Projeto Medley
Depoimento de Eliani Barros Prado
Entrevistada por
Local
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Camila Inês Schmitt Rossi
Código: PCSH_HV981
Revisado por: Natália Pinto Costa
Título: As múltiplas faces de Eliani.
Biografia:
Eliani Barros Prados, paulistana, editora, comun...Continuar leitura
Projeto Medley
Depoimento de Eliani Barros Prado
Entrevistada por
Local
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Camila Inês Schmitt Rossi
Código: PCSH_HV981
Revisado por: Natália Pinto Costa
Título: As múltiplas faces de Eliani.
Biografia:
Eliani Barros Prados, paulistana, editora, comunicadora, mãe, namorada, ex- esposa, filha. Trabalhou por 30 anos na Editora Abril, depois virou empreendedora e conta como foi toda essa trajetória, inclusive, como é viver sendo portadora de Esclerose Múltipla.
Sinopse:
Nesta história Eliane narra como foi crescer em São Paulo, da sua paixão pela comida, como foi escolher a graduação e o começo da sua trajetória pessoal e profissional no mercado editorial. Como foi ser mãe solo, o casamento, o namoro e os reencontros da sua vida. Além de pontuar como é ser portadora de esclerose múltipla e os cuidados na pandemia.
Palavras chaves:
editora abril, comunicação, viagens, doenças, descoberta, reinvenção, sexualidade, relacionamentos, reencontros, pandemia.
[00:00:01]
P/1 – Eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
[00:00:07]
R – Eliani Barros Prado, nasci em 31 de março de 1962, em São Paulo, capital.
[00:00:18]
P/1 – E quais são os nomes dos seus pais?
[00:00:19]
R – Então, começam as histórias. Anibal Leite do Prado e Elisa Teresa de Barros Prado. O que explica o meu eli-ani, ‘eli’ de Elisa e ‘ani’ de Anibal. E isso, ainda bem que deu mais ou menos certo, mas isso foi por causa... eles adoram cinema de revista e tinha a cantora Eliana, e aí eles disseram “o dia que a gente tiver uma filha vai chamar Eliana”, e aí descobriram a Eliani e eu explico essa história há 58 anos, né! [risos].
[00:01:00]
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
[00:01:02]
R – Sei sim, numa festa junina, chamava Festa do Capitão, em Guararema, uma cidadezinha aqui a setenta quilômetros de São Paulo, e ela tinha treze anos e ele tinha dezessete. Então hoje em dia a gente fala que “olha que danado, porque ele pegava uma menor”, né [risos]. E namoraram nove anos, segundo a minha mãe ‘namoro de antigamente’, e aí eles se casaram e o único homem dela a vida inteira foi o meu pai. Uau, né.
[00:01:44]
P/1 – E você tem irmãos?
[00:01:45]
R – Eu tenho uma irmã e eu teria um irmão, que faleceu bebezinho, que era o Fábio, e a minha irmã é a Cláudia, que tem 55 anos, três anos mais nova.
[00:02:02]
P/1 – E como é a sua relação com os seus pais e com a sua irmã?
[00:02:04]
R - Nossa, eu diria que é uma relação de família. Brigamos muito, nos amamos muito. Na hora do aperto todo mundo tá por perto, se junta, a gente tem uma segurança emocional incrível. Nenhuma relação é linda de propaganda de margarina, mas é muito real, muito amorosa. Não só neste núcleo, como com tios e primos e todo o resto da família ali, a gente é muito família.
[00:02:48]
P/1 – E quais são os principais costumes da sua família? Pensando em alimentação...
[00:02:55]
R – Ah, eu tenho uma mãezinha bem gordinha e danada, então ela nos ensinou que coisa gostosa é coisa boa, apesar de ter todo um cuidado com saúde, tal, cozinha muito bem. E eu sou neta de padeiro, o pai dela era padeiro, então a gente adora se reunir à mesa, a refeição é sim um acontecimento, a gente se reúne pra almoçar, pra tomar lanche, pra tomar café, e depois... Eu fui muito difícil de comer, a minha mãe fala isso o tempo inteiro, que eu não queria comer nada, que eu só queria comer besteira, que não sei o que. E quando eu cresci e comecei a trabalhar e não tinha mais a mãezinha pra fazer os ‘menus kids’ pra mim, eu aprendi que a vida era mais difícil e aprendi a me alimentar melhor nesse sentido, incluí na minha alimentação saladas, frutas e sucos e tal. E eu sempre procurei um bom equilíbrio. Eu de vez em quando enfio o pé num Macdonald, mas também todo dia tem ali um prato colorido, com proteína, verduras e legumes, enfim, então procuro fazer um balanceamento. Não tenho radicalização nenhuma, como carne, como frango, mas tudo moderadamente. O pão é que não me pede pra tirar, porque essa ligação emocional é difícil de cortar.
[00:04:43]
P/1 – E como era a sua casa na infância?
[00:04:45]
R – Uma delícia. A minha mãe é uma pessoa muito inteligente, então a gente brinca que ela foi bem danada. Primeiro eu nasci num apartamentinho bem pequenininho na Zona Norte e a gente morava no terceiro andar e não tinha elevador, então lembro de cenas deliciosas, eu sozinha – minha irmã nasceu eu tinha três anos – eu era carregada lá em cima pelos meus pais, até lá em cima, três andares. Quando a minha irmã apareceu, eu já tinha três anos, quatro, cinco, tal, a gente chegava de Guararema, que a gente ia muito pros meus avós, a gente chegava à noite dormindo no carro, daí eu via que meu pai pegava a minha irmã,
eu fingia que eu tava dormindo porque
ele subia, deixava a minha irmã e voltava pra me pegar e subia comigo três andares, né. Então essa é uma memória que eu tenho muito legal. Eu vi aparecer a primeira televisão, porque eu sou dessa época, eu vi chegar o primeiro telefone com fio, fixo, que custava uma fortuna. Vi o meu irmão morrer, porque quando morreu a gente estava nesse apartamento. Então tem uma ligação muito forte. E a gente se mudou pra uma casinha numa vila, também lá na Zona Norte, e foi demais, porque eu tinha uns nove anos, até uns onze e pouco eu fiquei lá, era futebol na rua, era uma turma deliciosa, ralei muito o joelho, foi muito, muito bom viver lá, fomos meu pai, minha mãe, minha irmã. Ah, tem uma observação, a gente morava nesse apartamento, meus pais se casaram lá, foram morar lá, um ano depois eu vim, um ano depois meu tio veio pra São Paulo estudar lá de Guararema, veio morar com a gente,
veio a minha tia, que também foi morar com a gente, e tinha apenas um banheiro, porque naquela época era assim, então, cara, eu lembro que a minha casa sempre foi muito movimentada. Meu tio era jornalista, chegava de madrugada, minha irmã tava sempre esperando por ele, meu, é muito interessante. A gente foi pra essa vilinha, que também era maravilhosa, passamos por esse período, ficamos dois anos e pouquinho, e
meus pais realizaram o sonho da casa própria. Então meu avô ajudou, tinha ajudado todos os filhos na primeira casa,
eu lembro que a casa pra gente, três andares, numa rua plana, maravilhoso, eu tinha onze anos, tinha uma escada de mármore, nada luxuoso, mas pra mim era tudo lindo. Só que quando a gente foi conhecer, tinham toras segurando a casa, porque ela teve um problema de engenharia, de estrutura, eram quatro sobradinhos, e os quatro precisaram passar por essa reconstrução de estrutura, quando a gente foi conhecer tinham essas toras no meio da casa. E a gente assim, não, como é isso, e só pudemos comprar por causa disso, se não a gente não teria tido condição de ter comprado. E a casa tá tão boa que a minha minha mãe ainda tá lá, a gente tenta tirar ela de lá, ela não quer sair. E nessa casa aconteceram coisas incríveis, porque
foi o meu começo de adolescência, foi a minha primeira paixão, foi os blocos de carnavais. Eu falei que a minha mãe era muito esperta, que que ela fazia, ela abria a porta da casa dela, que era no meio da rua, e a gente tinha a turma da rua, e todo mundo vivia na minha casa. Então eu falava, nossa mãe, você é tão legal, você abre a porta... e ela disse, “não, não, é porque aí eu fico de olho em vocês, eu não sou trouxa, melhor que venham aqui pra dentro”. Então eu tenho lembranças incríveis desse lugar, festas, a gente trocava a luz, colocava luz amarela, luz vermelha nas lâmpadas, e fazia bailinho, com uma fita cassete fazia altas festas nessa casa. Enfim, uma lembrança incrível. Minha filha nasceu lá, então... Tá lá até hoje, como a casa da minha mãe.
[00:09:41]
P/1 – Você lembra de alguma história marcante que você queira compartilhar?
[00:09:45]
R – Dessas três casas? Ah, acho que já contei... tem uma interessante, se for o caso. Fiquei vinte anos casada, me separei há um ano e meio, no meio dessa separação eu reencontrei um amor do tempo em que eu morava nessa casa, eu tinha dezesseis anos, sei lá, dos dezesseis aos dezoito demos uma namoradinha e tal. Nunca mais o vi, e a gente se reencontrou há um ano e pouco atrás, ele estava morando na Argentina, fui pra lá, começamos a namorar, voltei de lá, ele ficou, veio pro natal e estamos casados, né, porque veio a pandemia e ele está na minha casa e estamos morando juntos. Então essa casa, olha só, o que me trouxe assim depois de uma longa vida com o Ivan, maravilhoso, que é um super marido, me aparece um antigo amor, olha só, que lindo, graças a essa casa.
[00:11:00]
P/1 – E que brincadeiras você brincava na época? Na rua...
[00:11:02]
R – Na rua. De tudo, patins, carrinho de rolimã, bola, taco, bicicleta. Foi um período... porque era uma rua plana em um bairro muito íngreme, cheio de ladeira. Então a moçada do bairro ali, do quarteirão, vinha na minha rua, porque ali era mais legal. Então a gente brincava mesmo, isso de onze até uns treze, quatorze, porque começam a mudar os interesses, começam as paqueras, mas a gente levou isso até os dezoito anos, assim, de ficar na rua, de ter turma de rua, de cantar, de sair. Enfim, delícia, delícia.
[00:11:55]
P/1 – E qual a sua primeira lembrança da escola?
