Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Ronaldo da Boa Morte Conceição
Entrevistado por Márcia Trezza e Tereza Farias
Rio de Janeiro, 15/03/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC _HV09_ Ronaldo da Boa Morte Conceição
Transcrito por Liliane Custódio
Revisão / Ediç...Continuar leitura
Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Ronaldo da Boa Morte Conceição
Entrevistado por Márcia Trezza e Tereza Farias
Rio de Janeiro, 15/03/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC _HV09_ Ronaldo da Boa Morte Conceição
Transcrito por Liliane Custódio
Revisão / Edição Paulo Rodrigues Ferreira
MW Transcrições
P/1 – Então, Ronaldo, como eu te falei, a gente vai conversar. Então nem precisa esperar eu ficar perguntando a toda hora; o que você quiser ir contando, o que você achar importante... Mas eu vou começar pedindo para você falar o seu nome completo, onde você nasceu e quando.
R – Meu nome completo é Ronaldo da Boa Morte Conceição, nasci na cidade de Salvador, no dia 19 de setembro de 1986.
P/1 – Ronaldo, quais foram as primeiras... São, na verdade, as primeiras lembranças da sua infância.
R – As primeiras lembranças da minha infância não são muito agradáveis, porque eu lembro muito a ausência da minha mãe, embora eu tivesse uma avó que me encheu de amor, de carinho. Não sei, foi um espaço que minha avó não quis ocupar, ela não se sentiu no direito de ocupar o espaço de minha mãe e esse espaço ficou vago. Eu tenho muito amor e carinho por minha avó, ela já se foi, mas às vezes eu queria: poxa, por que eu não a chamei de mãe? Ela não me permitiu, ela não se permitiu, mas eu gostaria de tê-la chamado de mãe. Mas agora já é tarde, já passou. Então, minha infância... Eu lembro muito essa saudade, essa ausência de mãe. Porque eu tinha uma avó que era equivalente a duas mães, valia até mais, mas aquela coisa de mãe eu não tive. Então, minha infância é marcada por isso.
P/1 – Você conheceu a sua mãe?
R – Não tive essa oportunidade. A história de minha mãe é cercada por um mistério, porque minha mãe deu entrada no Hospital Roberto Santos, o mesmo em que eu nasci, com quadro de... Porque ela foi atropelada, deu entrada no hospital com o quadro de traumatismo craniano e confusão mental, e desapareceu. Na época, minha família, tanto materna quanto paterna, não tinha muitos recursos, então o tempo foi passando e nada se fez. Já prescreveu e não há mais o que fazer, só essa tremenda incógnita, essa interrogação, que não tem resposta, ela desapareceu. Não sei. Então, minha infância é marcada por isso.
P/1 – Sim. Com certeza. E além de você conviver com a sua avó, na sua infância, você convivia com mais pessoas?
R – Sim, minha família é grande, eu sou o último da casa de minha avó. Minha avó teve dez filhos, criou cinco sobrinhos e mais três netos. Eu sou o último neto. Fui cercado de amor, de carinho, de cuidados, isso não me faltou. Então eu tive uma infância feliz, mas, infelizmente, as coisas negativas, às vezes, terminam superando. Mas eu consigo separar e pesar essas duas coisas. Minha infância foi feliz, mas foi marcada pela saudade. Mas tive uma infância muito feliz. Não faltou amor, não faltou carinho, não faltou cuidado.
P/1 – Essa convivência... Todas essas pessoas, na sua infância, conviviam naquela casa com você?
R – Sim. A princípio sim, porque quando... Acho que a partir dos meus cinco, seis anos, os meus tios mais velhos começaram a viajar, o meu pai veio para São Paulo, e aí foram trazendo os outros. Então, no final, ficamos só eu, minha avó e minhas duas irmãs.
P/1 – São mais novas que você?
R – Não, são mais velhas.
P/1 – Mais velhas.
R – É. A Rebeca e a Raquel.
P/1 – Eu perguntei porque podiam ser filhas só do seu pai. E você lembra assim de brincadeiras que você fazia na infância?
R – De muito poucas. Minha infância, eu não tenho muitas memórias. Eu tenho algumas poucas memórias de brincadeira na escola, brincadeira com minhas irmãs no quintal de casa. Às vezes, finais de semana, a gente brincava na rua. Naquela época ainda se podia brincar na rua, pega-pega, pique-esconde, baleou. A vizinhança toda, todas as crianças se reuniam para brincar na rua. Naquela época podia ainda fazer isso, hoje já é um pouco mais difícil.
P/1 – E você gostava de brincar assim?
R – Ah, com certeza. Naquela época se tinha ainda infância. Hoje a infância é um pouco... A gente não sabe mais o que é a infância, porque as crianças de dez anos estão numa sabedoria, e isso é bom por um lado, mas por outro, no outro lado eu acho que se perde um pouco daquela inocência de criança, aquelas brincadeiras de roda, aquelas brincadeiras na rua. Até mesmo porque as nossas cidades estão perdendo os espaços públicos que se podem brincar. O meu bairro, onde eu passei a minha infância, os campinhos de futebol que a gente jogava bola, hoje é tudo casa. E isso não é um fato isolado de Salvador, é do Brasil inteiro. Você vê que as áreas de diversão, as áreas de lazer público, estão se perdendo.
P/1 – E esses jogos de futebol, você jogava também nesses campos?
R – Jogava, mas nunca fui bom.
P/1 – Mas jogava.
R – Tentava jogar.
P/1 – Você marcou algum gol mesmo não sendo bom?
R – Contra, eu era campeão de marcar gol contra.
P/1 – Mas um pelo menos a favor, você lembra? (risos).
P/2 – (risos).
R – De futebol, eu só tenho o nome, Ronaldo, mas com a bola eu sou uma tragédia (risos).
P/1 – E pipa tinha?
R – Ah, pipa já era minha praia. Pipa, soltei muita pipa. Morei uma época em São Paulo, no Bairro de Perus, e cheguei até a participar de um campeonato de pipa. Não sei se ainda hoje tem. Na Praça do Samba, todos os anos tinha um campeonato de pipa. Eu cheguei a participar.
P/1 – E como foi, pelo menos?
R – Não ganhei, mas fiquei bem classificado.
P/1 – Como é a sensação, já que você era tão bom de soltar pipa, como é essa sensação de soltar pipa assim?
R – Soltar pipa, naquela época, era um pouco de liberdade, era um pouco de imaginação, porque você vê a pipa lá em cima e você está dominando aquela pipa. De certa forma, você sonha, voa, é uma sensação muito boa de liberdade, sabe? De sonho e fantasia. Soltar pipa, para mim, era muito bom. Já tem anos que eu não solto pipa, mas quando eu vejo uma pipa no céu, eu olho assim com saudade, com vontade de soltar uma pipa. Mas, às vezes, tanta rotina, responsabilidade, às vezes não me dá esse tempo. E, às vezes, eu penso: “Pô, um cara velho assim soltando pipa?” É, eu sei que é um pouco de preconceito da minha parte.
P/1 – (risos) Olha a minha cara.
R – Mas é um preconceito meu, comigo mesmo. Eu acho lindo quando vejo uns coroas soltando pipa, eu queria estar lá com eles. Mas eu falo: “Pô, agora não dá nem para eu parar para pedir, para dar uns toquezinhos. Estou com pressa, tenho que ir para o trabalho, tenho que ir para a escola”. Então é sempre assim.
P/1 – Ronaldo, fiquei curiosa com uma coisa. Você lembra de alguma pipa assim que: “Nossa, essa que eu fiz, o desenho, o jeito...”? Teve alguma assim?
R – Ah, eu era muito conhecido em Perus por fazer pipões. Eu fazia pipas de mais de um metro. Um metro, um metro e dez, um metro e vinte. Então, quando minhas pipas subiam, todo mundo ficava: “Oh, é Ronaldo. É Ronaldo que está fazendo aquela pipa”. Foi uma coisa que me marcou. E eu gostava de chamar atenção com minhas pipas. Como eu nunca fui muito bom de fazer desenhos, fazer umas pipas coloridas, eu fazia grandes. Fazia umas pipas, muitas, muito grandes, para chamar muita atenção. Às vezes eu penso que é até um pouquinho de maldade da minha parte, porque eu fazia umas pipas grandes, quando elas já estavam no ar eu quebrava a linha propositalmente para ver todo mundo correndo atrás. E para mim, era uma sensação: “Estão correndo atrás da minha pipa. Fui eu que fiz”. Era uma coisa minha, eu gostava de fazer a pipa e soltar para ver as pessoas correndo atrás, porque era algo que eu tinha feito. As pessoas estavam correndo para recuperar algo que eu fiz. Não sei, era uma sensação boa.
P/1 – Muito bom. Ótimo.
R – Eu gostava muito dessa época.
P/1 – Muito bom. A gente até viajou com você, viu? Para o céu.
P/2 – Exatamente.
P/1 – Ronaldo, você falou de escola, que tinha umas brincadeiras na escola. Você estudou perto da sua casa, lá em Salvador?
