P/1 – Bom, querida Iara, vamos começar a entrevista. Eu vou te fazer uma pergunta muito complicada que é o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Meu nome é Iara Gracielli Xavier Silhetes. Nasci dia 28 de outubro de 1980 em Divinópolis, Minas Gerais.
P/1 – E qual é o...Continuar leitura
P/1 – Bom, querida Iara, vamos começar a entrevista. Eu vou te fazer uma pergunta muito complicada que é o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Meu nome é Iara Gracielli Xavier Silhetes. Nasci dia 28 de outubro de 1980 em Divinópolis, Minas Gerais.
P/1 – E qual é o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai é Gorazil Bento Xavier e minha mãe Orivalda Alves Xavier.
P/1 – Você sabe um pouquinho da origem desse nome? Deles, Xavier, você não sabe nada da história da família?
R – Não.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Não. Todos eles morreram antes. Eu sou temporona da família, nasci com a minha mãe mais velha.
P/1 – E os dois nasceram em Divinópolis?
R – Os dois nasceram em Divinópolis.
P/1 – Então me conta um pouquinho, o que seu pai fazia?
R – Meu pai é fazendeiro, ele trabalha na roça, e a minha mãe é dona de casa.
P/1 – E ele é fazendeiro como? É uma fazenda grande, é um sítio?
R – Não, é uma fazenda pequena, com poucas vacas, pouquíssimas plantações. Ele e minha mãe sempre moraram na roça, não tem funcionários, é ele que levanta quatro horas da manhã pra tirar leite e faz toda a comida. Meu pai mora na fazenda e minha mãe mora na cidade. Minha mãe foi pra cidade com 18 anos, recém-casada, levando os três filhos mais velhos pra poder estudar e nisso meu pai ficou na fazenda.
P/1 – Vamos voltar. Você sabe como eles se conheceram?
R – Muitos anos atrás. São 53 anos de casados que eles têm. A comunidade é uma comunidade muito pequena, onde eles viviam. Então tem uma igrejinha no terreno que era do meu avô e sempre nessa igrejinha tinha os eventos sociais, que era missa, leilões e tal. E aí eles se conheceram ali, na roça mesmo.
P/1 – E essa comunidade chama como?
R – Bentos.
P/1 – Bentos. Que é perto de Divinópolis?
R – Que é perto de Divinópolis.
P/1 – E aí eles foram tendo filhos. Quantos irmãos você tem?
R – São cinco filhos. Minha mãe casou com 17 anos, meu pai com 18, muito novos, e eu tenho a Eliana, a Dilma, a Dalva, o Aguinaldo e eu.
P/1 – Só tem um homem.
R – Só um homem.
P/1 – E as idades, de diferença, qual foi?
R – A Eliana tem 53, é um ano de diferença pras três mulheres. Depois deu um tempo pro meu irmão, se não me engano foram oito anos, e depois 12 anos diferença minha com ele.
P/1 – Nossa, por que você nasceu 12 anos depois, você sabe?
R – Fui meio escapulida (risos). O sonho da minha mãe e do meu pai era ter um filho homem e aí eles tiveram três filhas mulheres e sempre queriam um homem, aí quando nasceu o meu irmão eles fecharam a fábrica, como diz lá em Minas. E aí escapuliu eu depois de 12 anos (risos).
P/1 – Doze anos.
R – Doze anos.
P/1 – E aí você nasceu em Bentos ou você nasceu em Divinópolis?
R – Em Divinópolis.
P/1 – Então sua mãe mudou pra...
R – Mudou. Quando nasceram as três filhas ela foi pra Divinópolis. Meu irmão nasceu lá também pra que os filhos crescessem com escola, tivessem estudos, porque na fazenda não tinha.
P/1 – É quanto tempo a fazenda até Divinópolis?
R – São 30 quilômetros, mas tem uma estrada de terra. Então na época era muito difícil porque não existiam carros, acessibilidade, então era caminhão leiteiro, aí minha mãe tinha que subir em cima das latas de leite pra poder ir pra cidade.
P/1 – E não tinha escola também lá perto da fazenda.
R – Não, não tinha escola.
P/1 – Daí ela ficou morando sozinha em Divinópolis?
R – Morando sozinha, criando os filhos lá e meu pai trabalhando na roça pra mantê-los financeiramente na cidade. E com isso ficou o casamento, ele na roça e ela na cidade, uma vez por semana ele ia, outra vez ela ia, então permaneceu desse jeito, como permanece até hoje.
P/1 – Até hoje é assim.
R – Até hoje é assim. Meu pai fala que se ele sair da roça ele morre e minha mãe fala que se voltar pra roça ela morre (risos). Aí ficam os dois separados, mas juntos.
P/1 – Vamos voltar, então, a quando você nasceu. Qual é a sua primeira lembrança da casa que você nasceu?
R – Bom, eu tenho muita dificuldade de lembrar das minhas coisas de infância, é raro, infância e adolescência pra mim são raras as coisas que eu lembro. Mas me lembro que era um apartamento pequeno numa rua bem movimentada de Divinópolis, me lembro pouquíssimas coisas disso. E depois pra uma casa, uma casa maior, que era o sonho da minha mãe uma casa grande, lá eu tenho mais lembranças.
P/1 – Como era essa casa? Era dentro da cidade?
R – Era dentro da cidade. Era uma casa grande e morava minha mãe, minha madrinha – que minha madrinha ajudou a minha mãe a me criar. Na verdade são cinco filhos biológicos e uma filha adotiva, a minha madrinha mora com a minha mãe há mais de 40 anos e foi praticamente ela que me criou. Porque na época que minha mãe engravidou ela estava passando por alguns problemas, então minha madrinha tem um significado muito forte na minha vida.
P/1 – Qual é o nome da sua madrinha?
R – Alzira, é a Dinha.
P/1 – E Alzira foi adotada pela sua mãe e pelo seu pai por quê?
R – Na época geralmente as meninas que moravam na roça sempre trabalhavam nas casas de família. E as irmãs da minha madrinha sempre trabalhavam com a minha mãe pra ajudar ela nos afazeres domésticos e tudo. E a Dinha era a mais nova e acabou indo pra casa da minha mãe pra trabalhar, mas na verdade a minha mãe adotou ela como filha. E mora até hoje.
P/1 – Ela tinha quantos anos quando ela foi morar na casa da sua mãe?
R – Não sei ao certo, mas uns dez anos, mais ou menos.
P/1 – Ela é quanto tempo mais velha do que você?
R – Quinze, uns 20 e tantos anos.
P/1 – Ah, então quando você nasceu ela já era adulta.
R – É, já era grandinha.
P/1 – Então por que ela foi muito importante? O que você lembra dela e o que você lembra da sua mãe?
R – Ah, todos os momentos básicos de alimentação, a Dinha sempre esteve muito presente. Carinho. A Dinha é minha segunda mãe, em todos os momentos de maternidade, de educação, ela estava presente.
P/1 – E a sua mãe, qual era o papel dela? Do que você lembra dela, assim: “Ah, isso eu preciso falar é com a minha mãe”. (pausa) Nesse momento de infância, que você lembra, ela que te dava comida?
R – Minha madrinha sempre foi muito presente na minha vida, em todos os momentos de dificuldades, de alegria, então ela sempre foi uma grande parceira de vida, um alicerce mesmo, uma pessoa que eu sei que eu posso contar sempre, ela é um anjo na minha vida.
P/1 – Como ela era, de personalidade? Qual a diferença que ela tinha com a sua mãe?
R – A Dinha? A Dinha é amor puro, se fosse para eu resumir, ela é amor puro. Sem rótulos, sem julgamentos, ela pra mim é um sinônimo de amor.
P/1 – E a sua mãe, como é?
R – Minha mãe é sinônimo de acolhimento, de reunião, de pessoas, de alegria. A minha mãe acumula pessoas ao redor dela, isso é a forma que eu vejo a minha mãe.
P/1 – E por exemplo, quem fazia comida na sua casa?
R – Minha madrinha. Sempre ela que tava no fogão.
P/1 – E qual era a comida que você lembra de infância, que tem gosto de casa? Você não lembra?
R – Não. Lembrança de infância não tenho. De infância, de comida, assim... eu comecei a trabalhar muito cedo, eu comecei a trabalhar eu tinha nove anos porque, olha o orgulho da pessoa (risos), eu sempre gostei muito de chocolate e eu nunca tinha coragem de pedir dinheiro pro meu pai pra comprar chocolate, então decidi começar a trabalhar cedo para eu poder comprar meu próprio chocolate. Então, não sei se porque eu comecei a trabalhar muito cedo, essa fase de infância se perdeu, eu nunca tive bicicleta, não era de brincar muito, eu sempre fui uma criança mais tímida, mais reservada.
P/1 – Você começou a trabalhar fazendo o quê?
R – Eu arrematava roupas. A minha cidade é um cidade de confecção e muitos dos meus parentes têm loja, têm fábrica. Então a minha função era arrematar roupa, dobrar, embalar, essas coisas simples. Eu trabalhava meio período e estudava no outro período.
P/1 – Então vamos voltar pra parte da escola. Você entrou na escola com quantos anos?
R – Não sei, deve ter sido sete na época.
P/1 – Da escola o que você lembra, da sua entrada ou de algum amigo, de um professor? Como é a sua lembrança da sua entrada na escola?
R – Escola, eu tinha uma grande amiga, Junaia, minha primeira melhor amiga que me acompanhou durante um bom tempo, até os 15 anos. A escola, o que me vem de lembrança desse período, até então, é ela, uma grande amizade. Mas um professor, alguma coisa que me marcou muito assim não tem.
P/1 – Também não.
R – Não.
P/1 – E o seu pai, quando ele aparecia no fim de semana? Você tinha medo de pedir por que, ele era bravo? Qual a sua relação com ele?
R – Não, meu pai é muito calmo. Mas a ausência, por ele ter ficado muito na roça, eu não achava justo – isso até hoje (emocionada). Ele trabalha sozinho na roça, então ele acorda quatro horas da manhã, vai tirar leite. Hoje ele tem 70 anos, pega aquela lata de leite de 50 litros e carrega aquilo, tal, então eu não achava justo eu, com nove anos, mas eu sempre fui muito desenvolvida de corpo, não parecia ter nove anos, já parecia uma adolescente, eu saudável, assim, tal, pedir dinheiro pro meu pai que lutava tanto pra ganhar dinheiro na roça.
P/1 – Você tinha noção que ele tava lutando, com nove anos?
R – Tinha, tinha noção.
P/1 – Como é essa noção que você tinha? Na sua casa era difícil ter dinheiro? De onde vem a noção?
R – Não, na minha casa não era difícil, na minha casa sempre foi muito, como diz Guimarães Rosa, farturenta. Minha casa teve sempre muita fartura de comida, de bebida, de amigos, de festas, nunca passamos por dificuldades. Não éramos ricos, nunca fomos ricos, mas sempre fomos muito unidos, família, muita gente, muita comida, então não tinha essa noção de falta, ou que era difícil por isso. Mas hoje, na época eu via também nesse sentido, a lida dura do campo, o campo é difícil, e meu pai sozinho Isso sempre me incomodou e me incomoda até hoje, ele não aceitar ajuda das pessoas.
P/1 – Ele não aceita?
R – Ele não aceita. Olha que legal, eu posso trazer até pra mim nesse momento, eu também tenho a maior dificuldade de aceitar ajuda das pessoas, eu nunca quero incomodar, sabe? “Não, não precisa, não se incomode, pode deixar”. Pode ser que tenha vindo disso dele.
P/1 – É, que você pegou isso.
R – Uma coisa que me incomoda tanto (risos) e eu acabo fazendo hoje no meu dia a dia, pode ser. Pode ser por isso.
P/1 – Você ia, por exemplo, lá no fim de semana? Qual a sua lembrança da fazenda? Como era essa fazenda?
R – Sempre fomos muito assim, andar a cavalo, fazer guizadinho, isso eu tenho uma lembrança muito forte da fazenda. E não é bem fazenda, a gente chama roça, né? E é uma roça muito movimentada, a nossa família é extremamente unida, tipo: “Ah, vamos fazer uma festinha, um churrasquinho pra família”, são 60 pessoas (risos). Então é muito alegre, a minha família é muito alegre, muito unida, muito junto, sabe? Então só tenho lembranças boas da roça, muito gostoso. Quebrei o braço andando a cavalo, arrebentei a cara (risos).
P/1 – Vocês passavam as férias lá, por exemplo?
R – Sempre passei férias lá.
P/1 – Com quem você ficava, da sua casa? Você tinha irmãos, primos, quem eram as pessoas?
R – Eu tenho uma situação na minha família meio vantajosa e desvantajosa. Vantajosa agora e foi desvantajosa no início (risos), na minha infância. A minha família não tem muitas pessoas da minha idade, ou são pessoas BEM mais novas ou são pessoas bem mais velhas. Então na minha infância eu não tinha muito, a distância de idade era muito longa, não tinha muitos companheiros na família. Mas agora, com 35 anos, eu sou tão próxima das pessoas mais velhas como tão próximas às pessoas mais novas, então hoje é extremamente vantajoso.
P/1 – Você ficou no meio.
R – É, a minha linha de idade.
P/1 – E sendo mineira, essa família grande, todo mundo de Divinópolis?
R – Todo mundo de Divinópolis.
P/1 – Qual foi a sua educação, o que você lembra de educação de religião?