[00:11:59]
R – Foi linda, nossa, eu morava num apartamento com os meus pais, o meu tio já tinha casado... não, ainda não, então morava a turma toda. Eu me lembro direitinho de duas cenas, a primeira eu, toda de uniforme, que era uma coisa verde, um avental verde de babadinhos, assim, uma saia bem bufante, que tinha até anágua, e uma camisa branca com uma gravatinha muito bonitinha. A minha mãe é impecável com roupa, então ela passava tudo, ela deixava tudo engomado, uma maravilha. E eu usava uma bota ortopédica, eu calço hoje trinta e nove, naquele momento eu já tinha um pé maior do que o normal, e era engraçado porque era bota ortopédica, uma coisa enorme, dois cambitinhos bem fininho (porque eu era muito magrinha), e aí começava o abajur, outro engomado, mas lindo. Então eu me lembro dessa cena, eu de uniforme, do lado do fogão e falando “mãe, eu preciso ir, eu preciso ir”. Porque eu tinha seis anos já, a gente não ia pra escola antes como vai hoje. Então pra mim era uma ansiedade, a minha mãe era professora, eu sabia que ia pra escola. Então eu lembro disso, e de entrar na escola que era uma casa linda, de freira, uma construção antiga, tinha o pátio, uma figueira maravilhosa, de pedrinhas assim. E a gente brincava nesse pátio, na primeira semana eu levei um tombo com essa bota, ralei meu joelho nessas pedrinhas, fez machucado e rasgou a meia, tudo que você pode imaginar, mas muito gostosa minha fase nessa escola, muito, muito, eu guardo muitas lembranças, chamava Colégio Santana.
[00:14:08]
P/1 – E você ficou nesse colégio até quantos anos?
[00:14:09]
R – Uns dezoito, até os dezessete. Eu me formei lá. Seis meses eu morei em Brasília, meu pai foi transferido pra lá, e a gente ficou lá seis meses. Então durante seis meses, o primeiro colegial, eu fiz em Brasília. O restante, o tempo inteiro, eu fiz nessa escola.
[00:14:31]
P/1 – E tem algum professor que ficou marcante?
[00:14:33]
R – Ah, tem alguns. Tem a Dona Delmira, primeiro que o nome é muito especial, ela era uma mulher muito grande (como eu fiquei), eu achava ela a mais alta de todas, e era de português. E, cara – eu tenho até hoje esse livro – ela trouxe um livro pra gente de criatividade que pautou o resto da minha vida, eu fui fazer comunicação, eu gosto de escrever, eu gosto da língua portuguesa, adoro, gosto de estudar. Então ela foi muito marcante nesse sentido. Foi a pessoa que mais me colocou nessa paixão por estudar que eu tenho até hoje, eu adoro estudar, sou muito curiosa. Dona Delmira, mó respeito por ela.
[00:15:35]
P/1 – E como eram os amigos? Como vocês se divertiam?
[00:15:37]
R – Olha, era um colégio só de moças, só de meninas, então eu tenho amigas até hoje. A gente tem um encontro, tem um grupo no whatsapp que se chama Meninas do Santana 1979, que foi quando nos formamos, e claro que eu não sou amiga de todas elas, mas a gente manteve... Mas eu tenho amigas confidentes até hoje que a gente se vê sempre, e amigas de 50 anos, é muito louco mesmo. Olha, eu diria pra você que eu sempre fui muito sociável,
a minha mãe fala que além da sociabilidade eu tenho uma liderança que nasceu comigo. Segundo ela, era assim, já na maternidade todos os bebês de chupetinha estavam bem quietinhos, e eu falava “vamos chorar todo mundo!”, soltava a chupeta e todo mundo chorava. Brincadeira dela. Mas era isso, eu sempre fui muito sociável. Então amigos pra mim, Lu, é uma delícia, eu sempre fui cercada de gente, e é a coisa que eu mais amo na minha vida, é gente. Então, eu tenho muitas boas lembranças das minhas amizades. E aí também quando eu cheguei no cursinho, cheguei na faculdade, que tinham uns meninos, e bem louca, né, vamos falar disso daqui pra frente, mas eu tenho muitas amigas do tempo do colégio.
[00:17:10]
P/1 – E a fase da menstruação? Você conversava com a sua mãe, com as suas amigas? Como foi esse momento?
[00:17:20]
R – Sim, eu me lembro que com nove anos a gente ainda tava no apartamento, e minha mãe me chamou com um livrinho “De Onde Vêm os Bebês” e me levou no quarto, toda cerimoniosa, porque não se falava sobre isso, né, era meio um tabu assim. Mas a minha mãe, professora, inteligente, ela teve este cuidado, então ela me chamou, me mostrou um livrinho, explicou como acontecia, e que eu ficaria menstruada e que isso era uma coisa muito natural, que podia trazer algumas mudanças no meu corpo, naquilo que eu sentia, mas que era absolutamente normal, e que, enfim, eu me dei muito bem com essa questão. Claro, tinha problemas. No meu tempo era “moddes” como chamava, não tinha nem Sempre Livre, quando nasceu o Sempre Livre, que era de colocar na calcinha assim, foi sensacional, porque você tinha que amarrar, uma coisa horrorosa. Então com tudo isso, eu tive uma excelente... eu me dei muito bem com essa etapa, sabe, da minha vida, não tive o menor problema.
[00:18:44]
P/1 – E o primeiro amor, como foi? Como foi quando começou a sua sexualidade?
[00:18:48]
R – Sexualidade foi bem tardia, sabia. Quando eu namorei, por exemplo, o Hector, imagina, era namorico de beijinho e mãozinha dada, não tinha mais do que isso, e eu tinha dezesseis, dezessete, dezoito anos. Eu fui perder a virgindade com vinte e um e, quer saber, com um amigo da faculdade, não foi com nenhum grande amor, e que no fundo eu acho que foi muito legal, porque tirou um peso de dar certo, ou de não dar certo, e tal. E foi um primeiro contato, é claro que depois eu tive muitas questões de aprendizado com o meu próprio corpo, desta relação físico-emocional, como é que eles se convivem, porque eu sou de uma geração que virgindade era um valor, certo, e eu fui contra isso, é engraçado que eu tive a Fernanda e eu tinha vinte e nove anos quando eu engravidei. E quando eu fui contar pros meus pais, que eu demorei muito, eu falei “então, eu to grávida”. E eu me lembro que a minha mãe me olhou com aquele olhar de “como assim? Você ainda não é virgem?”, sabe assim, vinte e nove anos. Acho até que ela não queria acreditar que eu já não era mais virgem. Mas pra você entender o que era esse tabu, era esse valor tão importante, que é uma bobagem, né.
[00:20:30]
P/1 – E quando você começou a namorar, que tipos de cuidado você tinha, que tomava?
[00:20:37]
R - Muito pouco, muito pouco. É verdade, porque ao mesmo tempo, era uma geração que, assim, você... imagina, usar camisinha, era só pra não engravidar. O problema era de engravidar, não podia. Então, assim, arrisquei muito, muito, muito. Mas, enfim, ia ao ginecologista, fazia todos os exames, sempre fui. Eu tirei um ovário com vinte e cinco anos, eu tive um cisto e precisei tirar o ovário, e depois eu tive uma aderência e tirei um pedaço do intestino, enfim. Então eu nunca deixei de fazer o acompanhamento, sempre acompanhei a parte ginecológica, aliás fiz exame de AIDs outro dia e pensei “ai que delícia, tô com cinquenta e oito, passei pelo teste” [risos], então eu sempre me cuidei, mas não tinha esses cuidados de camisinha, imagina, era reza e vai.
[00:21:45]
P/1 – E como foi o período da faculdade? Você escolheu o curso e estar na faculdade?
[00:21:51]
R – Então, eu sou muito otimista com a vida, sempre lidei muito bem com as coisas que vem e a gente precisa lidar. Com dezoito anos eu entrei na FAAP [ Fundação Armando Alvares Penteado], então eu saí do colégio com dezessete, no final do ano, e aí eu queria jornalismo ou arquitetura, uma coisa bem assim, “pow” né. Arquitetura ou jornalismo. E eu prestei duas faculdades, faculdade de arquitetura, USP[ Universidade de São Paulo] e Mackenzie, e prestei jornalismo na PUC [Pontifícia Universidade Católica]. E por quatro pessoas eu não consegui entrar na PUC. Eu fiz cursinho, no meio do ano eu prestei e tinha FAAP no meio do ano com comunicação, e eu entrei na comunicação para fazer jornalismo. Só que era época de ditadura, depois que eu tinha entrado, eu descobri que tinham fechado o curso de jornalismo, que não tinha mais. Eu falei, bom, já to aqui mesmo, vou fazer esses seis meses, presto uma outra no final do ano e mudo. Eu ia fazendo o básico. Entrei, me enturmei, daí comecei a gostar e então, “ah, quer saber, vou continuar, e quando eu tiver que fazer opção, aí eu decido”. Um ano e meio, eu precisei fazer opção, e eu optei por publicidade e propaganda porque a ideia era eu ser redatora de publicidade, mas virei atendimento já no primeiro semestre, não, acho que no primeiro ano eu já virei atendimento e já fui pra Abril, me formei e já tava na Abril como atendimento, e virei publicitária contato e vendedora pro resto da vida. Mas nunca deixei de escrever, nunca deixei de corrigir, me ajudou muito essa facilidade da escrita, da leitura, então a vida inteira me ajudou muito nesse sentido, sabe. Eu não me sinto uma jornalista frustrada não, eu acho que eu escolhi um caminho bacana de carreira.
[00:24:13]
P/1 – E como foi entrar no primeiro trabalho? Você lembra do dia, da sensação?
