enquanto a remoção não era publicada, comecei a me despedir dos amigos. Na sexta-feira fui ao Grupo Bandeirantes despedir-me do Cel Hélio Caldas e não o encontrei porque ele estava no interior do Estado participando de uma manobra militar. Na manhã da segunda-feira seguinte, certo de que a publicação sairia naquele dia, estava na Delegacia quando o Cel. Caldas telefonou-me praticamente ordenando que não abandonasse meu posto explicando que por intervenção do General Comandante do 2º Exército junto ao Secretário de Segurança do Estado, minha remoção havia sido suspensa e pediu-me que o aguardasse até as quatro horas da tarde. Conforme o combinado, o Cel. visitou-me e contou-me todos os detalhes da intervenção. Em uma reunião no Gabinete do Secretário de Segurança Pública, o General exigindo minha permanência teria concluído sua explanação com um ditado popular: “em time que está ganhando, não se mexe”. O Secretário exibindo o meu pedido de remoção tentou justificar-se dizendo que era uma solicitação do interessado, ao que o General replicou:
- Da forma com que esse documento foi assinado até eu também o assinaria.
Após os cumprimentos do Cel. e meus agradecimentos, coincidentemente o Seccional voltou a me telefonar dizendo que eu seria mantido em Barueri.Com a revolução militar chegando ao seu final e praticamente o país retornando à democracia, o Cel. Hélio Caldas foi removido de Barueri e os militares desapareceram da vida pública civil. A população e as autoridades constituídas, culturalmente ainda despreparadas, entendendo que na democracia tinham direitos que, segundo elas durante a revolução, lhes foram negados, deram um exagerado apoio aos defensores dos chamados direitos humanos e se esqueceram das obrigações. No grande palco da vida, as pessoas que atuavam como autoridades ao invés de se respeitarem, movidas por sentimento menor que há muito reprimiam, passaram a se digladiar. No campo penal a autoridade que mais se projetava era o Delegado de Polícia, sempre presente, prendendo e autuando os criminosos. Isto fez nascer uma pontinha de ciúmes nos Promotores Públicos e Juizes de Direito que até então só se manifestando nos autos e agindo dentro dos limites de leis penais e processuais obsoletas, se tornaram vítimas de críticas por parte da população que afirmava que “a polícia prende e a justiça solta”. Ao invés de batalharem para a reforma das referidas leis, seguiram o caminho menos oneroso que foi o de limitar a conduta dos Delegados de Polícia, diminuindo aos olhos da sociedade o seu valor e passaram a persegui-los sob a alegação de que quase sempre estavam desrespeitando os direitos humanos dos acusados. Os Delegados, em defesa própria, diminuíram sua atuação contra a marginalidade porque, tudo, tornou-lhes proibido. A onda de perseguição encontrou eco junto ao poder político que, confundindo a polícia com polícia política modificaram as leis de modo que os Delegados não mais puderam fazer busca e apreensão sem mandado judicial, ficando proibidos de presidir processos em rito sumário e praticamente de instaurar inquéritos contra eles. Alguns representantes do Ministério Público passaram a dar entrevistas no rádio e na televisão, indiretamente demonstrando a incapacidade dos Delegados e dominaram as diligências que antes eram da competência exclusiva daqueles, dando voz de prisão, fazendo busca e apreensão, tomando depoimentos etc. Parece até que não se lembrando do porquê o legislador assentou a justiça num tripé representado pelo Delegado, pelo Promotor e pelo Juiz, não previram que esta aproximação com o povo lhes seria prejudicial porque até Deus, se descesse do céu e viesse morar aqui na terra não seria tão respeitado. Observem que os próprios políticos deixaram de aplicar o princípio segundo o qual
“cumpre-se e não se discute as ordens judiciais”. O exemplo disso é o caso dos precatórios que insolúveis, avolumaram nas gavetas do poder executivo e as declarações desrespeitosas de um Presidente da República afirmando que o Judiciário haveria de ser mais bem fiscalizado e que abrisse sua “caixa preta” para conhecimento geral (Lula). O falecido Governador Mário Covas certa feita, ao receber determinação judicial para intervir em um município paulista, apareceu na televisão e com ares de deboche afirmou que jamais cumpria aquela ordem pois que primeiramente teria que se auto-intervir porque o Estado estava na mesma situação de inadimplência. Diante da nova visão criminológica que se instalou no país, os marginais sentindo-se protegidos, criaram um poder paralelo representado por suas várias facções. Nesse novo quadro que naqueles tempos começava a ser delineado, sem a proteção do Exército e temendo revanche dos políticos, aceitei espontaneamente sair de Barueri.