R – A minha família é extremamente católica, todos são, tem ministros da eucaristia na minha família, são católicos praticantes, mas eu nunca me senti parte dessa religião. E aí com uns 15 anos, talvez, sei lá, eu queria ser espírita mas não tinha ninguém, não tinha referência, mas eu sabia que eu era espírita, mas nunca tinha lido um livro, nunca tinha ido num centro e tal. Com 18 anos foi a primeira vez que eu fui num centro espírita e isso me fez muito bem. Por várias coisas, me fez entender várias coisas, minha relação com a minha mãe, com meu pai, então abriu muito a minha mente. E eu sempre mentia pra minha mãe. Ela falava: “Onde você estava?” “Ah, eu estava na casa de uma amiga”. Até que um dia, pô, uma coisa que me faz tão bem, minha família vai aceitar, claro. E aí cheguei, dei um abraço na minha mãe: “Mãe, a gente é muito diferente, tal, mas, cara, eu te amo tanto”. Ela: “Onde você estava?” “Eu estava no centro espírita” “Então você escolhe, ou você fica no centro espírita ou você fica na minha casa”. E aí eu fui chorando pro quarto: “Putz, cara, uma coisa que me faz tão bem, o que minha mãe entende”. E aí no quarto eu cheguei à conclusão que ela não tinha que entender, era o momento dela mesmo. Aí eu voltei, chorando e falei: “Mãe, eu vou ficar na casa da senhora”. Mas não falei que ia deixar a minha religião. Então pra que discutir esse ponto com eles? Foi caminhando, caminhando, caminhando, até os 24 anos, que realmente eu comecei a me impor com a minha religião, eu discordando de algumas coisas e mostrando em ações, mostrando a fé em ação, mais do que a fé em palavras. E hoje todo mundo aceita a minha religião dentro de casa. Mas geralmente a gente não divulga, hoje, pelo projeto que nós fazemos nós não divulgamos a nossa religião por causa do rótulo. Não interessa qual a religião que a gente segue ou qual a religião que o outro segue. A gente vai em projetos de todas as religiões e algumas são muito fervorosas, até insistem que a gente seja, quer ouvir que a gente seja daquela religião e tal. E a gente costuma falar que a nossa fé é em L, religião vem do latim religare, então o que religa você verticalmente a Deus é seu, é próprio, não precisa ser falado, o que nos interessa é o que nos liga horizontalmente ao próximo e isso não tem rótulo, não tem camisa. Então, a gente fala que a nossa religião é individual mas a nossa fé é uma fé em L.
P/1 – Eu queria voltar (risos). Essa resposta da sua mãe mostra que de alguma maneira ela era uma pessoa, mesmo que acolhedora, também dura, brava. O que é que essa entrada na religião espírita te fez compreender melhor ela ou o seu pai? O que era que estava na sua cabeça que você estava precisando entender?
R – Porque... na verdade minha mãe não é brava e ela não é rígida (risos), ela é até aberta demais. Mas eu nasci num momento muito trágico na vida deles, eu nasci num ano muito trágico na vida deles, então, minha mãe não tinha como cuidar de mim naquele momento, por isso que minha madrinha cuidou mais, né?
P/1 – O que foi de trágico?
R – Uma época que meu pai não estava muito bem com a minha mãe no casamento.
P/1 – Eles se separaram?
R – Não se separaram, mas houve uma turbulência muito grande e aí eu nasci, no meio dessa turbulência. Então ficou um pouco bloqueado. E eu acredito que eles queriam muito um filho, um filho homem e bastava à família, e aí eu vim também, meio escapulida e tal. Então ficou uma barreira de relacionamento, de amor, de cuidado nesse ponto. E eu sempre tive um vínculo muito grande, não sei por que, com meu pai, mesmo sendo ausente. E na religião eu encontrei algumas respostas de que era necessário e que nós somos instrumentos um para o outro para entender, e eu só consigo enxergar os meus defeitos no outro, né, então a gente precisa dos iguais. Minha religião me fez entender isso. Mas acho que quando ela falou isso ela tinha muito trauma, as pessoas confundem muito espiritismo com espiritualismo, então, quando se fala, por exemplo, do espírita, não fala que é kardecista, já coloca no espiritualismo como uma macumba, e a macumba tem coisas lindas e coisas bonitas, mas fala só pelo lado negativo. Então minha mãe viu o espiritismo como macumbeiro (risos). E ela não aceitava isso de jeito nenhum. Hoje ela entende sobre kardecismo, sobre a forma de pensar. Não pelo que eu falei, porque eu decidi não falar da minha religião, eu decidi agir, eu decidi viver ela, eu decidi não rezar só com o coração, rezar com os pés e as mãos e fazer da mnha vida uma ação. Aí acho que assim eles entenderam.
P/1 – Então vamos voltar. Você está com nove anos, aí você começou a trabalhar, nessa época você ainda estava ligada ao Catolicismo, ia pra escola. E aí como é que foi sua vida até os 15, onde você encontrou essa coisa espírita. Me conta um pouco o que você viveu nesse período, o que ficou disso.
R – Voltando até um pouco. Talvez com uns seis anos eu me lembro de uma coisa engraçada. Que eu chorava muito, chorava, chorava, de noite ia pra cama da minha mãe, aí ela pergunta: “O que você está chorando?” “Ah, eu quero a minha paz de espírito” (risos). E ela: “Vai dormir, deixa eu ficar em paz”. De seis aos oito, não sei qual fase, eu me lembro disso, de me questionar essa paz de espírito, não sabendo o que era.
P/1 – Mas a palavra paz de espírito você usava?
R – Usava essa palavra forte.
P/1 – Ela tinha vindo da onde?
R – Não faço a mínima ideia (risos). Não faço a mínima ideia de onde que saiu, mas eu me lembro fortemente de falar isso, “minha paz de espírito”. Enfim, de nove aos 15 eu me lembro que muitas pessoas perguntavam, como eu já trabalhava, eu não me lembro muito da escola, eu acho que a escola não fazia muito bem, não (risos), porque eu não lembro nada dela. Mas eu me lembro que as pessoas perguntavam: “O que você quer ser quando crescer?” E as pessoas ficam esperando uma: “Ah, eu quero ser dentista” “Eu quero ser médica”, algum título. E eu sempre falava que eu queria ter uma creche e eu queria trabalhar com criança, esse era o meu sonho assim. E eu me questionava muito qual era a missão, sem entender também qual que é a palavra missão. Mas me questionava muito isso: “Qual que é a minha missão na vida?”, são essas coisas que eu me lembro dessa época.
P/1 – Que horas você ficava pensando nisso? De tarde, você lembra, ou você lia, você escrevia, como isso acontecia no seu cotidiano?
R – Não tinha, eram insights. Não me lembro de estar lendo alguma coisa, ou estudando algo à procura disso, de algum livro. Não, pelo contrário. Na verdade até os 18 anos eu nunca pesquisei muito essa questão do que seria essa paz de espírito, do que seria a missão, do que seria a religião, essas coisas assim não, não me lembro. Ou não sei se não quero lembrar.
P/1 – E você ficou trabalhando com essa coisa de roupa até?
R – Então, aí eu comecei a trabalhar muito cedo e com 18 anos eu montei a minha fábrica própria e a minha loja própria em sociedade com a minha irmã. E aí foi muito legal porque eu fui muito bem financeiramente, também pela experiência que eu já tinha no comércio.
P/1 – E você montou uma fábrica de quê?
R – De roupa! Ah, tem uma história legal também, que isso eu acho que fez grande diferença. Eu comecei a trabalhar com o meu tio, eu chamo de tio mas é meu primo. E com 11 anos de idade ele me botou dentro do carro, me levou numa rua de comércio da nossa cidade, aí pegou uma chave, colocou a chave na minha mão e falou assim: “Desce e abre a loja”. Eu falei: “Por quê?” “Porque a partir de hoje você vai tomar conta da loja”. Eu: “O quê!?” (risos) Não sabia nem o que era atacado e varejo e com 11 anos eu já tinha a responsabilidade de gerenciar uma loja. Isso fez toda a diferença, eu falo que o tio Hernani fez toda a diferença na minha vida nesse sentido profissional. De tudo o que eu sei, tudo o que eu aprendi foi ele, de nunca duvidar da minha capacidade, sabe? E isso eu trago até hoje. Nada é impossível se a gente quiser, não existe uma idade, não existe um limite, não existe nada, num conhecimento, você pode aprender fazendo, não esperar. Então isso ficou bem marcante.
P/1 – Mas como, ele te pôs a chave na mão e aí? Como é que foi?
R – Eu desci e fui abrir a loja e entrei em pânico: “Aaaaaaiiiii, o que eu vou fazer aqui?”. Não sabia a diferença de atacado e varejo, e é uma cidade que trabalha muito com atacado de roupa, mas fui aprendendo.
P/1 – Tipo, dia seguinte o que aconteceu?
R – No dia seguinte eu abri, eu não sabia...
P/1 – Que horas abria lá?
R – Eu chegava depois do almoço, eu abria a loja depois do almoço, que era meio-dia.
P/1 – E aí?
R – Abri e fiquei olhando aquelas tabelas, desesperada, com os blocos de pedido, não sabia: “Tio Hernani!!!! O que eu faço???” E ele me explicava: “Calma que vai dar tudo certo. Vai ser natural você errar e através dos erros a gente vai consertando e fique tranquila que vai dar tudo certo”. Aí fiquei trabalhando com ele cinco anos.
P/1 – Tinha funcionários essa loja?
R – Tinha, mais uma funcionária.
P/1 – Eles respeitavam?
R – Respeitavam (risos), era muito legal, era muito legal. E era uma relação muito horizontal porque era eu aprendendo a vida mesmo, era a escola da vida ali pra mim, porque eu trabalhava com pessoas mais velhas. E foi muito lindo, foi uma experiência muito linda. Fiquei com ele cinco anos, depois fui trabalhar com a irmã dele, com a tia Elaine, que também foi um carinho muito grande por essa questão de responsabilidade mesmo, sabe? E aí com 18 anos montei a minha loja e a fábrica com a minha irmã. E aí fui muito bem sucedida, vendia muito, porque eu sempre fui muito boa vendedora de roupa. E era muito engraçado porque eu chegava com uma roupa, de tarde eu já estava com outra, vendia até minha roupa do corpo, era muito legal.
P/1 – Como era essa dinâmica da fábrica, loja, vendia pra quem? Você pode me explicar um pouquinho melhor?
R – A fábrica era na minha casa, na casa da minha mãe, e a loja era uma loja... na minha cidade tem shoppings de atacado e aí a gente abria quatro horas da manhã que vinham ônibus comprar as roupas e a gente trabalhava o dia inteiro vendendo as roupas. E era muito legal.
P/1 – Volta, só preciso entender uma coisa. Na casa da sua mãe tinha uma fábrica. O que é ter uma fábrica na casa da sua mãe? Quem costurava, que tipo de roupa vocês faziam?
R – Eu desenhava as roupas e aí a gente tinha, se não me engano, eram seis funcionários e passava pra modelista, ela fazia o molde, aí passava pro corte, aí tinha um rapaz que fazia o corte e tinha as costureiras.
P/1 – Ficavam tudo na casa da sua mãe?
R – Era, num quartinho na casa da minha mãe.
P/1 – Quem comprava o tecido e bolava o tecido?
R – Eu e minha irmã, a gente comprava os tecidos. Foi uma experiência muito legal. E em 2002 teve uma crise muito grande na nossa cidade e nós recebemos muitos cheques sem fundo. E aí eu quebrei, tipo, esmoi. Tinha tudo e de repente perdi tudo. E fiquei com uma dívida muito grande também porque a gente estava muito em ascensão, eram muitas compras de tecido para fabricar muito porque a gente vendia muito. E como não recebia, os cheques eram pré-datados, 30, 60, 90, 120 dias, a gente não recebeu esses cheques. E aí quebrei, como diz lá na minha cidade, não quebrei não, esmoi (risos), perdi tudo. E nós decidimos fechar a fábrica, fechar a loja e eu entrei numa depressão muito forte, porque eu estava no auge financeiro, no auge da juventude. E eu era completamente materialista, pensa, desde os nove anos trabalhando com orgulho de não pedir dinheiro pro meu pai pra comprar chocolate, então, era materialista ao extremo. Sempre fui extremamente vaidosa, com saltos muito altos, brincos, jóias, era perua inteira. Com 11 anos eu já usava muito salto, pensa. E nessa época que eu falo que foi o divisor de águas da minha vida. Aí eu tive uma depressão muito curta, na verdade, foi, sei lá, um mês, que me deu ite em tudo, eu tinha sinusite, rinite, bronquite, crondite (risos). E me deu uma pneumonia muito forte que eu fui para no hospital. Aí estava lá no hospital, muitos remédios, remédios, remédios e nada da minha pneumonia melhorar. E um dia eu travei totalmente as mãos, a língua, tudo, o médico veio: “Poxa, ela está de depressão, a gente está cuidando dela errado”. E aí eu fui pra casa. E chegando na casa, a casa era muito grande, era 30 cômodos e nessa época morava só eu e praticamente minha madrinha porque minha mãe ficava indo e voltando da roça, meu pai ficava na roça, minhas irmãs, todas, já tinham casado.
P/1 – Seu irmão?
R – Também. Então ficávamos nós duas lá dentro daquela casa grande. Eu entrei pra dentro do quarto, deitei, fiquei uns três dias tomando remédio para melhorar a pneumonia, mas três dias ali no quarto. E era o quarto, o closet e o banheiro assim. E um dia eu saí do quarto e falei assim: “Cara, eu não posso ficar aqui, que louco isso”. Fui tomar banho e abri o meu guarda-roupa. E quando eu abri o meu guarda-roupa, aí me veio na cabeça, tipo: “Cara, eu perdi tudo que eu tinha. Perdi as minhas economias, perdi meu carro, perdi a minha empresa. Mas eu tenho sonhos? Cadê os meus sonhos? Olha o meu guarda-roupa, eu tenho um monte de roupa! Quantas pessoas que não têm roupa nenhuma. E olha a casa que eu moro! E eu tenho saudade, é só eu curar essa pneumonia aqui e pronto, está pronto. E cadê os meus sonhos anteriores da creche? Os sonhos mais simples, os sonhos mais delicados, mais sublimes, da minha vida, a não ser a matéria que eu tanto queria ir em busca dela”. E foi próximo a outubro. E a minha família é muuuito festeira e minha mãe faz aniversário dia 23 de outubro, meu pai dia 24 de outubro, eu dia 28 e minha irmã dia 30. E nesse ano eu não tinha dinheiro pra comemorar meu aniversário. Minha mãe falou assim: “Não, a gente vai comemorar o seu aniversário junto com o nosso”. Eu: “Tá bom, mãe, mas eu não quero presente. Eu quero que as pessoas me deem roupa, mas não pra mim, pra mim poder doar, porque eu perdi tudo materialmente mas eu tenho muita coisa ainda, tem gente que não tem”. E isso foi um divisor de águas que foi a primeira vez que eu olhei para alguém, pro próximo que não tinha. E nessa festa de 2002 eu consegui encher um carro inteiro de roupa de doação. E foi estranho porque as pessoas geralmente quando dão presente falam assim: “Não repara, não, é só uma lembrancinha, se você não gostar você troca”. E naquele momento as pessoas chegavam com presentes, com sacolas e sacolas de roupa: “Nossa, tomara que dê pra bastante pessoas! Tomara que elas usem muito”. Eu: “Gente, que delícia de presente é esse, né?” No outro dia o carro cheio, não dava, porta-mala, atrás, do lado do passageiro, o painel do carro – um carro emprestado porque o meu já tinha ido embora. Não conseguia nem passar marcha do carro, era muito legal. Daquele momento eu entendi o verdadeiro valor da matéria, é o que você tem de verdade. Antes eu tinha tudo materialmente mas eu sempre queria outras coisas, então naquela saída da casa, do apartamento, que eu saí pra ir pro centro levar essas roupas foi um caminho que foi uma travessia interna, que eu queria a partir daquele momento fazer a minha vida diferente. E foi o que eu fiz, desde então eu comecei a trabalhar com outras coisas, me recuperei financeiramente, mas o dinheiro já não fazia mais sentido pra mim, o ter e o não ter pra mim não fazia a diferença. Eu me lembro direitinho, quando eu fui entregar meu carro e estava chovendo e o rapaz virou e falou assim: “Vou te levar na sua casa”. Eu: “Não, você não vai me levar, eu preciso de tomar essa chuva que ela vai me lavar minha alma”.
