Programa Conte Sua História
Depoimento de Ariana Yang
Entrevistada por Carol Margiotte Grohmann
Campinas, 03 de dezembro de 2018
Entrevista número PCSH_HV665
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Doutora, boa tarde. Muito obrigado por receber a gente aqui hoje, e para começar, seu nome completo.
R - Eu que agradeço. Ariana Campos Yang.
P/1 - O local e a data de nascimento.
R - 04/07/1973, Catanduva, São Paulo.
P/1 - A senhora sabe porque seus pais te batizaram com esse nome?
R - Meu pai se chamava Ari, ele faleceu esse ano, minha mãe não se chama Ana, e ele queria que o nome dele estivesse nos nomes dos filhos, e eu sou a filha mais velha, e ficou Ariana. Minha mãe trabalhava em um hospital, e tinha uma história de que quando ela trabalhava nasceram duas gêmeas lindas, e uma delas se chamava Ariana, e então juntou a história da minha mãe e o desejo do meu pai, e eu nasci Ariana.
P/1 - E seus pais contavam a história de como foi o dia do seu nascimento?
R - Do dia não, eu não sei como foi o dia do nascimento. A minha mãe era filha única, e sempre teve um trauma de filha única, então ela conta que quando eu nasci ela já pensava em me dar um irmão porque ela não queria que eu vivesse sozinha, a frustração da vida dela é ter sido filha única. Eu tive mais um irmão, exatamente um ano depois, e depois de 10 anos nasceu a minha irmã, que é meio irmã e meio filha.
P/1 - E qual é o nome deles?
R - Meu irmão se chama Arildo e a minha irmã Arinilda porque juntou o nome do meu pai e da minha mãe, meu Pai Ari e a minha mãe Nilda, e eu agradeço por ter sido a primeira.
P/1 - Eu queria que a senhora contasse um pouquinho sobre os seus pais, um pouco de personalidade, o que você sabe sobre a história deles.
R - Meu pai era militar da aeronáutica, ele também trabalhava com Voleibol, ele fez educação física e trabalhou a vida inteira dentro do esporte, e é uma pessoa que veio de uma classe bem humilde, que trabalhou muito para vencer na vida, e a minha mãe também, o meu avô era pedreiro e via no estudo uma forma de crescer e de se ganhar uma autonomia maior, e meu avô e minha avó se esforçaram muito para minha mãe estudar, ela estudou, fez faculdade de pedagogia, e era professora de ensino básico, e ela mais do que meu pai tinha uma crença no estudo, e que estudar é a melhor coisa que se pode fazer na vida, estudando você conhece novos mundos, amplia os horizontes, e a briga do meu pai e da minha mãe era porque meu pai achava que eu tinha que aprender as coisas de mulher, aprender a cuidar das coisas da casa, e minha mãe já não deixava e eu achava ótimo, meu pai queria que eu aprendesse a lavar louça, e minha mãe falava que não precisava, e eu cresci ouvindo as brigas dos meus pais sobre o que eu devia e o que eu não devia fazer, acho que a minha mãe venceu, até com a minha ajuda, porque eu não gostava muito. E era minha mãe professora, meu pai militar, não tinha uma renda muito grande, eu sempre estudei em escola pública, e depois veio o sonho de fazer medicina, e veio como fazer vindo de uma situação financeira não privilegiada, e a determinação de correr atrás do sonho foi muito incentivada tanto pelo meu pai quanto pela minha mãe.
P/1 - Ainda nessa briga dos seus pais sobre o seu futuro, tem alguma batalha vencida pela sua mãe que foi memorável, de o seu pai querer que você aprendesse, e sua mãe bater o pé no chão e não deixar?
R - Eu acho que um ponto específico não, nada marcante, eram coisas do dia a dia, meu pai queria que tivesse as responsabilidades de cuidar da casa, que tivesse uma divisão, meu pai tinha uma coisa assim, acho até por conta da formação militar, da disciplina, que algumas coisas ele venceu, por exemplo, na minha casa não existia acordar tarde, nem nos finais de semana e nem nas férias, então todos os dias da minha vida às 8 da manhã tinham que estar todos de pé, isso ele venceu. Mas em relação a ter um afazer doméstico como obrigação, a minha mãe venceu, tinha uma questão de organização, de aprender, do cuidado, mas ela preferia priorizar o estudo, a minha vida mais acadêmica.
P/1 - E seus pais nasceram onde?
R - Meu pai nasceu no Mato Grosso e a minha mãe nasceu em Catanduva.
P/1 - E como eles se conheceram?
R - Minha mãe veio para Campinas, e eles se conheceram em Campinas, que é onde eu vim morar. Quando minha mãe cresceu, ela veio fazer faculdade aqui, e eles acabaram se conhecendo através de amigos em comum, meu pai não viveu a vida inteira no Mato Grosso, acho que ele viveu até o início da juventude, depois veio para São Paulo.
P/1 - E depois que eles se casaram eles foram morar onde?
R - Depois que eles se casaram eles viveram um tempo no interior, voltaram para Catanduva por causa da família, e acho que não estava dando muito certo, e meu pai por conta da carreira militar teve que se mudar, eles se mudaram para São Paulo, a minha mãe acompanhou, e eles ficaram morando em São Paulo.
P/1 - Em que região?
R - Quando eu era pequena eu acho que eu morava na Penha, eu não me lembro de ter morado lá, mas eu me lembro das falas sobre a Penha.
P/1 - A memória que você tem da sua infância é onde?
R - Depois eles foram para Guarulhos, a minha memória é dentro de uma Vila Militar, tinha uma Vila Militar em Guarulhos, e eu morei a minha infância toda lá, e são lembranças boas, porque hoje em dia é super comum os condomínios, mas naquela época não tinha, e eu lembro que meus amigos da escola adoravam ir na minha casa porque as casas não tinha muro, e a gente corria a vila inteira pela rua, era muito arborizada, a gente vivia em árvores, acidentalmente induzimos um pequeno incêndio na vila brincando de fogueira, e um dia a fogueira ficou um pouco mais forte. Eu tenho boas lembranças da minha infância em uma Vila Militar.
P/1 - E como foi o incêndio?
R - A gente precisou chamar os bombeiros para apagar o incêndio e foi muito próximo a minha casa, a vila militar era por ruas, dentro da vila tinha as áreas dos sargentos, dos tenentes, dos oficiais, eram de acordo com as patentes, e a minha rua era próxima a rua arborizada e do outro lado era onde fica o atual aeroporto de Cumbica, e era uma área que só tinha mato e árvore, e a gente brincava ali, e alguém teve a ideia de fazer uma fogueira, e provavelmente estava seco, porque foi muito rápido, e a gente ainda tentou jogar água com os baldinhos para esconder dos pais, mas não deu certo. Eu não lembro muito, eu lembro que foi uma correria, e que depois chegou alguém para apagar o fogo, e na minha lembrança de criança, eu não sei o quanto eu amplifiquei essa imagem, o fogo era grande, mas a bronca não foi tão grande, então eu acho que talvez o fogo não tenha sido tão grande.
P/1 - A senhora chegou a conhecer seus avós?
R - Sim, a mãe da minha mãe eu não conheci, eu conheci muito o meu avô, foi o único avô que foi presente, porque foi o único que ficou vivo, a minha avó eu não me lembro e meus avós por parte de pai, eu não lembro até que idade eu tive contato, mas o meu avô pai da minha mãe morava com a gente, e o meu avô era quem cuidava da gente, porque meus pais trabalhavam, e ele era a pessoa mais presente, e ele era um avô bem legal, ele chegou a conhecer meus filhos.
P/1 - Você lembra o nome dos seus avós?
R - Eu não lembro direito, era Maria Josefa e eu não lembro do meu avô.
P/1 - E o avô que era presente?
R - João.
P/1 - Tem alguma lembrança que quando você lembra dele ele está desse jeito, fazendo tal coisa em casa?
R - Eu lembro do balanço, porque meu avô era pedreiro, e ela tinha habilidades manuais para construção, para montar as coisas, e eu lembro que em todo lugar que a gente ia tinha um balanço que ele construiu, ele construiu o balanço da vila, o balanço de casa, e eu lembro dele sentado empurrando o balanço.
P/1 - Conta para mim como era essa casa em Guarulhos, quando você entrava nela, o que você encontrava?
R - Faz tempo que eu não penso nisso. As casas da vila eram grandes, hoje eu moro em uma casa grande, mas eu lembro que até então era a maior casa que eu tinha morado, quando eu chegava tinha uma árvore grande bem na frente da casa, e do lado tinha o balanço, tinha a garagem, tinha uma porta que em teoria era para entrar para a sala, mas essa porta sempre ficava fechada e a gente entrava pela porta da cozinha, essa porta da sala só era aberta em época de Copa do Mundo porque todo mundo assistia televisão ali, porque não eram todas as casas que tinham TV e na minha casa tinha, eu não me lembro como eram os quartos, mas era uma casa térrea, eu só lembro da cozinha e da sala, lembro do fundo do quintal que tinha uma churrasqueira.