[00:24:19]
R - Tudo, tudo. Eu fui... no primeiro semestre da faculdade (eu comecei em julho), e o chato era que a FAAP era uma fortuna, e eu filha de classe média, média baixa, então eu tinha uma questão de estar lá, “eu preciso trabalhar para ajudar os meus pais a pagar a faculdade”. E muito curiosa, fui lá, vivia nos painéis da faculdade, e vi um chamado da CEE[ Conselho Estadual de Educação] para um estágio na Abril. Eu preciso contar uma outra história. Esse meu tio jornalista que morava na minha casa, nesta época trabalhava na Abril. E eu morava em Santana, passava pelo prédio antigo da Abril na Marginal e falava “ai, um dia eu vou trabalhar aqui”. Ó, quantas vezes eu falei “um dia eu vou trabalhar aqui, um dia eu vou trabalhar aqui”. Aliás, ele me apresentou a revista, porque ele ganhava revistas e levava pra casa da minha mãe e depois que ele se mudou ele continuava mandando revista pra minha mãe, então eu tinha uma ligação com isso muito forte. Não é à toa que eu trabalhei trinta anos com isso, Lu. Então assim, esse meu sonho de trabalhar na Abril, quando eu vi um chamado do CEE para um estágio temporário para vaga de comunicação eu falei “é meu”. Bom, já me inscrevi, participei de entrevista, fui selecionada. Eu trabalhei dois meses, o trabalho não tinha nada a ver, era de embrulhar agenda de fim de ano, cuidar de confirmar dados, mas foi uma experiência incrível. Daí eles me chamaram de novo no ano seguinte para fazer o mesmo trabalho, só que por seis meses, eu saí da Abril, sempre tentando ir, fiquei um ano e meio tentando outras atividades, fui trabalhar na Finivest, fui trabalhar em agência, tal, e em 1984 eu entrei na Abril, em abril de 1984, primeiro de junho de 1984, já me formei na Abril, e fiquei lá muitos e muitos anos. Então foi um sonho realizado mesmo, e me lembro de tudo. Cheguei naquele prédio, era um prédio enorme, as portas eram enormes, era tudo... pra uma menina de dezoito anos, chegando ali. E tem uma outra história. A empresa foi fundada pelo Vitor Civita, certo. E ele trabalhava neste prédio, eu trabalhava no quinto e a diretoria ficava no sexto andar, e a redação da Veja era no sétimo, gente, aquilo era o máximo. As madrugadas, quando a gente precisava trabalhar de madrugada, a gente ia na lanchonete do sétimo, conversava com os jornalistas da Veja, e eu uma menina, uma coisa incrível assim. Então um dia eu to chegando, porque eu ganhava por hora nesse estágio, então saía da FAAP junto com uma colega, a gente tomava o ônibus, descia na porta da Abril, batia o ponto, e a partir de lá tá rodando o nosso dinheirinho, né. Um dia, nós estamos chegando, porque terminou uma aula antes, mais cedo, e a gente foi mais cedo. E eu e a minha amiga, caderno de universitário, a porta fechando do elevador, e eu falei “sobe”, e um senhor segurou a porta pra mim. Daí eu entrei, “boa tarde, tudo bem, ...”, me encostei na porta do elevador, e falava pra minha amiga “oba, hoje nós vamos ganhar uma hora a mais, porque a gente vai bater o ponto antes”, e o senhor olhando pra gente e rindo e tal. Descemos no quinto andar “até logo, senhor, boa tarde, até mais”. Uma semana depois começou um burburinho “não, senhor Roberto Civita (que é o filho) está no andar, vamos lá, arrumem tudo”. E aí passa o dr. Roberto por mim e eu falo “mas esse não é o Vitor?”, disseram “não, Eliane, o Vitor é esse aqui”. Era o ascensorista, bem, o fundador da Abril. Ah, eu entrei no elevador falando com a minha amiga e ele rindo, ele rindo. E eu fiquei lá trinta anos. Acho que deu tudo certo, né. [risos] Olha só Lu, o que eu aprontei.
[00:29:12]
P/1 – E como foi o decorrer desses anos, como foi trabalhar lá, passar esse tempão lá?
[00:29:19]
R – Olha, foi incrível, cara. Uma pena o que aconteceu com ela, uma pena que ela não conseguiu ir pro lugar que ela teria esse espaço. Eu comecei estagiária e terminei de ser diretora da Exame. Passei por todas as revistas, passei por todos os títulos. Então eu tenho uma visão de segmentação muito grande. Então você ta conversando comigo, ou um cliente ta conversando comigo, e fala que tem um produto, eu já sei qual é o público, qual o canal, como é que tem que falar com esse público. Foi uma escola maravilhosa e eu ali fiz pós-graduação, mestrado, doutorado, em tudo, de vida e de possibilidades de trabalho mesmo. Eu fui do camarote de carnaval na Bahia da Contigo, pra Fórum da Exame almoçar com o presidente da empresa, passando por tudo, festa da Playboy, o mundo da moda, o mundo da decoração, o mundo da viagem. Então eu tive uma oportunidade, graças a Abril, mas muito grande, pra ser o que eu sou hoje, tanto em termos de carreira e profissionais, quanto de vida. Então foi muito importante pra mim, eu agradeço muito a Abril, tenho o maior respeito.
[00:30:58]
P/1 – E nesse meio tempo você falou que teve uma filha.
[00:31:01]
R – Ah, pronto. [risos]
[00:31:04]
P/1 – Como foi se tornar mãe, como foi esse momento?
[00:31:07]
R – Também foi uma coisa muito interessante. Eu conheci o Mário na Abril, claro. Eu falo que a Abril me deu tudo, tudo que eu tenho financeiramente e tudo que eu tenho de conhecimento de experiência e de vida. Então eu conheci o Mário, eu me apaixonei por ele, ele estava casado na época, então a gente viveu uma coisa escondida. Eu te contei que não era todo um cuidado nessas questões e tal, engravidei sem um ovário, com um cisto policístico, e na tabelinha. Então eu digo que assim, eu tenho o maior respeito pelo Mário, o maior amor pelo Mário, porque ele me deu a Fernanda. Que é o maior legado que eu podia deixar pra esse planeta é ela. Ela me ensina todos os dias, todos os dias, e depois a gente vai conversar um pouco mais. Mas assim, a minha gravidez foi um choque primeiro. Eu era gerente da Veja São Paulo, tinha quinze pessoas que respondiam pra mim, uma revista semanal que era cheia de modelinho, de espaço fracionado, quer dizer, tinha um gerenciamento ali muito forte. E eu engravidei sem estar preparada, assumi a Fê sozinha, então ainda lidei com aquelas questões “mas como, você tem uma filha, no meio da AIDS”, “ah, foi um ex-namorado da Bahia”, inventei um monte de história. Eu era muito apaixonada pelo Mário então eu sofri muito porque, no momento em que eu resolvi ter, e ter sozinha, acabou nossa história, era uma relação muito com a Fê, assim. Então foi muito delicada a situação, mas ao mesmo tempo foi lindo, cara. Porque eu sempre sonhei em ter filho, veio uma menina, ela foi muito acolhida pelos meus pais, por toda a família, por todos os amigos. Então de fato, eu vivi durante a gravidez... tive uma gravidez ótima, igual essa história da minha menstruação. Com todas essas questões, a minha gravidez foi sensacional. Tive parto normal, trabalhei até o final. Foi tudo muito tranquilo, de verdade. Então, enfim, eu vivi ali uma gravidez muito... de muita alegria, às vezes de muito medo, porque assumir uma gravidez sozinha não é... e numa condição financeira que não era uma condição... eu não tinha família rica, então dependia de mim, tá certo. Mas olha, eu só olho com carinho, de verdade, foi tudo lindo e maravilhoso.
[00:34:25]
P/1 – E como seguiu, Eli? Você ficou na Abril até o final?
[00:34:34]
R – Na gravidez?
[00:34:38]
P/1 – Sim, e continuando um pouco.
[00:34:41]
R – Bom, na gravidez, teve uma, na semana que a Fê nasceu, teve uma convenção aqui num hotel aqui perto, e eu queria ir. Olha que louca, mas eu queria ir. O meu chefe disse “mas de jeito nenhum, você vai ficar em casa, já começa a sua licença, tá pra nascer, você não vai dar trabalho pra gente”. Eu falei “ta bom”. E ainda bem, porque ela nasceu na sexta-feira mesmo, de manhã, então foi isso. Eu com dois meses e meio, já te contei que eu tinha 15 funcionários, tinha uma revista semanal, era responsável por tudo isso, o meu chefe me chamou e falou “Eliane, eu preciso de você de volta. Tem como a gente fazer um esquema?”, falei “tem, eu venho de manhã, fico até às 14h,
eu consigo manter a amamentação”. Então com dois meses e meio eu acabei com a minha licença maternidade, voltei a trabalhar e não me arrependo, sabe, Lu. Eu vou confessar que na hora que começou aquela história de só cocô, xixi, vômito, peito, e dorme, e dá de peito de novo, eu estava acostumada com uma vida... Eu gerenciava a Vejinha, eu fazia teatro, eu tava contando isso, esqueci, eu fiz Macunaíma dois anos e meio, eu engravidei eu tava no Macunaíma. Então eu tinha uma vida completamente fora de casa, eu ia pra dormir só. E de repente eu me vi, dois meses e meio, 24 horas em casa com uma criança que eu amava, mas não estava mais aguentando. Então quando ele me chamou eu pensei "tá bom, vai, eu volto”. A Fezinha me desculpa até hoje, eu arrumei uma super estrutura pra ela, continuei amamentando até os quatro meses porque eu não tinha leite mesmo. Mas foi isso, eu acabei voltando e fiquei lá mais um tempão, né.
[00:36:54]
P/1 – E o teatro, como que foi? Como você resolveu fazer? Você apresentava?