P/1 – Quando você foi entregar o seu carro mesmo?
R – O meu carro mesmo. “Eu preciso de tomar essa chuva para limpar a minha alma porque eu vou comprar um carro muito melhor”. E aí, realmente, verdadeiramente eu comprei um carro muito melhor passados uns anos, porém ele não fazia sentido mais, ter ele ou não ter ele. Então eu falo que esse 2002 é que eu nasci para uma nova vida mesmo, que é o olhar outros valores, dar valor nas coisas essenciais mesmo.
P/1 – E concretamente como foi que isso foi acontecendo? Quer dizer, você não tinha mais a loja, você não tinha mais fábrica, o que você fazia? Teve esse insight, acordou no dia seguinte do aniversário e?
R – Aí eu fui distribuir essas roupas, voltei, eu tinha um namorado e a gente foi almoçar acho que na casa da minha ex-sogra. Chegando lá, ela era uma senhora que estava doente e não conseguia tomar conta da empresa. Ela falou assim: “Iara, fica comigo durante pelo menos um ano para me recuperar e depois você toca a sua vida”. E aí eu lembrei do meu pai que era um senhor que não queria ajuda em nada, ali trabalhando, eu falei: “Não, eu vou te ajudar”. E fiquei com ela. E aí fui me recuperando financeiramente.
P/1 – Iara, só um minutinho, vamos voltar. Vamos voltar um pouquinho pra pegar a sua história desse namorado. Escola você acabou, pronto. O que você fez com a escola?
R – Eu me formei e comecei a faculdade de design de moda.
P/1 – Porque você fazia roupa.
R – É. E no meio da faculdade eu parei por causa que eu tinha quebrado, não tinha dinheiro mais pra pagar a faculdade. E depois não senti vontade de voltar, aí continuei por outro caminho.
P/1 – E o namorado, o filho dessa senhora?
R – Ah, ele foi marcante (risos). Reconheço (risos).
P/1 – Me conta um pouquinho da história dele. Foi tenso ou foi?
R – Foi tenso.
P/1 – Então vai, embora.
R – Ele era muito ciumento e era muito complicado o relacionamento com ele.
P/1 – Você começou a namorá-lo como?
R – Com 18 anos. Fiquei com ele até os 23. O primeiro ano lindo, maravilhoso, aquela coisa de amor total, depois é que foram realmente aparecendo a crise de ciúme muito forte, a possessão. Até que o último dia assim... tinha um tempo, os últimos quatro anos eu considerava ele mais como filho, que eu tinha que cuidar dele porque ele sem mim ele iria se desestruturar, bom, enfim, aquelas coisas que a gente acha.
P/1 – Ele dizia isso pra você?
R – Não, ele tentou várias vezes suicídio na minha frente. Tentou, né?
P/1 – Conta melhor essa história.
R – Com facas, canivetes.
P/1 – Na sua frente, assim, pegava uma faca?
R – Pegava a faca e falava: “Olha, eu não vou te matar porque isso não iria te interferir, mas eu sei que se eu me matar na sua frente eu acabo com a sua vida”. E aí ele tentava, eu conseguia tirar ele disso, acalmava. E foi assim que ele foi me segurando durante todos esses cinco anos que a gente viveu.
P/1 – E esse xilique dele era devido a?
R – Que eu tinha que viver numa redoma, eu tinha que viver dentro da casa dele. Tinha ciúmes do meu irmão, não tinha mais amigos, não podia ter mais amigos, amigas também não, até as minhas amigas ele tinha ciúme que a gente tinha, que eu ia me apaixonar pela minha melhor amiga, que é a minha irmã. Uma coisa super doentia. E pelo espiritismo eu achava que eu tinha que dar o máximo de mim para ajudá-lo sair daquele momento dele. Até que o último dia, que aí era a minha vida mesmo que estava em jogo porque eu nunca imaginava que algum dia eu iria querer perder minha vida. E nesse dia ele me trancou dentro da casa dele durante bons dias (emocionada). E aí eu falei: “Cara, eu quero morrer, eu não aguento mais isso, já perdi todas as minha forças. Eu quero morrer agora”. E fui atrás de realmente tentar me matar de alguma forma. Até que eu abri uma gaveta de facas, aí eu falei assim: “Cara, que doido isso, eu não tenho capacidade pra fazer isso, eu não posso fazer isso”. Aí fechei e na hora que eu fechei ele me pegou, começou a me bater, bateu a minha cabeça na parede. Bom, foi um terror danado. E aí no sábado de manhã ele tinha uma reunião, eu estava trancada dentro da casa dele.
P/1 – A mãe dele não morava lá?
R – Não, ele morava sozinho. Aí ele foi pra abrir a porta, eu consegui sair antes dele. Saí correndo pelas ruas da cidade, toda cheia de sangue, toda roxa e tal. Cheguei na minha casa, na casa da minha mãe, meus pais estavam pra roça e a minha madrinha queria me levar na delegacia, essas coisas, e eu disse que não, que não era o momento, que ele estava num estágio, e que a partir daquele momento eu não iria de forma alguma ajudá-lo mais, eu já tinha chegado no meu limite. E aquele foi o último dia, mesmo, de relacionamento.
P/1 – Que você o viu?
R – Que eu o vi não, mas que eu aceitei ficar longe dele, que a vida dele ele que tinha que cuidar, eu não poderia ajudá-lo mais porque senão eu iria poder prejudicar a minha vida mesmo.
P/1 – E ele tentou se reaproximar?
R – Várias vezes.
P/1 – Como isso mudou, como você lidou com isso?
R – Não, lidei bem. A partir do momento que eu entendi que eu não iria conseguir ajudá-lo mais, pra mim foi suficiente esse entendimento: “Não, eu não sou capaz. Eu posso influenciar a vida dele, mas se tem cinco anos que eu não consegui isso, eu não posso interferir na vida dele, então é um processo que ele vai ter que seguir sozinho”. E foi realmente que ele... aí ele foi no último reveillon, ele virou pra mim: “Se você não voltar comigo a primeira pessoa que eu ver no reveillon eu vou casar e mudar pro Pará”. Eu: “Ótimo!” (risos) E foi realmente o que aconteceu, ele conheceu uma menina e mudou pro Pará e aí a gente não se viu mais. Não, nos vimos mais uma vez mas já mais tranquilo e tal. E foi engraçado porque ele serviu (risos) como instrumento para eu conhecer o Eduardo, porque eu comecei a trabalhar com a mãe dele e aí a mãe dele me apresentou ao Eduardo.
P/1 – Por que e como? Me conta.
• COMO VOCE CONHECEU O EDUARDO*
R – É que ela trabalhava com planos de saúde e tinha a Unimed e o Eduardo trabalhava na Unimed. Um dia nós fomos fazer uma negociação, eu vi o Eduardo. Na hora que eu vi aqueles olhos verdes (risos), a perna começou a tremer, tal. Senti que eu tinha encontrado realmente o homem da minha vida ali, mas eu não podia fazer nada porque eu tinha meu namorado.
P/1 – Isso você estava namorando ainda.
R – Estava namorando. Mas eu sabia que ele era o homem da minha vida, já tinha sentido isso. E aí nos conhecemos assim.
P/1 – Era uma reunião, ele era o quê da Unimed?
R – Ele era gerente comercial da Unimed. E aí passou-se o tempo, a gente continuou o relacionamento profissional sem envolvimento nenhum até que eu consegui terminar e ele também separou da esposa.
P/1 – Ele era casado?
R – Ele era casado. E aí um dia, conversando: “Estou solteiro” “Eu também estou”, opa, então (risos), daí que a gente começou a sair junto, se conhecer melhor. E aí foi pouco tempo, a gente já sabia que a gente ia ficar junto. Foi encontro de almas.
P/1 – Então, como que foi, que vocês sabiam e como foi o início?
R – Bom, desde esse primeiro dia diz ele que aconteceu a mesma coisa, mas eu, particularmente, a perna tremia, aquele frio na barriga, mãos trêmulas assim. Eu olhava: “Poxa, esse é o homem que eu quero pra minha vida”. E foi difícil até lidar com isso, foi um tempo difícil porque não era paixão, eu não estava apaixonada por ele, não era uma coisa assim. Eu sabia que ele era o homem da minha vida, só. Só que eu tinha que resolver um outro processo. Então não confundir essas histórias. Até que um dia, no dia do meu aniversário, 28 de outubro de 2004... eu tinha mandado pra ele, no aniversário dele de 2004, que é cinco de julho, eu tinha mandado pra ele uma caixa com um vinho e duas taças e deixei na portaria da casa dele, tal, era um presente de aniversário. Óbvio que eu queria que ele me convidasse (risos), mas não convidou. No dia 28 de outubro de 2004, eu: “Pô, esse cara tá difícil”.
P/1 – Três meses depois, nada?
R – É... nada. Aí ele me ligou pra dar meus parabéns, eu falei assim: “Bom, você não vai me dar um presente?”, ele: “Que presente?” Eu: “Tomar o vinho, vamos tomar o vinho junto”. E aí foi assim que a gente começou a namorar, dia 28 de outubro de 2004. E tudo acontece na minha vida dia 28 de outubro, uma coisa incrível, muito legal. Foi aí que a gente começou a namorar. E aí passado pouco tempo, sei lá, uns três meses assim, eu já sabia que a gente ia ficar junto mesmo, eu virei pra ele e falei: “Cara, só tem dois probleminhas comigo, que eu preciso saber agora pra ver se a gente vai continuar o relacionamento”. Ele: “Qual?” “Eu quero ter 50 filhos e eu quero dar a volta ao mundo”. Ele olhou dentro dos meus olhos e falou: “Estou dentro”. Aí eu: “Caramba, é o cara mesmo” (risos). E aí a partir de então a gente tinha certeza que a gente ia ficar junto pra gente.
PAUSA
P/1 – Vocês casaram quando?
R – Nós começamos a namorar dia 28 de outubro de 2004. E aí, como a gente já sabia que ia ficar junto a gente queria casar rápida. Só que eu sempre quis casar de frente pro mar, como eu não sou católica não fazia sentido casar na igreja. E eu sempre falei que eu nunca iria assinar contrato de relacionamento, o negócio comigo é meio no fio do bigode (risos). Então eu não queria casar no civil. E eu queria casar de frente pro mar, com as bençãos da natureza, do universo, do Deus mesmo. E aí chamei a família: “Gente, a gente quer casar e tal. Vamos casar dia 31 de dezembro de 2005 pra 2006 numa praia. Então vamos todo mundo, vamos juntar a família e tal”. E aí ninguém acreditou, todo mundo achou que estava zoando (risos). As pessoas: “Não, vamos, casamento é na igreja”, minha família muito tradicional e tal. “E o casamento no civil? Vocês não vão casar no civil, vocês não estão casados”. E ninguém quis ir com a gente. E aí: “Amor, então vamos nós para uma viagem de férias. Mas não vamos casar, não, porque não vai ninguém da família, meus pais. Eu queria meus pais abençoando o nosso casamento”. E é engraçado porque o Eduardo fala assim: “Putz, você está querendo desistir? Você não quer mais casar comigo?” (risos) E na verdade a gente tinha comprado aqueles pacotes de viagem e a gente ia ficar num quarto de um hotel normal, não era de frente pro mar, nada. Aí eu liguei pro hotel pedindo pra escrever um sim com pétalas de rosas (risos), meio brega (risos), colocar um champanhe lá e escrevi um texto, mandei um e-mail pra eles imprimirem, deixar em cima da cama pra na hora que o Eduardo abrisse, a gente ia chegar oito horas da noite do dia 31, então na hora que ele abrisse ele visse que eu realmente aceitava casar com ele, tal, e a partir dali a gente iria pro mar, iria fazer os nossos votos ali, de frente pro mar, do jeito que eu sempre sonhei. E aí acabou que as meninas lá do hotel colocaram a gente numa suíte de frente pro mar (risos), e acabou que a gente não saiu dali, a gente foi fazendo os votos de frente pro mar, sim, mas não com o pé na areia, com os fogos de artifício, no reveillon de 2005 pra 2006.
P/1 – Onde foi isso?
R – Foi em Maceió. Foi lindo porque não teve aquele negócio de ‘prometo ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença’. Cara, tem dia que dá vontade de (risos) chutar o pau da barraca mesmo, claro. Mas o único voto mesmo que a gente fez foi que nós estaríamos juntos até o nosso desencarne, passando por cima de todos os defeitos e de todas as imperfeições que um ou outro teria durante esse caminho. Então a partir dessa momento que nós fizemos esses votos de permanecer juntos até o desencarne aí começaram as declarações de amor e os fogos de artifício (risos). Aí foi muito lindo. Aí liguei pra minha família: “Gente, casei!” (risos) “Como assim casou?”
P/1 – E a sua família?
R – Eles não acreditaram. Aí da hora que nós voltamos eu falei que realmente nos casamos, isso por telefone: “Nós fizemos os nossos votos, vocês não quiseram vir, não ia passar de hoje, então, nós casamos”. E é engraçado que aí, olha como que são as coisas, a minha mãe é muito acolhedora nesse sentido de festas e acolhimento, minha mãe é sinônimo de acolhimento às pessoas. Aí nós chegamos muito tarde em Belo Horizonte e estava todo mundo na roça no final de semana, então nós fomos direto de Belo Horizonte pra roça. Chegamos lá era meia-noite. E aí eles estavam esperando, a minha mãe tinha feito um arco de flores na entrada, e aí eles foram jogando flores, pétalas, aí acabamos comemorando o nosso casamento.
P/1 – Então eles ficaram na boa de você ter...