R – Sim. No início da minha vida escolar, eu comecei na escola particular - no Bidu - em Salvador, no bairro de Tancredo Neves. Depois eu fui para a Escola Marechal Rondon, no bairro de Marechal Rondon, em Salvador mesmo. Depois fui para a Escola Professor Raimundo Teixeira, se eu não me engano, no bairro de Osasco.
P/1 – Aí já em São Paulo?
R – Já em São Paulo. Estive em outra escola em Osasco também, que eu não lembro. Depois fui para o Gavião Peixoto, em Perus. Depois eu voltei para Salvador, onde eu estudei no Colégio Modelo Luís Eduardo Magalhães. E depois dessa época eu abandonei os estudos, porque era naquela época em que eu precisava ganhar dinheiro. Eu achava que precisava mais de dinheiro do que dos estudos. Então eu larguei o trabalho para ir trabalhar, e virei autônomo. Minha família tinha uma lanchonete, minha avó me deu a oportunidade, eu falei: “Vou largar os estudos e vou me dedicar ao trabalho”. Foi bom. Foi uma época boa, mas não soube administrar um pouquinho, me faltou conhecimento. Do outro lado, meu pai me chamou para ir morar com ele na Espanha, porque nessa época ele estava morando lá, foi uma experiência muito boa, eu cheguei a estudar lá também, mas sempre ainda tinha aquela ideia de ganhar dinheiro. Eu queria ganhar dinheiro. E eu achava que ganhar dinheiro era através do trabalho. Então eu trabalhava dez, doze, às vezes quinze, dezoito horas por dia para ganhar dinheiro. Achando eu que estava ganhando. E, no final, eu voltei para Salvador, novamente montei um comércio, não fui bem-sucedido, onde eu me casei também, conheci uma pessoa maravilhosa. Eu acho que se eu tivesse um pouquinho mais de experiência, minha vida teria sido diferente. Eu não soube valorizar a pessoa no momento, e a busca por ganhar dinheiro... Eu pensava que ganhar dinheiro era tudo. Na minha mente, naquele momento, eu precisava de dinheiro. Então eu deixava de estar em casa, deixava de dar atenção para minha esposa, deixava de dar atenção para o meu enteado, que eu o amava, era meu filho, eu sofri muito depois da separação, e um dos motivos foi por me afastar dele. Porque eu queria ter dinheiro para dar conforto a eles. A intenção era boa, mas não era o certo, sabe? Hoje eu consigo perceber tudo isso, mas o tempo passou.
P/1 – E o que te motivava a tanta busca desse dinheiro? Além de dar conforto, o que você... Como começou isso, na verdade? Essa é a pergunta.
R – Eu acho que é o valor distorcido, deturpado, que a sociedade passa. Porque a gente percebe que... A sociedade julga, diz que temos que ter um modelo de sapato tal, modelo de carro tal, temos que ter carro, temos que vestir tais marcas, temos um padrão a seguir, e quem não está dentro desse padrão não é bem visto, vamos dizer assim. Então eu buscava, porque eu queria me vestir bem, eu queria morar bem, eu queria comprar um carro, eu queria ter isso que a sociedade diz - o ‘status’. Ostentar. Eu queria ter para ostentar. Mas isso, no fundo, é correr atrás do vento. Eu sou grato a todo esse processo. Foi muito doloroso, não quero passar por ele de novo, nunca. Mas, se eu voltasse, eu queria voltar com a experiência que eu tenho hoje, a visão que eu tenho hoje, faria diferente.
P/1 – Sim. Ronaldo, vamos voltar então, já que a gente aqui pode voltar (risos). Na época de escola você estudou em várias. Gaviões eu já... Gavião, não é?
R – Sim. Escola Brigadeiro Gavião Peixoto.
P/1 – Eu já ouvi falar dessa, lá em Perus. Uma escola grande.
R – Exatamente.
P/1 – Bem grande. Mas vamos escolher uma que trouxe alguma marca em você, boa ou não, que você queira falar. Ou então, escolhe uma que trouxe uma coisa boa e outra que não trouxe. Porque a gente vai fazer um registro, não dá para registrar todas nos detalhes, mas escolhe assim para a gente (interrupção). Então, fale um pouco dessas escolas antes de você ir para a Espanha.
R – Bom, a escola que mais me marcou, na minha infância, foi a Brigadeiro Gavião Peixoto. Lá eu tinha um professor, infelizmente eu não recordo o nome dele, mas ele organizou um campeonato de xadrez, eu consegui ganhar dois. E o melhor de tudo é que eu ensinei um colega meu a jogar xadrez e o primeiro campeonato eu eliminei na quarta, o segundo eu fui com ele nas finais, e no terceiro ele me venceu. Eu fiquei com muita raiva, mas um sentimento de orgulho, que na época eu ainda não sabia que era orgulho. Eu estava com orgulho porque fui eu que o ensinei, fui eu que o treinei e hoje ele me superou. E isso me deu muito... Acendeu alguma coisa dentro de mim, que eu não sabia o que era, mas acendeu. Acendeu uma chama. E o tempo foi passando, depois disso eu tive as outras escolas, que eu não me adequei muito bem porque não gosto muito do método de ensino... Aquela coisa que o professor fala e o aluno ouve, o professor é o dono da verdade e o aluno nada sabe. Tudo isso nunca me fez a cabeça. Mesmo sem entender, eu não aceitava. E tive muita dificuldade na escola. Eu sempre fui muito bom nas áreas de Exatas - Matemática sempre para mim a melhor matéria, Ciências, Geografia, História também me saía muito bem. Português, interpretação de texto, eu era muito bom. Gramática, péssimo. Eu era péssimo em Gramática porque eu não aceitava o fato de o nosso idioma ser Língua Portuguesa, eu não falo Português de Portugal. Eu não falo Português de Portugal, então por quê Língua Portuguesa? Eu falo brasileiro. Eu acho que o nosso idioma tinha que mudar o nome, tinha que ser Língua Brasileira, porque é isso que eu falo. Temos muita confluência e influência de outros idiomas e não nos parecemos com nada. Você vai ver Angola. Lá se fala Português, e o Português que se fala em Angola é o mesmo que se fala em Portugal, a dicção é a mesma, mas o nosso não tem nada a ver com o deles. Você vai ao Maranhão, se fala de uma forma; você vai ao Rio Grande do Sul, de outra; mas ambas as formas não se parecem em nada com o Português de Portugal. Então, por quê falar Português? Eu não falo Português, eu falo Brasileiro. Então, esses pequenos pontos... E na escola é fechado, você não pode expor essas questões, essa visão, você tem que simplesmente aceitar o que eles empurram. E isso me deixava frustrado. Então, isso foi um dos motivos de eu abandonar a escola, porque eu não tinha escolha. A única escolha que eu tinha era entrar na sala e sentar, isso nunca me fez a ideia. E por isso eu abandonei a escola tão cedo.
P/1 – No Gavião, você estava mais ou menos em que fase? Era ensino médio?
R – Estava no ensino... Naquela época já... Não, ensino fundamental, sétima série. Estava na sétima série, ensino fundamental.
P/1 – E depois, quando você abandonou, você estava em que época?
R – Eu abandonei na metade do segundo ano.
P/1 – Do ensino médio?
R – Do ensino médio.
P/1 – Estava realmente: “Deu!”.
R – É. Já não aguentava mais. Já não aguentava mais passar por tantas escolas, por tantos professores, já não aguentava mais do mesmo. Já não aguentava mais aquele sistema maçante, torturante, porque passar na escola é um processo muito torturante. São muitos anos da nossa vida, e quando a gente sai com diploma de ensino médio, a gente pergunta: E agora, o que eu faço com tudo isso que eu aprendi? Ou, melhor, para quê tudo isso me serviu? Porque o ensino curricular não tem nada a ver com o dia a dia, não tem nada a ver com a nossa vida, não se parece em nada. É uma realidade muito distante, essa é a verdade. Teve essa reforma agora, mas eu não acredito que vá colar, não. E tenho esperança, mas eu não acredito.
P/1 – Ronaldo, você falando isso, me lembra assim, como era sua... Porque você criança foi contando para a gente, quando você foi saindo da infância para a adolescência, juventude, você estava em São Paulo? Conte um pouco só assim, um pouco como era a escola, desse jeito, e fora da escola. Como era?
R – Eu sempre fui uma pessoa muito caseira. Na escola, alguns colegas me chamavam de rato de biblioteca, porque eu estava na biblioteca, ou na sala de aula. Era muito difícil eu estar na quadra, porque eu nunca fui muito bom de esportes. Então eu sempre estava na biblioteca jogando xadrez ou lendo alguma coisa, sabe? Essa era a minha vida na escola. E em casa também, eu era muito caseiro, não saía muito. Confesso que eu passava a maior parte do meu tempo assistindo desenho ou dormindo. Nessa época, eu tinha esse privilégio.
P/1 – E aí você resolve trabalhar?
R – Isso.
P/1 – E esse trabalho foi na lanchonete da sua avó, ou foi outra coisa?