SEXTA FASE - Em meados de l981 aproveitando o convite do Dr. Sérgio Garcia que estava sendo removido para o DEIC como Diretor da Divisão de Crimes Contra o Patrimônio, ao me apresentar ao Dr. Liberatori, Diretor do DEGRAN, este sabendo do meu bom relacionamento com o Exército e pensando que eu fosse parente do General Carlos de Meira Mattos, mostrou-se entristecido com a minha ida para o DEIC dizendo que gostaria de não me perder e chegou a me aconselhar a tomar muito cuidado com o temperamental Dr. Sérgio Garcia. Como minha remoção já estava sacramentada, mesmo que quisesse, o Dr. Liberatori não podia barrá-la, mas propôs-me que permanece por 30 dias nas novas funções e que o procurasse novamente para que voltasse ao DEGRAN. Assumindo no DEIC já percebi a grande diferença na conduta do Dr. Sérgio que ao me ver desprotegido pelas Forças Armadas, de grande amigo e conselheiro, mostrando-se indiferente, simplesmente me comunicou:
- Você vai assumir uma viatura do GARRA. Levei um grande choque, porque de titular de um município importante, estava sendo reduzido a comandante de uma viatura policial, como um simples cabo da PM. Pensei em procurar o Dr. Liberatori, mas desaconselhado por minha esposa, assumi a viatura e dias depois, o Dr. Sérgio, colocou-me como um dos Assistentes da 2ª Delegacia (hoje DIVECAR) que investigava furtos e roubos de veículos. Não pactuando das rotineiras irregularidades cometidas naquela Delegacia, isolei-me tornando-me um simples assinador de papéis presidindo seus inquéritos. Os funcionários só obedeciam ao Titular e ao outro Assistente, que apesar de ser de classe inferior à minha se mostrava muito poderoso. Em meados de 1983 rebelando contra algumas palavras do Dr. Sérgio, aos berros fui removido para a Divisão de Crimes Contra a Pessoa onde, por uns quinze dias, chefiei uma equipe de homicídios. Em uma tarde, saindo do elevador, deparei com o Dr. Liberatore que carinhosamente abraçou-me e demonstrando certa satisfação, comunicou que eu estava voltando para o DEGRAN; todavia orientou-me a procurá-lo em segredo, porque estavam me mandando para um Distrito da zona leste e que segundo ele, era muito longe da minha casa que ficava no extremo da zona oeste. A seu conselho visitei o novo Distrito como se estivesse interessado em assumir uma das suas equipes, mas, conforme o prometido, o Dr. Liberatore colocou-me para trabalhar no 33º Distrito de Vila Mangalot, zona oeste de São Paulo. Permaneci por um ano e alguns meses nesse DP e fui removido para o 51º DP, no bairro do Rio Pequeno. Em 1985 consegui nova remoção para Osasco onde a situação já era outra. Somente o Dr. Liberatore, que logo se aposentou, ainda me tratava com respeito porque continuava pensando que eu fosse um dos sobrinhos do Gen. Meira Mattos. O referido General, veterano da Segunda Guerra Mundial, doutor em ciência política era um dos conselheiros da Escola Superior de Guerra. Inicialmente assumi uma equipe de plantão e logo depois, como Titular do 3º DP e mais tarde, do 4º . Novas mudanças ocorreram na Delegacia Central de Osasco e acabei assumindo o seu melhor distrito - O 5º DP sediado no centro do município. Corria o ano de 1986, quando, por infelicidade minha, o ex-titular, ressuscitado por um novo político, reassumiu Osasco, não como Titular, mas sim como Seccional. Sua primeira atitude foi remover-me para o pior distrito, o 2º DP no bairro Novo Osasco e finalmente recolher-me ao prédio da Seccional, sem função. Com muitos problemas administrativos, na falta de outros Delegados, o Seccional acabava me recolocando ora no 4º DP , ora no 3º DP onde permanecia até colocá-los em ordem. Curiosamente, meus auxiliares eram sempre escolhidos dentre os mais problemáticos. Sem falar em outros de condutas não recomendáveis, havia um escrivão que de tanto ser denunciado por corrupção, era conhecido por um apelido bem característico (fulano ladrão) e foi designado para ser meu chefe de cartório no 3º DP. Um outro escrivão, na época alcoólatra inveterado, que foi designado meu chefe de cartório no 4º DP, freqüentemente tinha estranhas alucinações. Apesar da sua aparente pobreza, sempre comentava que era fazendeiro no interior do estado e proprietário de duas chácaras em Cotia-SP onde criava ora ovelhas, ora suínos de raça. Afirmava que na garagem da sua casa tinha uma caminhonete zero