R – Sim. Não, nunca aceitaram. Fizeram essa festa, claro, em forma de respeito às decisões que a gente teve, mas nunca aceitaram. Virava e mexia falava: “Pô, vocês não são casados”, dava aquelas indiretazinhas, aquelas alfinetadazinhas. E a gente: “Pô, a gente é casado!” Mas enfim, e aí nós decidimos casar no civil pra dar esse presente pra minha mãe. Passados cinco anos, nós casamos de 2005 pra 2006, aí no reveillon de 2010 pra 2011 nós estaríamos completando cinco anos de casamento e logo em seguida a gente ia sair pra expedição. Então uma forma de contar pra família e dar esse presente pros meus pais, a gente fez um casamento no civil no reveillon, coisa que não existe, casamento no civil no Natal, no reveillon, nem no carnaval. E aí eu cheguei no juiz de paz falando: “Olha, queria marcar meu casamento, 31 de dezembro”. Ele: “Não, não tem, não existe”. Eu falei: “Não, cara, mas se não for dia 31 eu não vou casar no civil. Isso pra mim não faz diferença nenhuma, assinar contrato de relacionamento, o que importa são os votos que eu fiz com o meu marido cinco anos atrás. Isso é um presente que eu quero dar pra minha mãe, pro meu pai, porque nós vamos iniciar uma expedição em busca de bons exemplos”. Bom, expliquei pra ele, ele: “Não, não posso fazer”. Aí eu comecei a chorar, levantei, empurrei a cadeira pra trás e falei: “Ó, agora você vai dormir pensando em mim pro resto da sua vida!” (risos) “Porque se a minha mãe não tiver esse presente de casamento, que é eu casar e dar pra ela de presente ela vai ficar chateada. Então se você quiser dormir com a consciência pesada tudo bem”. Virei as costas e fui embora, chorando, tal. Passou meia hora ele ligou: “Cara, tem meia hora que eu não consigo parar de pensar em você. Não vou ficar com isso pra vida inteira de jeito nenhum” (risos). E aí nos casamos no civil, inacreditavelmente, no dia 31 de dezembro de 2010, no reveillon (risos). Depois de cinco anos de relacionamento. E foi lá que a gente contou pra família, que ninguém sabia da expedição. E aí era engraçado que as pessoas viravam: “Onde vocês vão passar a lua de mel?”, e a gente: “Não, a gente não vai ter lua de mel, a gente já casou há cinco anos, não faz sentido isso. A gente vai começar um projeto social, a gente vendeu nosso apartamento, doamos tudo”. Aí todo mundo: “Gente, vocês estão bêbados? O que aconteceu? Amanhã a gente conversa” (risos). Aí a festa começou na sexta-feira seis horas da tarde, no casamento e terminou no domingo meia-noite, praticamente uma rave (risos). Ficou todo mundo no sítio e tudo e no sábado todo mundo perguntava: “E aí, o que vocês vão fazer?” e a gente: “Não, a gente vai começar um projeto”. Bom, resumindo, a família só entendeu depois de dois meses que a gente estava na estrada, que realmente a gente não ia voltar e que a gente tinha iniciado um projeto de vida ali (risos).
P/1 – Então me conta agora, antes desses cinco anos de casamento, o que vocês estavam fazendo da vida, o apartamento e quando surgiu a ideia. Vocês casaram, vamos pro início.
R – Não, vamos antes. Eu falei pro Dudu e falei isso, né, que eu queria ter 50 filhos, isso aí em 2004, mais ou menos. Só que a gente não parou pra pensar nisso mais, a gente não sentava e ia discutir sobre isso, o que a gente ia fazer. Aí a gente criou uma vassourinha mental, quando vinha essa ideia a gente: “Não, não, não, não, não, não. Não vamos pensar nisso agora, não vamos pensar nisso agora”. Aí um dia indo pra roça do meu pai, numa festa de família, em 2008, aí vem um insight (estala os dedos) de três minutos assim. O Dudu estava dirigindo e é uma estrada legal, demais, bonita, em Minas, cheia de montanhas, aquela natureza e tal. E estrada, viagem, faz a gente viajar mesmo, né? O Dudu estava dirigindo e aí me deu um insight, o Tião gosta muito de falar que não é insight, é clarão (risos). Eu bati a mão na perna do Dudu: “Cara, a viagem não é pra conhecer lugares, a viagem é pra conhecer pessoas. Porque como nós vamos cuidar dos nossos 50 filhos vivendo a vida que a gente está vivendo, trabalhando 12 horas por dia, comprando uma coisa, querendo outra, querendo mais? Compra um carro quer dois, compra dois quer três. É uma loucura isso, que valor que nós vamos passar pros nossos filhos? Vamos largar tudo, vender tudo o que a gente tem, doar tudo o que a gente tem pra viver e conviver com essas pessoas que já estão fazendo isso”. A viagem vai ser de 2011 a 2015 porque eu vou estar com 30 anos e quando a gente voltar eu vou ter 35, dá tempo de ter três filhos biológicos mais dois dos dois primeiros casamentos do Dudu, cinco filhos biológicos e adotar 45.
P/1 – Você falou tudo isso na estrada?
R – Em três minutos.
P/1 – E?
R – Não, o Eduardo falou assim: “2011? Quando de 2011?” “Um do um de 2011, pronto, vai!” Falei: “Tá bom”. E continuamos a estrada. Chegamos lá na festa não tocamos no assunto, continuamos a festa como se nada tivesse acontecido, voltamos pra casa como se nada tivesse acontecido. E todo vez que: “Gente, que doideira foi aquela? Três minutos falando desesperadamente” (risos) “Não, não, não vou pensar nisso, não”. E fomos tocando a vida. Aí, compramos um apartamento, um apartamento de cobertura.
P/1 – Em Divinópolis?
R – Em Divinópolis.
P/1 – Você tinha voltado a trabalhar? Só pra...
R – Na verdade eu não parei, né?
P/1 – Mas você estava trabalhando com o quê?
R – Com a minha ex-sogra, né?
P/1 – Continuou?
R – Continuamos. A minha ex-sogra, na verdade ela me considerava como filha. Ela tinha apenas um filho, o Chiquinho, que é o meu ex-namorado, só que ela me adotou como filha, sabe? Então ela cuidava de mim, eu cuidava dela, era muito gostoso isso. Chamava Dudu de meu filho. Era uma coisa muito legal.
P/1 – E ele trabalhava?
R – O Dudu trabalhava na Unimed.
P/1 – E esse era o dia a dia de vocês?
R – É, era o nosso dia a dia. O meu ex-namorado tinha mudado pra Belém (risos), a gente vivia muito em contato. Mas aí a gente comprou um apartamento de cobertura e eu fiz esse apartamento o sonho da minha vida, o que eu queria. E como eu sabia internamente que era pouco tempo que a gente ia viver ali, nós fazíamos muitas reuniões de família, era muita festa, todo final de semana, sexta, sábado e domingo era pra ir pra minha casa pra gente se divertir, pra gente estar junto. Muito engraçado isso porque quando a gente falou que tinha vendido o apartamento: “Pô, mas, e aí? E agora? Vocês fizeram ali, vocês reformaram, vocês construíram a cobertura do jeito que vocês sempre quiseram, do seu jeito, e agora vocês vão abrir mão disso? A gente: “Não, a gente não vai abrir mão, a gente já abriu, já vendeu, já foi” (risos). Era só o momento mesmo que a gente precisava dele como instrumento pra poder receber as pessoas que a gente amava, pra gente ficar junto. A partir do momento que ele cumpriu esse papel foi embora, que a gente tem que ir pra expedição. Mas enfim, aí vivemos isso e tal. No meio de 2010, não sei a data certa assim, mas no meio, maio, junho, sei lá, é que caiu a ficha: “Caramba, 2011 está aí! E agora, o que a gente faz?” Bom, nós não éramos ricos, a gente era bem financeiramente mas não era, a gente só tinha o apartamento de cobertura e dois carros. E vivíamos uma vida muito boa. E aí: “Então tá, o que a gente vai fazer? Bom, se a gente vai vender o apartamento o primeiro passo é o que a gente vai fazer com as coisas que estão nele” “Então vamos doar nossas roupas, vamos doar nossos móveis e depois vender o apartamento”. E foi isso que a gente fez, a gente foi tirando tudo o que estava lá dentro, o meu guarda-roupa, eram três guarda-roupas de oito portas. Enchemos a caminhonete, fomos, doamos tudo. Os móveis a gente foi tirando, nós fomos doando, até que ficou com o básico pra gente viver até a data de sair e foi o final que a gente pegou, doamos o restante e botamos o apartamento.
P/1 – E vocês compraram o carro, venderam o carro, como vocês fizeram com a parte do carro?
R – É, o carro nós não planejamos a expedição. A gente só botou uma data e saiu.
P/1 – Com que carro?
R – Com uma Ecosport.
P/1 – Que vocês já tinham.
R – Já tínhamos. Eu tinha uma Ecosport e um Vectra e a gente optou por ficar com a Ecosport pra sair.
P/1 – O dinheiro era do apartamento e do Vectra.
R – É. E aí, por que nós decidimos não fazer planejamento? Porque senão a gente não iria. Se a gente sentasse, por isso que nós criamos a vassourinha mental, toda vez que a ideia vinha e que a gente pensava: “Como que a gente vai fazer? Vamos fazer planilha, quanto que a gente vai gastar de dinheiro?”, a gente estava ficando surtado, não ia ter dinheiro pra fazer isso tudo, a gente não iria ter condições psicológicas. Então, a gente decidiu não planejar, a gente decidiu sair com o que a gente tinha, que era a Ecosport com algumas roupas e as malas dentro do carro e no meio do caminho ir se adaptando. Porque se a gente pesquisasse qualquer outra expedição, as outras expedições tinham o que aquelas pessoas precisavam, mas a gente não sabia se a gente iria precisar daquilo, então nós decidimos nos adaptar no meio do caminho. Aí a Ecosport cheia de mala. Ah, uma coisa interessante! Aí como tinha, desde 2002 que eu não recebo presente mais no aniversário, que eu peço só doação, no casamento não foi diferente, a gente pediu cestas básicas como presente de casamento. Porque quando a gente imaginou, a gente tinha que ter um ponto de partida, pra onde a gente vai, esse é o único lugar que a gente vai saber, o restante são as pessoas que vão nos direcionar. “Mas pra onde que a gente vai começar?” “Ah, a gente está buscando um tesouro no Brasil, que é o povo brasileiro, então vamos começar por Diamantina, que aí a gente vai achar os diamantes do Brasil”, algo lúdico. “Então tá, mas aí a gente vai chegar lá e vai fazer o quê?” “Então vamos pedir as cestas básicas no nosso casamento, na festa de reveillon e a gente vai pro Vale do Jequitinhonha”, que é uma região muito pobre de Minas, pra distribuir essas cestas básicas e de lá a gente ia entender um pouco o que é isso, o que é que a gente vai fazer. Como a gente não sabia o que fazer e como fazer era uma desculpa a gente ir pro Vale do Jequitinhonha levar essas cestas básicas e depois desceria pra Diamantina. E aí com a Ecosport cheia de mala, a gente ficou no primeiro dia num hotel que a gente pagou 15 reais pra ficar e aí tinha muita pulga nesse hotel (risos), a gente saiu todo coçando lá de dentro e a gente: “Nossa, o que a gente vai fazer?”, que aí que nós pensamos: “Pô, a gente precisa de um motorhome” “Calma, motorhome é muito caro, lógico que não dá” “Então sei lá, uma barraca de chão”. Eu nunca tinha acampado, o Dudu nunca tinha acampado. Aí nós encontramos a barraca automotiva que foi que a gente entendeu que seria...
P/1 – No caminho vocês foram comprar?
R – Aí a gente entrou na internet, pesquisamos, aí achamos essa barraca automotiva: “Isso que a gente precisa”. E era de São Paulo, a fábrica é de São Paulo. E nessa ida lá pro Vale do Jequitinhonha o carro não estava aguentando porque era fraco. Aí a gente: “Então tá, então a gente precisa de uma barraca e a gente precisa de um Hilux, uma Toyota forte, que aguente o tranco pelas estradas que a gente vai passar”. E foi assim que a gente foi se adaptando com as necessidades na estrada. Mas voltando um pouco ao lance das cestas básicas. Aí a gente foi pro Vale do Jequitinhonha distribuir. Nós visitamos 200 famílias.
P/1 – Que pedaço do vale? Onde?
R – Itinga. E aí eu sabia o que era pobreza mas eu não tinha contato com a extrema pobreza. E se tem uma coisa que eu acho, não digo condenável, mas eu acho que é o pior crime que você pode cometer contra um ser humano é o estupro, que eu acredito que você mata a pessoa em vida, aquilo vai ser carregado pelo resto da vida. E lá nós tivemos vários contatos com famílias que o estupro era cultural, familiar. Isso mexeu muito comigo. Eu queria parar o projeto que não tinha nem começado, porque a gente não tinha chegado em Diamantina. E aí nós visitamos 200 famílias e aquele contato de ver crianças de seis anos cuidando de bebezinhos, criança comendo no chão. Bom, aquilo ali mexeu muito comigo, eu fiquei muito desestruturada. E aí saímos de Itinga pra ir pra Diamantina. E nesse trajeto de Itinga à Diamantina eu comecei a passar mal, eu queria sair do carro, eu queria correr, eu queria sair de dentro. Eu queria parar o projeto, não queria começar, queria ficar em Itinga pra ajudar aquelas pessoas, como se eu pudesse salvar o mundo ali, né? E aí, como a gente não tinha nada no carro, dentro da Ecosport, não tinha geladeira, não tinha nada, eu virei pro Dudu e falei assim: “Cara, para aí na primeira cidade que você ver na frente que eu quero ficar, eu preciso me recuperar”. E o engraçado é que nós não planejamos 2011-2015, mas eu sabia, eu tinha uma certeza, que quando a gente voltasse, em 2016, a primeira pessoa que eu queria conhecer era o Tião Rocha, por causa da Pedagogia da Roda, e para eu aprender um pouco pra poder educar os meus 50 filhos. Então era a única certeza que eu tinha, que quando a gente voltasse eu queria conhecer o Tião Rocha. Bom, saímos de Itinga, eu estava toda desestruturada, virei pro Dudu: “Cara, para, né, primeira cidade”. Aí apareceu Araçuaí, ele parou. Nós fomos numa padaria, eu comprei uma água e tal. Estou lá bebendo a água, aí eu virei pro Dudu e falei assim: “Ah, nós paramos aqui, eu acredito que o universo vai conspirando e vai mostrando alguns caminhos pra gente. Não vamos chegar em Diamantina, não, vamos começar o nosso projeto aqui”. Aí o Dudu topou e eu fui e perguntei pro atendente: “Olha, nós somos caçadores de bons exemplos, nós estamos caçando bom exemplo aqui. Quem é um bom exemplo pra você?” Ele falou assim: “Não, aqui não tem”. Eu falei: “Claro, claro que tem”. Expliquei pra ele o que eu considerava como um bom exemplo, aí ele virou e falou assim: “Ah, tem o Tião”. Eu: “Que Tião?”. Ele: “Tião Rocha”. Eu: “Que Tião Rocha?” (risos) Ele: “Do CPCD”. Aquele momento eu percebi que a gente estava no caminho certo, que a gente estava indo em Diamantina buscar os diamantes do Brasil e em Araçuaí a gente achou um tesouro, né? Foi como se Deus, o universo virasse pra gente e falasse assim: “Vai, é isso, esse é o caminho”. A primeira coisa que a gente queria fazer em 2016 foi a primeira coisa que a gente fez em 2011, que foi conhecer o CPCD e a história do Tião. Então esse processo de não ter roteiro, não ter planejamento, não ter estrutura no carro inicialmente acabou nos dando um dos maiores presentes da expedição, que foi conhecer o CPCD como primeiro projeto.