R – O primeiro trabalho que eu tive foi na Folha X, em Perus. Eu lembro até hoje o ___00:21:05____ era o dono desse jornal, a Folha X, de Perus. Ele também tinha uma pizzaria, Luau, que fica também no mesmo bairro. E eu trabalhei nos dois lugares. Então eu comecei a trabalhar nessa época, eu acredito que eu deveria ter uns quatorze anos, treze para quatorze, e foi aí que despertou em mim aquela coisa de ganhar dinheiro. Porque eu gostava de estudar, mas não gostava do método, não gostava daquela rotina. Eu não gostava da sala de aula como era. Já que o objetivo de se estudar é para ganhar dinheiro, eu descobri um caminho mais rápido de ganhar dinheiro. Já que eu estou estudando para trabalhar, deixe-me trabalhar direto e ganhar logo o dinheiro. E foi quando eu comecei essa corrida por ganhar dinheiro, por trabalhar e querer sempre trabalhar. Eu acho que depois, no finalzinho desse ano que eu estava trabalhando, eu voltei para Salvador, minha avó tinha uma lanchonete no Bairro de Cajazeiras, eu comecei, fiquei um período lá para passar o tempo, aí eu percebi: “Isso aqui dá. Isso aqui tem futuro”. Aí, comecei a trabalhar.
P/1 – Lá mesmo na lanchonete?
R – Lá mesmo. E foi na época em que eu abandonei os estudos. Porque eu trabalhava durante o dia na lanchonete da minha avó e, à noite, eu ia para a escola. Chegava à escola muito cansado. Tinha dias que, de cinco horários, só tínhamos dois. Aí tinha que passar os três primeiros horários sem aula para esperar para ter apenas os dois últimos. Ou, às vezes, chegava à sala de aula o professor não tinha vindo, ou simplesmente deram paralisação, ou greve, e ninguém falou nada para a gente.
P/1 – E aula, as aulas desse jeito.
R – É. Aquelas aulas maçantes, aquelas aulas que não nos inspiram nada. Pelo menos para mim. Eu sei que os professores faziam o melhor que eles podiam e que permitiam, porque o sistema é muito fechado, mas eu não me enquadrava, eu não me encaixava, eu não me sentia bem, eu não gostava. Não gostava daquela ideia de sentar na cadeira e ficar lá ouvindo, ouvindo, ouvindo, e não ter um espaço para trocar ideia. Porque eu acho que o ouvir ensina, a gente aprende muito ouvindo, mas conversando, dialogando, trocando ideia, constrói conhecimento. E, às vezes, é mais que um aprendizado, é realmente uma construção de um conhecimento novo. Conversando, a gente aprende e ao mesmo tempo ensina; é uma troca, um intercâmbio, e isso é que é o bom. E eu tenho muita sorte de ter conhecido o Telecurso, a Telessala, que...
P/1 – A gente vai, daqui a pouco, direto para a Telessala. Vamos contar como você foi para a Espanha, para a França, como foi lá, que época foi; daí você conta como foi para a gente.
R – Primeiro eu fui para a Espanha, para Sevilha. Eu estava na lanchonete da minha avó, já tinha parado os estudos. Chegou um momento em que eu tinha um tio que estava passando por dificuldades, e ele queria ir trabalhar na lanchonete, mas como eu já estava à frente... Ele era meu tio, minha avó é... Aquela tradição de que os mais velhos precedem, aquela coisa, minha avó falou para mim: “Olha, ele vai assumir, você vai ajudá-lo”. Isso me pegou muito mal porque, poxa, eu já tinha tido tanto trabalho e agora eu vou ajudar? Poxa, eu fiquei muito chateado. Meu pai já tinha me falado de ir para a Espanha, e eu falei: “Não, aqui eu estou ganhando dinheiro, eu não vou sair do certo pelo duvidoso”. Quando aconteceu isso, eu falei: “Poxa, agora eu não tenho mais nada a perder. Não tenho mais motivo para ficar aqui. Eu ia ficar aqui porque tinha um comércio”. Eu estava com dezessete para dezoito anos, então, com o comércio sob a minha responsabilidade, isso me deixou muito bem, eu me sentia bem, estava com a moral alta, cheio de orgulho de mim mesmo: “Pô, estou trabalhando para mim mesmo”. O comércio era de minha avó, mas eu é quem estava à frente, isso me dava muito orgulho. Quando ela falou isso, eu fiquei um pouco... Ela não falou por maldade, mas era a forma dos antigos, minha avó tinha uma educação antiga, então ela trazia toda aquela herança e o jeito de ela falar era aquele. Só que eu não entendi na época, e eu não aceitei. Eu: “Está bom, então”. Meu pai ligou para mim, eu fui direto ao ponto: “Ainda está de pé a proposta?”. Ele falou: “Está”. Foi quando eu fui morar com ele na Espanha. Aí passei quatro anos lá. Estudei um ano e meio, me alfabetizei em castelhano. Mas ficar em casa estudando não era o que eu queria, eu queria ganhar dinheiro. Eu falei: “Meu pai, eu tenho que trabalhar, eu quero ganhar dinheiro”. E eu comecei a trabalhar. Na Espanha, eu trabalhei na construção civil, trabalhei de guarda coche, que aqui a gente chama de flanelinha, em estacionamento. Trabalhei em restaurante, trabalhei de barman. O que aparecesse de trabalho... Está pagando? Está. Então eu ia trabalhar. Eu queria ganhar dinheiro. Teve uma época que eu estava com tanta sede de trabalhar e ganhar dinheiro, que eu chegava a trabalhar, às vezes, dois dias sem dormir, sabe? Uma loucura. Também eu estava na flor da idade, estava entre dezenove e vinte e dois anos, cheio de energia para dar e vender. Aproveitei muito. Mas eu não percebia que eu ganhava de um lado e gastava do outro.
P/1 – Gastava muito.
R – Porque, às vezes, para sair de um trabalho para o outro não dava para pegar uma condução, eu tinha que pegar um táxi. Então, às vezes, metade do dia trabalhado ia só no táxi. Mas jovem, imaturo, sabe?
P/1 – E da Espanha, assim, o que você trouxe da Espanha, ou levou depois para outro lugar?
R – Morar na Europa foi muito bom para mim.
P/1 – Por quê?
R – Eu acho que na Espanha, principalmente. A coisa que mudou minha vida foi uma frase que os espanhóis têm, duas em particular: “Yo soy mis muertos”. “Eu sou meus mortos”; e “eu sou um”. Uma frase está ligada à outra. Dos quatro anos que passei na Espanha eu só consegui entender o “eu sou meus mortos” praticamente no último ano; e o “eu sou um” eu só vim entender acho que uns seis para sete anos depois que eu ouvi pela primeira vez essa frase.
P/1 – Conte. Fale disso.
R – O “eu sou meus mortos”... O “eu sou um” responde o “eu sou meus mortos”. Eu sou meus mortos porque eu sou um, eu sou um porque eu sou um, filho de dois, neto de quatro, bisneto de oito, e aí a gente vai multiplicando a nossa ancestralidade, a gente vai chegar a um número gigantesco, mas todo esse número se resume a um: o que eu sou hoje. O Jung, ele fala até do inconsciente coletivo, consciente hereditário, que isso está tudo interligado.
P/1 – Sim. E você falou que foi descobrir isso no último encontro do ano?
R – Exatamente.
P/1 – Por quê? E se você puder falar.
R – Foi a dificuldade. Meu pai voltou para o Brasil, eu não quis voltar, porque eu falei: “Não, aqui eu ainda estou ganhando dinheiro, aqui eu tenho mais chance do que no Brasil”. Meu pai falou: “Está tudo bem”. Ele me deixou bem, numa situação favorável, eu fiquei lá. Mas a crise chegou e eu comecei a perceber que eu já não tinha papai, já não tinha mamãe. Já não tinha papai, não tinha vovó, não tinha meus tios perto. Eu sempre fui um pouco solitário, mas eu nunca tinha sentido o que era solidão. Eu era solitário por escolha própria. E eu comecei a sentir a solidão, a ausência da família, a dificuldade de você ter que ser por você mesmo, de você ter que ganhar o seu dinheiro com a obrigação de contas para pagar, de alimento para se manter. Antes eu trabalhava porque eu queria juntar dinheiro, queria ganhar dinheiro, mas qualquer coisa eu tinha a casa do meu pai, onde meu pai me dava tudo. Então essa parte eu tive muita sorte, de ter uma família. Eu só não tive sorte de saber administrar o que eu ganhei. Quando eu passei por esse momento de dificuldade foi quando eu percebi o valor da família, foi quando eu percebi o como é ruim estar sozinho. Mas ao mesmo tempo eu não me sentia só, porque eu me lembrava dos ensinamentos, da força da minha família, a força da minha avó. Minha vovó é uma guerreira, criou dez filhos, cinco sobrinhos, três netos, sabe? Meu pai é um cara supertrabalhador, um cara guerreiro. Então tudo isso me dava respaldo para continuar, para avançar, para seguir em frente. Mas foi quando eu comecei a entrar num processo introspectivo. E eu comecei a unir os cabos, unir os conhecimentos, os ensinamentos, e aí eu falei: “Poxa, eu não sou sozinho, eu sou fruto de tudo isso, e todos eles estão comigo”. Hoje, minha avó não está mais entre a gente, mas eu a sinto ao meu lado, a cada momento. Não é a presença dela, mas a ideia, o ensinamento. O ensinamento dela está comigo a todo instante. Às vezes eu estou na rua, estou conversando com alguém, saem as frases que ela falava, me vêm os pensamentos, situações na vida que a gente fala: “Eu não vou fazer isso, porque...”. Eu lembro as ensinanças de minha avó. E uma das coisas que minha avó me ensinou, que me ajudou e tem me ajudado muito, todos os dias... Minha avó falava o seguinte: “Meu filho, na vida temos que passar. Se a gente chora, passa; se a gente ri, passa. Então escolha: vai passar rindo ou chorando?”. Simples. A gente não tem opção, a gente tem que passar. O como passar é uma escolha pessoal. Eu carrego isso hoje comigo. Ela falava de uma forma mais... Porque ela tinha um jeito próprio de falar. E eu carrego isso comigo. Tem dia que eu acordo e falo: “Poxa, hoje eu não queria trabalhar”. Mas eu tenho que trabalhar, eu vou trabalhar triste? Eu chego ao meu trabalho, eu sou uma alegria só, brinco com todo mundo, abuso todo mundo. E, às vezes, o dia em que eu estou mais triste é o dia que eu mais brinco, sabe? Porque eu tenho que fazer isso, eu tenho que trabalhar, eu preciso trabalhar, mas eu não... Por que trabalhar de cara fechada, sabe? Eu passei por um momento de depressão, depois do divórcio, e cheguei a desistir de tudo, fiz até uma tentativa estúpida, mas graças a Deus falhei, foi quando eu vim para o Rio de Janeiro.
