Ali Jeratli nasceu em Damasco, na Síria, em 15 de janeiro de 1988. Mas a cidade que desperta lembranças de carinho nele é Al-Salameh, próxima a Homs e Hama, no noroeste do país, onde passou sua infância e adolescência. Ali se lembra com brilho nos olhos dos momentos em que todos os seus primo...Continuar leitura
Ali Jeratli nasceu em Damasco, na Síria, em 15 de janeiro de 1988. Mas a cidade que desperta lembranças de carinho nele é Al-Salameh, próxima a Homs e Hama, no noroeste do país, onde passou sua infância e adolescência. Ali se lembra com brilho nos olhos dos momentos em que todos os seus primos e irmãs se reuniam para brincar ou então para competir entre si: quem tirava as melhores notas na escola, quem andava melhor de bicicleta, quem fazia a melhor comida, quem corria mais rápido com seu cavalo.
Sua égua se chamava Zena e, durante o período de férias, Ali sempre acordava às 5 da manhã para cuidar dela: dar comida, limpar seu estábulo. Segundo ele, ela sempre foi mais do que amiga. “Quando você é criança, você se sente como filho desses animais, porque a égua e o cavalo gostam muito do ser humano que cuida e se preocupa com eles”.
Além da saudade da Zena, das festas e das brincadeiras com seus mais de 90 primos, Ali também sente muita falta da comida da sua mãe. Lembra-se com muito carinho do mahshi cozinhado por ela: abobrinha recheada com arroz, carne e berinjela. Ele sempre comenta com os amigos que seus dotes na cozinha não chegam aos pés do dom da sua mãe para a gastronomia.
Ali entrou cedo na escola. Adorava acompanhar as sessões de estudo de suas irmãs, e com cinco anos já sabia ler e escrever. Na primeira vez em que foi assistir a uma aula, a professora o deixou de lado devido à sua idade. Quando ela começou a ensinar os alunos, o único que respondia às perguntas era ele. A professora ficou impressionada e o chamou para a lousa. Ele não só escreveu frases como também respondeu a uma série de perguntas de matemática. Então ela disse: “Você vai começar como aluno regular no nosso curso”.
Segundo Ali, em Al-Salameh as pessoas nunca perguntam quanto dinheiro você tem, e sim quantos livros você leu, quais informações você possui. “É preciso ter subsídios para uma conversa boa. Nunca falamos sobre os outros ou fazemos fofocas. Falamos mais sobre a vida, nossas experiências, nossa opinião sobre os livros que lemos”.
E falando em experiências, Ali sempre gostou muito de conhecer lugares novos. Seu pai o liberou muito cedo para começar a viajar, com cerca de 10 anos de idade. Em uma época onde a Síria não era perigosa, ele tinha liberdade para conhecer cidades vizinhas e se aventurar na estrada com seus amigos e primos. Mas isso não durava os três meses inteiros das férias. “Na nossa cultura, temos 15 dias das férias para descansar, dois meses para aprender outra profissão e mais 15 dias para se preparar para a escola. Então trabalhei como marceneiro, pintor, eletricista. Se algo quebrar na minha casa hoje em dia, sei como arrumar pois tive esse aprendizado”.
Ali lembra com muito carinho de uma viagem que fez para a cidade de Tartus com sua família. Foi a última aventura que fez com seu irmão, antes dele falecer. Ali entrou com seu irmão no mar às 11h da noite e só voltou às 3h da manhã. Mais de 4 horas nadando. “Fiquei deitado no mar olhando para o céu, para as estrelas... Você sente que é um pontinho pequeno nesse mundo. Que todas as energias negativas saem de você. Só mar e céu ao seu redor”.
Sobre os primeiros amores, Ali comenta que não é fã da ideia de ficar experimentando vários relacionamentos antes de encontrar a pessoa ideal. Ele diz que é preciso estar 100% seguro antes de escolher. Conversar bastante, trocar ideia, saber do que a pessoa gosta, entender se seus pontos de vista são similares ao seu. Assim ninguém se machuca e a relação se torna duradoura. Ali tem uma noiva na Síria e pretende trazê-la para morar com ele no Brasil.
Aliás, o Brasil é um país que sempre despertou muito carinho e admiração nos sírios, segundo Ali. Na época da Copa do Mundo, só se vê verde e amarelo nas ruas. Vestem mais a camisa do que no próprio Brasil. Ao trabalhar no setor hoteleiro em alguns países próximos à Síria (como África do Sul, Malásia, Cingapura e Líbano), Ali recebeu vários turistas brasileiros. Adorava conversar com eles, conhecer a cultura. Aí começou a guerra civil na Síria, a situação econômica foi ficando difícil, a moeda começou a desvalorizar... E por mais que Ali tivesse uma experiência de mais de sete anos em hotelaria no continente asiático, sentiu que precisava vivenciar algo novo e receber seu salário em uma moeda mais forte. Então, começou a pesquisar sobre o Brasil, sobre os costumes, o futebol... Pensou: “vou para lá assistir a um jogo e conhecer o Ronaldo!”
Reunindo toda a coragem que seu sobrenome lhe confere (Jeratli significa ‘coragem’ em árabe), Ali chegou para seu melhor amigo no trabalho e disse: “vamos viajar para o Brasil?”. Ele topou na hora. Os dois comunicaram sua chefe no hotel onde trabalhavam (ela ficou bastante chateada por perder um profissional exemplar como Ali), foram para Ancara, na Turquia, para tirarem o visto e, após passarem na Síria para se despedirem de suas famílias, embarcaram rumo a terras brasileiras.