P/1 – Como você tinha ouvido falar do Tião Rocha?
R – Eu acho que foi pela TV Futura, não sei, eu tinha visto alguma coisa dele na TV.
P/1 – Você não ficou pesquisando como exemplos antes de viajar, nada?
R – Nada. A gente nunca pesquisou nenhum projeto que a gente ia conhecer na expedição. O Tião era por causa do segundo projeto, que era os 50 filhos que eu queria ter. Eu achava que eu conhecendo o Tião, conhecendo a Pedagogia da Roda, Pedagogia do Brinquedo, seria mais fácil para eu criar meus 50 filhos, foi simplesmente isso.
P/1 – E aí?
R – E na verdade eu não achei que ele poderia ser um projeto (risos).
P/1 – E como foi essa chegada, a sua primeira chegada, de vocês dois, num lugar?
R – Foi no Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, foi nosso primeiro projeto.
P/1 – Como é que foi esse dia, o que aconteceu?
R – Ah, foi lindo porque eu estava desestruturada (risos) emocionalmente já por isso, porque eu não acreditava naquilo que estava acontecendo. A primeira coisa que eu queria fazer depois de cinco anos era a primeira coisa que estava ali na minha mão naquele momento. Então eu estava extremamente emocionada e aí fomos conhecer todo o projeto. E o Tião não estava lá, mas nós conhecemos o Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento com várias oficinas. Então foi um presente mesmo. Saindo de Araçuaí a gente continuou, quando nós chegamos em Belo Horizonte que nós conhecemos ele como pessoa.
P/1 – Vocês foram atrás dele?
R – Aí fomos atrás dele pra conhecer ele como pessoa. E aí o Tião se tornou um grande amigo e um grande motivador na expedição. Teve uma vez que a gente estava em São Luís, muito engraçado, a gente estava no Maranhão, em São Luís, e ele em Açailândia. Aí ele: “Pô, que legal, a gente está respirando os mesmos ares, pena que está longe”. Aí eu: “Longe quanto?” Ele: “Ah, 800 quilômetros, cara”. Eu virei pro Du: “Vamos lá?” Aí na hora que nós chegamos: “O que vocês estão fazendo aqui?” “Receber um abraço” (risos). Aí demos um abraço, pegamos o carro e voltamos (risos). O Tião é uma paixão mesmo que a gente tem por ter sido o primeiro, por ser o que ele é. E por ser uma luz, mesmo, de que a gente estava no caminho certo, à procura, à caça, das pessoas certas. E engraçado isso, que aí teve uma alusão com um outro ponto, mas aí foi lá na Amazônia. A gente saiu pra começar em Diamantina em busca dos diamantes do Brasil. Paramos e o primeiro lugar foi Araçuaí, encontramos o tesouro, e isso sempre marcou a gente nas dificuldades que nós tivemos pelo caminho, de que a gente estava no caminho certo pelo CPCD e pelo Tião ter sido o primeiro que a gente encontrou. Aí a gente estava lá na Amazônia, de Manaus a Porto Velho, e a gente já tinha descido de balsa de Almeirim-Santarém, Santarém-Paritins e Parintins-Manaus e a gente não tinha dinheiro mais pra balsa. E aí a gente tinha que chegar, a gente tinha terminado o estado do Amazonas, estava indo pro Acre e a gente não tinha como ir de balsa com o dinheiro, aí nós decidimos ir pra Porto Velho, no meio da floresta amazônica. E aí é uma estrada que está fechada há muitos anos, há mais de 30 anos. E é fechada. Então só passa trilheiro, é aventureiro. E a gente fala que a gente não é aventureiro, nós somos caçadores, a gente está numa aventura, mas por necessidade, não é que a gente tem esse espírito aventureiro. E quando nós estávamos em Manaus que a gente falava pras pessoas que íamos descer pela BR-319, as pessoas viravam e falavam: “O que vocês vão fazer lá, cara?” “Pô, a gente não tem dinheiro pra descer de balsa”. Fomos num grupo de jipeiros, a gente estava lá: “Olha, vocês não vão descer sozinhos, precisa de um comboio”. E a gente: “Não tem ninguém indo, então a gente vai sozinho”. E aí eles perguntaram: “Vocês têm arma de fogo?” “Não” “Spray de pimenta?” “Não” “Telefone via satélite? Localizador?” “Não”. A gente não tinha nada daquilo que eles falavam. E no final eles viraram: “Putz, o que vocês vão fazer lá?”. E a gente: “É o único jeito, então, a gente vai”. E aí eles: “Então tá, então a gente vai dar quatro dias pra vocês chegarem, se vocês não chegarem a gente vai resgatar vocês”. Essa palavra ficava na minha mente, resgatar, resgatar, resgatar (risos). A gente já tinha ficado pelas comunidades mais violentas do Brasil e eu nunca senti medo, apesar da gente não ser morador de rua a gente praticamente mora na rua por ser uma barraca de lona em cima do carro, vulnerável a tudo e a todos, né? Só que nesse momento eu senti medo. E aí fui com o coração apertado. Mas fomos, era o único caminho. Aí numa última comunidade antes de pegar o trecho mais complicado, chama Igapó-Açu, era linda, no meio da floresta amazônica, era um riozinho, encontro com x, com lambda, barraca amarela, o sol nasce e a gente levanta, né? E aí o sol amanheceu, eu desci da barraca e fui tirar umas fotos aí. Eu estava na beira do rio tirando foto, ta ta ta ta ta, aí percebi que tinha alguém do meu lado, na hora que eu olhei pro lado era um garotinho. Esse garotinho, eu não esqueço dele, ele era tipo uns 14 anos, não mais do que isso, com bermudinha, sabonetinho na mão, toalhinha no ombro, sem camisa, tipo: “Quero ir tomar banho, dá licença”, e eu nem aí. Ele virou e resolveu puxar conversa, tipo: “Vocês moram ali?” “Moramos” “O que vocês fazem?”. Aí eu, na minha santa ignorância (risos), aquelas coisas de três segundos que passa na cabeça da gente sem a gente racionalizar, eu lembrei que a minha família não entendi o nosso projeto, nossos amigos não entendiam nosso projeto, ninguém entendia o que a gente contava. Então não ia adiantar eu contar para um garotinho de 14 anos no meio da floresta amazônica que ele não iria entender. Aí eu falei, ah, vou resumir pra ele. Virei pra ele: “Nós somos um casal que cansou de ouvir notícia ruim, vendemos tudo o que a gente tinha pra ir em busca de pessoas que estão mudando o mundo e a gente distribui essas informações gratuitamente pra outras pessoas se inspirarem e também mudarem seus mundos”. Era o suficiente, eu achei, pra ele. E aí esse garotinho me deu o maior presente que eu acho que eu tive na expedição. Ele olhou dentro dos meus olhos e falou assim: “Bom, se o bem mais precioso que o ser humano tem é a informação e você distribui essa informação do bem gratuitamente, então você distribui tesouros”. Naquela hora eu pensei: “Meu Deus, esse garoto conseguiu entender da forma mais sublime coisas que ninguém conseguiu entender durante dois anos e meio, por mais que a gente falava. E aqui, num lugar onde a gente vai começar o trajeto mais difícil, mais complicado de toda a expedição, então é um sinal de que a gente está no caminho certo, é um sinal de que nada de ruim vai acontecer”. E me remeti ao Tião Rocha, ao tesouro, aos diamantes que a gente estava procurando e que a gente encontrou ele, o tesouro. E ali aquele garotinho estava falando desse tesouro que a gente estava distribuindo. Eu chorando, abracei ele, saí correndo até o Dudu, disse: “Cara, vamos embora que nada de ruim vai acontecer, que a gente está no caminho certo”. Então Tião foi o primeiro tesouro que a gente encontrou, esse garoto lá na floresta amazônica foi a afirmação: “Continua que vocês estão no caminho certo”. E essa história do tesouro de diamantes que a gente acredita que é o povo brasileiro está muito forte na nossa história.
P/1 – Iara, eu queria entender um pouquinho como que vocês foram formatando, porque foi virando um site, o carro foi tendo uma cara. Vamos voltar assim a Araçuaí, vocês conheceram o CPCD e aí foi aquela magia. Quanto tempo vocês ficaram e o que vocês fizeram a partir daí, como é que aquilo foi evoluindo, o que aconteceu?
R – No início era pra mudar o mundo do casal, era pra gente criar os nossos filhos, pra gente ter essa experiência, tentar entender esse amor ao próximo que a gente não entendia, a gente não vivenciava na luta diária pelo trabalho, pelo dinheiro, pelas coisas materiais. Então era pra mudar o mundo do casal, pra gente criar os nossos filhos. Aí no meio do caminho.
P/1 – Depois de Araçuaí?
R – É. Em Minas mesmo, Minas é muito reflexivo, me veio na cabeça: “Pô, a gente vendeu tudo, doou tudo e a gente continua egoísta, cara”. Porque essas informações que a gente estava vivenciando ali eram informações riquíssimas e estavam ficando só com a gente, então a gente tinha que distribuir isso pras pessoas. E a gente não queria ter um site, a gente não queria ter esse compromisso, a gente queria simplesmente viver, a gente queria nos transformar interiormente. Aí: “Não, já que nós estamos, não adiantou nada a gente ter vendido tudo e doado tudo que a gente continua egoísta, vamos distribuir essas informações gratuitamente também, vamos fazer um site, vamos fazer as redes sociais pra gente divulgar esses projetos”. Pra inspirar outras pessoas, mostrar que tem muito mais pessoas fazendo o bem. Se tem coisa que me incomoda é quando a gente chegava num lugar e as pessoas falavam que aqui não tem bom exemplo. Sabiam da tragédia, sabiam do assassino, sabiam do corrupto, o que estava passando no BBB, mas não sabiam o que estava acontecendo ali do lado, uma pessoa que estava cuidando de criança, de adulto, de idosos ou fazendo qualquer tipo de transformação. Isso foi uma coisa que sempre me incomodou muito. Então disseminar essas informações era uma forma da gente não se sentir tão egoísta, ficando só com elas.
P/1 – Mas como vocês foram decidindo isso? Vocês tinham internet, você sentou, aprendeu, como que foi acontecendo?
R – Tudo de uma forma natural. A gente tinha um computador, aí nós tínhamos um amigo em Belo Horizonte, ligamos pra ele: “A gente precisa de um site”, aí ele fez o site, por distancia mesmo a gente foi aprendendo a mexer no WordPress e fazendo as coisas. Foi tudo muito natural na expedição, a gente nunca fez um curso ou alguma coisa assim pra fazer alguma coisa, a gente foi fazendo. E aí foi disseminando essas informações. No meio do caminho a gente colocou quatro objetivos, que antes era só mudar o mundo do casal. Não foi uma coisa muito no princípio, foi durante a expedição mesmo. Teve uma vez que a gente recebeu um e-mail escrito assim: “Obrigado por salvar a minha vida”. E aí nesse e-mail era a história de um garoto que era muito bem sucedido, jovem, tinha tudo, mas que tinha tentado suicídio três vezes e naquele final de semana ele ia cometer o suicídio. Ele viu o nosso site e começou a comer o nosso site. E na segunda-feira ele decidiu mandar esse e-mail falando que ele tinha visto qual era o sentido da vida dele, a partir do momento que ele começou a ver as histórias dos projetos. Aí naquele momento que a gente recebeu esse e-mail a gente: “Poxa, mudar o olhar das pessoas é importante, elas precisam saber tudo de ruim, mas precisam saber tudo de bom. Isso pode mudar, não mudou a vida dele? Então pode mudar a vida de outras pessoas”. Então nós criamos o primeiro objetivo: mudar o olhar das pessoas. Falar que é preciso a gente olhar o lado luminoso do ser humano, que não existe ninguém totalmente bom e não existe ninguém totalmente mau nesse mundo, todos nós temos o bem e o mal. Então por que a gente insiste em valorizar só as coisas ruins? Aí criamos o primeiro objetivo, mudar o olhar das pessoas. Aí o segundo objetivo, é que a gente sempre ouvia: “Ah, queria tanto fazer alguma coisa, mas eu não sei o que fazer”, aí a gente criou o Inspirar, que lá no site, nas redes sociais, tem um monte de coisas legais, tem muitas ideias legais que as pessoas podem se inspirar e assim se tornarem bons exemplos também, formando projetos sociais ou ações positivas. O terceiro objetivo foi conectar as pessoas. A gente também ouvia muito as pessoas falarem: “Ah, eu queria tanto ajudar alguém, não sei como”. Então assim, tem uma frase dos Médicos Sem Fronteiras que nos inspirou a colocar esse terceiro objetivo que diz assim: “Missões se fazem com os pés dos que vão, com os joelhos dos que oram e com as mãos daqueles que contribuem”. Eu prefiro falar a energia com que emanam (risos), mas lá eles falam assim. E aí a gente colocou conectar as pessoas que querem ajudar financeiramente com aquelas pessoas que precisam de ajuda, aí se tornou o terceiro objetivo. E o quarto foi lá na Bahia, que a gente estava saindo de um projeto sensacional chamado Mães Educadoras no Complexo Baianão. E aí a gente estava saindo e uma das fundadoras começou a chorar, aí ficou todo mundo chorando (risos). Ela falou assim: “Porque a gente está aqui pra fechar o projeto, que a gente tem que brigar com traficante pra criança estar aqui. Eu tenho que brigar com a minha família para eu estar aqui. Não tem recurso, é muito difícil tudo, a gente está cansado. Aí a gente abre a porta, um casal de doido que está viajando o Brasil inteiro e falando que por todos os lugares têm pessoas fazendo igual a gente. Então a gente não pode deixar vocês irem embora sem antes falar que até o fim da nossa vida nós estaremos aqui, vocês podem voltar”. Eu disse:
“Caramba, o que a gente fez? Nada!” Só motivou ela, mostrou que ela é um lindo exemplo, falou: “Cara, continua”. Então a gente criou o quarto objetivo que é motivar essas pessoas a continuarem, o que é extremamente difícil. Geralmente as pessoas que estão envolvidas em projetos sociais têm muita críticas. E tapinhas nas costas (risos). Mas nunca uma motivação sincera, de que ‘estamos juntos’. Então foi aí que nós criamos, no meio desse caminho, os quatro objetivos, que antes era tão egoísta que era só mudar o casal, aí nós abrimos pra esses objetivos.