P/1 – Você voltou para o Rio...
R – O Rio, eu já tinha voltado da Europa.
P/1 – Então da Espanha, para onde você foi?
R – Quando a crise chegou à Espanha, eu fui para a França, porque eu tinha um tio que tinha ido passar um tempo na França, na casa de uns amigos, aí ele falou: “Ah, Ronaldo, vem para cá”. Eu fui. Foi bom. Foi muito bom, mas aquela saudade da família, aquela solidão. E, assim... Na França eu assisti a um documentário que mudou a minha vida, eu não sei se para melhor ou para pior, mas me fez tomar a decisão de voltar.
P/1 – Qual foi?
R – Foi de um... Se eu não me engano foi de Guiné-Bissau. Ele já estava na França há mais de trinta anos, tinha se formado em Direito, era advogado, super bem-sucedido na sociedade, mas no meio da fala dele ele disse uma coisa que me impressionou: ele falou que era um homem sem pátria, um homem sem gente, porque depois de tantos anos ele voltou para a terra natal, para a aldeia dele, e aquela não era mais a gente dele, não era mais o povo dele. Não é que o povo havia mudado, mas ele mudou tanto que não se parecia mais com eles. Nem ele se reconhecia no povo, nem o povo reconhecia, então ele perdeu a identidade dele. Então ele falou: “Pô, meu lugar é na Europa, é na França”. Ele voltou. Quando ele chegou, ele falou: “Também aqui não é, porque por mais que eu pareça, eu não sou um francês”. Ele já tinha estudado, falava perfeitamente, tinha tudo, se vestia como, mas não era um francês. Então ele dizia que era um homem sem identidade. E nessa época eu já estava há quase seis anos, já estava quase fechando os seis anos na Europa e eu não me parecia mais com brasileiro. Primeiro, porque eu sou baiano que não joga capoeira, não aprendi a jogar capoeira, sou um brasileiro que não sabe jogar futebol.
P/1 – Aí o pessoal: “E o futebol?”.
R – Não sei sambar. Então são coisas assim, são características que nos dão identidade. São características próprias da nossa identidade como brasileiro: a capoeira, o samba, o futebol, e eu não tenho. E o meu conhecimento também, da história do meu povo, da minha gente, não era tão amplo, era um conhecimento muito pequeno, muito curto. Eu falei: “Poxa, o que eu sou? Onde eu estou?” Falei: “Não, eu preciso voltar”. E nessa época também, depois desse um ano e meio, as coisas já estavam ficando difíceis na França. Em Paris, as coisas estavam difíceis, arrumar trabalho já não era tão fácil. Às vezes eu estava trabalhando... Eu tinha trabalhado seis meses, já tinha quase cinco meses parado, e gastando o dinheiro que eu tinha guardado.
P/1 – Você trabalhou em quê na França, só para a gente registrar?
R – Na França, eu trabalhei só na construção civil.
P/1 – Sim.
R – Era uma área que pagava muito bem. Já que os franceses não gostam muito de pegar no pesado, era a minha oportunidade. E eles pagavam muito bem, então foi um lugar em que eu ganhei um pouquinho de... Ganhei até mais do que o tempo em que eu trabalhava na Espanha. Mas o problema foi que eu trabalhava um período e ficava outro sem trabalhar, e o que eu ganhava no período em que eu estava trabalhando eu gastava para me manter no período que eu estava sem trabalho. E no final não tinha resultado, sabe? E eu estava trabalhando só para comer, só para viver. Eu falei: “Trabalhar para viver no país dos outros, trabalhar para viver no meu país, eu vou para o meu país”. Nessa época também o governo estava fazendo uma publicidade de que o Brasil era o país da vez, com Olimpíadas, Copa do Mundo, que esse foi o engodo, e eu caí direitinho. Mas tudo bem.
P/1 – Você já queria voltar.
R – Eu já queria voltar mesmo, eu só queria a desculpa. E eu até uso isso para culpar o governo. O culpado é o governo, não fui eu (risos).
P/1 – (risos) Está certo. Então, você volta. E você volta, e o que acontece?
R – Quando eu volto, vou para Salvador. Volto para a lanchonete de minha avó. Começo a trabalhar, invisto o pouquinho que tinha, o comércio começa a crescer. Nisso, eu conheci minha ex-esposa, fiquei encantado, apaixonado, em três meses estávamos nos casando. Ela tinha um filhinho maravilhoso, o Miguel, que, nossa, eu amava, eu amo de paixão. Ele me chamava de tio, mas quando alguém perguntava: “Ronaldo é o que seu?” “Ele é meu tio”. “E você é o que de Ronaldo?” “Sou filho”. Então era uma coisa mútua, era um sentimento muito bonito que a gente tinha. Mas eu ainda, infelizmente, estava naquela sede por buscar dinheiro, por ganhar dinheiro. Eu ainda não tinha as coisas muito claras, porque eu podia ter me dedicado aos estudos. Estudando, a gente pode encontrar um trabalho ganhando um pouco mais, com menos esforço físico. Mas era a forma que eu sabia ganhar dinheiro, era isso, era com trabalho, era com muitas horas. E eu abria o meu comércio muito cedo, fechava muito tarde.
P/1 – O que você abriu?
R – Era uma lanchonete.
P/1 – Também.
R – Isso. Era em frente a dois hospitais, era muito bom o comércio. Mas eu não sabia, me faltava conhecimento. A verdade é essa, me faltava conhecimento. Eu tinha muita força de trabalho, tinha muitas ideias, mas eram ideias que faltava base de conhecimento para poder fazer as coisas de uma forma melhor, de uma forma mais arrojada, traçar um plano a longo prazo. O meu plano era tudo muito curto, então as coisas não funcionavam bem.
P/1 – Como você encontrou o Telecurso?
R – Ah, o Telecurso já foi depois... Eu fali, aí...
P/1 – Ah, está. Então conta.
R – Eu fali, divorciei... Na verdade, primeiro eu divorciei, depois eu fali. Porque depois que eu me divorciei, eu fiquei meio sem chão, porque eu coloquei minha família num pedestal. Eu trabalhava tanto porque eu queria dar o melhor para a minha família, mas eu não sabia passar essa mensagem. A minha mensagem era só trabalhar. Eu acordava cedo, saía de casa e chegava muito tarde. Saía cansado e chegava mais cansado ainda, então não dava atenção para a minha esposa, quase não dava atenção para o meu enteado. Eu dava mais atenção para o meu enteado do que para a minha esposa. O pouco tempo que eu tinha dentro de casa eu passava mais brincando com ele do que dando atenção para a minha esposa. Já estava destinado a... Era impossível, daquela maneira, durar. E depois do divórcio eu fiquei sem chão, já perdi o objetivo. Porque o meu objetivo era a minha família, eu trabalhava para ela, para minha família, para poder dar o melhor para a minha esposa, tentar dar o melhor para o meu enteado. Apesar de que eles não precisavam que eu trabalhasse tanto, mas eu fazia isso porque eu queria... Aquela coisa: eu sou o homem, eu tenho que ser o mantenedor, eu tenho que ter dinheiro para... Aquela ilusão. E depois disso eu entrei numa depressão, aí minha tia ficou sabendo através de uma prima minha que eu estava numa situação deplorável, tentei até o suicídio, aí a minha tia foi me buscar e me trouxe aqui para o Rio. E, no Rio, eu estava fazendo tratamento, tudo direitinho, e uma das coisas que eu fazia, eu saía andando, eu andava muito para poder... Era uma maneira de tentar cessar o fluxo de pensamento, tentar parar de pensar um pouquinho, tentar distrair a mente. E numa dessas andadas eu passei em frente ali, na Maria da Graça, onde aconteciam as aulas do Telecurso. Eu falei: “Pô...”. Minha tia falava: “Ronaldo, você tem que terminar os estudos. É uma vergonha, você é um menino de trinta e um anos, é inteligente, você não tem filho, agora não tem mulher, você não tem desculpa para não terminar os estudos. Você não quer fazer faculdade, pelo menos o ensino médio você tem que tirar. E outra coisa: você não vai conseguir nenhum trabalho que pague mais ou menos sem ter o ensino médio”. E todo dia essa cobrança. Nessa época, minha avozinha ainda estava entre nós, estava um pouquinho doente mas ainda estava com a gente, e ela me cobrava isso também. Ela falou que eu tinha... “Você começou a estudar cedo, já era para você ter terminado.” Eu não queria nada com o antigo método de ensino. Eu não queria voltar para aquela sala de aula feia, às vezes mal iluminada, ficar sentado, com o dono da verdade na minha frente. Numa dessas andanças encontrei o Telecurso.