P/1 - E como era a divisão de tarefas da casa?
R - Minha mãe fazia a maior parte das coisas, e depois teve uma irmã de criação do meu pai que veio morar com a gente, ela fazia comida, ela cozinhava muito bem, tia Abadia, e as responsabilidades minhas e do meu irmão eram juntar os brinquedos, manter o quarto arrumado e ajudar um pouco na louça, mas a minha mãe que trabalhava mais.
P/1 - E ainda pensando na sua infância, tinha alguma comida esperada que era feita pela sua mãe ou pela sua tia?
R - Tinha uma coisa que eu lembro que eu adorava, que era pizza de fogão, porque era uma comida rápida, e ela tinha essa forma que fechava a tampa completa, e tinha um cheiro maravilhoso, quando a gente chegava em casa a gente achava que tinha pizza, e eu não sei porque ela não fazia muito essas pizzas no forno, mas fazia muito essa de fogão, mas a minha mãe cozinhava muito bem, mas o que eu mais lembro é dessa pizza por causa do cheiro.
P/1 - E como era a sua relação com seu irmão?
R - Hoje a gente se dá super bem, mas a gente brigava muito, a idade era muito próxima, e eu lembro de brigar muito com meu irmão, eu sempre tive muito cabelo, e eu lembro que ele embaraçava muito, e eu não gostava de pentear o cabelo, eu lembro da minha mãe e da minha tia correndo atrás de mim para eu pentear o cabelo, e quando eu brigava muito, eu arranhava muito meu irmão e ele arrancava os meus cabelos, ele saia com a mão cheia de cabelo, e eu saia com pele dele na unha, a gente brigava muito, mas estava sempre junto. A gente brigava por tudo, pelo que a gente queria, e pelo que a gente não queria, e quando eu conto para os meus filhos, porque eles brigam super pouco, eles costumam falar que eu não brigo com o tio deles, e eu falo que não brigo agora, mas quando eu era criança eu brigava muito.
P/1 - E como eram os finais de semana em casa?
R - Era tranquilo, na vila tinha um clube e a gente ia para lá, tinha piscina, era um programa de domingo, e a gente também era sócio de um clube de campo que ficava perto de Arujá, e para mim era o lugar mais lindo que eu conhecia, era gigante, parecia uma floresta bem cuidada, com piscinas enormes, a gente fazia churrasco, e o programa mais especial era nas férias, que era acampar, nossa viagem de férias era ir para praia, mas não tinha dinheiro para ficar em hotel, e a gente acampava na areia da praia, em vários acampamentos a gente foi acordado com a água chegando na barraca, e todo mundo saindo carregando as coisas, eram as nossas férias, e eram férias desejadissimas, e que eu tenho excelente lembranças, sem nenhuma condição para ir no banheiro, a maior parte das vezes a gente acampava perto de um lugar que tinha estrutura, mas quando não dava, tinha que ir no mato mesmo, era uma coisa que quando eu conto para os meus filhos, eles já olham com cara de nojo, mas que eu adorava.
P/1 - Como que era o dia anterior a ida para praia?
R - Não dormia, ficava preparando, arrumando a mala, eu lembro do meu irmão que era menor e ficava repetindo “Vamos para a praia”, e quando ia a gente ficava perguntando se já estava chegando, e demorava para chegar, e eu lembro do retorno, que era todo mundo queimado, vermelho, se doendo de queimaduras.
P/1 - Quais eram os destinos?
R - A gente ia para Bertioga, depois ia para Ilha Comprida, que era longe, e tinham outras praias que agora eu esqueci, São Sebastião, a maioria no litoral de São Paulo.
P/1 - Eu queria que a senhora contasse como foi a primeira vez ficando em hotel, tem essa recordação?
R - A primeira vez que eu fiquei em um hotel, foi em um curso que eu estava na faculdade de medicina, em Caxambu, eu fiz um estágio com um Neurologista professor da USP sobre sono, e tinha um trabalho que a gente mandou para esse congresso, e que podiam ir acadêmicos, e eu fui, eram 2 ou 3 dias, e o hotel era velho, antigo, mas que tinha uma pompa, e que eu falei “Gente, esse aqui parece um hotel de rei e rainha”, porque ele era muito bonito, mas era bem velho, e eu achava que não tinha vida melhor do que viver em hotel, você acorda, vai tomar café da manhã, tem aquele monte de coisas para comer, pães diferentes, bolos diferentes, e naquela época eu falava quando eu me tornasse independente eu queria viver em hotel, era meu sonho de consumo, hoje o meu sonho de consumo é viver em casa.
P/1 - Mas essa primeira vez te trouxe recordação dessa época do camping?
R - Não, era diferente, eu era adolescente, porque você entra na faculdade adolescente, é uma fase de desvalorizar tudo o que você tem, até a sua história, então o que você tem, os seus pais, é tudo ruim, nada é bom, o bom está longe, o bom é o outro, então para mim acampar era um absurdo, não era uma fase que eu queria mais acampar, então eu via a questão do hotel como uma coisa maravilhosa, essa primeira experiência não me trouxe nada, isso é bom e outras coisas são ruins, hoje, não que eu queira voltar a acampar, porque eu tenho algumas memórias ruins, eu lembro de dormir, a coisa mais buscada no acampamento era como não deixar entrar areia dentro da barraca, e eu lembro do meu pai e a minha mãe brigando por causa do pé cheio de areia, tinha que passar um pano úmido no pé para poder entrar na barraca, mas eu tenho boas lembranças.
P/1 - E o pai da senhora contava histórias de Mato Grosso?
R - Não, não contava muita história, ele não era muito um contador de história, ele contava histórias do presente, eu acho que eu peguei muito dele isso de não viver no passado e nem no futuro, planejando muito as coisas, minha mãe planejava um pouco mais as coisas do futuro, e eu sou uma pessoa totalmente do presente, para mim só tem hoje, amanhã eu não sei o que vai acontecer.
P/1 - E nesses acampamentos, como era a noite? Tinha um momento em que vocês 4 se reuniam e ficavam conversando?
R - A noite a gente ficava olhando para o céu, e ficava contando histórias sobre coisas que não existiam sobre as coisas que a gente estava vendo no céu, meu pai não era um conhecedor de astronomia, mas ele contava umas histórias que depois eu descobri que não eram verdadeiras, mas que a gente gostava, ficar olhando para o céu e vendo as estrelas, minha mãe contava mais história, história de criança, cantiga, a gente cantava, porque nesses acampamento a gente não acampava sozinho, tinham ou outras famílias conhecidas, ou a gente conhecia no local do acampamento, e no geral juntava todo mundo, ficava, e dormia cedo, porque nossa vontade era que amanhecesse logo para poder ir para praia.
P/1 - E dessas cantigas da sua mãe, você lembra de alguma?
R - O cravo e a rosa, lembro, o cravo brigou com a rosa, lembro dessa, tinha uma de índio, de índio tinha bastante, agora eu não lembro muito a letra, roda, roda, roda, tinham bastante.
P/1 - E o que a senhora queria ser quando crescesse?
R - Minha mãe acreditava muito na questão do estudo, e isso passou para mim, e o meu sonho era ser professora, e eu fiz magistério, eu fiz o magistério acreditando que através da educação a gente pode mudar o mundo, e sou apaixonada pelo ensino, hoje eu sou médica por um acaso, mas de alma eu sou professora, eu fiz magistério para ser professora, e comecei a fazer estágios em escolas públicas, e eu continuo acreditando, eu herdei da minha mãe, ela imprimiu isso em mim, e depois estudando eu continuei com essa visão que a educação é o que muda uma sociedade, acho que a base de uma sociedade que pode sonhar com um futuro melhor é por meio da educação, e eu estudava muito, me aplicava em estudar, em aprender, e quando eu fui fazer o estágio eu vi que era muito difícil, estava muito distante aquilo que eu aprendia e aquilo que eu podia fazer, e eu fui me frustrando, e vendo a maior parte dos professores frustrados, eu comecei a me decepcionar, e eu não queria aprender tudo aquilo para não conseguir aplicar, e terminei o magistério muito decepcionada com a situação do ensino público no Brasil, os meus professores e os professores que eu via nos estágio ficavam contando os dias para se aposentar, e eu não queria isso, e eu resolvi mudar, e terminando o estágio eu tinha que prestar o vestibular, e faltava uma semana para fazer a matricula e eu não tinha ideia do que eu ia colocar, porque a primeira coisa para mudar a vida das pessoas era a educação, mas o que mais eu podia fazer para ajudar as pessoas? E apareceu medicina, sem nenhum sonho romântico, eu posso ajudar menos, mas posso ajudar um pouquinho, e resolvi fazer medicina, mas tinha um desafio, eu não tinha me preparado para medicina, eu fiz uma escola técnica, é uma carreira muito concorrida, eu achava que não ia ter condição de entrar em uma escola pública, então eu falei com meus pais, quando eu falei que estava cogitando a possibilidade de fazer medicina o olho dos dois brilharam, e eles falaram “Faz, a gente dá um jeito”, e eu prestei medicina e passei em uma fundação, que é sem fins lucrativos, mas tinha uma mensalidade fora da realidade dos meus pais, mas que até hoje eu não sei como eles conseguiram pagar, e eu entrei em medicina, consegui me formar, fui fazer a especialização, e depois acabei descobrindo que eu sou médica, mas a minha alma de professora continua, se eu fizesse jornalismo, arquitetura, eu seria professora, que é onde eu me descobri mesmo, que o tempo não passa, eu posso ficar horas e dias ininterruptos trabalhando, e diferente do que eu imaginava antes que eu ia contar os dias para a aposentadoria, eu sofro com o dia que eu serei forçada a me aposentar, porque eu não gostaria de me aposentar nunca.