[00:37:07]
R – Ai menina! Na última apresentação eu já sabia que eu estava grávida, aliás, eu não sabia que eu estava grávida. A apresentação de final de semestre era em julho, e falhou a minha menstruação, que era uma coisa ali certinha, por isso que eu arriscava a tabelinha.
eu comecei a ter muito enjoo. Pra você ter uma ideia, eu tinha um sono, Lu, que a gente ensaiando essa peça, eu saía da peça e, no camarim da peça, tinha um sofá. Entre uma cena e outra eu deitava lá e cochilava, de tanto sono que eu tinha. Aí eu falei "hum, acho que dancei”. Então no dia da apresentação, eu a tarde fui no laboratório, tirei o exame, tirei o sangue, pra eu saber só depois da apresentação do teatro. Então assim, a Fê estava comigo na última apresentação do Macunaíma, ela já estava na minha barriga. E eu fazia a Geni, não era a Geni, era a... do Bonde Chamado Desejo, e ela era uma pessoa que..., eu tava de salto alto vermelho, com um top de lingerie, assim, no palco e já grávida da Fernanda, uma coisa super sensual assim. E
no dia seguinte eu soube a confirmação de que eu tava grávida, então eu tranquei a minha matrícula e já falei pra minha moçadinha: “turma, deixa a Fernandinha crescer um pouco, que quando ela crescer eu trago ela comigo, e aí a gente volta pro teatro”. A Fê nunca quis saber de teatro e eu acabei usando esse talento de palco, de facilidade, de comunicar, na minha vida profissional, tá certo. Nunca tive problema de fazer apresentação nenhuma, eu não tenho a timidez e tudo isso, o teatro me ajudou muito. Eu ainda falo com alguns amigos daquela época do teatro, eu até já pensei em voltar, mas acho que eu volto de um outro jeito, não pra atuar, mas pra falar sobre as minhas experiências, pra fazer palestra, TED[ tecnologia, Entretenimento e Design], vídeo, eu to com esse projeto
agora de deixar o meu legado de experiência de vida mesmo, né. Então me dedicar a isto faz parte do meu projeto de legado.
[00:40:04]
P/1 – E como seguiu sua carreira depois já com a Fê?
[00:40:11]
R - Então, é interessante isso, porque eu sempre fui muito trabalhadeira. Diz a minha mãe que escrava de canela fina tinha mais valor no mercado, porque eram as melhores trabalhadeiras, olha que coisa feia. E eu sou da canela fina, sabe, ralo, mas sempre gostei de trabalhar, pra mim não tinha tempo quente – agora eu to num outro momento de vida - mas não tinha tempo quente, bora, é pra fazer vamos fazer. Quando o Ivan me conheceu, meu marido, meu ex, ele era de evento, eu era diretora da Viagem e Turismo, e a gente foi fazer um evento lá em Recife. E ele fala que ele não acredita que uma diretora de publicidade (que ele já conhecia outras), eu com o pano de chão limpando o estande, porque não tava pronto e ia abrir a feira, faço eu, ta certo. E isso é dessa minha família da minha mãe, eles não param um minuto, estão sempre fazendo alguma coisa. Se estiverem de lazer, estão fazendo bolo, tão costurando... eles não param. Então eu tenho muito sangue dos Barros nesse sentido, de trabalho, de execução e tal. E eu tenho essa curiosidade, Lu. Então pra mim, trabalhar numa coisa que eu amava, eu devorava as revistas, eu gostava de estar com elas, pra mim não era difícil vender, porque quando você tá levando uma coisa que você acredita, cara, é felicidade na certa. E portanto, prosperidade na certa. Eu acredito muito nisso. Trabalho hoje com isso na minha consultoria: “qual é o seu propósito? O que te motiva? O que te mobiliza?” Porque é daí que as coisas saem, né, Lu? Se você tem essa oportunidade, então eu tive essa oportunidade, eu aproveitei essa oportunidade, eu me banhava de conhecimento, sabe, tudo que eu podia, eu tava ali curiosamente, mexendo, participando de grupos, fazendo além do que eu precisaria fazer no meu trabalho. Por amor, porque eu gostava das produções todas. E não me arrependo de nada, porque me trouxe uma bagagem incrível mesmo de vida, de conhecimento, de experiência. Aliás, é o seguinte, cara, estudar é tudo né, vamos falar um pouquinho assim. Eu fiquei vendo esse nosso país tão maravilhoso com esse povo tão incrível, tão lindo, e infelizmente, sem oportunidade de estudo, de educação, porque isso mudaria tudo. Enfim, isso é uma bandeira minha, eu ainda vou trabalhar politicamente com isso, sabe, porque, gente... Eu falo que eu virei uma classe, não é uma classe A, mas eu subi de classe social porque eu estudei, tá certo, então eu acho injusto as pessoas não terem essa oportunidade, entendeu, de poderem escalar uma classe social com uma oportunidade de estudo. Porque isso a minha mãe, professora, sempre falou. A gente, Lu, levantava mais cedo pro meu pai me levar pra escola particular, a gente acordava mais cedo pra empurrar o carro, porque a gente não tinha dinheiro pra trocar a bateria. E
os meus vizinhos tinham dois carros, e os filhos estudavam ali na esquina na escola pública. Então a minha mãe sempre falou isso, não que a escola pública não... a gente desejaria que ela fosse maravilhosa, mas ela dizia “eu invisto em vocês pra vocês terem a sua vida, pra vocês conseguirem vencer nessa condição de quem estudou”. Então eu dou muito valor a todo mundo que quer estudar, a minha faxineira maravilhosa resolveu fazer o EJA [Educação de Jovens e Adultos] há dois anos e meio atrás. Eu dou todo o apoio, hoje ela ta aqui, ela diz “é muito difícil, eu vou desistir”, “não vai, não vai desistir, do que que você precisa? Tamo junto”. Tá acabando agora. Então eu falo, pô, eu tenho o maior orgulho mesmo. Fazer com que as outras pessoas tenham essa oportunidade que eu tive na vida né, Lu. Acho que a gente tem que agradecer mesmo, tem que reconhecer, e levar pra frente. A gente precisa fazer desse país melhor, gente. Aliás, você, Fernanda, essa geração, eu boto a maior fé em vocês, porque eu acho que são vocês que vão mudar politicamente esse planeta, sabe, começando por aqui.
[00:45:41]
P/1 – E como foi conhecer o Ivan? Vocês se casaram? Como foi esse período?
[00:45:45]
R – A gente se conheceu nesse trabalho, aí ele também estava recém separado, eu também estava sozinha, aí a gente começou a sair e tal. Ele é um paizão, então aos seis anos a Fernanda o conheceu, começou a conviver, ele me ajudou na criação dela muito, muito, muito. Foi um companheirão, delicioso, divertido, super parceiro, eu sou a terceira mulher dele, então ele entende bem de casamento, aprendi com ele coisas incríveis sobre dar valor para coisas que realmente a gente precisa dar valor, do tipo “eu me separei, mas eu tenho filho com um (ele falando), eu tive filho com um, tive filho com outra, e agora eu to trazendo a tua filha. Se eu tenho filho com as outras mulheres que eu amo, então porque eu não vou amar também as mulheres, ta certo?”. Então a gente virou uma grande família mosaico, depois, enfim, ficamos juntos vinte e um anos, foi muito legal. Por um momento de vida em que, eu to nesse movimento de empresa, legado, política, pós-graduação, e parara parara, e ele tava num outro momento, e a gente se deu uma descolada, assim. Mas é o que eu falo, foi um grande amor, é um grande amor, eu tenho um respeito incrível, um agradecimento incrível. A Fernanda se tornou a mulher que ela se tornou muito por causa dele. Eu ainda era muito senhora de Santana, virgindade, um extremo. E ele veio com um frescor, um olhar de quem leva a vida... encara a vida de outro jeito. Ele é um cara muito de esquerda, é um cara muito da inclusão, e sem preconceitos (e eu quebrei muitos dos meus preconceitos), e a Fernanda, com esse olhar dele, também deu uma evoluída na vida, enfim. Eu devo muito a ele nessa trajetória.
[00:48:19]
P/1 – E em que momento você começou a perceber que a sua saúde estava instável?