P/1 – Uma faixa.
R – Uma faixa. Uma faixa pequena, um bannerzinho, acho que oitenta por um e vinte, acho que não era mais do que isso. Mas aquele símbolo da Fundação Roberto Marinho é algo que fica no nosso... A gente tanto vê na televisão, que marca aquilo. Eu vi, a princípio eu passei direto, mas o meu subconsciente viu o logo, eu falei: “Eu conheço aquele logo”. Aí eu voltei. E eu tenho uma mania que quando alguma coisa me chama a atenção, eu ainda ando para trás. Eu não dou a volta, eu ando para trás (risos). Porque se não valer a pena, eu nem gastei a volta, não gastei o tempo de fazer a volta. Eu dei alguns passos para trás: “Ah, é aqui mesmo”. Eu falei com o rapaz da portaria, ele: “Ah, é só subir”.
P/1 – Você já tinha visto que era um curso?
R – Não. Na verdade, eu estava com a mente tão aérea, falei: “Ah, eu vou lá, vou ver o que é, como funciona”. Porque eu não sabia como funcionava, eu tinha ouvido mas não sabia como funcionava, nada. Eu fui recebido pela professora Andréia. Me recebeu superbem. Ela tinha me explicado que já havia começado o curso, que já estava na metade de uma turma, mas ela falou: “Não, você pode vir amanhã, traz os seus documentos, você vai começar. Se você quiser, pode até ficar aqui assistindo a nossa aula, ver como funciona, tal”. Eu falei: “Não, não, eu só estava andando”. Naquele mesmo dia, eu cheguei à casa, falei com a minha tia, e, à noite eu retornei, já levei alguns documentos, fiz o que foi uma quase pré-matrícula e comecei a frequentar.
P/1 – O que fez você voltar? Falar: “Eu vou fazer esse negócio aqui”?
R – A princípio, foi a recepção, aquela coisa humana, calorosa, aquela coisa de “você é bem-vindo”, sabe? A importância. Eu cheguei à sala e a professora Andréia passou a imagem de que eu era importante para ela. Nunca tinha me visto, não me conhecia, não sabia quem eu era, não sabia da minha história, mas de alguma maneira ela passou a imagem para mim de que eu era importante para ela. Então, essa importância me fez voltar, me fez tomar a iniciativa, dizer: “Não, eu vou vir aqui para ver como é isso”. E a cada dia que passa... Porque quando eu comecei a frequentar... É uma experiência ímpar fazer parte da Telessala do Telecurso. É uma experiência ímpar.
P/1 – Fale assim um pouco mais, em detalhes, o porquê. Mas o porquê contando: o primeiro dia, o segundo dia. O que foi tomando você por essa experiência ímpar, entendeu?
R – O primeiro dia que eu fui, a primeira aula, eu já estranhei, porque a professora Andréia chegou com um tema e começou a perguntar a cada um dos alunos, a cada um de nós, o que achava daquele tema. Mas espera aí, ela está aqui para ensinar ou... (risos)? O primeiro momento: ela está aqui para ensinar? Ela é colega de turma ou é uma professora? Mas aí cada um foi expondo sua ideia, seu ponto de vista. O mais incrível é que tinha algumas pessoas que, a princípio... Quando eu cheguei ao Telecurso, eu era cheio de pré-conceito, de ideias pré-concebidas. Não é preconceito no sentido de discriminação, mas pré-conceito no sentido de ideias pré-concebidas. Tinha muitas ideias pré-concebidas. Eu vivia numa caixinha. Então, quando eu cheguei, tinha alguns colegas que eu olhei assim: “Meu Deus do céu, o que isso vai falar? O que aquele vai dizer? Ah, meu pai, o que eu estou fazendo aqui?”. E o incrível é que pessoas simples nos surpreendiam com uma resposta assim, que você falava: “Caramba, eu nunca tinha pensado dessa maneira. Eu nunca tinha visto dessa maneira”. Tinha um colega da turma, Djalma, ele era muito calado, mas às vezes ele falava, e falava algumas coisas assim que eu dizia: “Caramba, esse cara, ele sabe o que diz”. Então é isso que me fez me apaixonar pelo Telecurso. Porque eu tinha a oportunidade de não só aprender o conteúdo didático, mas eu tinha a oportunidade de aprender o mesmo conteúdo de outra perspectiva, de uma perspectiva real. Não que o conteúdo didático não seja real, mas de uma perspectiva de quem viveu aquilo, de quem passou por aquela situação, de alguém que viveu aquele conteúdo de outra maneira. Porque, às vezes, muitas pessoas simples, que sabem o conteúdo acadêmico, mas elas sabem de forma prática, de forma atuante. Ela não tem todas as letras, toda aquela pompa, não sabe nada da teoria, mas sabe a prática, e com as palavras dela, ela fala mais do que um doutor. Então foi isso que me apaixonou no Telecurso. É esse conhecimento, essa oportunidade de você ouvir e falar. Porque você não só fala, mas você ouve. Você não só ouve, mas você fala também. E isso constrói um conhecimento ímpar, um conhecimento que os livros não passam.
P/1 – E você foi se ambientando? Conta um pouco depois, outras situações também que foram se tornando assim com essa importância.
R – Eu gostava muito da atividade de socialização, que todo dia tinha uma brincadeira, mas não era uma brincadeira sem objetivo, sempre era uma brincadeira que trazia uma reflexão. E isso, a gente começava a aula com uma brincadeira, que nos trazia uma reflexão, e depois a professora vinha com um assunto e pedia a opinião dos alunos sobre esse assunto. E o mais incrível era que as coisas se encaixavam, sabe, de uma forma natural. E a turma era dividida em equipes: tinha a equipe de socialização, tinha a equipe de... Socialização, tinha a síntese, tinha a... Acho que eram quatro.
P/2 – Coordenação.
R – É. Coordenação, e a outra eu não me lembro.
P/1 – Avaliação.
R – E avaliação. Isso. Coordenação, avaliação, socialização e a síntese.
P/1 – E dessas equipes, quem participava?
R – Os alunos. A professora nos dava total liberdade. A equipe da socialização trazia uma brincadeira, um jogo, mas a professora soltava alguns parâmetros: tem que trazer um conteúdo, tem que trazer uma reflexão. Tem que ser uma brincadeira que nos traga uma reflexão. Tem que ser um jogo que nos traga algum conteúdo, não apenas a brincadeira em si, o jogo em si, mas tem que ter um algo a mais. E com esse parâmetro a gente tinha total liberdade de fazer, elaborar o que quiséssemos. Então, isso é o empoderamento. O Telecurso nos dá esse empoderamento na sala de aula, que a gente leva para a vida. Que na vida é meio que a gente estar cheio de regras. Não estou falando que as regras são ruins. Não, as regras são boas. Mas a gente tem uma liberdade que a gente não usa, porque não nos ensinaram a usar. Porque a gente, desde pequeno, ouve: não pode, não faz, não, não, não, não. O “não” não é ruim. O “não” é bom, no seu momento, no seu lugar certo, mas dentro desse “não” a gente tem um espaço de ação, e esse espaço não nos é ensinado, não nos é passado. E a gente fica preso, a gente fica restrito, sabe, a um ambiente, numa caixa, e o mundo não é uma caixa. O mundo pode até ser uma grande caixa com muitas caixas, mas não é uma caixa só. O bom do Telecurso é que ele nos ajuda a sair da caixa e olhar que existem outras caixas, e às vezes até, de alguma maneira, tocar no outro para também sair. Esse é o maior legado do Telecurso, é o poder de transformação.
P/1 – Fala para mim então, Ronaldo, se você puder sempre situar como foi essa transformação, qual foi a mais forte em você? Se é que teve. E assim... Se você se lembra do momento. Assim como você falou de outras coisas que aconteceram com você, que você lembra exatamente quando, como, o que... Se você conseguir escolher alguma coisa aí.