P/1 - E como foi o dia do resultado do vestibular?
R - Uma mistura de será que é meu nome mesmo, será que foi eu mesmo que passei, e por outro lado, como eu passei em uma faculdade que eu sabia que tinha uma mensalidade, embora meus pais tivessem falando para ir, eu vi a felicidade deles com a possibilidade de ter uma filha médica, e eu sentia um pouco de culpa desse dinheiro que ia ser usado para pagar a minha faculdade, se era justo fazer isso com meus pais, ainda tinham meus irmãos, tinha essa mistura de alegria e culpa de fazer uma faculdade que eu sabia que iria sobrecarregar os meus pais, mas eu comecei e durante toda a faculdade esse sentimento de trazer uma alegria mas de alguma forma também ser um peso eu carreguei até eu me formar, mas me formei.
P/1 - Mas vocês chegaram a comemorar quando viram seu nome entre os aprovados?
R - Eu lembro que a gente foi para uma pizzaria, a nossa comemoração era pizza, e não tem ninguém italiano, mas pizza era uma coisa que todo mundo sempre gostou em casa.
P/1 - Qual o nome da faculdade?
R - Fundação Luzira, Faculdade de Ciências Médicas de Santos, e tinha mais isso, porque ainda tinha que arcar com moradia.
P/1 - E como foi essa ida para Santos, essa vida nova?
R - Os meus pais foram me levar para Santos para fazer a matricula, tinha o trote de chegada, e nesse dia você vê que você tem que conhecer as pessoas, porque você tem que ver quem também vai precisar dividir, republica, procurar onde você vai morar, e quando eu cheguei lá, eu lembro de procurar onde eu ia ficar, e tinha uma casa, Dona Hermínia, era uma senhorinha, tinham na faculdade vários telefones, e meu pai super preocupado com a filha mulher, que ia morar sozinha, e o lugar que ele achou mais seguro foi com essa senhora, naquela época ela devia ter uns noventa e poucos anos, e morava sozinha em um apartamento de frente para o mar, e ela alugava um dos quartos, e eu fui para a casa dela, eu acho que eram os parentes dela que estavam alugando, era mais para ela não ficar sozinha, e a cabeça dela não estava boa mais, eu morei por um tempo, até conhecer umas pessoas na faculdade e depois eu fui dividir apartamento com mais duas amigas, mais perto da faculdade e que dividindo não ficava caro.
P/1 - Foi quanto tempo morando na casa da dona Hermínia?
R - Acho que foram uns dois meses, mas não tinha condição.
P/1 - Mas como é que era esse começo morando lá? Como era a rotina?
R - Ela não lembrava que era eu que estava morando lá quando eu chegava, e eu comecei a ficar com medo de chegar algum dia e ela não me deixar entrar, as minhas coisas estavam lá dentro. Mas faz tempo, eu estou formada a 20 anos, mais 6 anos, mas eu lembro de chegar alguns dias e ela olhar para mim e perguntar “O que você veio fazer aqui?”
P/1 - E o começo estudando medicina, como foi o início da faculdade?
R - Eu descobri que a gente sempre faz menos do que a gente pode fazer, porque quando você está estudando para vestibular, você acha que está estudando muito, dá a impressão que não tem nada mais cansativo, e quando você entra na faculdade você percebe como a sua vida era fácil, como eu tinha tão pouco para estudar e achava muito, e a faculdade de medicina tem um nível de stress entre os alunos, uma taxa de depressão, suicídio, tentativas de suicídio tão altas, entre as mais altas entre as outras graduações, mas eu estudava muito, eu lembro de um período de quase um mês de prova, que tinha prova quase todos os dias, e a gente tinha que fazer a leitura de um, dois livros por dia, a gente quase não dormia, a primeira vez que eu tive gastrite, eu mesma me diagnostiquei, porque eu tomava muito café para ficar acordada e eu nunca tomei café, não faz parte da minha rotina tomar café todo dia, e eu tomava muito café para poder ficar acordada, e comecei a ter refluxo, azia, que eu nunca tive na vida, fazendo meu autodiagnostico, eu procurei um professor para tratar. Mas depois você vai se acostumando e depois que se forma você vê como a faculdade é moleza perto do que vem depois, minha conclusão é que a nossa capacidade humana de se adaptar e de produzir é muito maior do que o de fato a gente usa.
P/1 - No começo da faculdade teve alguma atividade ou alguma experiência que caiu a fixa de estar estudando medicina?
R - Acho que demorou um pouco, tiveram algumas situações traumatizantes, o primeiro impacto na medicina é a aula de anatomia, nessa aula cada um tem um cadáver, a gente dá o nome, é o seu cadáver de estimação, você vai dissecando ele e a sala era dentro de um laboratório muito fechado, com muito formol, eu lembro de passar mal de rinite, tendo tosse, tem toda uma fase de adaptação e eu me lembro que a coisa mais traumatizante na faculdade era a prova de anatomia, a gente chamava de gincana, ficava todo mundo preso dentro de uma salinha, cada cadáver ia ter uma veia, um músculo com uma linha amarrada, e a gente tinha que escrever qual era o nome daquela estrutura, e todo cadáver tem uma identificação, essa identificação fica no dedão do pé e na prova de anatomia tinham as estações, cada vez era um cadáver e uma coisa para você procurar, e era uma campainha, e você tinha 30 segundos para você identificar, apertava a campainha e você tinha que rodar, e ia rodando até acabar esse grupo, e você ficava escutando a campainha, e seu coração disparado, quando chegou a minha vez, eu entrei na sala, estava procurando, fui passando quando ouvia a campainha, tinha um que estava no cérebro, que era super difícil, e eu não sabia e pulei, e fiquei preocupada de ter deixado uma sem fazer, na outra tinha um negócio no dedão do pé, e eu coloquei hálux, e hálux é o nome do dedão, no dia da correção da prova o professor falou: “Eu só queria saber quem acha que a gente não sabe que vocês sabem o que é hálux”, e quase durante a faculdade inteira eu fui chamada de hálux. Mas cair a ficha que é medicina demora, porque você entra com o sonho de ser médico, de que você vai ajudar a salvar vidas, salvar as pessoas, e só que você se depara com um monte de desafios, linguagens técnicas que você não está acostumado, nem sempre você tem professores que estão felizes com o que estão fazendo, você vai tendo várias decepções, você se acostuma, e quando você se acostuma demora para cair qualquer ficha, a ficha vai caindo quando você vai para o internato, que são os dois últimos anos, que é quando você começa a ter contato com o paciente, enquanto você está na faculdade é difícil cair a ficha que o negócio é sério, você começa a ver a dificuldades mas você está sempre com alguém ali, com o professor, por mais que ele te cobre, no final das contas ele é que é responsável, quando você está se formando e já começa a ir atrás do CRM para fazer o seu carimbo, você ganha um carimbo e você percebe que dali para frente o que você carimbar, você é responsável, e hoje dando aula eu percebo que é difícil cair essa ficha do tamanho da responsabilidade de ser médico antes que a pessoa assuma a responsabilidade pelo que ela faz, como aluno é difícil acontecer.
P/1 - E com bastante respeito, a senhora lembra do nome que deu para o cadáver que você estudava?
R - Lembro, era Margarido, era um homem.
P/1 - E como ficava a comunicação com a sua família na época da faculdade?
R - Era por telefone, naquela época não tinha internet como tem hoje, eu não tinha computador, não tinha celular, eu ligava do orelhão, e depois de um tempo a gente colocou um telefone fixo na casa, porque naquela época telefone era uma coisa cara, tinha uma fila de espera, não era como é hoje, durante um bom tempo eu ligava através do orelhão.