[00:48:29]
R - Então, eu contei que levei muito bem a menstruação, levei muito bem a gravidez, que são os três eventos mais fortes para uma mulher, e aí veio a pré-menopausa, e Lu, foi um inferno, cara. Já te contei bastante aí, mas eu comecei a não dormir. Eu era do tipo de pessoa que tomava café, ia pra cama, e não tinha o menor problema pra dormir. Eu era boa de cama, deitava e dormia bem. Comecei a acordar quatro a cinco vezes por noite, toda vez que eu deitava de novo eu fritava na cama. E aquilo foi me dando... e eu não sabia o que que era. E isso foi com uns quarenta e oito anos. Tudo bem, quarenta e oito anos, pré-menopausa, mas ainda menstruava, então não entendia direito, enfim. Resumo da ópera: confundiu muito o diagnóstico da esclerose, eu tenho esclerose múltipla, ela se confundiu muito por causa da pré-menopausa, então foi uma coisa meio esquisita no geral. Então, com cinquenta e pouquinho, eu comecei a ver que eu tinha um cansaço além do normal, que eu tinha uma dificuldade, comecei a tropeçar, tropeçar, e eu não entendia o porquê. Quando a coisa piorou, eu fui pra um ortopedista, e cara, esse negócio da especialização na medicina, ser tão especializado, que dois ortopedistas, mais fisioterapeuta, personal, um monte de gente cuidando de mim como ortopedia e eu não tinha nada de ortopedia, era uma coisa neurológica. E aí eu fui piorando, o ritmo acelerado ainda na Abril, e nesse período tem essa ressalva, quando eu tava na Exame foi a época que começou a questão de cair o faturamento da Abril, começa essa dificuldade da transição do meio impresso pro digital, “vamos ou não vamos”, eu tinha um cargo executivo, então eu participava... era uma pressão violenta, violenta. Porquê área de vendas numa empresa que não tá bem de faturamento, é uma pressão horrorosa. Aí eu recebia, assim, ordens, “vai lá e acaba com a sua equipe, espreme todo mundo, todo mundo tem que vender”, e eu segurava a onda, porque eu não acredito nisso, eu nunca acreditei que se fizesse gestão na base no chicote e da ameaça, eu nunca acreditei nisso. Eu sempre fui do engajamento, do trazer a equipe pra perto de mim, de “estamos juntos nesse projeto, é um propósito”. E eu segurei muita coisa, muita coisa, sem repassar. Eu não passaria de jeito nenhum. E
doença auto imune é isso né, eu me fiz uma doença auto imune, demorei pra ter o diagnóstico, portanto tive sequelas sim da primeira crise, que até hoje eu carrego como sequela né, então foi muito nessa confusão da menopausa junto com o não diagnóstico da doença (eu tive o diagnóstico de verdade com cinquenta e dois anos), eu tive o diagnóstico em dezembro quando foi em junho depois da Copa eu fui mandada embora. Eu comecei o tratamento em fevereiro, que era um tratamento muito chato, eu tomava injeção na coxa toda semana, e como é um imunossupressor eu ficava 24 horas como se eu tivesse pegando uma gripe, toda semana, você imagina, e com uma pressão enorme lá na Abril. Então foram seis meses muito difíceis pra mim de trabalho lá, porque eu tinha essa sequela, eu tinha uma questão de saúde. Não contei, porque era uma empresa, não é que era uma empresa, mas tinha uma coisa de “se você não tá bem de saúde, você não presta mais''. Como é que vai dar conta de tanta pressão doente, precisando se ausentar às vezes”. Um mundo muito cruel nas organizações, já mudou muito, mas naquele momento ainda era muito. Daí eu fui pra abertura da copa do mundo no Itaquerão, foi a coisa mais doida, porque pela Abril eu fui, foi uma honra, só que eu cheguei lá e não conseguia andar, porque o ônibus parou a dois quilômetros da porta de entrada, eu já tinha dificuldade, um calor horroroso. Bom, eu me lembro que eu cheguei lá, pedi “uma cadeira de roda pelo amor de Deus”, me levaram de cadeira de roda, bom enfim... era um misto de “nossa, to aqui na abertura de uma copa do mundo, que nunca mais vou passar por isso” e ao mesmo tempo um cansaço, uma preocupação com a volta, “como é que eu vou voltar pro ônibus nessa condição”. Então foi o primeiro contato assim muito forte com a minha não mais capacidade para estar nesse ambiente. E
tão justo esse mundo, que a Abril começou um pacote de demissões, e eu fui a primeira, fui no primeiro pacote. Eu lembro que o meu médico falava “mas eles não podem te mandar embora”, e eu falei “como não?”, “eles não podem porque você tem uma doença que não tem cura”, e eu falei “doutor, mas eu não tava de licença, e eu também já tava cheia, pelo amor de Deus, que bom que me mandaram, agora eu vou resolver a minha vida”. E de novo eu falo que a vida é tão justa, Lu, que eu vivi com a minha rescisão durante três anos, acabou a minha rescisão, começou a entrar as minhas aposentadorias, duas, do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] e da Abril Prev. Então eu digo, vai ser sortuda ali na... né [risos]. Eu pude abrir minha empresa calmamente, eu e minha sócia nos apoiando nessa construção, sem uma pressão. Foi muito legal no fim, tudo que aconteceu. E eu saí antes da derrocada da Abril, então ainda saí com todos os benefícios, com tudo que eu tinha direito, com o salário a mais, entendeu, não tive... Depois de mim teve um monte de problema até a empresa entrar em recuperação judicial, enfim. Acho que foi o meu tempo, deu tudo certo, e me ajudou muito porque quando eu tive o diagnóstico, eu lembro que ele falou “ó, Eliane...”, aí que eu comecei a entender o que era, quando ele me pedia os exames, ele escrevia no meu receituário para pesquisa de EM ou ELA[ Esclerose Lateral Amiotrófica ], e eu falava “que que isso?” (eu sou curiosa, comecei a ver), e a ELA é aquela do Stephen Hawkings, do físico, que ele durou vinte anos ali com aquela cabeça gênio com o corpo... né, completamente prisioneiro do próprio corpo, mas o geral é assim: “você vai viver cinco anos”, é o que eu lia na internet. Então quando eu não tive a ELA e era só esclerose múltipla eu saí pulando de feliz. A minha irmã comigo no diagnóstico, ela chorando, aos prantos, e eu falava “por que você tá chorando? Tô ótima, vambora”. O médico me falou que é uma doença autoimune, que não tem cura, ela é degenerativa, mas a gente consegue controlar a doença. A minha pergunta pra ele foi assim: “doutor, eu que produzo?”, ele falou “é” / “que que eu faço pra não produzir mais?”,
ele falou “você vai ter que tomar remédio pro resto da vida, você precisa diminuir seu stress, você não pode mais ter surto”, e tal, “ah, é isso? Deixa comigo, doutor”. E eu assumi a rédea da minha vida, eu mudei a minha vida inteira pra conviver com esta doença. Não é fácil, não é fácil, às vezes eu falo “por que é comigo? Eu queria tanto estar dançando (que eu adoro dançar, não consigo mais), ó, coitada de mim”, mas também falo “com cinquenta e oito anos você também não estaria mais dançando como você sempre dançou, tá certo?" Então a minha terapeuta na época dizia “Li, agradeça como um presente, como a sua amiga EME[ Amigos Multiplos Esclorose]”, porque se eu não tivesse parado – isso dito pelo meu neurose eu não tivesse ido lá, eu provavelmente ia ter um AVC[ Acidente Vascular Cerebral], ia ter um derrame, um derrame não, um ataque cardíaco, porque eu tava num nível de tensão, de pressão, de tudo, que eu poderia ter uma coisa pior. Então, assim, hoje, depois de sete, oito anos de convivência com a doença, eu falo “poxa, é a minha amiga EMI, me fez mudar um monte de coisa”, inclusive a dizer não, pra muitas coisas que eu nunca disse. Eu sempre fui “ai não, coitado, ai não mas eu preciso ajudar, ai não, mas ele precisa se mim”. Oi? Primeiro eu, depois eu, terceiramente eu também, e
a gente começa a trazer as coisas que são importantes, porque a gente não se permite, né Lu, eu não me permitia olhar pra mim, então eu falo “mereço mesmo a doença que eu tenho”, nesse sentido, porque eu não aprendi antes e precisei aprender na marra. Mas foi um aprendizado fundamental para eu estar aqui hoje e estar feliz e estar bem. Foi essa tomada de consciência. A gente começou a falar de alimentação. Uma das causas de uma doença autoimune tem muito a ver com alimentação. Então, apesar de eu me preocupar com essa coisa de ter uma alimentação bacana, eu precisei ainda aprimorar e aprofundar essa questão, porque alimentos inflamatórios ajudam a piorar minha doença, por exemplo. Então fui nutricionista, eu tento fazer uma dieta mais bacana, mais saudável, enfim, né, uma doença pode trazer um aprendizado tão grande pra gente, eu acredito muito nisso. E o que eu quero deixar de legado é isso, não se deixe adoecer, faça a prevenção antes, porque assim pode ter uma vida com uma qualidade melhor.
[01:00:31]
P/1 – E a Lila ta me perguntando, que que você mudou na alimentação, que que você deixou de comer?
[01:00:37]
R – Olha, na verdade eu não deixei de comer não. Aquilo que eu falei, eu de vez em quando enfio o pé na jaca, uma boa pizza, um bom Macdonald, eu faço, eu me dou esses prazeres, só que não sempre. Eu hoje como fruta, de manhã eu como fruta, como pão, tomo leite, faço ovos, eu tenho um bom café da manhã, depois geralmente... eu mudei meus horários, porque eu sou da noite, adoro tomar um cafezinho lá pelas dez e meia, onze,
quando é uma três da tarde uma salada, uma proteína, de vez em quando uma massa, molhos, que eu adoro, e faço um lanchinho a tarde, uma frutinha, ou uma castanha, uma coisa assim, e a noite janto também, gosto muito da coisa do jantar leve, então é uma salada e uma sopa, ou uma salada e uma proteína. Nesse sentido, evitando mais... a minha nutri me pediu, já te contei, pra eu parar de comer pão, eu falei “pede o resto, vai, o pão você me deixa por favor porque eu não posso abrir mão”. Mas nesse sentido, o meu olhar mudou. Se eu tiver duas escolhas, eu vou escolher a mais saudável, nesse sentido.
[01:02:11]
P/1 – E você comentou um pouco que você recebeu o diagnóstico e você recebeu de uma maneira não tão negativa, mas como foi esse momento? Como foi contar pra sua família, pra Fernanda, pro seu parceiro?
[01:02:34]
R - Então, foi interessante porque a minha irmã comigo... a Fernanda, e todo mundo, veio acompanhando as minhas possibilidades, porque quem me achou, quem me mandou ir pro neuro foi uma fisioterapeuta, que virou minha amiga, que me atende hoje duas vezes por semana há dez anos. Ela atendia a minha mãe e a minha irmã, e as duas me encontravam no fim de semana, e eu fazendo fisioterapia, um monte de exercícios, e tava tudo errado, eu não podia me cansar. E eu chegava na minha mãe arrastando a minha perna, arrastando a minha perna, e ela falava “Eli, não é possível, que você ta se tratando e você não tá melhorando, você precisa ir na Maíla, você precisa ir na Maíla”, ta bom, fui na Maíla. Numa salinha de quatro por quatro ela me viu andando e falou “olha, você precisa ir prum neuro porque você não tem nada ortopédico”, eu falei
“neuro?” / “É, neuro”. Porque ela já tinha atendido gente tanto com a múltipla, quanto com a lateral. E ela na hora achou que era lateral, então ela ficou muito apavorada porque ela falava “como é que eu vou contar pra dona Elisa, para Claudia, que a filha dela tem uma doença que vai morrer em cinco anos”, então eu e ela parecíamos duas loucas comemorando que era só uma esclerose múltipla, entendeu, porque a gente foi pro inferno. Claro que eu saí mais forte do consultório e aí as fichas foram caindo, a coisa de quando eu tomei a primeira injeção que já me deu essa reação, como é que vai ser toda semana eu ficar gripada, gastar 24h da minha semana que já é tão intensa...
a coisa da limitação, de não poder mais dançar, de não conseguir ficar em pé o tempo inteiro, de abrir mão de coisas que eu sempre gostei muito, então eu tive sim o meu luto, não tenha dúvida, mas eu tive todo o apoio do Ivan, da minha família, Fernanda virou uma radical chique, por exemplo, na pandemia, ela foi encontrar comigo cinco meses depois e ela só topou indo em dois carros e a gente se encontrando em uma pracinha. Então ela tem uma preocupação nesse sentido comigo muito forte. Mas, cara, eu não tenho medo não. Eu me cuido, eu me cuido. Mas assim, tem uma coisa importante: eu descobri que eu sou mortal. Quando a gente tem uma doença assim, você realiza que a mortalidade existe, que eu vou morrer algum dia. Então vem um lado assim. Por outro, já que eu vou morrer e eu gosto de viver, eu vou viver o mais bacana possível todo dia. Então essa noção de mortalidade traz uma coisa também muito legal, que é a visão do aqui e agora. Então todo dia eu levantava, aliás até hoje “ai, como eu to hoje? To bem, to animada, hoje tá mais friozinho, que gostoso, porque calor incomoda muito. Abri mão da praia (que eu sempre amei), de tomar sol das dez da manhã até às quatro da tarde, que eu adorava. Isso tudo mudou na minha vida, eu não consigo mais ir na praia sozinha, não consigo mais entrar no mar sozinha. Por outro lado, ganhei carrinhos, saio por essa rua de carrinho igual uma louca e tudo eu resolvo com carrinho. Virei ícone no bairro, porque lá vem a doida do carrinho. Eu ando pela Vila Madalena, que é super pouco acessível, mas eu também estou aprendendo a lidar com isso. Pensando politicamente, né, essa questão da acessibilidade, já to me ligando em algumas entidades, já fui procurar o secretário, que eu esqueci o nome agora, mas que é um publicitário e que também virou um cadeirante e trabalha com isso, enfim, eu to começando a entrar neste lado de legado mesmo, de ajudar a construir um país melhor, um bairro melhor, no mínimo a minha casa melhor, sabe assim? Então eu tenho essa vontade política, assim, de mais a pós em Cooperação que também me deu muita ferramenta para atuar com isso. Então eu to numa fase de encantamento, sabe, com tudo isso. Ah Lu, eu podia escolher dois caminhos né, ou de ficar chorando, ou de ir pra vida, e eu tento ir pra vida. É isso que eu fiz, de verdade.