R – A maior transformação que o Telecurso provocou na minha vida, foi que quando eu entrei na sala do Telecurso eu estava sem objetivo. Para mim, eu só estava passando mais um dia e esperando o dia. Eu não tinha mais perspectiva para mim. Terminar hoje ou terminar daqui... Viver um dia a mais, ou viver mais dez dias, ou mais dez anos, era a mesma coisa - eu até preferia um dia a mais, só. Mas quando eu cheguei ao Telecurso e observei toda aquela dinâmica, todo aquele movimento, aquilo me abriu os olhos. Lembra que eu falei de um colega que eu ensinei a jogar xadrez? E acendeu alguma chama. Acendeu uma chaminha lá atrás, que eu nem sabia que tinha acendido. Essa chama cresceu, ganhou combustível dentro do Telecurso. E um dia eu descobri que gosto de ensinar. Eu sinto prazer quando alguém aprende alguma coisa comigo. Eu não me canso de repetir para uma pessoa que quer aprender. Uma pessoa que me pergunta, eu repito. E não gosto de falar da mesma maneira, eu sempre procuro formas diferentes de falar a mesma coisa. Se ela me perguntou de novo é porque ela não entendeu, então o erro não está nela, está em mim que não estou sabendo explicar. E é isso que o Telecurso tem. É isso que a professora Andréia passava para a gente na sala de aula.
P/1 – Isso como?
R – Essa repetição de formas diferentes até que a gente entendesse. Ela não se cansava de sentar do lado de um aluno e tirar dúvida. Isso a gente não vê na escola comum, na escola cotidiana.
P/2 – Tradicional.
R – Tradicional. A gente não vê isso na escola tradicional. Na escola tradicional, o professor chega, passa o conteúdo de uma maneira, talvez duas ou três maneiras diferentes, se você entendeu, bem, se você não entendeu, paciência, vá estudar por conta. E no Telecurso, não tem isso. No Telecurso, a imagem que a professora me passava era aquela busca incansável por ensinar. Incansável. Aquela coisa: eu tenho que lhe ajudar a aprender da forma que você sabe. Não é a forma que a professora sabe, mas a forma que o aluno sabe. O aluno que... Sabe, é como se o poder estivesse na mão do aluno, o poder de aprender. Quando o aluno diz: “Eu quero aprender”. A professora fazia de tudo o que fosse possível e tentava o impossível para que ele aprendesse. Porque na escola tradicional queremos aprender, mas às vezes existem tantas barreiras, é uma coisa tão fechada, tão cheia de métodos, e não se pode sair desse método porque é isso que o governo manda, é isso que a cartilha diz, que a cartilha dita, e tem que ser seguido. E, às vezes, se fosse adaptado um pouquinho, uma coisinha tão mínima, um ponto, uma vírgula, teria um resultado melhor. E é essa liberdade que na Telessala a gente tem, de tentar adaptar o conhecimento ao aluno.
P/1 – Então eu vou lhe perguntar: você falou de métodos, mas tinha toda essa flexibilidade, podia adaptar a como o aluno aprende, como... Mas tinha um método? Isso era... Entendeu o que eu quero dizer?
R – Sim.
P/1 – Tinha uma organização?
R – Tinha. Sim. Sim. Sim.
P/1 – Porque do jeito que você está falando, eu posso entender, ou alguém pode entender: ah, então era cada um ora de um jeito...
R – Não, não. O Telecurso tem toda uma metodologia que tem que ser seguida, só que essa metodologia não é uma metodologia engessada. É uma metodologia onde dá ao aluno a possibilidade de experimentar, de intercambiar conhecimento. Tanto que o professor não é o dono da verdade, o professor não é a primeira, nem a última voz na sala. O professor é uma voz na sala, ele é a voz que guia. O professor está ali para nos guiar dentro do conhecimento. O professor não nos transmite o conhecimento, ele nos guia na busca do conhecimento. É o que na escola tradicional não é assim. Na escola tradicional, o professor é o que transmite, é como se a gente não tivesse nada. No Telecurso, não. No Telecurso, o professor nos guia dentro do conhecimento, porque ele tem o conhecimento, nós também temos o nosso. A professora Andréia sempre dizia que ela não estava ali para ensinar, ela estava ali para intercambiar, para trocar conhecimento, para aprender. Ela dizia: “Eu tenho mais a aprender com vocês do que vocês comigo”.
P/1 – E entre os colegas em relação a isso? Entre vocês no grupo.
R – Como eu falei, a gente era dividido em quatro grupos, só que não eram grupos... Todos os meses havia um novo sorteio, uma nova reorganização desses grupos. Então pegávamos um assunto, o assunto do dia, da aula, e cada grupo abordava um tema, um aspecto desse assunto, desse tema, e no final apresentava para toda a sala. Então muitas vezes a gente abordava o mesmo tema, o mesmo assunto, mas de maneira diferente. A gente conseguia perceber que o outro grupo, o outro colega, abordou o mesmo assunto de uma maneira diferente, ele conseguiu ver o que a gente não tinha visto, e aí o conhecimento é mais completo. Porque quando você recebe um conhecimento de um único ponto de vista, é um conhecimento, sim, mas é unilateral. Mas quando você tem a oportunidade de receber esse mesmo conhecimento de quatro pontos diferentes, você tem um conhecimento mais completo. É menor? Não. É mais amplo. Você consegue perceber a visão do outro, amplia o seu entendimento, amplia a sua compreensão do ser, de si mesmo e do outro, sabe? E do mundo também. É esse o maior legado do Telecurso. Para mim, é esse o maior legado. O diploma de ensino médio é bom? É. Claro que é. Abriu uma porta na minha vida. Hoje eu estou na universidade porque eu tenho o diploma do ensino médio, que foi no Telecurso que eu tirei. Mas isso é importante? É. Mas não é o mais importante. O mais importante é que ele transmite para a gente essa compreensão do ser. Não só do ser, mas o ser no social, no mundo. Que a gente tem um papel, que a gente não está aqui apenas para ser um figurante, mas somos os protagonistas da nossa própria vida e temos um papel definido na sociedade, isso que é o mais maravilhoso.
P/1 – E você conseguia sentir isso? E quando você saía da sala assim? Porque você entrou daquele jeito. Você consegue falar para a gente, assim, de um jeito concreto quando você saiu?
R – Eu posso dizer quando eu saí.
P/1 – Está.
R – Quando eu terminei o curso, peguei o certificado, maravilha, eu comecei a trabalhar nessa empresa em que eu estou hoje. E quando eu cheguei a essa empresa, eu cheguei cheio de garra, cheio de energia, vibrante. Na empresa tem um plano de carreira maravilhoso.
P/1 – Que empresa é? Só para a gente registrar.
R – Hoje eu trabalho no Madero. O Madero tem um plano de carreira maravilhoso e que possibilita um crescimento real, é uma empresa que, nossa, se você me perguntar se eu quero hoje trabalhar em outro lugar: não. Eu estou muito bem onde eu estou, faço o que eu gosto de fazer. Só que quando entrei lá, eu fiquei tão encantado que desviei o meu foco. Eu me esqueci do meu objetivo. Eu esqueci do por que eu estava indo trabalhar. Eu fui trabalhar porque eu queria ter recursos para poder entrar na faculdade. A princípio, eu queria fazer Pedagogia, porque eu queria ser professor. Mas eu esqueci, falei: “Ah, não, aqui eu estou ganhando dinheiro logo”. Aquela vontade de ganhar. Esse é um calcanhar de Aquiles, ganhar dinheiro. Eu adoro trabalhar para ganhar dinheiro. Eu falei: “Pô, estou trabalhando e estou ganhando dinheiro. Quanto mais eu trabalho, mais dinheiro eu ganho. E eles pagam, e pagam direitinho, e pagam certo, e pagam bem, me dão assistência”. Eu tenho um plano de saúde maravilhoso, eu tenho benefícios ótimos, eles pagam 40% da minha faculdade, eles me pagam uma porcentagem do meu curso de inglês, eles me dão estrutura, sabe, não só dentro do trabalho, mas na minha vida. Eles me dão alojamento, alimentação, é muito bom. É uma empresa maravilhosa. Então eu falei: “Pô, eu estou no paraíso, eu estou no céu. É só eu trabalhar certinho, vou conseguir uma promoção legal, daqui a uns dias eu estou num cargo de gerente, ganhando um salário maravilhoso”. Eu falei: “Para que fazer faculdade já que eu não preciso de faculdade para crescer aqui? O que eles querem é potencial”. Seis meses foram necessários. Em seis meses eu voltei para a depressão. Teve um momento tão difícil que eu passei três dias em casa, sem comer... Assim, não é sem comer, é comendo um biscoitinho, um pão seco. Porque... Sabe, quando você sente que o estômago vai se auto-devorar de tanta fome? Eu ia lá, pegava um pão, comia, bebia uns dois copos de água. E só assistindo série. Mas se você me perguntar o que eu estava assistindo, eu estava ali só... Mas não estava ali. O corpo estava, mas a mente, eu não sei onde estava. Eu perdi o foco. O trabalho é bom e é importante, mas para mim é muito pouco, porque eu não transformo nada. Eu faço o que eu gosto, eu gosto de servir. Eu fico muito feliz quando eu pego o prato da mão do chef, levo à mesa, aí eu vejo o cliente, os olhos brilham, a boca saliva. Teve um cliente que quando ele foi falar “muito obrigado”, a saliva psss. É um pouco nojento, mas o cliente estava com tanto prazer, com tanta vontade de comer aquela comida que eu levei, que eu estava servindo, que salivou. Isso, quando eu vejo isso nos olhos do cliente, na face do cliente, isso me enche de prazer, de orgulho do que eu faço. Sabe, o servir... Eu adoro servir. Mas é muito pouco. Eu só estou alimentando o corpo, eu só estou alimentando a carne, não produz nada. E eu tinha me esquecido de ser professor. Tinha me esquecido de fazer faculdade, eu queria só... Estava trabalhando em função de uma promoção dentro da empresa, que é muito bom, mas não era o que me movia. Não é o que me fez ir para ali. Não é o que eu quero para minha vida. Eu queria ser professor e eu quero ser professor.