P/1 – Você contou aí dois ou três pontos muito marcantes dessa viagem, que foi o Baianão, foi o menino e foi o Tião. Qual foi, ao longo desses anos, um outro ponto muito marcante que fez vocês ou continuarem ou reverem, como você já contou. Teve mais algum ponto?
R – Teve vários. Você falando de ão, é engraçado que tudo o que acontece na minha vida é dia 28 de outubro.
P/1 – Baianão e tem o ão, né?
R – É, dia 28 de outubro de 2011 a gente estava pelo Sudeste, dia do meu aniversário, né, nós passamos em reunião com a família, passei meu aniversário com a família. Em 2012, 28 de outubro de 2012, nós passamos no lixão de Maceió fazendo uma festa pras crianças, comemorei meu aniversário no lixão. Reunião, lixão. 2013, 28 de outubro, nós passamos no Caldeirão do Huck, que a gente participou do Agora ou Nunca. Em 2014 nós estávamos num projeto lindo no Rio Grande do Sul que chama “União Faz a Vida” (risos). Então a gente fala que a expedição sempre tem, no dia 28 de outubro tem um ão no meio, que é muito legal (risos). Mas tem várias histórias que marcaram. Uma delas, que a gente tinha conhecido um projeto lindo, um portal do Pantanal em Aquidauana, tal, e Cláudio atendia 30 crianças. E nós não aceitamos, nós ficamos muito tempo negando qualquer tipo de doação em dinheiro. Quando as pessoas queriam nos ajudar a gente queria conectar essas pessoas com quem precisava de ajuda. E quando nós saímos da casa do Cláudio, ele olhou e falou assim: “Vocês ainda vão voltar e eu vou estar atendendo 200 crianças”. E bom, através de uma conexão que a gente fez, hoje ele está atendendo 200 crianças. E no dia que ele conseguiu a sede dele, conseguiu toda a estrutura, ele nos ligou agradecendo pelo que a gente tinha feito, mas principalmente falando isso: “Eu prometi que eu ia estar atendendo, então, graças a vocês eu estu atendendo as 200 crianças. E a casa é de vocês, a casa está aberta”. Então isso nos motiva muito. Outro também, lá em Parauapebas, que quando a gente visitou atendia 800 crianças, depois de uma conexão a gente conseguiu que hoje eles atendem 1 mil e 200 crianças, com estrutura. Então esses casos nos motivam diariamente como resultado do trabalho, resultado efetivo do trabalho, né? Mas teve um caso específico que esse, por mais que às vezes dá vontade de desistir, por ele a gente respira fundo e continua, que foi lá em Cuiabá. A gente estava parado com o carro e nesse dia a gente não tinha dinheiro pra abastecer e a luz do combustível acendeu. E a gente tem um galão de 20 litros de água no carro, eu sempre tomo muita água e tal. E nesse dia específico, não sei por que, a gente tinha um saquinho de pão pardo do lado da marcha cheio de moedinha, era o dinheiro que a gente tinha. E aí a luz do combustível acendeu, a gente estava indo pra Alta Floresta, era muito longe e a gente não tinha dinheiro pra chegar, aí eu pedi ao Dudu: “Cara, vamos parar e vamos lanchar”, a gente não costuma almoçar durante o dia, a gente só lancha. Aí nós paramos pra lanchar. E estava lá lanchando, tentando ver o que a gente ia fazer, a única coisa que a gente tinha era o saquinho de pão cheio de moedinha e um galão d’água vazio, que a gente precisava comprar água. E a luz do combustível acesa (risos). Estávamos parados, de repente veio uma motinha, uma CG velhinha, tru-ru-ru, parou na frente do carro. Aí desce um senhorzinho, magrinho, com aquela cara de sofrido, trabalhador, aí ele debruçou na janela do carro assim, com uma mão no meu ombro, com a outra assim, falou assim: “Meus filhos, eu conheci a história de vocês e quando eu assisti eu virei pra minha véia e falei assim: ‘Tá vendo, a gente é pobre, a gente mora num barraco e a gente não teve opção. Esses dois, eles podiam estar em qualquer lugar, eles abriram mão do que eles tinham pra morar numa barraca, pra tirar a gente desse barraco. Um dia eu vou ver eles e vou ajudá-los de alguma forma’”. Ele olhou pra mim e falou assim: “Ainda bem, minha filha, que foi hoje, porque eu acabei de receber. Está aqui, cem reais”. Aí eu olhava pra mãozinha dele, pro rosto dele sofrido, pro carro parado imaginando a luz de combustível acesa, o Dudu chorando, eu chorando. Aí eu virei pra ele e falei assim: “Não, a gente não pode aceitar, o senhor tem que ajudar um projeto perto da casa do senhor. Não se preocupe não, está tudo bem com a gente”. Aí ele virou e falou assim: “Mas eu não conheço ninguém que faz nada, eu quero ajudar é vocês! Eu prometi pra minha esposa que eu ia ajudar vocês”. Eu falei: “Não, mas não se preocupa que está tudo bem com a gente. O senhor vai pegar esse dinheiro e vai ajudar alguém”. Aí ele: “Ah, não conheço ninguém”. A gente foi conversando. “Ah, eu conheço um asilo que tem perto da minha casa” “Pronto, então compra fraldas geriátricas e leva lá, o senhor vai ver que isso vai transformar a vida do senhor e deles, a gente acredita muito nessa conexão”. Aí ele, com aquela mãozinha toda calejada, sofrida, ele fechou a mão e falou assim: “Tá bom, eu vou fazer isso que você está me pedindo, mas você também vai me prometer que vocês nunca vão parar”. E a gente estava parado. Aí eu olhei para ele e falei assim: “Pode ir tranquilo, está tudo bem, nós não vamos parar, nada vai fazer a gente parar”. E aí ele foi, tirou a mãozinha, montou na moto dele e foi embora. E eu e o Dudu ficamos no carro chorando desesperados com aquela situação. Uma promessa de nunca parar, sendo que a gente estava parado e não tinha dinheiro pra continuar. Aí a gente: “Não, vamos pro posto, vamos comprar a água e pensar, arejar a cabeça pra pensar o que a gente vai fazer”. Aí fomos pro posto de combustível, compramos a água, estávamos mudando a água de um galão pro outro, aí de repente vem um cara, bate nas costas do Dudu: “Vocês vão abastecer?”, aí o Dudu: “Não” “Vocês vão abastecer?”, aí o Dudu olhou: “Não, nós não vamos abastecer”, isso o Dudu com os olhos inchados. Falou assim: “Vão sim, eu sou o dono do posto, vocês não aceitam doação, é isso que eu tenho pra dar pra vocês”. Aí o Dudu virou e falou: “Cara, a luz do combustível está acesa”. Ele falou assim: “Não tem problema, isso é pra vocês não pararem”. Aí eu (suspiro). Então toda vez que tem algum problema, toda vez que tem algum desespero assim na nossa vida eu lembro desse dia, que eu prometi pra esse senhorzinho que a gente não ia parar mesmo estando parado ali, e depois a confirmação no posto de combustível. Então, essa história, a gente carrega sempre.
P/1 – E me conta qual é um dia que você lembra dele? Um momento, fora esse dia que vocês não tinham gasolina, qual foi algum dia que tipo, porra, não, chega.
R – Que a gente queria parar, alguma coisa assim?
P/1 – É, tipo não aguento mais. Pode ser às vezes até um dia que você ficou cansada.
R – Cara, vocês mexem muito (risos)! Meu Deus (emocionada). Vixi.
P/1 – Quer parar um pouquinho? Quer descansar um pouquinho?
R – Vamos dar um tempinho mesmo.
PAUSA
P/1 – Momentos mágicos de insight: “Vamos pra lá”. E quais foram os momentos de ruptura, mesmo, da gente olhar e falar: “Isso não tem nada a ver, o que eu estou fazendo”, não só pela dificuldade material, mas crise. Você tem algum momento que te foi marcante, esse momento, sabe, que você acorda no meio da noite e fala:
“Que porra é essa?”.
R – O quê que eu estou fazendo, cara? (risos) Tem. Vários (risos). Eu sempre fui extremamente vaidosa, extremamente consumista e tudo, né? Então não existe uma chavinha que você liga e (estala) mudou, não, né? Eu sempre gostei muito de sapatos, tal, e hoje eu tenho uma bota, um chinelo e um tênis (risos). Então quando passa numa loja de sapatos eu fico: “Ahhhh que lindo!”, meu olho até faz assim, trã trã trã. Mas a questão do desenho é que mudou, né? Você desejar uma coisa é muito interessante, mas quando você obtém aquele objeto de desejo você acaba desejando outro. E acaba, quando você consegue você deseja outro. Então o desejo não tem limites, né? Essa ruptura do materialismo, essa ruptura do desejo e a transformação pro amor, que hoje pra mim o olhar do amor é muito mais valioso do que o olhar do desejo, foi uma ruptura não cruel, não tá, assim, foi muito legal, que ela foi indo, foi fluindo assim, então foi muito interessante. Um outro ponto de ruptura, a questão família, a questão de largar tudo, a gente largou tudo materialmente mas a gente não largou a família, o vínculo, esse vínculo familiar a gente faz de tudo pra gente poder voltar em todas as datas comemorativas pra gente estar junto sempre, pra não ter essa ruptura, pá!, pra deixar as coisas fluírem também. O que mais? Bom, enfim, faz a outra pergunta, eu fiquei focada na ruptura.
P/1 – Isso são rupturas no seu jeito de ser antes. A minha pergunta é durante esses anos, se você tem lembrança de algum momento onde você mesma questionou isso, que estava vendo e cansou.
R – “Poxa, o que eu estou fazendo da vida? O que eu fiz?”
P/1 – É. Que momento foi esse, o que aconteceu. Sabe, qual foi a história?
R – Teve numa descida. Acho que a floresta amazônica é mágica (risos). Teve uma descida no rio, não sei se foi Santarém, Parintins... na descida do rio Amazonas. A gente estava descendo num barco aonde eram 230 pessoas dentro desse barco e eram redes muito grudadas uma na outra, tipo, você virava dormindo e balançava os vizinhos (risos). E nesse dia estava um sol, óbvio, rachando, estava muito suada, eu estava de TPM, estava literalmente enfezada com a vida (risos). E por ironia do destino, acabou a água do barco no meio do rio Amazonas. Então não teve como a gente tomar banho, não tinha como ir no banheiro e tudo. E eu estava muito estressada nesse dia. E nós fomos dormir na rede. E aí, só a situação da rede, de estar todo mundo junto ali, eu incomodada que eu estava fedendo, estava incomodada. E aí eu decidi sair pra ir no banheiro, era também nascer do sol (risos), sempre tem o nascer do sol no meio. Era o nascer do sol e eu decidi ir pro banheiro pra ver se a água tinha voltado e tal. E na hora que eu percebi, eu não tinha como sair dessa rede porque estava tudo muito grudado e as malas debaixo das redes, eu tinha que rastejar entre o bumbum das pessoas e as malas. E aí eu disse: “Putz, vai ter que ser assim”, e eu fui me rastejando. E essa sensação de rastejar foi mexendo ainda mais comigo, dentro de mim. Aí saí. A nossa rede estava bem no meio do barco, tinha três fileiras pra cá e três fileiras pra cá. Eu fui rastejando e saí. Fui no banheiro, o banheiro estava com um cheiro muito ruim, muito fedido. Eu não conseguia nem respirar ali dentro. Aí eu: “Cara, eu preciso de uma ducha, alguma coisa, preciso lavar o rosto e tal”. Abri o chuveiro, estava sem água. E aí estava caindo um fiozinho de água assim. E eu entrei debaixo desse fiozinho d’água e deixei ele cair em mim. Eu não sabia quem lavava mais, se era esse fio ou se eram as lágrimas do meu rosto mesmo (risos). Eu fiquei pensando: “Putz, o que eu fiz da minha vida? Pra quê que eu estou aqui? Por que eu estou aqui?” E tudo o que as pessoas me questionavam, e sempre falavam, meus pais ligavam: “Você acha que vai mudar o mundo? O que vocês estão fazendo não vai adiantar nada! Para com isso, volta pra casa”. As pessoas que no meio do caminho não entenderam o projeto (chorando), isso nos incomodava demais, incomoda demais a gente contar e as pessoas não entenderem e perguntar o que a gente quer com isso. Isso tudo mexe comigo. E aí, com aquela gotinha de água ali eu ficava lembrando, sabe? Realmente as pessoas têm toda razão, o que eu quero com isso? Pra quê eu estou fazendo isso? Podia estar vivendo a vida confortável e eu estou aqui, fedendo, morrendo de vontade de ir no banheiro e esse banheiro sujo!” E aí na hora que eu olhei pro lado, assim, tinha uma fresta no barco e essa fresta estava o nascer do sol, no meio da floresta amazônica. O reflexo do sol no rio Amazonas. Uma pintura divina. E eu vi um quadro ali, naquele banheiro sujo, naquele lugar mal cheiroso, eu, extremamente debilitada emocionalmente, eu estava vendo a maior obra-prima que eu podia ter visto na vida. Ali eu entendi que luxo não é você ter as coisas, luxo é você saber valorizar aquilo que você tem em qualquer tem em qualquer lugar que você estiver. Pode ser o banheiro mais mal cheiroso, você estando a pessoa mais mal cheirosa, você estando debilitada emocionalmente, não importa, não importa onde você está, importa saber você valorizar aquilo que você tem. E ali naquele momento era um quadro que eu tenho certeza que dinheiro nenhum compraria, aquele quadro que eu estava vendo. Então esse dia foi um dia que eu me questionei muito, mas ao mesmo tempo eu entendi que não, que esses questionamentos vão vir a todo momento. O ser humano tem muito disso, qualquer coisinha treme as bases (risos), como diz lá em Minas. E eu entendi que eu iria passar por isso várias outras vezes, eu iria querer desistir várias outras vezes, eu iria deixar as pessoas, as ideias da pessoas tentar interferir na minha cabeça, no meu ideal. Isso ia acontecer. Mas que eu não podia esquecer aquele quadro, aquele pagamento, que eu poderia ser milionária que eu não iria conseguir captar essa imagem pra colocar numa parede da melhor mansão do mundo. Era ali, era um quadro divino, era um quadro da natureza. Nesse dia eu entendi que luxo era saber valorizar.