[01:08:04]
P/1 – Mas me conta uma coisa, esse momento foi algo consciente assim, ou você falou “não, eu quero olhar com outros olhos”?
[01:08:17]
R – Minha mãe me chamava de Poliana, então eu acho que já é uma coisa minha olhar o meio copo cheio sempre na minha vida, mas claro, de novo, passei pelo mundo, pela negação, passei por um monte de coisa até que... foi rápido, eu diria pra você, eu fui fazer terapia, eu sou terapeutizada, eu sempre acreditei no estudo. Acho que conversar é terapêutico sim, a gente tem a oportunidade de se olhar, e ela me apoiou muito nessa fase, muito, muito, muito, foi incrível, e, enfim, eu rapidamente eu resolvi por esse lado, do meio copo cheio. Falei “ah, é? Abril me mandou embora? Muito obrigada, vou fazer a minha empresa dos sonhos, vou só trabalhar com aquilo que eu gosto, só com gente legal e projeto legal”. Então foi relativamente rápido e ainda eu usei essa injeção péssima durante dois anos, e não é que me veio um remédio maravilhoso que eu tomo duas vezes por dia que não me dá nada, nenhum sintoma, e eu estou tomando há três anos. Então estou muito bem, sabe, Lu. Eu fui degenerando, a minha dificuldade de andar piorou, a minha necessidade de bengala e de carrinho virou uma coisa realmente necessária, mas arrumei uma... ah, não só na alimentação, mas eu faço fisioterapia duas vezes por semana, yoga uma vez por semana e personal duas vezes por semana, então acho que... agora tá tudo estragado porque eu fiquei cinco meses sem fazer por causa da pandemia, então estou retomando agora. Ah, outro caso que eu preciso contar: eu vou numa missa de sétimo dia na Igreja São José (eu tava só com a fisioterapia fazendo o self healing que é uma metodologia muito interessante de autoconhecimento e autocuidado), e saio da missa, tava sem carro esperando um uber, encontro um ex parceiro, um diretor de mídia de uma agência, que era da minha geração. "Angelo, tudo bem, tudo bom” / “e aí o que você tem?” / “Tenho esclerose múltipla” / “Você já foi na ACB [ Associação do Corpo Clínico]?", aí eu falei “eu não” / “Você precisa ir lá, que plano de saúde você tem?” / “Bradesco” / “Ah, então vou te dar o nome de um médico, um neuro, você vai lá”. Bom, o cara foi presidente da ACB, você acredita? Olha os anjos da minha vida. Ele indicou um neurocirurgião, que nem era o caso, o cara me deu seis meses de fisioterapia lá na ACB, em quatro meses eles me dispensaram, eu retomei as atividades de fortalecimento muscular, que é fundamental para doença, tá certo, e ali, naquele momento, meu corpo começou a ter um novo chamado. Quando eles me deram alta eu já chamei uma antiga personal, que veio me apoiar também, nunca tinha tratado alguém com esclerose, foi estudar, uma fofa, minha companheirona, então eu diria que eu to com um time hoje bacana, assim, sabe, de terapeutas. E nesse caso eu sou muito determinada, eu não abro mão, Lu, porque é uma necessidade pra eu me manter em pé, pra eu me manter ativa, para ter menos cansaço, então de fato é uma agenda que eu não abro mão mais, de me cuidar.
[01:12:25]
P/1 – E você já sofreu algum tipo de preconceito?
[01:12:31]
R – Olha, não. Aliás, um, que eu preciso relatar. Eu e minha sócia fomos indicadas para fazer um trabalho de uma metodologia, fazer uma consultoria. E nós chegamos lá e o dono da metodologia falava assim “não, porque vocês têm que subir na cadeira, vocês têm que subir na mesa, tem que colocar todo mundo...”, e eu e a Cris já começamos a nos olhar, primeiro porque não é o nosso jeito de atuar. Sabe aquelas convenções de venda, que sai todo mundo gritando. E a gente nunca foi disso, a gente vai pelo propósito, a gente vai pelo engajamento, pela cocriação com quem tá lá. Aí nós estamos ouvindo e tal e no final ele falou “é, eu tava observando você, você com essa dificuldade”, eu de bengala só, “eu acho que vai ser difícil pra você atuar na minha metodologia”, eu falei “olha, super te agradeço, muito obrigada, você tem razão, não vou dar conta”, e agradeci e fui embora. Eu entrei no carro, minha sócia falou assim “mas é uma besta, porque você até deitada engaja, podia estar ali parada igual uma múmia”. Então foi o único preconceito que eu senti. De resto, pelo contrário, as pessoas são muito generosas, a essência das pessoas é muito generosa. Então eu ando aqui pela Vila, de vez em quando e eu pego uma calçada que eu não consigo subir na calçada. Sempre aparece alguém querendo ajudar, até um noinha que mora aqui na rua (que é uma delícia), ele cuida dos carros tal, e uma vez ele foi me ajudar, o Ivan tava na frente, ele foi me ajudar numa calçada, o Ivan disse que ele quase me virou, assim, com carrinho e tudo, que ele usou tanta força, que quase me virou, me capotou. Já vi gente, assim, eu vou atravessar o farol, e a motinha virou, de gente descer do carro, motoqueiro mandar segurar o trânsito. Eu descobri que as pessoas são muito generosas. Tem um lado, que
também falando de deficiência, tem um lado que assim, as pessoas têm um certo “ai, coitada”, o primeiro olhar é na minha perna pra ver se eu tenho, se eu to amputada, nada, não tenho nada, ta certo, to normal. Então eu sinto que tem um estranhamento a princípio, mas depois também, a coisa se... tem muito mais generosidade do que estranhamento, de verdade, por isso que eu boto fé na humanidade ainda.
[01:15:25]
P/1 – E você comentou dos carnavais lá na sua primeira casa ainda. Como que é hoje em dia, você ainda gosta? Você curte?
[01:15:37]
R – Eu amo de paixão, eu moro em cima do Le Pain Quotidien, então não é a bagunça da Vila Madalena do carnaval, é o lado mais tranquilo da Vila, mas passam blocos aqui na minha casa. Entre o período dificuldade, calor, bengala, e o carrinho, eu ficava assistindo daqui de cada, do quarto andar, que aliás eu chamo de camarote Comigo, porque eu trabalhei no camarote Contigo na Bahia muitas vezes, e aqui é o camarote Comigo. Então eu sempre curti aqui. Depois do carrinho,
eu desço,
vou com o meu carrinho, me fantasio, pulo o que eu consigo, vou atrás de trio elétrico, amo, amo. Eu acho que é uma festa popular, é uma festa aonde as pessoas se manifestam, colocam a sua criatividade em cena, e eu fiquei muito triste de não poder estar no carnaval, mas agora eu já me adaptei também, e tento na minha condição, minha idade, e da minha possibilidade, e da minha disponibilidade eu curto muito.
[01:16:56]
P/1 – E como foi reencontrar essa paixão antiga?
[01:17:01]
R – Uau, foi uma loucura. Primeiro, porque como eu tava separada, mas o Ivan ainda tava saindo daqui de casa... ele me encontrou no Messenger, porque foi morar na Argentina, tinha se separado também fazia dois anos, e perdeu o celular na Argentina, pra ele falar com o filho, resolveu ter um Messenger, não participava de rede social e tal. Aí procurando um amigo no facebook, ele me viu de amiga comum. “Nossa, não vejo a Li há quarenta anos”, me mandou uma solicitação de amizade e uma mensagem. E eu confesso pra você que eu nunca fui de olhar muito o Messenger, eu aceitei, ele chama Hector, que é um nome bem diferente, na hora que eu vi ‘Hector’ eu pensei “só pode ser ele”, e era ele, e aceitei a amizade. Demorei três dias pra falar com ele no Messenger, ele até falou “quase te tirei de amiga porque pensei que você era daquelas que tem um monte de amigo e não fala com os amigos”. Bom, começamos a conversar, e aí relembra, conta da vida, atualiza as histórias e tal, isso foi de junho, ele veio... a gente começou a conversar eu acho em maio, em junho ele veio pra passar o dia dos pais com o filho,
a gente se encontrou, mas entre o dia que a gente se encontrou, e o dia que a gente se encontrou de verdade, a gente conversava duas horas por noite, assim, texto. E a gente foi se atualizando e foi vendo um monte de coisas em comum, de sincronicidades e tal, claro, ficamos curiosos de nos encontrarmos. Nos encontramos na casa da minha mãe, pra você ter uma ideia. Meu pai, minha mãe, ele, batendo papo. Ele me convidou pra ir pra Argentina, que ele ia pra lá depois do dia dos pais. E eu pensei, “como que eu vou pra Argentina, gente, de carrinho, bengala...”, porque eu nunca mais tinha pego um avião depois da esclerose, tinha medo, eu falava “como é que vai ser?” A vida inteira eu carregava mala eu mesma. Ele falou, “o quê? Vambora, eu te ajudo. Vambora, vambora, vambora”. Entrei no avião com carrinho e tudo, fiquei 23 dias lá, cheguei em Buenos Aires,
peguei um ônibus, ÔNIBUS, até Rosário, de Rosário de ônibus até Córdoba, de Córdoba até Mendonça, aonde ele mora, que são dez horas no ônibus. E desce carrinho, e sobe carrinho. Fiz tudo o que eu podia fazer. Daí voltei namorando com ele. Voltei sozinha, que também foi uma outra experiência. Daí eu já tinha ido sozinha, voltei sozinha. E
vídeo, áudio, todo dia, todo dia. Ele veio em dezembro para passar o natal, e a gente ia juntos pra Argentina em março pra passar o meu aniversário. Veio a pandemia. E aí fechou a fronteira lá e ele acabou ficando, tá na minha casa, estamos juntos. E o reencontro foi uma coisa, a gente fala “parece que não passaram quarenta anos”. Parece que a gente se separou no ano passado e se reencontrou um ano depois e é muito louco né, Lu, é muito incrível mesmo, porque aos cinquenta e sete anos arrumar um namorado, você acha que pode? A minha filha disse que as amigas ficaram fãs minhas pela minha coragem, que eu tinha tomado essa decisão de morar sozinha nessa condição, “como é que vai ser morar sozinha?” / “Ué, vai ser. A vida inteira eu vivi sozinha, nasci sozinha, eu vou me virar sozinha né”. E me virei, consegui morar sozinha por três meses e depois, pronto, eu não moro mais sozinha. Mas foi muito legal, encontro de alma mesmo, de vida. Muito legal.