P/1 – E como deu o clique assim? Que liga tem com o Telecurso? O que causou na tua vida?
R – O Telecurso foi que me despertou isso. O Telecurso foi que me deu essa vontade de ser professor, porque a metodologia que o Telecurso tem é uma metodologia com a qual eu me identifiquei. E eu tenho certeza de que muitos dos meus colegas, muitas das pessoas que desistiram no meio do caminho, se estivessem inseridos numa Telessala, não teriam desistido. Eu tenho certeza. Eu vou falar por mim, não vou falar pelos outros. Eu desisti porque eu não aguentei, era muito maçante. A palavra é essa: maçante. É maçante. Você vai para a sala de aula, fica quatro horas sentado ali ouvindo, copiando, é maçante isso. A gente não constrói conhecimento, a gente se torna papagaio de pirata. O termo popular: papagaio de pirata, a gente repete o que o professor fala.
P/1 – E você, nesse momento em que você estava no restaurante, naqueles seis meses, veio a depressão, e conta então como aconteceu.
R – Nem eu estava me percebendo. Eu percebi isso depois que... Como eu não estava indo em casa, não estava ligando para a minha tia, a minha tia achou estranho e foi atrás de mim. E ela me encontrou, falou: “Ronaldo...”. Ela falou: “Ronaldo, não...”. Levou-me ao médico, eu comecei a tomar medicamento, tudo direitinho. Ela falou: “Vou te matricular no curso de Inglês”. Minha tia sabia mais dos benefícios que a empresa me dá do que eu mesmo. Ela foi, me matriculou no curso de Inglês, aí ela falou: “Você vai se matricular na universidade”. Eu: “Está bom. O que eu vou fazer? Ah, vou fazer qualquer coisa aí - Matemática à distância”. Eu já queria fazer isso, mas eu me matriculei sem vontade. E quando eu cheguei para me matricular, eles precisavam de uma declaração, porque a declaração que eu tinha já tinha vencido. Eu tive que voltar à sala. Aconteceu algo interessante: a professora Andréia tinha perdido o telefone dela, aí eu não conseguia contato com ela, eu tive que ir à sala de aula. E quando eu cheguei à sala de aula, foi um, assim, um interruptor, acendeu de novo, a lâmpada acendeu de novo, brilhou. Eu falei: “Caramba, por que eu parei? Por que eu me desviei do foco? Por que eu parei para olhar para o lado? Por que, de novo, eu caí no engodo do dinheiro? O engodo de ganhar dinheiro”. Eu não preciso de dinheiro, eu vivo com trezentos reais por mês. Dinheiro é bom, mas eu não preciso de dinheiro. Dinheiro não é mais o que me move. Sabe, ganhar só dinheiro por ganhar perde a graça. Eu não tenho mais prazer de trabalhar só para ganhar dinheiro. Isso não me dá prazer. Eu tenho mais prazer de ir para o trabalho porque eu vou ver o olho do cliente brilhar quando eu levo aquele prato maravilhoso, aquele x-burguer madero, que é maravilhoso, do que pelo salário que eu recebo no final do mês, que não é ruim. Mas o salário não me move. Ir trabalhar só para ganhar um salário no final do mês, para mim é cansativo. Mas ir pelo prazer de ver o cliente ser bem servido, isso me dá importância, sabe? Eu sou importante. No meu trabalho, eu sou importante. Eu sou a última qualidade do prato. Sou eu que digo se o prato vai para a mesa ou não. É o chef que faz, mas se eu olhar e vir algum defeito, falar: “Chef, não levo”. Não levo. O prato não sai... A chama de boqueta, que é onde o prato sai da cozinha para ir para a mesa do cliente. Se eu falar “não”, não vai. E, graças a Deus, no meu trabalho, os meus companheiros, os meus colegas de trabalho, têm carinho e acreditam no meu trabalho. E se eu falar: “Não vou levar esse prato” – ele já sabe que alguma coisa está errada, ele já pergunta: “O que está errado?”. Porque sabem que eu levo muito a sério o meu trabalho. Eu levo muito a sério isso mesmo. A qualidade, o servir bem, eu levo muito a sério, porque o objetivo é deixar o cliente satisfeito. Só que melhor que servir comida é servir conhecimento. E ser professor hoje é o que me move. É o que me moveu até aqui. Da sala do Telecurso até hoje é o que tem me movido. E eu tive essa pequena má experiência, que para mim foi um aprendizado muito valioso, de que é o que eu quero, é o que eu preciso. Hoje não é só um querer, é uma necessidade. Eu necessito me preparar para ser um professor, para estar na sala de aula. Eu não sei como vai ser isso, eu não sei onde eu vou lecionar, se eu vou lecionar. Eu não sei se eu vou chegar lá. O futuro é um véu, é uma névoa, a gente não sabe o que está do outro lado, mas eu quero estar pronto. Eu quero estar pronto. E o Telecurso me ajudou e me abriu as portas. E mesmo depois de formado ele me ajudou novamente, porque quando eu precisei voltar à sala de aula para falar com a professora Andréia, para ela facilitar a declaração, pedir uma declaração, porque eu não sabia onde era a sede da Fundação, e também não sei andar muito bem aqui na cidade do Rio. Aí eu: “É mais fácil eu pedir para a professora Andréia”. E eu fui pedir a ela. Só que quando eu voltei para aquele ambiente, aquilo me encheu de alegria, de esperança, aquela chama tomou conta de novo e incendiou. Eu falei: “Não, é isso mesmo. Não tem outro caminho para mim. Não tem opção”. Mesmo se eu quisesse, não tenho opção, é um chamado. É como se fosse um chamado. Não sei se eu posso dizer que é um chamado, mas é o que me move, a ideia de me preparar para ser um professor.
P/2 – Ronaldo, você me disse ali que queria ser um professor, mas um professor de Matemática na periferia. Por quê?
R – Por quê?
P/1 – Nós vamos fechar com essa, está bom?
R – Eu...
P/1 – Desculpa, repete só um pouquinho o que ela te perguntou, porque senão a gente não consegue contar essa história, entendeu?
R – Está bom. Eu quero ser professor de Matemática porque a maioria dos professores não é de Matemática. Faltam professores de qualidade nessa matéria específica. Então por isso eu optei por Matemática. Periferia. Eu quero ser um professor de Matemática de escola pública na periferia porque a nossa juventude está jogada às traças. É triste. Eu trabalhei numa empresa de refrigeração, no Jacaré. Nessa época, nem minha tia sabia que era no Jacaré. Eu falava que era na Maria da Graça, mas não... Porque minha tia tem pavor, tem pânico. E eu estava recém-chegado, com quatro meses aqui na cidade do Rio de Janeiro, e trabalhando num lugar daquele, não é fácil. Mas eu tinha feito um curso na Faetec, o professor da Faetec tinha um ex-aluno que tinha uma empresa, então eu estava bem recomendado, sabe? Era um lugar que não era o melhor do mundo, mas eu estava bem recomendado, eram pessoas que tinham respaldo, então por isso eu fui. E também eu tinha curiosidade, eu queria conhecer, saber o que é isso, como é. Porque eu me propus a uma coisa na vida, depois do Telecurso eu coloquei isso na minha cabeça: eu nunca mais vou dizer que algo é bom ou ruim sem conhecer. Hoje eu me proponho a conhecer tudo que eu não gosto, e aí eu digo: não gosto por isso. Para fundamentar a minha opinião. Fundamentar a minha ideia. Então tudo que eu não gosto eu conheço só para poder dizer por que eu não gosto, ter uma ideia fundamentada. Hoje eu sou assim, não tem jeito. E devo isso parte ao Telecurso, esse processo de conhecer o diferente, conhecer o outro. O Telecurso tem essa cunhadora muito forte, o de conhecer o outro. Isso é muito importante. Eu fui para essa empresa, trabalhar nessa empresa de refrigeração, não pelo valor, o dinheiro que eles pagavam, mas era por dois motivos: um, que eu tinha feito o curso, eu aprendi o teórico, eu precisava da prática; então eu estava agregando esse conhecimento na minha vida: aprender a prática da refrigeração. E o segundo é que ele estava situado numa área, numa região que eu tinha curiosidade. Todo mundo fala mal das comunidades. Mas por que falam mal? Eu queria conhecer como é aquela comunidade. E no pouco momento eu conversei com moradores, conversei com crianças, e o que mais me chamou a atenção, o que mais me impressionou, eram os jovens. As crianças não têm perspectiva, você conversa e você ouve, você sente na fala delas, que não têm perspectiva. As crianças pararam de sonhar. Nossas crianças não estão sonhando mais. Isso é um perigo. Isso é um erro gravíssimo. A gente está pagando e vai pagar um preço muito mais caro no futuro, porque nossas crianças pararam de sonhar. E quem constrói o futuro não sou eu, já estou com trinta e um anos anos, não tenho mais nada que eu possa fazer. Eu só posso jogar uma pedrinha num lago, mas uma criança hoje e amanhã pode jogar uma montanha. O que move o futuro, o que move o mundo, o que faz essa engrenagem continuar girando, são as crianças. Se as crianças pararem de sonhar, o que será do nosso futuro? E as crianças das nossas periferias não estão mais sonhando.