P/2 – Queria perguntar se você lembra, durante a viagem, que sonhos você tinha?
R – Durante a viagem?
P/2 – Eu estou falando de sonhos dormindo mesmo.
R – Aham. Eu costumo não me lembrar de sonhos, raramente as vezes que eu me lembro de sonhos. Não sei.
P/2 – (incompreensível) acordada (risos).
R – (risos) Estou tentando lembrar de alguns dormindo. Raramente eu me lembro, mas eu tenho uns sonhos meio doidos quando eu acordo. Bom, sonhos acordada. Ah cara, sonhos que podem parecer utopia mas é sonho de verdade mesmo, que as pessoas se olhem mais sem rótulos, sem julgamentos, sabe? Isso me entristece demais, quando alguém julga o outro sem saber o que o outro passou. Quando uma pessoa critica o outro. Me incomoda demais essa caridade vertical, até é uma coisa que eu ouvi uma vez e ouvi novamente aqui do Museu da Pessoa, os meninos do SP Invisível falando, essa caridade vertical, tipo: “Eu dou porque eu tenho e você não tem”. Eu sonho com um mundo mais horizontal mesmo, sabe? Vamos construir juntos um mundo melhor, vamos construir juntos uma vida melhor. Não um paraíso onde todos estão vestidos de branco e todo mundo seja feliz. Não! As coisas ruins fazem parte do aprendizado, mas que a gente tenha mais esse amor sem julgamente, sem crítica, buscando mais solução do que problema. Eu sonho com isso, a gente discutir mais soluções do que problemas.
P/1 – Mas Iara, pegando aí do sonho, hoje, depois de tantos anos que vocês ficaram fazendo as viagens, criaram objetivo, ficou uma coisa estruturada, o site, agora planos enormes. Qual que você vê o papel de vocês pra conquistar esse sonho? Você reavaliou? O que a gente está fazendo agora?
R – Reavaliei muita coisa. Tipo dos filhos, essa foi uma das primeiras coisas. A questão do parar de pensar no futuro também é uma coisa.
P/1 – Teve algum momento que você falou: “Agora a gente não pode mais pensar em como vai ser”.
R – Teve. Lá no Mato Grosso a gente estava saindo de um projeto sensacional, lindo, chama Caminho Redentor. Era um sítio onde o pai perdeu o filho e aí ele criou esse sítio e atende 80 crianças, deficientes físicas e mentais abusadas pelos pais. O projeto já é uma pancada. E nesse dia especificamente, não era para estar ali mas estavam ali três crianças, dois, quatro e seis anos, que não falavam porque os pais batiam a cabeça delas na parede, então elas tinham trauma. Não eram mudas, era um trauma. Elas eram todas furadas de cigarro porque os pais furavam elas. Aquele momento ali foi também um dos outros momentos em que eu pensei em parar. Desde o primeiro dia eu pensei em parar na verdade (risos), desde lá de Itinga que eu já estou pensando em parar o projeto (risos). Mas também tem vários outros motivos para eu continuar, por isso que eu não parei. Mas naquele dia eu sentei ali com aquelas três crianças, eram os meus filhos, eram os meus três primeiros filhos. Não biológicos como eu sonhei, mas eram os meus três primeiros filhos. E eu fiquei ali brincando com eles, incentivando eles a falar e eles balbuciando alguns sons. Eu: “Caramba, se eu ficar aqui um dia eles vão conseguir falar! Eu quero eles, eu quero ajudá-los, eu quero ficar com eles”. E aí o Eduardo percebeu isso e me tirou dali: “Amor, a gente tem que ir embora, eu não estou muito bem, vamos embora”. E eu: “Não, não, não vou” “Vamos embora” e ali ele conseguiu me tirar dali. E aí, como era um sítio tinha uma porteira, ele parou o carro para eu abrir a porteira e eu comecei a gritar no carro. Era um choro que vinha literalmente do útero. Um choro como se fosse um parto mesmo, sabe? Eu chorava, chorava, chorava, eu gritava, gritava, gritava. Até que o Eduardo muito tranquilo esperou eu acalmar, aí eu acalmei e a gente começou a conversar pra entender aquilo. E naquele dia, naquela porteira, nós decidimos que a gente não podia pensar mais em ter os três filhos biológicos e adorar os 45 filhos, o que seria da gente em 2016. Todo mundo fala isso e isso fica até na nossa cabeça direto: “Pô, vocês perderam tudo materialmente! O que vocês vão fazer em 2016? Vocês já não estão mais jovens pra começar do zero”. E eu sempre bato muito na tecla, a gente perdeu tudo materialmente, mas o que a gente viveu não tem dinheiro nenhum que pague. Mas isso em determinados momentos vêm na cabeça. E naquela estradazinha, naquela porteria a gente decidiu que a gente não iria mais pensar em 2016, que a gente não iria mais pensar nos filhos, se a gente teria filhos biológicos ou se a gente teria filhos adotivos, ou se a gente teria os 50 filhos. Porque senão a gente viveria muito lá e não o hoje, e a gente não conseguiria perceber quais os filhos que a gente teria pra cuidar. Por que eu precisaria dar luz ao filho sendo que existem tantos filhos abandonados hoje? Será que eu não poderia ajudá-los de alguma forma com essa experiência que a gente teve? Será que a gente não poderia conectar as pessoas pra cuidar de mais crianças que estão abandonadas aí? Então naquele momento aquela porteirazinha foi marcante na nossa vida nesse sentido de parar de planejar o futuro e viver o hoje, que é difícil, é extremamente difícil acontecer porque a gente tem a mania de pensar muito no que a gente viveu e no que a gente quer fazer, no que a gente vai fazer, o que a gente pode fazer. Mas foi um momento muito marcante da gente parar de pensar muito assim. Então a gente tem algumas ideias. Com tudo o que a gente viveu o que a gente quer? Engraçado isso, que foram dois anos e meio contando a nossa história pra família e amigos e ninguém entendia o projeto, o garotinho da floresta amazônica entendeu só a gente contando, mas os parentes próximos não entendiam. Mas quando eles viram a primeira vez na TV, viram o audiovisual eles entenderam, como num passe de mágica. Aí nós percebemos o poder do audiovisual, que o poder do audiovisual emociona, as pessoas parece que sentem na pele aquilo que o outro está vivendo. Então nós decidimos fazer 50 mini documentários, dos mil e 150 projetos. Então isso a gente vai fazer. Como a gente vai fazer? Não sei. A gente já está fazendo. Aí muitas pessoas pediam pra gente escrever o livro da nossa história. A gente sempre foi muito resistente que não, a gente não iria escrever um livro, que a gente queria um livro dos projetos, com a distribuição gratuita para todas as escolas públicas, pros nossos jovens mudarem o olhar e valorizarem um bom exemplo perto das suas casas e tal. Bom, não conseguimos fazer isso (risos). E aí a editora nos deu essa ideia da gente escrever um livro da nossa história e cada livro vendido um livro ia ser doado, então nós fizemos isso.
P/1 – Vocês fizeram isso como? Vocês já escreveram o livro?
R – Já escrevemos, vai ser lançado em agosto agora.
P/1 – Vocês fizeram um contrato com a editora?
R – É, a editora tinha nos procurado em 2013, a primeira vez que passou no Fantástico, e aí nós dissemos que não. E aí agora na segunda vez foi engraçado, que a gente manda indicações pras TVs fazerem matérias, e aí a produtora do Fantástico ligou pra gente pedindo dez indicações para o último programa do ano e eu mandei dez histórias lindas e tal. E aí a Verinha nos ligou e eu estava muito pilhada nesse dia. E sabe aquelas perguntas básicas: “Como que você está?”, só que essa pergunta, o como você está, pra mim naquele momento foi extremamente, desabrochou, eu: “Caramba! Tá muito doido, a gente está chegando no Chuí! 225 mil quilômetros, 1 mil e 150 projetos, que loucura que foi essa, que coisa doida que a gente viveu, parece que foi uma vida que a gente viveu em quatro anos!” Eu estava muito pilhada e fui falando, falando, falando, falando. Ela falou: “Para tudo. A última história tem que ser a história de vocês no projeto, resumindo, fazendo uma retrospectiva disso. Escreve aí um resuminho das coisas que você acha importante”. Eu passei o final de semana escrevendo o resuminho que deu 40 páginas (risos). E aí na hora que passou, que a editora entrou em contato com a gente de novo eu falei: “Pô, já tem 40 páginas escritas, então realmente é pra fazer, né?”, foi por isso que a gente aceitou. Então escrevemos o livro que vai
ser lançado.
P/1 – Quem escreveu, você ou o Edu?
R – Eu. Eu escrevi. Aí cada livro vendido um livro vai ser doado. E aí a gente pensou: “Pôxa, o mundo está tão tecnológico”. Os insights, né? A gente utiliza de ferramenta pra chegar nos lugares o GPS do carro, o mapa impresso e o GPS do telefone. Nunca utilizamos um Waze, só o GPS normal mesmo. Nesse dia não sei que cargas d’água eu abri o tal do Waze (risos). E uma semana antes. Uma semana não, já estava pronto quase um mês antes, tinha uns voluntários que tinham criado um aplicativo que eu queria muito que as pessoas se tornassem caçadoras de bom exemplo, então eu queria que as pessoas fossem em um lugar, tirassem uma foto e aí caísse no mapa do Brasil. A gente tem o mapa do Brasil que é todo pontuado, a gente fala que ele é todo iluminado, assim, dos 1 mil e 150
que a gente catologou. Então eu queria que todo mundo se tornasse caçador indo em um projeto perto da sua casa, tirando uma foto e caísse nesse mapa. E esses voluntários fizeram isso. Voluntariamente, lógico, sem custo nenhum e tal. E nesse dia indo para esse lugar, eu resolvi abrir o Waze. Na hora que eu abri o Waze eu: “Caramba, é isso! É um Waze do bem que a gente precisa! Imagina se a gente estiver com um aplicativo passando do lado de um projeto e apitar que tem um projeto ali do lado? A gente conectou o próximo que está próximo. E se esse projeto estiver precisando de alguma coisa, sei lá, de leite, ou de voluntário, ou de uma pintura, e aí ia receber um alerta numa mensagem no celular falando do que esse projeto está precisando. E se conseguisse os amigos se reunirem pra mutirões para ajudar aquele projeto? E se a gente tivesse um...” Isso assim, isso eu falando com o Waze aberto, com o Dudu, o Dudu dirigindo, olhava, tipo assim: “Você está ficando louca, né?” (risos). Eu: “Imagina, amor, se a gente tiver um ranking! Já que a gente quer distribuir para todas as escolas públicas do Brasil o livro, um ranking para que os alunos das escolas procurem os bons exemplos perto das suas casas e a escola mais ativa a gente conseguir reformar o projeto que ela indicou e tiver um outro ranking onde os projetos mais comentados também ganhem alguma reforma!” Tirei o pé do chão (risos). E também foi um insight de três minutos, coincidentemente dentro do carro também, coincidentemente (risos), que não acredito em coincidência, e nunca mais abri o negócio, o aplicativo, foi só uma forma mesmo de fazer isso. Aí liguei pro Marcelo, pra esses voluntários: “Marcelo, é isso, isso, isso e isso que eu quero!” aí ele: “Tá bom, eu faço” “Então tá” “Só que tem um custo”. Eu: “Tá, quanto que é?”, ele falou o custo e acho que foi uma das maiores loucuras que a gente fez, mas por acreditar numa causa e por acreditar no projeto que a gente fez. Ele falou o valor, eu falei: “Cara, não tenho dinheiro pra te pagar, a única coisa que a gente tem é o carro, aceita o carro” (risos). Ele: “Aceito” “Então pronto, então faz”. Aí dia dez de agosto o aplicativo vai estar no ar do jeito que a gente imaginou, do gente que a gente quer e tudo.
P/1 – Mas aí vocês vão dar o carro?
R – Se a gente não conseguir o recurso vai. A gente tem esse prazo pra tentar conseguir o recurso, se a gente não conseguir o recurso eles têm a garantia que eles vão receber pelo carro. Então nós criamos esses três sonhos, esses três objetivos pra esse ano que é o livro com distribuição gratuita, o aplicativo fazendo uma rede social do bem e os mini documentários pra tentar chegar no coração das pessoas com essas histórias inspiradoras desses bons exemplos, mostrar que é possível a gente mudar o mundo se a gente tirar o bumbum do sofá e botar a mão na massa. Esses são os três objetivos desse ano.
P/1 – Desse ano? 2015 ou 2016?
R – 2015 ainda.
P/1 – Por agora.
R – Esse ano que eu digo é pro mês que vem, tá? (risos) É agosto. Tudo isso vai ser lançado, tanto os minidocumentários, quanto o livro, quanto o aplicativo, é mês que vem.
P/1 – A gente ajuda, bota a história. Eu sei que vocês não pensam mais no futuro, tudo isso, mas você tem uma visão de depois dessa etapa o que vocês vão fazer? Você?
R – Então, isso que a gente pensa pra esse ano. Ano que vem a gente tem um outro sonho, já que tem as Olimpíadas aí, a gente fazer as Olimpíadas dos Caçadores, que é uma junção desse aplicativo com a distribuição dos livros pras escolas públicas e juntar isso pra aproveitar esse gancho das Olimpíadas do ano que vem. E pra finalizar uma viagem durante cinco anos pelo mundo. Seriam 50 países, o Brasil e mais 49 fora. Quarenta e nove projetos no exterior e o projeto representando no Brasil os 1 mil e 150, né? Pra gente finalizar essa expedição, finalizar esse projeto, concluir, fechar um ciclo disso. A gente sabe que a gente precisa fechar esse ciclo, só isso.