[01:21:37]
P/1 – E como a pandemia entrou na sua vida e afetou?
[01:21:41]
R - Olha, eu diria pra você que tem coisas engraçadas porque como eu sou imunossuprimida e tenho asma e quase sessenta anos eu me considerei triplamente grupo de risco. Foi interessante porque no dia... tudo começou fortemente ali dia 17, 18 de março. A gente já tava acompanhando. Quinze dias antes eu tinha tido uma reunião com uma moça e um cara que tinham vindo de Milão, que era o foco master, e eu nem liguei, encontrei com eles, beijei, abracei, ficamos ali na reunião numa salinha pequena, oito pessoas, e ela contando. Ela trabalha com... esqueci o nome, ela tem também uma metodologia e nós fomos conhecer a metodologia. E eu fiquei numa salinha com os dois por duas horas, depois fui embora, beijo, abraço. Começa a história da pandemia. Eu fui pro sítio, na semana anterior, e a amiga da minha filha que mora aqui veio cuidar do meu cachorro. E no dia seguinte eu soube, voltei do sítio, que no prédio dela teve o primeiro caso de covid, aqui na minha rua. A Fernanda falou, “mãe, você tem que sair daqui, você tem que ir embora, pelo amor de Deus”. A minha irmã hoje já tá morando lá, mas tem uma casa na fazenda maravilhosa, uma casa distante e tal, ela me cedeu a casa, catei cachorro, namorado e fomos pra lá. Fiquei quinze dias, os primeiros quinze dias eu fiquei lá. Fernanda não queria que eu voltasse de jeito nenhum, mas eu voltei, que a casa era da minha irmã e tal. Aí a gente voltou Lu, e aí assim, assistindo jornal de manhã, de tarde e de noite, aquelas informações horrorosas, a gente tinha medo de tudo. Pra subir o elevador, na volta da viagem, a gente dobrou a cama do cachorro, colocou num saco preto. A gente embalou tudo que pôde. Eu subi com um carrinho e ele no colo, uma canga cobrindo nós dois, ridículo. Eu empurrei elevador, porta, cheguei em casa, não tinha nem álcool nem gel ainda. Cheguei em casa, lava mão, lava tudo, tira o sapato, lava a roupa, não sei o quê. Daí eu fiquei três meses sem colocar o nariz no elevador, Lu. Fiquei dentro de casa mesmo, não saí pra nada. A gente foi pra Guararema pra casa de uma tia pra olhar o céu, pra cima, porque do apartamento a gente só olha de frente. Fui pra casa dessa minha tia, ficamos lá vinte dias também. Aí voltei e a coisa já tava começando a melhorar, a gente já sabia como era a história. Eu falo que eu comecei a assumir alguns riscos, então o primeiro risco que eu assumi foi a fisioterapeuta, porque fazer pela internet, eu preciso de manuseio, né, precisa mexer minhas pernas, e tal. Então comecei a correr alguns riscos, então duas vezes por semana ela vem. Quando eu fui pra Guararema a minha faxineira, depois de cinco meses, veio fazer uma faxina, e eu mudei pra Guararema, enfim. Aí agora, correndo riscos, mas muito medidos, pra eu ir visitar meu pai no hospital, eu comprei um facestild, vou de máscara, de touca, porque o quartinho dele tudo bem, mas até você chegar no quarto. Então, tomando todos os cuidados, fui duas vezes assim. E é isso Lu, eu não vou pegar esse trem não, já decidi que eu não vou pegar e pronto. [risos]
[01:26:09]
P/1 – E como é o seu dia a dia?
[01:26:11]
R – Olha, hoje eu tenho... eu perdi completamente a minha rotina no início. Aliás, eu e a minha sócia decidimos no início que a gente não ia mexer nada com consultoria, nem fazer live, nem fazer nada, porque a nossa visão é um momento de sobrevivência, de cuidar da saúde, das pessoas se olharem. Fora o lado ‘saúde’, eu acho que essa pandemia trouxe visões de projeto de vida, de olhar a sua casa, de olhar as coisas que de fato importam, né. Então a gente resolveu tirar o time de campo literalmente. A gente ficou uns vinte dias assim desintoxicando,sabe, de tudo. Aí a gente foi... a Fernanda é a nossa designer, ela resolveu dar uma renovada em tudo, em rede social, em não sei o quê, em logotipia, então a gente se envolveu com isso bastante. E eu terminando uma pós-graduação que era absolutamente presencial, tá certo, dança circular, jogos cooperativos, todo mundo abraçado, era uma coisa assim absolutamente presencial e a gente precisou adaptar isso, e daí vieram as decisões se a gente ia continuar ou não, se a gente ia esperar passar, se valeria a pena. E eu acabei me envolvendo muito pra não deixar o povo... pra ter vazão das pessoas, pra gente terminar juntos, porque faltava seis meses pra gente acabar a pós. Então eu também me envolvi, muitas reuniões, e muito zoom, e faz pesquisa, e fala com um por um... então agora eu tenho uma rotina que tá muito interessante, porque de manhã eu cuido das minhas fisioterapias, acordo nos meus horários gostosos (que o meu corpo sempre pediu), tomo café, assisto o meu jornal, daí eu começo as minhas atividades e vou. Como eu sou boa da noite, se for pra noite não tem problema, eu topo. E eu to com uma rotina legal, assim, participando de redes, de negócios, participando do TCC[ Trabalho de Conclusão de Curso] agora, termino o meu último módulo esse fim de semana. Então eu to com uma rotina de produções, muita coisa aqui dentro de casa, aliás, na minha condição isso vai virar o mais normal, porque eu adoro ter contato com as coisas, mas o translado pra mim é muito chato, porque eu me canso, então pra me arrumar eu tenho que parar e descansar um pouquinho. Aí pega o carrinho, desce, entra no carro, é outro cansaço. Daí você vai levar o carrinho, precisa alguém levar o carrinho pra mim. Deslocamento ficou uma coisa mais difícil. Então estou muito mais produtiva nessa plataforma agora. Tô resolvendo um monte de coisa por aqui, que também é uma outra coisa: pra que mesmo eu preciso me deslocar tanto se é possível fazer por aqui, né? É uma revisão geral da vida.
[01:30:00]
P/1 – Então antes da pandemia você já tava trabalhando de casa, ou não?
[01:30:03]
R – Não, não, eu fazia alguma coisa assim, lógico, mas ainda era muito presencial. Eu adoro tomar um café, porque o meu papel na empresa, além de entregar consultoria, é muito de prospecção, eu tenho um networking muito importante, então... e eu não sei fazer networking – que é essa coisa de ir lá, que eu vou com alguma intenção – eu faço netweaver, que é um outro conceito, já ouviu falar? Netweaving é assim, conheço a Lu, bacana, adoro a Lu, eu quero tomar um café com ela. Eu vou tomar um café, a gente atualiza a vida, você me conta o que você tá fazendo, eu conto o que eu to fazendo. Você cuida da relação, sem um interesse específico, e aparece um projeto pela conversa: “ai, olha, nisso eu podia te ajudar, você podia me ajudar”. Isso é uma crença minha, eu acho que este é o melhor tipo de relacionamento. Então falar pra mim “vamos almoçar, vamos tomar um cafezinho”, eu amo, de paixão, eu uso muito aqui o Le Pain, uso por aqui as redondezas,
pra eu ir de carrinho. Eu fiz uma obra na minha casa há três anos atrás, quando a Fê foi morar sozinha, eu “quebrei o meu ninho”, pra não sentir o vazio. Eu fiz uma obra enorme já pensando nessa minha condição, pus um ar condicionado, fiz um escritório, a minha sala tá pronta pra receber, já recebi muitos clientes aqui, muita gente. Eu faço ali um cafezinho, a gente toma uma água, a gente conversa. Então eu montei a minha vida para que as pessoas venham mais à mim do que eu precise ir à elas, né. Mas eu vou também hein, Lu, porque eu adoro um pé na estrada.
[01:32:04]
P/1 – E como você começou essa pós? Sobre o que que ela é? Como você resolveu?