quilômetros que só a usava em ocasiões especiais. No dia a dia se apresentava com uma velha e mal conservada brasília. Em uma época na qual só pessoas da classe média tinham telefone, afirmava que tinha dois e inclusive um, estava instalado na casa de seu vizinho que era muito pobre e precisava mais do telefone do que ele próprio e pedia que entendêssemos do porquê do vizinho sempre atendê-lo. Na realidade, esse escrivão não tinha telefone e usava o do vizinho. O seu segundo telefone pertencia ao Bradesco e como estava desativado, nunca ninguém o atendia. Na minha ausência, quando estava muito atacado, costumava identificar-se às partes, como se fosse eu. Certa feita, duas moças entraram aflitas na Delegacia, querendo conhecer o Dr. Jaime, o novo namorado de sua mãe. Ao me virem exclamaram:
- Mentiroso
Surpreso com aquela conduta, antes que me manifestasse as moças se desculparam e esclareceram que estavam se referindo ao rapaz da sala ao lado (O Escrivão Chefe) que havia conquistado a mãe delas, dizendo que era o Dr. Jaime, o Titular do DP. Ao contrário de como chegaram, as moças saíram cabisbaixas, sem mais nada comentarem. Os Investigadores, os piores possíveis. Quando não eram inertes ou inaptos, apresentavam-se com outros defeitos graves e sem provas, não podia combatê-los. Em meados de l987, numa noite de sábado, prenderam um assaltante de banco e me telefonaram pedindo permissão para o recolherem no presídio de Osasco, anexo à Delegacia Central. Por volta das duas da madrugada, fui acordado por um telefonema do Delegado Plantonista que nervosamente dizia que não podia continuar com o preso no xadrez porque o detido havia sofrido um ataque epiléptico e fraturado o crânio durante a queda. Confiante na informação e preocupado com as conseqüências, já que ainda não tinha o respectivo mandado de prisão nem autorização judicial, concordei que o liberasse a seu Advogado que, “coincidentemente” estava no DP e o encaminhasse a um hospital. As oito da manhã recebi um novo telefonema de outro Delegado que havia substituído o do plantão noturno, perguntando-me se estava a par do ocorrido. Depois disso o preso foi liberado. Na segunda-feira ao chegar em meu local de trabalho encontrei os investigadores nervosos afirmando que eu tinha sido enganado. Segundo eles, no momento da prisão, por serem “honestos” deixaram de receber “meio milhão” e recolheram o indiciado. Indignado, em contato com o Seccional exigi instauração de Sindicância, sem analisar de que lado ele estava e o resultado foi catastrófico, aliás, logo depois disso, recebi um estranho telefonema anônimo que me criticando afirmava que havia me esquecido de que “o bom cabrito não berrava”. Essa pessoa chegou a afirmar que meus investigadores e o Advogado que não eram nada honestos, não chegando a um acordo sobre a partilha de um milhão oferecido pelo detido, brigaram. O plantonista acabou recebendo cento e cinqüenta mil para inventar a estória que me foi contada e passou cinqüenta mil para o Seccional. No desenrolar das investigações percebi que todo o procedimento procurava ignorar o verdadeiro autor dos fatos. No processo administrativo, com toda arrogância, o plantonista foi ouvido como testemunha de acusação porque na sindicância haviam concluído que o ladrão era “eu”
Felizmente, depois da tortura mental de mais de um ano e das constantes ameaças de morte que passei a receber, fui absolvido Sem se identificarem frequentemente telefonavam me aconselhando escolher a cor de meu caixão porque meu fim estava próximo. Nessa época, ainda muito abalado e moralmente abatido, completando vinte anos de trabalho policial, requeri minha aposentadoria e saí da vida pública em 10.01.1990. Fui advogar e por uns dois anos trabalhei em um escritório da Av. Analice Sacatauskas, Bela Vista, Osasco. Não me adaptando, desisti e tentei ser professor universitário matriculando-me em um curso de mestrado na Universidade Mackenzie, freqüentando-o por um ano e meio quando descobri que ainda não era reconhecido pelo M.E.C. Desliguei-me de toda e qualquer atividade profissional e hoje vivo como um cidadão de provecta idade torcendo pelo sucesso de meus filhos, das minhas netas, dos meus netos e observando o tempo passar, morando desde 24.03.1983 na casa que mandei construir em Alphaville, bairro de uma cidade da grande São Paulo.Recolher