P/1 - Isso na república.
R - Sim.
P/1 - Tinha um nome a república de vocês?
R - Não, as faculdades mais antigas, mais tradicionais tem as republicas mais tradicionais, que as pessoas vão entrando com um monte de gente, a medicina, pelo menos em Santos, a gente se reunia por afinidade, e no geral eram pequenos grupos, na minha republica nós moramos no máximo em quatro pessoas.
P/1 - Quem eram essas pessoas?
R - Eram colegas da mesma turma, tinha a Gisele, a Adriana, a Luciana e eu.
P/1 - E como vocês se dividiam em casa?
R - Cada uma tinha uma função, a comida cada um fazia a sua, uma delas era vegetariana, comia separado, as áreas comuns a gente dividia, ficavam duas em cada quarto, depois uma delas casou e nós ficamos em 3, e as áreas comuns a gente se dividia para arrumar.
P/1 - E ainda durante esse período de graduação, a senhora participou de alguma liga, experiência, estágio que tenha sido marcante por esse começo do contato com o paciente?
R - Tem as ligas, e tem o estágio também, que era diferente, eu fiz esse estágio eu estava no terceiro ano da medicina, eu fiz na USP, e para mim foi bem marcante, porque abriu o mundo da ciência, porque a medicina é uma ciência um pouco diferente, tem a parte da ciência, mas ela precisa ter muita aplicação, e o médico usa a ciência como um instrumento, como uma ferramenta, mas não como um fim, diferente de algumas outras ciências onde a finalidade é descobrir a verdade, a medicina é uma prática em que eu uso a ciência para atender uma necessidade humana, de bem estar, de saúde, e muitos professores em faculdades menores, como a faculdade de santos, não necessariamente é assim ainda hoje, está mudando ainda hoje, mas muitas vezes se prioriza a prática, a experiência, e naquela época, a faculdade de medicina da USP era um lugar top da ciência, para fazer o estágio na USP, que foi através de uma pessoa conhecida foi espetacular ficar em um laboratório, convivendo com pessoas que faziam ciência, tinham pesquisadores que não eram médicos, que estavam estudando, e abriu um mundo de questionamento, eu continuo achando que a medicina é uma ciência diferente, não pode ter um fim a si mesmo, de buscar simplesmente a verdade, até porque falam que a medicina é a ciência das verdades transitórias, o ovo faz mal, daqui a pouco o ovo faz bem, a verdade que a ciência busca, eu acho que não existe na medicina, porque o objeto em que se busca a verdade, que é o ser humano, está em constante mudança, e se ele está em constante mudança, essa verdade sempre vai ser imutável, ela sempre vai mudar, mas a ciência tem que tentar entender as necessidades daquele momento, tem dois opostos que eu vejo na medicina, ou uma supervalorização da ciência, se o trabalho científico disse isso, então é isso, ou uma supervalorização da experiência, que a experiência só por experiência pode reforçar vícios, reforçar práticas que muitas vezes não são mais adequadas, já se tem um conhecimento, o ideal é unir as duas coisas, e estar em uma faculdade que tinha uma coisa muito prática, e depois ver esse mundo de questionar por que? E se fizer de outra forma? Tem alguém que já fez? Já foi comparado? Isso abriu muito a minha cabeça, eu acredito que foi um ponto importante, embora aquilo que eu estudei, hoje eu não sei nada, mas abriu a minha cabeça em relação aos benefícios da ciência, e em relação ao quanto uma metodologia científica bem feita pode agregar na medicina.
P/1 - E o que a senhora tinha que fazer nesse estágio?
R - Eu só observava e ficava perguntando, estágio de graduação, se o aluno não atrapalhar, ele já faz muito, se ele não destruir, não matar nenhum animal já está ajudando bastante. Eu ficava perguntando, era um laboratório de sono, eram com camundongos, eu aprendiz como anestesiar um animal, como alimentar a planilha de Excel com os dados que eram observados, era uma parte mais técnica, e ficava perguntando.
P/1 - Mas em que momentos a senhora ia para USP?
R - Eu fiz esse estágio por um mês durante as minhas férias.
P/1 - E nas outras férias, qual era a programação?
R - Era ficar em casa e ir para praia, porque durante a medicina você tem férias nos primeiros 4 anos, depois você entra no internato, e lá você faz um rodízio quase ininterrupto, por direito você tem que ter 30 dias, mas a gente quebra por conta dos rodízios com a turma, para não ficar nenhum serviço, nenhuma área descoberta, não dá para fazer muita coisa, e nem sempre as duas férias vão bater com as férias da sua família.
P/1 - E como foi o fim da graduação?
R - Eu me graduei em 98. O fim da graduação tem um pouco de medo, porque você vai ser médico, e hoje já é absurdo o número de médicos que se formam no Brasil para o número de vagas que tem residência, naquela época já era difícil, quando você se formava, você tinha muito medo de não conseguir uma residência, então tinha uma nova tensão, só que diferente da época que você está entrando na faculdade, durante a faculdade é uma competição, você está competindo com um monte de gente, e se você não conseguir seus pais ainda estão ali, diferente de quando você se forma, você vai ter um CRM, e se você não passar em nenhuma residência, você vai ter que ficar dando plantão, e dar plantão foi a pior coisa do mundo para mim, eu queria fazer qualquer coisa que eu não tivesse que dar plantão na minha vida, porque eu gosto de falar, de escutar, e na emergência é aquela correria, todo mundo nervoso, todo mundo com pressa, e aquela realidade me fazia muito tal, então a minha lembrança da graduação tinha aquele momento da festa, que era super legal, você se formou, mas eu lembro muito do medo, eu tinha medo de não entrar em uma residência e ter que dar plantão, que é a realidade que sobra para quem não está na residência médica, porque você não vai mais depender dos seus pais, você já é adulto.
P/1 - Quais eram os planos da senhora depois do término da graduação?
R - Quando eu estava terminando, eu já estava namorando o meu atual marido, e meu plano era passar na residência e me casar, eu me casei enquanto estava me formando ainda, sem saber se ia entrar na residência, depois eu passei na residência, eu decidi fazer clínica, e eu queria fazer cardiologia, porque quando você se forma depois da graduação, você pode escolher 5 grandes áreas, pediatria, ginecologia e obstetria, ortopedia, cirurgia e clínica, e eu queria clinica porque eu queria essa visão do todo, e cardiologia é uma área que grande parte da população vai ter um problema cardiológico, é uma área muito grande da clínica médica, e eu fiz clínica médica pensando em fazer cardiologia, e durante a residência eu fiquei grávida do meu primeiro filhos, do Lucas, e durante a gravidez foi tranquilo, e eu tinha na minha cabeça que eu não podia usar minha gravidez como desculpa para fazer menos que os outros, porque todo mundo perguntava, e eu falava que eu ia conseguir, que gravidez não era doença, então eu dava jeito de procurar uma obstetra que marcava consulta de sábado, para ninguém perceber que eu tinha alguma dificuldade ou precisasse fazer alguma diferença porque eu estava grávida, e a minha gravidez foi tranquila, nunca tive nenhum problema, e quando o Lucas nasceu eu descobri o melhor sentimento do mundo, é um amor que você só conhece quando você vive, você passa a entender um pouco mais os seus pais, porque não existe sentimento semelhante no mundo, eu falo que a gente pensa que conhece o que é amor, mas o que você consegue sentir por um marido, namorado, pai, mãe é infinitamente nada comparado ao que você sente por um filho, e quando o Lucas nasceu eu conheci esse amor, que eu não sei nem como cabe, eu comecei a repensar fazer cardiologia, porque se fosse fazer cardiologia eu não ia querer dar plantão, para isso eu ia ter que fazer dois anos de uma coisa, depois mais dois anos, e residência médica é uma coisa puxada, como eu ia ter tempo para ficar com o Lucas? Eu desisti da cardiologia por causa dele, e eu agradeço ele até hoje, porque a especialidade não tem nada a ver comigo, a maior parte das nossas escolhas são românticas, sem a gente saber direito o que é, e eu não sabia direito, era uma ideia do que é a cardiologia, mas por causa dele, pensando em dar plantão, e não querendo ficar muito tempo para me especializar eu pensei em outra especialidade, eu queria pensar em uma que visse o todo, pensei em várias, mas em todas eu achava um motivo para não fazer, e eu pensei em imunologia, não tinha nenhum órgão, e eu ia poder ver tudo, porque o sistema imunológico está em tudo, no sistema nervoso, na pele, na parte respiratória, eu ia poder continuar vendo o todo, e assim eu escolhi isso, e é uma especialidade que você que você faz, vai trabalhar mais ambulatório, vai trabalhar mais o seu tempo, na minha ideia inicial, se eu quisesse trabalhar 3 horas por dia e ficar com o Lucas, tudo bem, e foi assim que eu escolhi.