Quando chegaram ao Brasil, pensaram “e agora?”. Nenhum dos dois sabia falar uma palavra em português e não tinham dinheiro suficiente para ficarem muito tempo hospedados sem emprego. Mas Ali foi surpreendido pela generosidade do povo brasileiro. “As pessoas daqui são muito mais maravilhosas do que eu imaginei. Aqui você fala ‘oi, tudo bem?’ para alguém e já vira amigo”. E foi exatamente o que aconteceu quando Ali se viu em uma situação preocupante. Assim que chegaram ao país, Ali e seu amigo ficaram hospedados em um hotel na Santa Cecília, com custo de 90 reais por dia. O dinheiro estava acabando e eles não conseguiam encontrar emprego devido à barreira do idioma e do visto, que era da categoria de turismo, e não de trabalho. Quando o dinheiro estava em vias de terminar, Ali comentou com seu amigo: “Acho que amanhã vamos dormir em um lindo lugar na rua, embaixo de uma árvore!”
Mas Ali afirma que, a todo momento, sempre pensou positivo e acreditou que algo muito bom iria acontecer. Foi quando colocou a mão em seu bolso e achou 150 dólares. Disse para seu amigo: “Vamos beber uma cerveja para comemorar!”. Foram ao bar e encontraram uma família de brasileiros cantando e dançando. Começaram a dançar com eles e a conversar.
- Onde vocês moram?
- Estamos hospedados em um hotel aqui na Santa Cecília.
- Não, como assim? Como vocês estão morando em um hotel? A gente tem um quarto vazio na nossa casa, vocês querem morar com a gente?
- Mas como vocês confiam em duas pessoas que acabaram de chegar no país, não conhecem ninguém e nem sabem falar português?
- A gente gostou de vocês! E aí, vocês querem?
- Sim, vamos!
Tudo pelo Google Tradutor e com algumas palavrinhas trocadas em árabe. Eles ficaram alguns meses morando com a família e nesse meio tempo receberam várias visitas, conheceram muitos brasileiros e chegaram até a viajar para o interior de São Paulo com eles. Continuaram a procurar emprego, mas desta vez mais tranquilos. Ali chegou até a trabalhar como vendedor de água nos bloquinhos de rua do Carnaval para juntar dinheiro.
Durante esse período, se preocupou em aprender ao máximo a língua portuguesa. Levava um caderninho para cima e para baixo e anotava qualquer palavra que via na rua, no supermercado... Conversava com todo mundo, até com moradores de rua. Estudava por conta própria, escutava músicas. E depois começou a frequentar a escola de um imigrante egípcio que ajudava refugiados a aprender o português.
E foi da maneira mais inusitada que Ali conseguiu o seu emprego dos sonhos: trabalhar na Copa do Mundo. Estava no metrô conversando ao telefone em árabe. Uma pessoa ouviu a conversa e lhe perguntou: “De onde você é?”. Ele explicou que tinha vindo da Síria. “Você sabe falar outras línguas?”. Ele disse que sim e comentou que estava procurando um trabalho. Na mesma hora, o homem levou Ali para uma entrevista de emprego na Manpower. Ele foi aprovado. “Mas onde vou trabalhar?”, perguntou Ali. E o recrutador explicou: “Você não sabe? Você vai trabalhar no Itaquerão, durante a Copa do Mundo”. Ali não acreditou. Saltou da cadeira de emoção no mesmo minuto. Foi muito melhor do que ele imaginava: teve a oportunidade de assistir a todos os jogos no estádio, conheceu pessoas de diferentes culturas e pôde mostrar para os brasileiros uma Síria que quase ninguém conhece.
Ele diz: “A Síria não é como as pessoas acham, não é só guerra, deserto e bombas. Ela é como o Brasil: tem uma cultura muito rica, é um mundo dentro de um país. Não é só o que a mídia retrata. Pouca gente sabe que Damasco foi a primeira capital do mundo, que o primeiro alfabeto começou lá, que existem várias religiões diferentes no país, que as línguas mais antigas do mundo são faladas na Síria. Quero mostrar essas histórias para as pessoas, falar da comida, da dança, da educação. Quero que os brasileiros tenham vontade de conhecer o meu país e todas as maravilhas que ele possui”.
E foi no trabalho do Abraço Cultural que Ali teve a oportunidade de passar esse conhecimento adiante para seus alunos de árabe. Ele começou na ONG como professor-assistente de inglês e hoje é coordenador comercial, além de continuar lecionando e ensinando as maravilhas da Síria para os estudantes. Segundo Ali, é o emprego dos sonhos. E alguns de seus alunos inclusive têm muita vontade de viajar para a Síria depois de ouvirem suas histórias.
Hoje o maior sonho de Ali é trazer sua família e sua noiva para morarem no Brasil. Ele realmente pretende ficar por aqui. “Existe um provérbio que diz que onde você trabalha, você gruda. O Brasil agora é o meu país. Gosto muito dos brasileiros, são o melhor povo do mundo, sua cultura é muito rica”. E o seu segundo maior sonho é que a situação na Síria melhore. “Hoje a gente vê as casas todas destruídas, caídas no chão, e isso me deixa muito triste. Meus amigos todos saíram da Síria, estão todos espalhados, cada um morando em um país, e o fato de não ter a certeza se vou encontrá-los de novo no decorrer da minha vida me deixa desolado”.
A todo momento, Ali sempre destaca a importância do pensamento positivo e de enxergar o lado bom de tudo. Segundo ele, uma mente que trabalha de maneira positiva é muito mais forte do que a sorte. “Não adianta você ficar sentado pensando que não consegue, ou então que vai cair no colo. Você precisa se movimentar. Eu me movimentei, fui para outro país, conheci pessoas em um novo idioma, ganhei um quarto para me hospedar e ainda consegui trabalhar na Copa do Mundo. Tudo porque eu enxerguei o lado bom das coisas negativas”. É a velha máxima: pensamento positivo. Sempre.Recolher