P/1 – Os jovens então?
R – O máximo que eles conseguem pensar em futuro é ser jogador de futebol, cantor de funk. Não é coisa concreta. Eles não pensam em estudar para serem um advogado, para serem um médico, para serem um professor, para serem um dentista. Eles não pensam em estudar para concluir o ensino médio. Não pensam em concluir o ensino médio. No máximo começar a trabalhar. Só que o trabalho é uma grande ilusão no nosso país. Por quê? Para a criança da periferia, o trabalho é uma ilusão. Porque ele está em um contexto social muito perigoso e muito controverso. Porque o coleguinha dele que cresceu, passou a infância com ele, o jovem quando faz quatorze, dezesseis anos vai para o projeto, que é o Primeiro Emprego. O Jovem Aprendiz, perdão. Vai para o Programa Jovem Aprendiz. Trabalha uma média de quatro a seis horas por dia para ganhar meio salário mínimo. Quando ganham quinhentos, o máximo seiscentos reais. Vai a um shopping comprar um tênis de marca, o mais barato são trezentos reais, aí ele volta para casa cabisbaixo. Aí ele vê aquele mesmo coleguinha dele, que cresceu junto, morando vizinho, cresceu junto, foi para a escola junto, brincou junto, só que escolheu o caminho diferente. Aí o coleguinha está com sapato de oitocentos, uma calça de trezentos, uma camisa de duzentos, um chapéu de cento e cinquenta, um cordão de ouro, mas está no lado errado.
P/1 – Isso você vivenciou lá?
R – Isso eu percebi. E eu li Augusto Cury, O Vendedor de Sonhos. E eu acho que, realmente, precisa de pessoas para vender sonhos, para ensinar a essas crianças a voltar a sonhar. Ensinar a essas crianças que existe um caminho mais longo, é verdade, mais difícil, é verdade, mas o mais lindo. O mais lindo, não sei se é certo dizer o mais lindo, mas a verdade é essa: existe um caminho que é muito mais belo, mas ele não é fácil ser percorrido, requer tempo, paciência, dedicação, esforço, mas quando chega lá vale a pena. Porque você não só se muda, mas você passa a ser um agente de mudança, você começa a ver que você impacta outros, que impacta outros, quando você vê, mudou uma geração.
P/1 – E o professor que você vai ser naquela escola lá, como você quer ser?
P/2 – Que Andréia? O que a Andréia deixou para você?
P/1 – A gente vai fechar com isso. O seu caminho está levando para você ser um professor de Matemática, que não seja no Telecurso, pode até ser, mas pode ser naquela escola, não é?
R – Se eu conseguir transmitir 10% do que a Andréia transmitiu para mim, eu vou ter cumprido minha missão nessa vida.
P/1 – Andréia é...
R – Minha professora do Telecurso. Só 10%. Se eu conseguir passar 10% do que ela me passou...
P/1 – Se você fosse escolher, o que você... Eu posso escolher uma coisa só para fazer, do Telecurso inteiro, mas eu vou fazer isso para essas crianças. Olha que desafio.
R – É um desafio muito grande, porque é uma metodologia muito completa. E ela está tão engajada, tão bem articulada, que uma coisa leva à outra, é um efeito cadeia, um efeito dominó, uma cascata. Uma atividade que leva à outra, que leva à outra, e que quando você percebe, você fecha um ciclo. Não tem como dizer: eu começo aqui e termino aqui. Você pode começar em qualquer ponto, e você vai fechar esse ciclo. O Telecurso, o bom dele é esse, que ele é completo, e é uma coisa dinâmica, é uma coisa viva.
P/1 – Você tem vontade de levar isso para a escola. Você acha que é possível? Você, que aprendeu tudo isso, nessa escola você se vê fazendo isso?
R – Sim. Mas temos uma barreira muito grande. Não vou dizer intransponível, porque não existe nada intransponível nesta vida, exceto a morte, mas a vontade política. A verdade é essa, não existe vontade política em nosso país para educar a nossa população.
P/1 – Agora, você com essa intenção, o que eu quero dizer é que se essa metodologia ficou em você e você consegue carregar, ou mais ou menos, ou em partes. Só falar um pouquinho disso para a gente fechar.
R – Eu carrego...
P/1 – Como você se vê? Resumindo: como você se vê lá na frente professor?
R – Como eu me vejo? Ah, eu me vejo um transformador. É isso. Eu só quero isso. Só quero transformar vidas. Somente isso. Mas não é transformar para que essas vidas sejam algo diferente do que elas são. Só quero fazer o que o Telecurso faz: exteriorizar o que já existe no interior do indivíduo. Só exteriorizar essa força, exteriorizar o saber, exteriorizar a vontade de crescer, a vontade de ir mais à frente, a vontade de ser melhor. Só isso. Não precisamos que ninguém nos dê nada, só precisamos que façam o que o Telecurso faz: nos ensina, nos incentiva a exteriorizar o nosso bem, o que nós temos dentro.
P/1 – Eu fecho aí. Muito bom. Parabéns.
P/2 – Seja bem-vindo. Termine seu curso e seja bem-vindo à nossa unidade escolar, para ser colega de Andréia.
R – Ia ser algo assim que, cara, eu... É muita responsabilidade. Eu não sei se eu tenho o know-how para ser um professor do Telecurso, porque ser professor do Telecurso é algo muito importante, porque está lidando com transformar vidas. Está lidando com vidas e isso não é uma coisa simples, é uma responsabilidade muito grande. E é isso que eu... Eu tenho essa inspiração. Eu tenho esse orgulho de ter feito parte do Telecurso e tenho esse exemplo de Andréia. Porque Andréia, chovia, fazia sol, às vezes ela ia trabalhar sem poder ir, às vezes até doente ia para a sala, porque ela tinha um compromisso com a gente. E isso é inspirador. Hoje em dia você vai às escolas tradicionais, um professor, coitadinho, fez a unha na hora de lazer dele, a professora fez a unha para ficar mais bonitinha, inflamou o dedinho: “Ah, vou pegar um atestado” (risos).
P/2 – (risos).
R – Você vê que os professores do Telecurso, não. Eles, realmente, sabem a importância do papel que eles desempenham em transformar a vida, em exteriorizar essas pessoas, em fazer essas pessoas voltar a sonhar. Eu entrei na sala de aula sem perspectivas. Eu estava tão vazio de mim mesmo, sem sonhos. Eu voltei a sonhar na sala do Telecurso. E se eu voltei a sonhar, por que eu vou ficar com o sonho só para mim? Você acha que Andréia não está transmitindo o que ela tem? Você acha que ela está fazendo isso só por ela? Você acha que ela não sente prazer em saber que ela está sendo agente de transformação? Em partes, eu continuo caminhando em gratidão ao esforço dela, eu não posso deixar esse esforço se perder. Vocês trabalharam muito para que eu pudesse ter aquele momento em sala de aula, eu não posso agora simplesmente cruzar os braços e dizer: vou deixar de lado. Não posso. É uma responsabilidade que eu me sinto responsável. Eu me cobro. De alguma maneira isso chegou até mim, e hoje... Não tem como.
P/1 – Muito bem. Parabéns, viu?
P/2 – Parabéns, Ronaldo.
P/1 – Muito obrigada pela tua história. Belíssima.
R – Obrigada. Eu que agradeço pela oportunidade.
P/1 – Já é bela. Você falou que pode ser bela. Não, já é. O caminho já está belo aí para você.
P/2 – É.
R – É que é muito frágil. Eu estou na fase mais frágil da minha vida, porque é um descuido. É um momento e eu posso deixar de caminhar. Então é um passo. Hoje a minha luta é para eu me manter todo dia, a cada minuto. Eu acordo, eu tenho que estar no trabalho, quando eu tenho que estar no trabalho às onze horas, eu acordo às oito horas da manhã, porque se em algum momento eu quiser aquela preguiça, aquela coisinha, eu tenho duas horinhas ali que eu posso fazer alguma coisa, porque onze horas eu tenho que estar no trabalho. Então é essa responsabilidade, de estar ali. Eu tenho que dar um passo de cada vez. É um dia de cada vez. Eu sei que eu vou chegar lá. Eu sei disso. Mas eu sei também que eu tenho tudo para não chegar, só depende de mim.
P/1 – Entendi. Mas está firme aí.
P/2 – É. Você vai chegar.
P/1 – Você está inspirando outras pessoas. Muito obrigada, viu?
R – Eu que agradeço.
FINAL DA ENTREVISTARecolher