P/1 - E como foi estudar e ser mãe ao mesmo tempo?
R - Aquilo que eu já tinha aprendido na faculdade, que você sempre faz menos do que você pode, e ser mãe te mostra ainda mais isso, naquela época, aquela frase que ser mãe é padecer no paraíso, e era um cansaço, porque o Lucas mamava o tempo inteiro dia e noite, eu não dormia praticamente nada, exausta, e ao mesmo tempo era a pessoa mais feliz do mundo, e só de olhar para ele, eu já sentia uma felicidade que transbordava, e para mim ser mãe era isso, padecer, sofrer e não querer estar em outro lugar, e depois quando eu engravidei de novo, e tive a Isabela, na minha segunda residência, e as pessoas já começavam a me perguntar se eu ia fazer outra residência, e quando eu fui fazer a primeira ultrassom, com o primeiro ultrassonografista que fez do Lucas, ele querendo explicar, porque colega médico então ele queria dar uma explicação melhor, e eu falava assim: “Só fala para mim que só tem um aí dentro, porque dois eu não sei como alguém sobrevive”, porque com o Lucas eu só fui dormir uma noite inteira com um ano e meio, até lá eu não soube o que era dormir mais do que 40 minutos, 50 minutos, e do Lucas eu queria pegar uns plantões para poder descansar, porque no plantão você pode dormir duas horas e eu podia descansar, mas quando a Isabela nasceu, com um mês e meio ela já dormia a noite inteira, e eu que ia acordar ela, ainda bem que os filhos são diferentes, mas o Lucas me traumatizou um pouco em relação a isso de ser mãe e de conciliar, ainda bem que eu nunca tive tontura de ler no ônibus, no carro, então em qualquer lugar eu estava lendo, ia no supermercado lendo, estudando, mas foi bem puxado, bem cansativo.
P/1 - E nessa época vocês moravam onde?
R - Eu morava na Vila Mariana, eu fiz a minha residência médica em São Paulo, e o hospital que eu fiz clínica médica era o Hospital Ipiranga, e os plantões eram bem puxados, porque era um bairro antigo, uma população idosa, então eu atendia muito paciente com AVC, com derrame, com infarto, foi bem cansativo.
P/1 - E os primeiros pacientes que a senhora atendeu, já nessa área de imunoalergia?
R - Primeiro eu fiz dois anos de clínica médica, e quando eu decidi que ia fazer imunologia eu prestei concurso, fiz a prova de residência e entrei na USP, que era o meu sonho desde o estágio lá, no Hospital das Clinicas de São Paulo, e realmente é um hospital que tem uma formação muito boa, e um serviço muito organizado, porque eu vinha de uma residência com pessoas muito boas, mas em um hospital com estrutura do serviço de saúde brasileiro, de hospital público, que você precisa aprender com a sua criatividade, ter que tratar o paciente que não tem o remédio que precisa usar, como você substitui, como você quebra o galho, e fui para uma outra realidade, em um hospital que tem uma farmácia que disponibiliza medicações para os pacientes, os pacientes retornam, e tem uma função didática, porque você vê o resultado daquilo que você aprendeu, ele volta, e está melhor, e quando ele não está melhor você sabe que ele não está melhor porque talvez aquela estratégia que você usou não é a melhor, então você troca, e foi uma experiência que reforçou como é importante a gente ter uma infra estruturar para garantir qualidade, porque não adiante você ter médicos de qualidade se você não tem uma infra estruturar geral que possa atender as necessidades da sua população, do objeto da sua profissão.
P/1 - E como é esse paciente que vem a procura do profissional, do médico que é especialista nessa área?
R - A grande parte das doenças alérgicas são crônicas, então a gente tem que lidar com problemas que são crônicos, poucos problemas são agudos, existem algumas alergias que você identifica a causa, a causa é fácil de afastar, acabou o problema, mas não são essas pessoas que fazem acompanhamento com um profissional especialista, em geral são as doenças crônicas, com todas as dificuldades de uma doença crônica, e com um agravante, que se tratando de doença alérgica crônica, há uma dificuldade de as pessoas entenderem que não é porque eu vou fazer um exame e descobrir uma causa e afastar que a pessoa vai curar, embora sejam doenças alérgicas, são doenças multifatoriais, e que exigem cuidados em várias áreas, e o controle disso é para garantir um bem estar, uma qualidade de vida para os seu dia a dia, e que não necessariamente vai ter uma formula mágica, um exame mágico que vai descobria a causa e a pessoa vai ficar super bem, isso só existe na fantasia dos pacientes, das famílias, as vezes até dos médicos que encaminham para os alergistas, essa falsa percepção de que alergia é um problema que você vai descobrir uma causa e vai ficar tudo bem é responsável por uma frustração muito grande dos pacientes em relação aos seus tratamentos, e também há uma busca incessante por um especialista que dê aquela resposta transformadora para a doença, e dizem que o paciente da área de alergia primeiro vai no psiquiatra antes de ir na alergia, porque são doenças que tem um componente de stress, de ansiedade muito grande, algumas doenças tem um impacto tão grande na qualidade de vida quanto doenças crônicas como insuficiência cardíaca, diabetes.
P/1 - Não sei se a senhora pode compartilhar com a gente algum caso desses que são muito sérios e que impactam completamente a vida dos pacientes, e ao mesmo tempo como é para a senhora fazer esse diagnóstico e esse acompanhamento.
R - Nas doenças alérgicas crônicas, o primeiro passo é tentar classificar essa doença, tem doença que você dá o nome da doença, e pela doença existe o tratamento, em doença alérgica as doenças tem o seu nome, mas elas são muito diferentes em pessoas diferentes, então o primeiro passo é entender, a Carol tem uma doença alérgica crônica, mas quais são os fatores que pioram a doença nela? Por exemplo, a asma, ou a dermatite atópica, qual a gravidade da alergia? Existem diferenças de gravidade, uma doença leve pode ficar grave? Eu posso tirar o paciente de uma situação grave e trazer para uma situação mais leve? Como fazer isso? Eu já tive pacientes com dermatite atópica, que é uma doença que quando está grave impede a pessoa de dormir, porque ela se coça o tempo inteiro, tem um componente psicológico por causa da sua auto estima, tem muitos pacientes que tem depressão, o contato com a pele pode causar dor, o contato com a água pode causar dor, então eu já tive paciente que veio a um mês sem tomar banho, e imagina uma pessoa um mês sem tomar banho, o cheiro fica horrível, aquela pele infecta, o cheiro pior ainda, e dói, coça, e aumenta o estigma, porque quem vai querer ficar perto de uma pessoa que tem a sua pele visivelmente destruída, cheirando mal? Das doenças alérgicas, eu considero a mais difícil de se tratar, porque tem impacto em todas as áreas da vida, ela impede a pessoa de dormir, e eu lembro no plantão, se você fica um dia sem dormir, seu humor não está a mesma coisa, e você tem uma doença crônica e que não te deixa dormir, você não dorme uma noite, uma semana, um mês, 6 meses sem dormir, isso tem impacto muito grande em como a pessoa vive, até no seu estado imunológico, porque durante o sono é quando a gente recupera o equilíbrio do nosso sistema imune, é uma doença bem difícil de tratar. Existem outras doenças também, a alergia alimentar é um problema que vem aumentando muito nos tempos modernos, os pacientes com alergia alimentar tem que tirar a proteína do alimento que causa alergia, e dependendo do alimento, isso tem um impacto na sua vida diária, na sua vida social, uma pessoa que faz restrição de leite ou ovo não consegue ir em uma festa comer, ela não consegue ir em um restaurante comer, mas ele come arroz e feijão, mas se colocarem um tempero pronto no feijão, pode ter leite, são alergias que tem um impacto que vão além daquilo que a gente enxerga, são doenças desafiadoras.
P/1 - É quase um trabalho de detetive.
R - Sim, existem as pistas, tem até uma piada dos médicos, mas não vou contar aqui, uma porque eu não sou uma boa contadora de piadas, eu sou péssima, mas fala dos estereótipos dos médicos, e o estereótipos do alergista é aquele que só está interessado em encontrar a causa, é o perfil do detetive mesmo, e isso é verdade mesmo, o alergista tem um certo prazer de correr atrás, e a gente segue pistas, são pistas clinicas que a gente faz, ouvindo o paciente, grande parte das pistas vem da conversa, por isso que a consulta com o alergista, não pode ser um médico que não gosta de ouvir, tem que ter paciência, o ortopedista é um médico mais prático, o cirurgião, tem que ser mais rápido, sem enrolação, e o alergista tem que gostar de ouvir, o que a pessoa comeu de café da manhã, se fez esporte, como estava o dia, eu preciso buscar pistas, e os exames são limitados, eles não dão o diagnóstico, se eu não tiver as pistas clinicas, os exames me levam para caminhos que não necessariamente me levam a resposta que eu quero.