P/1 – Fechar esse ciclo com essa viagem.
R – É, esses 50 países, 50 projetos, 49 fora e 1 mil e 150 do Brasil, a gente sabe que a gente precisa finalizar isso. Agora o que vai ser realmente depois da expedição a gente bloqueou total.
P/1 – Depois desses cinco anos.
R – Depois de fechar, que vai ser mais do que cinco anos, vai entrar um pouco mais. Mas eu não sei pra onde a gente vai voltar.
P/1 – Vocês já têm uma ideia como que vocês vão fazer isso?
R – Não.
P/1 – Aqui vocês tinham um carro e um lugar pra começar. E aí, qual é o carro? Vai começar de carro, de bicicleta, de barco, vai fazer o quê?
R – No exterior não, no exterior vai ser de mochila. Por que a gente não pode parar pra pensar como a gente vai fazer. Porque a viagem no exterior, ela seria garantida com o carro, que é o que restou.
P/1 – Com o dinheiro do carro.
R – Com o dinheiro do carro, a gente venderia o carro e iria de mochila pelos 49 países. Só que a gente colocou o carro como garantia do aplicativo e ficar como garantia do aplicativo a gente não vai ter mais como fazer a viagem no exterior. Racionalmente. Por isso que a gente não pode pensar, é mais para uma saúde mental mesmo, sabe? Deixar as coisas acontecer naturalmente. Cara, não é possível que essa ideia veio de mim e do Dudu, sabe? Então assim, todas as vezes que a gente passa por algum perrengue, assim, eu tenho uma imagem de Jesus em cima do teto do carro escrito assim: “Jesus Cristo e os anjos guardiões estão conosco nessa viagem do bem”. Então toda vez que a gente passa um perrengue a gente bota a mão em cima e fala assim: “Cara, essa ideia não é nossa, então te vira aí e ajuda” (risos). Então toda vez a gente pensa assim. E nesse momento também é dessa forma. Não é possível que a gente pensou isso, a gente se acha tão medíocre, tão pequeno, pra ter pensado numa coisa tão bonita que virou, que era pra ser um casal e mobilizou tantas, milhares de pessoas pelo Brasil. Então, não é nossa a ideia, é do universo, e o universo vai cuidar disso. Então a gente verdadeiramente coloca a nossa vida na mão do universo pra ele cuidar e pra ele ir direcionando. Por uma questão de saúde mental.
P/1 – Então não tem nada concreto, tipo, o que eu vou fazer? Nada.
R – É, tem o destino, mas o caminho... tem aquela frase de Gandhi: “A felicidade não está no destino, está no caminho” (risos). Mais ou menos isso. A gente tem um destino pra chegar, a gente quer algumas coisas, a gente quer que aconteça algumas coisas, mas como isso vai acontecer a gente não faz a mínima ideia. Mas vai acontecer (risos).
P/1 – Iara, deixa eu te falar agora umas perguntas super concretas. Por exemplo, agora, a única coisa que vocês têm é o carro, vocês vão dar em contrapartida, acabou a expedição, acabou o dinheiro do apartamento. Como é que vocês vivem, assim, um dia hoje toma café na padaria, amanhã. Como é que é? Com que dinheiro?
R – Também foi algo mágico do 28 de outubro. Na verdade: “Pô, vocês venderam tudo o que vocês tinham, vocês eram ricos, né, pra se manter na estrada esse tempo todo”. Não, o dinheiro acabou em janeiro de 2013.
P/1 – Dois anos durou.
R – Durou dois anos. Foi extremamente difícil os primeiros anos porque a gente não sabia o que fazer, a gente não sabia como ia ser, então a gente até gastou mais dinheiro do que deveria, todo esse processo a gente voltou muito pra Divinópolis pra não dar essa ruptura com a família, deixar meio que em doses homeopáticas. Então a gente voltava no Dia das Mães, Dia dos Pais, Natal, todas as datas comemorativas, isso custou caro. Enfim, dinheiro acabou em janeiro de 2013. E aí o que restou era o carro. Por isso que eu falo que o universo, cara, tá na mão dele, vai (risos). E aí a gente pensou, eu conversando com o Dudu: “Vamos vender o carro e vamos continuar de mochila”. Mas faltam três anos ainda, né? Então vamos fazer o seguinte, vamos financiar o carro, viver nele mais um ano e vamos pagando essas mensalidades, no final do ano de 2013 a gente vende o carro, quita a dívida e continua de mochila, mas aí vai ser menos um ano. E fizemos isso de uma forma muito natural, sem trauma, normal. Em setembro, a gente meio que gerou essa ideia, né, nove meses (risos). Em setembro nós ficamos... o carro chama muito a atenção, nós ficamos dois anos e meio negando entrevista televisiva, que a gente achava que quem tinha que aparecer eram os projetos e não nós. E sempre distribuíamos essa informação gratuitamente pra todas as TVs. E aí a terceira vez que o Fantástico entrou em contato com a gente, a gente distribuiu essa informação, que eram 700 projetos na época. E a Verinha, muito inteligente, virou e falou assim: “Bom, eu coloco dois, três projetos no ar. Agora se vocês aparecerem vão estar aparecendo os 700”. Quebrou meu argumento, aí nós aceitamos fazer a entrevista. E nessa entrevista era a pergunta-chave: “E o dinheiro, vai dar?”, só que eu não podia falar em rede nacional que o dinheiro já tinha acabado no início do ano, né? Eu falei: “Não vai dar mas a gente vai vender o carro e continua e tal”. E aí o Marcelo colocou isso no ar. E aí foi uma repercussão incrível, foram milhares de pessoas, foi coisa assim, blup, de um minuto pro outro milhares de pessoas entraram em contato com a gente querendo doar dinheiro pra gente, porque ninguém sabia que a gente tinha uma dívida. A gente tinha uma dívida na mão, um monte de gente querendo doar, tipo, fechou e resolveu o nosso problema material. Mas aí a gente pensou: “Isso vai resolver o nosso problema, não vai mudar o mundo de ninguém, então vamos falar não, a gente não vai aceitar. Ninguém sabe da dívida, então ninguém vai, minha mãe não vai vir aqui, meu pai não vai vir aqui internar a gente”. E aí falamos que a gente não queria aceitar o dinheiro das pessoas, que a gente queria que as pessoas ajudassem o próximo que está próximo e não o próximo que está longe. A gente acredita na mudança do mundo através de ressonância, eu mudo a mim mesma, a minha casa, a minha rua, meu bairro, minha cidade, meu estado, meu país, o mundo. E essa ressonância só vai acontecer se as pessoas cuidarem dos próximos. Então fizemos isso. Aí teve um rebuliço ainda maior porque as pessoas não acreditaram que a gente não tinha patrocínio, não aceitava doação (risos). “Vocês vão viver como?” E aí nós lembramos de um projeto que a gente tinha conhecido em São Paulo, da Ute, que um dia uma criança perguntou pra ela: “O que você tem pra me dar?” E ela automaticamente pensou em moedinha, mas depois ela pensou: “Não, essa criança não me pediu dinheiro, ela perguntou o que eu tenho pra dar. Eu tenho educação, eu sou educadora”. Resumindo, hoje ela cuida de cinco mil famílias da Monte Azul. E aí eu lembrei disso e comecei: “Não quero o dinheiro, eu quero aquilo que vocês têm pra nos dar. E eu quero aquilo que vocês têm de melhor pra nos dar, pode ser o seu trabalho, pode ser um cafezinho, pode ser um banho quente, pode ser uma cama, pode ser um abraço, é o que você tem de melhor pra nos dar, e não necessariamente o dinheiro. E se você é jornalista pode escrever as coisas pra gente, se você é um designer pode fazer cards pro Facebook. Se você é dono de uma gráfica pode fazer essas histórias e distribuir gratuitamente pras escolas públicas, que é o nosso sonho”. Bom fizemos isso e colocamos essa divulgação. E aí foi muito lindo o que a gente recebeu. Às vezes as pessoas ligavam brigando com a gente: “Vocês não querem aceitar o meu dinheiro!!!” (risos) Como dizia Pedro de Lara: “Tem gente que é tão pobre, tão pobre, que só tem dinheiro pra dar” (risos). Então assim, as pessoas se incomodavam da gente não aceitar o dinheiro delas. Mas em contrapartida esse incômodo fazia elas saírem da cadeira e obrigavam elas a irem num projeto, mesmo que fosse só por ir. Mas a gente acredita que quando a pessoa vai o bichinho morde e acabou, ela não deixa de ir sempre, ela vai sempre. Bom, fizemos isso, foi uma repercussão muito legal e tal, o pessoal do Caldeirão do Huck viu a nossa história, viu que a gente não tinha patrocínio, não aceitava doação e nos convidou para participar do Agora ou Nunca. Eu falei: “A gente participa, mas a gente quer aquilo que vocês têm de melhor, não dinheiro. Se a gente ganhar vocês ajudam os projetos que a gente têm conhecido ou distribui esses livros gratuitamente pras escolas, que é o nosso sonho”. Aí eles viraram: “Cara, vocês são muito doidos! (risos) Vem cá que a gente quer conversar com vocês”. Aí fomos pro Rio de Janeiro, estava numa mesa com os produtores e tal, aí os caras viraram e falaram assim: “Bom, negócio é o seguinte, é um quadro fechado, não tem como a gente sair disso, a gente não pode reverter o dinheiro para alguma coisa. Vocês vão participar e vocês vão ter que voltar no dia 28 de outubro e vale 30 mil reais”. Aí eu e o Dudu, a gente se olhou, olhamos pro céu e falamos assim: “Cara, tu gosta da gente mesmo, né?”, porque a nossa dívida era uma dívida de 36 mil e 28 de outubro é o dia do meu aniversário, né? Então foi um presente divino mesmo que a gente recebeu. Participamos do quadro, ganhamos os 30 mil. Só que uma produtora falava que estava com ódio da gente porque ela não conseguia dormir pensando na nossa história, que se a gente ganhasse a gente ia ganhar 30 mil, ia continuar faltando seis, e a gente teria que vender o carro pra continuar. Então ela articulou e nos deu um caminhão delivery pra gente vender e gerar recursos pra gente continuar. Nós ganhamos os 30 mil e no final ganhamos o caminhão, que é o que nos manteve todo esse tempo na estrada, mas principalmente as pessoas que a gente encontra pelo caminho. “Vem almoçar comigo” “Vem tomar café comigo” “Vem jantar comigo”. Às vezes a gente para num posto, chega alguém e abastece. Que a gente fala que o nosso grande patrocinador são as pessoas que a gente vai encontrando pelo caminho. Teve uma história em Guarapuava que ilustra bem isso, foi incrível! A gente estava saindo de Curitiba indo pra Foz do Iguaçu e paramos em Guarapuava pra abastecer. Aí paramos o carro, o Dudu falou: “Ah, coloca 50 reais”. De repente chega um carro correndo, saiu uma moça correndo. “Pode encher o tanque que eu vou pagar!” Aí o Dudu olhou assim, assustado. Aí ela: “Nossa, eu conheço a história de vocês, tal, eu quero que enche o tanque”. Aí, nossa, ficamos super emocionados. “Nossa, obrigado e tal”, tiramos uma foto, conversamos. Passou cinco minutos chega uma senhora. Quer dizer, essa moça que parou o carro, ela alimentou o carro. Passa cinco minutos vem uma senhora com uma adolescente de 16 anos, falou assim: “Obrigada pelo trabalho que vocês estão fazendo” “Por quê?” “Porque vocês estão construindo um mundo melhor pros nossos jovens e pela minha neta, vocês mudaram o olhar dela. O dia que ela viu a história de vocês ela queria se tornar voluntária, então eu parei aqui pra agradecer vocês”. Aquilo ali alimentou a nossa alma. Passou cinco minutos, isso a moça do combustível parada, a senhora com a adolescente parada, nós dois. Passam mais cinco minutos vem um caro vrrruuum, parou do nosso lado. O cara que estava dirigindo ofegante: “Vocês já almoçaram?! Vocês já almoçaram?!”, a gente: “Não, por quê?” “Porque eu trabalho no Bob’s. Eu vi vocês passando, pedi pra fazer um lanche rapidão, só não deu tempo pra trazer a batata (risos), mas eu peguei o carro e saí correndo e está aqui, dois lanches e dois refrigerantes”. Alimentou nosso corpo. Então assim, no prazo de 20 minutos nesse dia lá em Guarapuava a gente recebeu alimento pro carro, alimento pra nossa alma e alimento pro nosso corpo. Então assim, não vai faltar o alimento, nem o alimento material, nem o alimento espiritual, não vai faltar. Se a gente realmente colocar a nossa vida em favor de alguma coisa, de alguma coisa, de algum sentido, eu acredito que tudo vai dar certo.
P/1 – Tá bom (risos). Você quer falar alguma coisa mais?
R – Nossa senhora (risos)! Não, nossa. Acho que é a frase mesmo que nos motiva, pra finalizar, que resumo um pouco dessa história e que a gente quer de todo mundo, que é aquela frase de Gandhi: “Seja você a mudança que você quer ver no mundo”. Não espere nada que alguém faça, por que a gente não pode pegar e fazer aquilo que a gente acredita, né?
P/1 – Deixa eu te fazer um pergunta final. Você já contou essa história muitas vezes, né, ao longo desse tempo, dessa viagem, tal. Mas aqui você começou lá de pequena, foi contando assim. O que te deu de insights, e se te deu, você ter contado a sua história aqui?
R – Como assim?
P/1 – O que te fez?
R – O que eu estou sentindo agora?
P/1 – Isso, por você ter contado a sua história.
R – Putz (risos). É um turbilhão de emoção. Reviver todo essa linha do tempo, sei lá, seis anos em busca da paz de espírito; dez, onze anos ter a creche; 18 anos deu a volta ao mundo, 22 anos ter perdido tudo e perceber o valor das coisas. Depois querer ter 50 filhos. Esses quatro anos que foram, não dá pra resumir quatro anos, tudo o que a gente viveu de jeito nenhum, realmente é uma bagagem que não cabe em carro nenhum (risos), reviver isso é muito doido (risos). Nossa senhora, não tem palavras, é muito emocionante, acho que me dá até mais fôlego pra mais tempo ainda, sabe? Você virar e falar assim, tudo o que a gente passou está aí, dá mais força pra gente continuar um pouco mais. Muito bom reviver, ter oportunidade de reviver essas histórias. Obrigada, gratidão por essa oportunidade.
P/1 – De nada (risos).
R – Foi muito lindo.Recolher