P/1 - E falando um pouco dessas pistas, dessas perguntas que te levam a essas pistas, o que é importante de perguntar, ou como buscar essas pistar em um paciente, principalmente que tem dermatite atópica?
R - Eu falo que a dermatite atópica, o controle dela se baseia em quatro pilares que tem uma coluna e sustentação, ter dermatite atópica é para quem pode, não para quem quer, não é uma doença que depende só da alergia, a pele tem que ser uma pele que permita que a doença se instalar ali, um pilar é a restauração da barreira cutânea, é conversar como o paciente cuida da sua pele, primeiro ouvir, como é o banho dele, como ele aplica o hidratante, quanto tempo ele demora, ouvir o que ele faz, para depois intervir, porque se eu só falar não vai dar certo, o pilar dois é como ele age quando a pele começa a ficar inflamada, ficar vermelha, e como eu controlo isso, o que ele faz quando a pele está coçando, quando a gente tem uma coceira é quase insuportável não coçar, e o que os pacientes mais falam que eles odeiam é ouvir para eles pararem de coçar, e ele coça sem nem mesmo perceber, e quando eu falo para ele parar de coçar é que ele coça, não porque ele quer me contradizer, mas porque eu lembro ele que ele está com coceira, e eu trago aquela coceira que está no subconsciente para o consciente, então como eu controlo a coceira é o terceiro pilar, e o outro pilar, que é onde a gente busca as pistas, é quais são os fatores que pioram ou agravam a doença, é primeiro ouvir o que o paciente tem de percepção, você acha que quando você come alguma coisa você piora, ou quando você está suado, que clima é melhor para você, clima frio ou clima quente, o tipo de roupa que você usa, o tipo de sabonete, quais os fatores que pioram ou melhoram a sua doença, e colhendo essas pistas eu posso fazer alguns exames para checar, e ir atrás das pistas, e tem algumas coisas que são mais comuns, que esse é o quarto pilar. Esses quatro pilares não se sustentam se não tiver a coluna que sustenta os quatro, que é a educação sobre a doença, uma parte importantíssima para dermatite atópica, eu falo para os pacientes que eles tem que ser doutores em dermatite atópica, e que doença da Carol, quem mais vai conhecer é ela, e isso tem que ser assim, o tratamento vai dar certo quando o paciente entender como ele faz para melhorar o máximo possível esses pilares, e no final, para gente conseguir o controle, o paciente tem que estar sabendo mais do que eu sobre a própria dermatite, e esse é o objetivo, eu vou ser só um instrumento para levá-lo a sustentar esses quatro pilares que conseguem promover o controle da doença, e uma vez que isso é feito, a maior parte das dermatite atópica vão ficar bem controladas, existem algumas formas mais graves que aquele componente, aquele pilar inflamatório e a característica da pele tornam a doença um pouco mais incontrolável, aí que entram novos tratamentos, aí que entra a medicina com terapias mais especificas para alguns desses pilares.
P/1 - Falando um pouco sobre esse paciente que não tomava banho a um mês, ou pacientes que tem problemas para dormir por conta da coceira. Quando eles chegam para a consulta, a senhora tem algum tipo de estratégia para lidar com eles, o que é importante para a consulta?
R - O que é importante no primeiro contato, dermatite atópica é a doença de pele mais comum que existe, sendo muito comum, não existe um médico que não conhece dermatite atópica e que não saiba esses quatro pilares que eu citei, e nem por isso as doenças estão controladas, então uma coisa que eu percebo quando eu pego um paciente grave, eu preciso ter humildade de saber que ele já sabe a maior parte das coisas que eu vou falar, e mesmo assim eu vou falar, então eu começo a consulta explicando para o paciente que ele não pode desistir, essa não é uma opção para ele, e que desistir é o único caminho que ele tem para conseguir um controle, e chegar próximo do que ele deseja, que é ter uma pele que ele consiga dormir, e que as pessoas não fiquem o tempo inteiro perguntando se ele já foi ver isso, e para ele conseguir isso, eu preciso ouvir de novo o que ele já fez, e mesmo que ele já tenha ouvido que tem que tomar banho e passar hidratante em seguida, que talvez o hidratante que ele usou talvez não tenha sido o mais adequado para a pele dele, que vai existir um, e que a gente precisa tentar fazer o conjunto, as vezes fazer uma coisa isolada não dá certo, a gente vai ter que ter uma intervenção em conjunto de vários aspectos para juntar, eu acho que o desafio é encorajar o paciente a não desistir, e falar de uma forma diferente, tentando encontrar um caminho que consiga levar ao controle, falando as mesmas coisas que ele já ouviu, só que de forma diferente, e tentando conseguir um conjunto que leve ao melhor resultado.
P/1 - Eu queria que a senhora contasse algum caso de algum paciente com dermatite, o que foi mais difícil na trajetória desse acompanhamento, se a senhora tiver alguma história para contar.
R - Tem várias histórias, tem histórias boas, histórias tristes. Eu vou contar duas, uma é de um paciente que estava internado, ele era adolescente, ele continua adolescente, mas agora vai ser pai, ele tinha 14 anos na época, e vivia internado, não estava mais na escola, porque ele tinha um quadro que acometia o corpo todo, e infectava, porque a nossa pele é o nosso muro de defesa, e é o nosso órgão de sentindo com o qual a gente se comunica com o mundo, em todos os sentidos, alguns falam que a pele é o nosso espelho da alma, então esse muro que está destruído deixa entrar um monte de inimigos, e alguns dos inimigos são as infecções, e esse paciente tinha infecção de forma recorrente, e vivia internado, e até que em uma internação eles resolveram chamar a equipe da imunologia para acompanhar, nós avaliamos, orientamos o tratamento da crise aguda, e ele melhorou, e olhando o histórico dele, ele já era um paciente que tinha um histórico internado, usando antibióticos, usando as medicações, as pomadas, melhorava, mas 15 dias depois ele piorava de novo e ficava internado de novo, a gente propôs para mãe de usar um imunossupressor, que poderia ter efeitos colaterais, mas que a gente via como um caminho que podia melhorar a vida dele, e a gente estava crente que a mãe ia aceitar, mas ela ficou com muito medo e se recusou a usar, e a gente sofrendo, tentando toda forma de convencimento, e ela não quis, e a gente não pode, porque ele era um menor de idade, eu sei que ele teve alta, melhorou, mas ele voltou a gente encaminhou ele para o ambulatório, e ele voltou em uma consulta, e a mãe pediu para entrar primeiro na consulta, e ela pediu para usar o imunossupressor, e a gente achou estranho, e ela tinha descoberto uma cartinha dele se ele internasse de novo, era uma carta para Deus, e que se ele internasse de novo ele estava pedindo para que Deus levasse ele, porque não valia a pena viver daquele jeito, e a mãe ficou com medo, a gente encaminhou para a psiquiatria, porque ele realmente estava com depressão, e a gente entrou com o imunossupressor, e ele melhorou muito, ficou super feliz, e mais para o futuro a gente teve que suspender porque ele teve uma complicação pelo imunossupressor, mas nessa época ele já estava melhor, conheceu uma menina, namorou, e ele está super bem agora, e está feliz porque vai ser pai, não sei se a mãe dele está feliz, eu tive uma conversa com meu filho quando cheguei em casa, ele tem 17 anos e vai ser pai, e ele melhorou muito, eu acho que essas histórias das formas graves servem para mostrar que a gente precisa se ajustar a intensidade do remédio, a intensidade da doença, muitas vezes o medo do desconhecido, o medo do risco, o medo de se arriscar impede que a gente conquiste benefícios, que após conquistados, nem sempre vão nos colocar diante daquilo que a gente tinha medo, apenas vai nos deixar preparado, porque eu sei que existe um risco, como estava, sabíamos que poderia ter um efeito colateral, estávamos monitorando esse efeito colateral, identificamos que o risco estava se concretizando, suspendemos, e o paciente ficou bem, e essa é uma dificuldade na dermatite atópica grave, é uma resistência muito grande a dar um passo além, a doença não está controlada, está ruim, está comprometendo a vida da pessoa, e não se busca, não se tenta algo além, e a maioria das vezes não é por desconhecimento, é por medo, ou por achar que é assim mesmo, ou por uma aceitação de uma situação que é inaceitável, que é a forma grave, a forma que impede de usar uma roupa, tem paciente que não consegue tomar banho, e quando estão em casa ficam sem roupa, só enrolado em um lençol.
P/1 - E por mais que você fale que todos os médicos saibam de dermatite atópica, a gente acabou gravando muitas histórias de pacientes que falaram que demorou dez anos para ter um diagnóstico, cinco anos.
R - Nossa, acho que eu não vou saber falar.
P/1 - Não, só se a senhora tiver alguma história do diagnóstico mesmo, que talvez tenha causado um alivio pela pessoa saber o que é, ou não.
R - Eu não tenho essa percepção de que é uma doença que demora muito o diagnóstico, o que eu acho que demora muito é um esclarecimento por parte do médico, porque a medicina ainda tem uma coisa assim, o médico detentor do saber orienta só o que o paciente tem que fazer, essa tendência tem mudado, o que eu percebo nos pacientes que eu acompanho com dermatite atópica grave é mais um alivio, esses pacientes a maior parte deles estão dentro de um serviço acadêmico lá na USP, na UNICAMP, que são os que eu acompanho, quando eles chegam em um serviço assim, eles recebem toda uma atenção, que é a coluna que sustenta os 4 pilares sobre a doença, o que eu vejo muito nítido é um relaxamento e um conforto por entender o que acontece com eles, não que eles não sabiam o nome, mas eles não sabiam o que era a dermatite atópica, eu não vejo que a dificuldade é fazer o diagnóstico, mas aprender o que é a doença.
P/1 - E nesse sentido da educação, trazendo um pouco desse lado de professora, a senhora tem alguma estratégia com pacientes, ou mãe de pacientes, principalmente na sua atuação na USP?
R - Sim, a gente tem um programa, que eu sou super orgulhosa de falar, eu fiz até o logo, eu entrei agora nesse mundo digital, tem um aplicativo que você faz, porque a gente não tem dinheiro lá, a gente tem que ser criativo e tentar aprender as coisas, eu baixei um aplicativo de fazer logos, e ele ficou lindo, ele tem uma gotinha, porque na dermatite atópica falta água na pele, e o fato de ter a pele seca, água é um dos principais fatores de controle de PH, se a gente lembrar da química, e quando falta água o PH sobe, quando sobe tem uma enzima que fica doida para trabalhar, e ela quebra a pele, então a pele descama muito, e aquele muro fica super destruído, e aquele barreira que já é doente fica mais aberta para a entrada de um monte de coisas, então é muito importante hidratar, então o logo do nosso programa que chama CEDA, porque a gente quer transformar a pele dos pacientes em uma seda, só que é com C, que é Cuidado e Educação em Dermatite Atópica, é um programa multidisciplinar, que tem a participação da enfermagem em relação aos cuidados com a pele, desde manter a unha curta, como tem que ser o banho, temperatura da água, sequência de aplicação das pomadas, quantidades de aplicar, tudo isso é muito importante, então o cuidado da enfermagem, a orientação médica, tem alguns temas que a gente aborda para desmistificar algumas coisas, ou orientar sobre algumas coisas, ouvir e tirar as dúvidas, tem a parte da psicologia, assistente social e nutricionista, essas são as áreas que atuam de forma interdisciplinar.
P/1 - E por que um projeto para lidar especificamente com essa doença?
R - Porque a doença mais difícil que existe em alergia, e essa parte da educação faz muita diferença nessa doença, é o grande diferencial, em outras doenças alérgicas, na asma, é importante também com relação a como usa os dispositivos para inalar, toda doença crônica é importante a educação, mas a dermatite atópica tem algumas questões práticas que não é só de conhecimento, porque em outras doenças, se você tem o material de apoio, hoje em dia com a internet, com os grupos, com as mídias, você consegue levar essa educação através de informação, na dermatite atópica tem o diferencial de ter várias coisas práticas, que tem que colocar a mão, qual a temperatura da água, o que é uma água morna, a gente faz isso, primeiro a gente coloca a água quente, a maioria acha que está morna, então o que é uma água morna? Como eu traduzo isso em um texto? É o nosso tato, quanto de pomada, tem muitas orientações práticas.
P/1 - E os resultados desses encontros? A senhora consegue ver na prática?
R - Eu não sei quem está aprendendo mais, se são eles ou se sou eu. Nesse programa agora, a gente tem uma aluna, uma médica pós-graduanda que tem interesse em avaliar e tentar validar essa intervenção multidisciplinar fora do Brasil, tem bastante estudo mostrando que isso tem um impacto grande no controle das doenças, e os consenso internacionais apontam, mostram e reforçam a importância de ter algum tipo de programa de educação, seja através de programas multidisciplinares, vídeos, aulas, algum tipo de orientação e cuidado em relação a educação, isso é unânime em todos os consenso, e a gente está tendo uma experiência bem legal, e desafiadora também, porque o CEDA, nós fazemos reuniões mensais, dentro de uma salinha de aula, a gente tem uma mesa onde a gente coloca os materiais, mas tem uma parte de apresentação, porque tem alguns pacientes que já fazem parte do programa, e tem pacientes novos que chegam, e a gente começa com todo mundo se apresentando, a gente se apresentando, e eles se apresentando, e nesse momento de apresentação, eles ficam livres para falarem o que eles quiserem, se eles quiserem contar alguma experiência boa que eles tiveram, ou alguma experiência ruim, ou alguma dúvida, e algumas vezes a gente tem situações que a gente não sabe o que fazer, em uma das sessões, a gente teve o caso de uma mãe que conta, a filha não estava junta no momento, mas ela conta isso aos prantos, na frente de todo mundo, e nesse dia eu saí correndo atrás de uma psicóloga, a gente não tinha ainda, porque ela contou que ela não sabe o que ela faz, porque a filha grita com ela, dizendo que ela não ama a filha porque se ela amasse, ela tirava a vida da filha, e o que a gente faz? Então tem muitos desafios quando a gente abre para uma parte de interação que foge daquela coisa da prescrição médica, tem coisa que a gente não aprende na faculdade.
P/1 - E para encerrar essa parte de dermatite, queria que a senhora fizesse um comentário sobre qual a avaliação que você tem desse projeto que a gente tem feito com base na história oral de portadores de dermatite atópica, mães, profissionais que atuam com dermatite atópica, qual a avaliação da senhora sobre esse projeto?
R - Eu achei esse projeto lindo, primeiro eu já gostei do Museu da Pessoa, eu gostei do nome, mas outra questão, o projeto me atraiu, e quando não sei quem foi que me escreveu para falar, não sei se a pessoa ligou ou mandou mensagem, mas falou que ia mandar um e-mail, quando a pessoa me explicou eu já aceitei, não precisa nem me mandar e-mail, eu já comprei a ideia, pode me colocar, eu quero estar, porque mostrar a dermatite atópica, que não é uma doença que é só uma doencinha de pele, que tem uma pessoa, que esse problema de pele está impactando toda a vida dela, e é uma doença que literalmente vem de dentro para fora, e afeta o que está fora, e afetando isso de uma forma tão gritante, leva essa pessoa em um ciclo vicioso, que as pessoas passam a olhar só aquela pele, e ter um projeto que mostre a pessoa, que dê a oportunidade de mostrar que é uma doença que afeta pessoas de uma forma muito diferente, que vai além daquilo que nós vemos ali naquela pele, isso que me comprou no projeto, eu achei bem legal.
P/1 - Eu queria saber como a senhora conheceu seu esposo.
R - Falta isso. Meu marido é um cientista, ele trabalha com biomatemática, eu estou casada com ele a 20 anos, e até hoje eu não sei explicar direito o que é isso que ele faz, é algo bem difícil, ele é bem inteligente, e eu sou cristã, e ele também, e a gente participava de um grupo na igreja e se conheceu lá, e o que me chamou a atenção nele é que ele é uma pessoa diferente, é muito inteligente, o que me encanta inicialmente é a capacidade de as pessoas ouvirem, hoje o mundo é um mundo que as pessoas querem falar o tempo inteiro, eu gosto de falar, e as pessoas querem muito falar, e poucas pessoas param para escutar de verdade, e ele tem uma capacidade de escutar muito grande, então dava certo, porque ele não tinha tanta necessidade de falar, então ele me escutava, e quando ele falava, o pouco que ele falava e que ele fala, porque eu sou uma pessoa extrovertida, e ele é o máximo do introvertido, para ele é fisicamente cansativo sair e conhecer uma pessoa nova, e em uma festa de fim de ano do trabalho, onde tem pessoas novas que ele vai ter que conversar, ele chega exausto, e eu chego feliz de vida, e ele me escutava, e quando ele falava, ele falava coisas diferente, e é uma pessoa muito inteligente, e foi que eu comecei a olhar para ele.
P/1 - Qual o nome dele?
R - Ryan, ele é coreano.
P/1 - O que ele veio fazer no Brasil?
R - Os pais dele vieram no pós-guerra da Coreia, vieram de navio, passaram fome, e a cidade coreana é uma cidade mais ainda voltada para o estudo e trabalho, e vieram para cá.
P/1 - E como foi apresentar o Ryan para o seus pais?
R - Meus pais já conheciam ele antes de a gente namorar, e ele era muito inteligente, ele fez física na USP, tinha passado no ICA, então meus pais achavam ele o máximo, foi tranquilo, o difícil foi ele me apresentar para a minha sogra, porque a sociedade coreana é muito fechada, então o sonho da minha sogra era que ele casasse com uma coreana, porque eles têm essa coisa de manter, foi difícil.
P/1 - E na casa de vocês, vocês têm algum costume que ele trouxe da família?
R - Tem, que é não entrar de sapato dentro de casa, ninguém usa sapato dentro de casa, todo mundo chega e tem que tirar o sapato.
P/1 - E em relação a comida ou festas?
R - Não, as comidas brasileiras são as melhores do mundo, então a comida é brasileira, tem algumas comidas coreanas bem legais, o churrasco coreano chama bulgogi, é um dos meus pratos favoritos, e eu sei fazer, mas não é no dia a dia, porque a carne tem que cortar tipo um carpaccio, é mais difícil de fazer, mas em relação ao sabor, é algo espetacular, mas a comida do dia a dia é comida brasileira.
P/1 - Eu queria que a senhora falasse um pouco sobre a sua rotina hoje, como ela é.
R - É tem puxada, mas bem feliz. Eu trabalho de segunda à sexta-feira, de sábado e domingo eu tento reservar para a minha família, as vezes eu tenho algumas atividades de ensino no final de semana, mas são exceção, não são a regra, a minha rotina mesmo é trabalhar de segunda à sexta, eu atuo como professora no Hospital das Clinicas em São Paulo, na USP e na UNICAMP, nas duas disciplinas de imunológica e alergia, essa é a minha atuação como professora na área de ensino e de pesquisa, nessas duas universidades, a minha atividade assistencial, de atender pacientes, mais diretamente é no consultório, eu trabalho lá três vezes por semana, dois dias inteiros no Hospital das Clinicas, e na UNICAMP eu trabalho meio período três vezes por semana, e os períodos que sobram eu faço consultório, eu montei uma mini academia na minha casa para poder fazer atividade física, que é usada, é pequena, mas tem tudo lá, para alongar, para fazer musculação, correr, e eu faço atividade física umas cinco vezes por semana.
P/1 - Eu tenho mais três perguntas, mas antes queria saber se a senhora queria contar alguma pergunta que eu não estimulei.
R - Nossa, acho que eu contei demais.
P/1 - A primeira, se a senhora se sentir confortável para contar, sobre como foi perder o seu pai esse ano.
R - Meu pai tinha um aneurisma, mais ou menos dez anos atrás a gente descobriu que ele tinha um aneurisma de aorta, ele é hipertenso, e dependendo do tamanho do aneurisma o tratamento é conservador, então só se acompanha, controla a pressão, e dependendo do tamanho, a melhor opção é fazer cirurgia, na época em que se descobriu esse aneurisma, meu pai foi a alguns profissionais, para decidir se ia ser um tratamento conservador ou cirúrgico, e a opinião dos especialistas era que o tratamento seria cirúrgico, só que meu pai dizia que ele não queria fazer cirurgia, e eu tentando insistir, que a opinião do médicos era melhor fazer a cirurgia, embora fazer cirurgia grande, com risco, só que ele falou que tinha certeza que se ele fosse fazer a cirurgia ele ia morrer na mesa, e diante disso eu não tive coragem de insistir mais, porque eu não queria carregar esse peso, e ele viveu durante esses dez anos com essa bomba relógio no peito, e viveu muito bem, feliz, como ele sabia disso, parece que ele ganhou um novo sentido, passou a encarar o dia a dia de uma forma diferente, e foram dez anos que ele viveu muito intensamente, viajando, fazendo o que ele gosta, sem se preocupar muito com nada, e esse ano, no dia 24 de abril, me ligaram, meus pais tinham se separado, e ele tinha se casado novamente com uma pessoa que fez muito bem a ele, minha mãe também casou novamente, e a esposa do meu pai me ligou, e falou que meu pai tinha passado mal na praia, ele estava em Ilha Comprida, só essa notícia, e eu falei que estava indo para lá, perguntei onde ele estava, se ele estava no hospital, que hospital que ele estava, e como eu já sabia do aneurisma, toda vez que ele passava mal a gente achava que o aneurisma tinha rompido, e ele já tinha tido alguns sustos assim que o aneurisma não tinha rompido, e dessa vez ela disse que ele desmaiou, e eu achei que tinha rompido, e em Ilha Comprida com certeza não tem nenhum lugar para cuidar disso, e já comecei a acionar transporte, para fazer transporte, UTI aéreo, entrou em contato com o convênio, tudo isso muito rápido, só que 15 minutos depois já recebi a ligação falando que ele tinha falecido, e claro que a perda de uma pessoa próxima, para uma pessoa estar viva é uma quantidade de energia tão grande, e a gente troca essas energias, e quando uma vida que está conectada com você se vai, é como se o seu chão, é uma coisa estranha, ele foi e eu estou viva, e agora? É uma sensação de um adormecimento muito estranho, mas ao mesmo tempo eu tive paz, meu pai falava que o que mais assustava ele, é que a principal complicação que os médicos falavam era de durante a cirurgia faltar oxigenação e ele ter alguma complicação, e ele ter algum déficit e ficar acamado, ele falava que a única coisa que ele pedia a Deus era para que quando ele morresse, não dar trabalho para ninguém, e ele morreu do jeito que ele queria, de estar acordado, e no próximo minuto não estar mais aqui, e isso me trouxe paz, e depois esse estado de dormência vai passando, e você vai vivendo, e hoje eu consigo falar, não foi sempre assim, mas eu consigo falar, tendo as lembranças boas, e porque é uma certeza que a hora de todo mundo um dia vai chegar, e eu acho que dentro do possível eu estava preparada, eu tive dez anos para me preparar.
P/1 - Como foi receber essa decisão de que seus pais iam se separar?
R - Meus pais brigavam muito, eles construíram coisas boas juntos, mas eles não eram compatíveis, assim que eu comecei a me entender quando era pré-adolescente, eu lembro de perguntar para minha mãe porque eles não se separavam, e a minha mãe e meu pai tiveram uma formação de que o casamento é até a morte, então embora eles tivessem essa percepção de que não estava bom, eles não conseguia romper com essa coisa de que o casamento é até a morte, mas a separação deles era uma coisa desejada por mim e pelos meus irmãos, a gente achava que ia ser melhor para os dois e melhor para nós, porque a gente vivia no dia a dia vendo eles brigarem por qualquer coisa, e os dois encontraram a pessoa perfeita para eles depois, mas no momento, todo rompimento é cheio de traumas, ele é cheio de dificuldade, então teve os traumas, mas depois no final, a lembrança que fica é que foi bom para os dois.
P/1 - Como foi para a senhora contar a sua história para nós?
R - Foi diferente do que eu imaginava que seria, foi uma experiência boa, foi um desafio lembrar de coisas que eu não lembrava, refletir de forma mais imediata de coisas que eu não lembrava, e foi legal, foi diferente, um diferente bom.
P/1 - E para encerrar, quais são seus sonhos?
R - Eu tenho muitos, meu sonho é o mesmo de quando eu decidi o que eu vou ser quando crescer, que é mudar o mundo, e o mundo não precisa ser o universo, mas o mundo a minha volta, o mundo que eu consigo influenciar, eu acho que o meu sonho é esse, é um sonho que eu sempre tive, e que eu vivo para realizar, os sonhos são feitos de pequena metas, de pequenos objetivos diários que a gente coloca, é isso que eu tenho para fazer, seja quando eu estou com um paciente, atendendo, eu quero mudar aquela realidade, eu valorizo muito a nossa ação na história, hoje eu estou fazendo uma história com você, quando eu estou atendendo uma pessoa, eu estou tendo uma oportunidade do destino de fazer parte de uma história e quando eu estou ensinando, e com os médicos que hoje eu ensino, ou com os residentes, eu estou fazendo parte da história deles, e as histórias, a história do hoje, o hoje sempre tem problemas, não existe perfeição, então quando eu falo que eu quero mudar o mundo, eu estou chegando em uma história que está imperfeita, tem coisas que precisam ser melhoradas, e eu quero conseguir contribuir para a mudança dessa história, para uma direção que seja boa, ou na vida de um paciente, ou de um médico, ou de um aluno, e também dentro da minha vida pessoa, dos meus filhos, do meu marido, da minha mãe e dos meus irmãos, é isso.
P/1 - Em nome do museu da pessoa, muito obrigada por receber a gente aqui hoje, e por ter dado esse presente tão lindo que é a sua história.
R - Foi um prazer, obrigada.
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