[01:32:13]
R - Então, o meu cunhado é sócio do projeto porque ele fez a pós há muitos anos atrás, a primeira turma. Aí a minha irmã fez também, então eu já tô nesse mundo da pós em pedagogia faz um tempo. No começo da vendedora, eles estavam entrando, porque, além da metodologia, o projeto cooperação tem esse lado, tem um lado de consultoria empresarial, então eles podem levar a cooperação para dentro das organizações. E nos pediram ajuda como consultoria para montar essa área comercial. Então a gente trabalhou com eles há seis anos atrás, foi um dos primeiros clientes nossos, e aí a gente ficou mais envolvida ainda com todo esse conhecimento deles, essa metodologia, é uma gente muito legal. E eu sempre gostei de estudar, mas eu falava “ai gente, como vai ser fazer uma pós agora, TCC, responsabilidade, acho que eu não to afim”. E eu fui adiando. Aí há dois anos atrás eu fui no FICO, que é o Festival Internacional de Cooperação que eles organizam. E eu fui no evento e fiquei louca, porque gente maravilhosa, falando sobre coisas incríveis, de como isso muda o mundo, de como é importante nas relações e nos resultados empresariais e em todos os sentidos. E
eu me convenci, tinha uma turma que começava em maio, isso era outubro mais ou menos, e aí eu falei “quer saber, ou embarcar, o máximo que pode acontecer é eu desistir”. Imagina desistir, gente, eu fiz um esforço para ninguém desistir nesse período, ninguém largar a pós e a gente terminar juntos e, olha, uma delícia, a minha cabeça abriu mais ainda, to cheia de vontade de fazer projetos. Eu ainda vou conseguir – olha, esse é em primeira mão - o meu sonho é pra de repente na próxima eleição (se não for possível ainda, na outra), eu ter feito um trabalho com gente que tem vontade de ir pra política, mas que não vai porque não quer entrar nessa porcaria, tá certo, que é hoje. Então eu queria ressignificar a entrada na política. Eu ser política? Acho que eu não tenho condição física. Mas eu apoiar, principalmente gente da geração de vocês, que eu sou fãzona, que vocês vão mudar o mundo, vocês são incríveis. Que geração linda que é essa. Eu tenho muita vontade de apoiar, sabe, esses jovens que estão afim, pra gente construir projeto coletivo de política. Quem sabe eu ainda faço isso, né, Lu.
[01:35:32]
P/1 – Que mais? Tem mais sonho?
[01:35:37]
R – Ah, tenho, eu ainda quero ser a Hebe Camargo, bem![risos]. É assim, nessa trajetória da pós tem muita coisa de autoconhecimento, né, e aí teve um módulo que o professor pediu pra gente fazer um pré-trabalho em que ele pedia pra gente jogar nas nossas redes e perguntar “que dom você vê em mim?”. E eu fiz esse exercício assim muito sem esperar muito resultado, pô, eu tive 300 retornos, mais ou menos, no Facebook, e a grande maioria dizendo que é essa coisa, essa facilidade que eu tenho de contar causo, das pessoas estarem perto, de mobilizar pela comunicação. Bom, eu falei “bom, acho que eu posso ser uma Hebe Camargo”. E eu sempre falo, não pela fama, pela celebridade, mas pelo que ela era, por ela ser ela mesma, uma comunicadora nata, de querer ajudar o outro, de um monte de coisa. Então eu falo que eu ainda tenho esse sonho, de usar o meu lado teatral pra botar num sofazinho e vamos bater papo, que é isso que eu gosto de fazer, e quem sabe ajudar os outros né, Lu. Porque eu acho que quando você conhece casos de outras pessoas (e isso acontece comigo), você conhece gente que superou coisas ou que não largou o osso, que foi atrás, e eu me considero uma pessoa com uma trajetória dessas. E aí, um dom reconhecido pela comunidade, então agora falta eu organizar isso, roda de conversa, vídeo, sei lá, TEDs, eu quero comunicar.
[01:37:41]
P/1 – Elisa você quer falar, fazer algum comentário, contar alguma história, falar alguma coisa que eu não tenha instigado?
[01:37:48]
R – Nossa, difícil, hein. Você me instigou bastante, eu falei um monte. Olha, eu vou fazer um comentário sobre essa escola de vida de vocês jovens. Eu preciso trazer isso da Fernanda. Eu sempre me considerei uma pessoa muito moderna, liberal, fui mãe solteira há trinta anos atrás, que não era uma coisa tão comum, tá certo. E eu me achava uma pessoa muito moderninha, muito moderninha, até que um dia a Fernanda começou a crescer e virou uma ativista bem radical, feminista, antirracismo, de tudo, até chata, brigamos muito, mas eu to contando isso porque essa coisa de aprendizagem e ensinagem, que a gente fala muito na pós, o grande barato não é mais você ir para um banco de escola e ficar recebendo conteúdo, isso a gente sabe que já era, que hoje em dia você constrói o conhecimento na aprendizagem e na ensinagem. Então eu tenho um reconhecimento pela Fernanda muito forte, porque com toda essa minha crença do quão feminista eu era, eu era, do meu jeito, mas eu não tinha esse conhecimento teórico da coisa. Pra mim, ser feminista, por exemplo, era tirar o sutiã e queimar. E eu gosto de um sutiã, eu não queria perder esse lado do feminino, da energia da bruxa, esta coisa que é feminina, hormonalmente nós somos diferentes. E a gente quebrou altos paus porque eu falava uma besteira, ela vinha e brigava comigo. Até que um dia eu quebrei o pau e falei “eu não sou feminista, eu sou mulher”. E ela falou, mãe não fala besteira, senta aqui, eu vou te contar tudo. Ela falou, não me convenci muito, falei “preciso atualizar meu discurso”. Tinha uma amiga, uma ex-abriliana, que tava dando um curso sobre a linguagem do feminismo, me inscrevi no curso, fui fazer, aprendi um monte de coisa que eu tava falando besteira, reconheci com a Fé, e já dei até uma entrevista pra Diversa sobre isso, o que aprendi com a minha filha sobre o feminismo, tal. E a gente se ensina todos os dias. Ontem estávamos indo pro hospital ver o meu pai porque ela ia dormir lá e eu a levei. Daí nós távamos comentando sobre a menina do estupro imbecil lá. Ela, muito brava, “porque imagina, porque estupro culposo, porque não faz o menor sentido”, e eu lá, “nossa, vou me informar, você tem razão, que absurdo”. Eu chego em casa, toda a minha rede social falando a respeito, todo mundo malhando, hoje um jornalista que eu considero muito, Jorge Tarquini, escreve “olha gente, na verdade eu coloquei errado”, porque quem falou isso não foi o juiz, foi o cara que fez naquele site que eu me esqueci o nome. Ele escreveu isso sobre o estupro culposo, não foi dito durante o zoom. E eu escrevi pra Fê, falei “Fê, veja isso, não é bem assim”. Aí ela falou “nossa mãe, você tem razão”. Aí tem um tio que é militar, que tem uma visão mais de direita, tal (e ela briga com o tio...), quando eu chego em casa o tio tinha sido o primeiro a publicar uma charge sobre isso daí, passei pra Fê, falei “Fernanda, olha os nossos pré-julgamentos” / “Nossa mãe, você tem razão, é verdade”. Então a gente tem uma troca, não é mais de mãe e filha, sabe, é de amiga, de mulher pra mulher. A gente hoje... ela com vinte e oito anos, nós duas adultas, a gente tem uma relação muito legal e eu aprendi muito com ela, muito, muito, muito, tenho certeza que ela também aprendeu comigo, não tenho dúvida, mas eu aprendi muito com ela. O Lu, se tem um comentário que eu gostaria de deixar é que assim, o grande barato é nós convivermos com todos os diferentes, né, porque conviver com os nossos iguais é fácil. Conviver com os nossos diferentes, incluir a todos, é uma coisa muito desafiadora, mas é uma coisa tão maravilhosa, é uma coisa que com certeza faria um país e um planeta muito mais legal se todo mundo se aceitasse, sabe. E eu fico muito feliz de chegar nessa fase da minha vida e estar passando por essa oportunidade dessa construção desse novo mundo. Eu falei no começo da pandemia que eu fiquei muito mexida com a morte da Fernanda Young, eu estava lá na Argentina no ano passado. Eu falava “gente, mas a mulher é um gênio, a mulher é maravilhosa, saudável, de repente morre do nada”. Eu falo assim “e por que que Fernanda Young não viveu a pandemia?”, jamais saberemos. E porque eu to vivendo? Tinha muito mais chance de morrer antes dela e to aqui. Então acho que é isso, a gente precisa agradecer cada coisa que nos acontece na vida, porque isso faz a gente ser melhor, a gente ser mais desenvolvido. Então, é isso, hashtag “tamo junta”, juntos, sem exclusão e incluir é muito legal, seja porque tem deficiência, porque é preto, porque é gay, porque é drogado, porque é até de direita, né, extremista, mas tudo isso a gente precisa... a inclusão é a coisa mais legal que pode existir na vida da gente. Acho que esse é o meu recadinho mesmo.
[01:44:59]
P/1 – Tenho mais duas perguntas, tá? O quê que você acha da proposta de mulheres serem convidadas a contarem suas histórias de vida e falarem sobre a saúde da mulher num projeto de memórias?
[01:45:14]
R – Nossa, eu acho que é um legado maravilhoso, porque de novo a gente falou da evolução das mulheres, né. A minha avó teve o quinto filho aos 40 anos, e a minha mãe me conta que ela tinha vergonha (porque ela morava no interior), porque significava que ela ainda transava com o meu avô. Eu casei com o Ivan aos quarenta anos então, em duas gerações, olha tudo que mudou, tá certo. E eu acho que a gente tem uma consciência hoje muito maior, do cuidado, da necessidade da gente estar com o corpo bom para a velhice, porque a gente vai envelhecer, a gente tá envelhecendo, e a gente precisa se cuidar porque envelhecer com qualidade é uma coisa, envelhecer sem qualidade é outra. Então eu diria que assim, isto é uma coisa muito importante mesmo da gente atualizar essas questões da saúde pra gente viver mais e melhor.
[01:46:35]
P/1 – E o que você achou de ter participado da entrevista? Ter adentrado na vida...
[01:46:39]
R – Olha, Lu,
eu adoro uma boa prosa, adoro contar causos. A minha frase no facebook é “senta que lá vem história”. Então se me perguntar se eu gostei, eu amei, eu adoro conversar. E de novo, pra mim é uma honra estar aqui participando de um projeto tão maravilhoso, acho sim que as mulheres, eu participo também do Mulheres do Brasil, e lá a gente fala uma coisa muito legal, que é “nós não somos contra os homens”, do jeito de nenhum, nós somos a favor da mulher, tá certo. E a mulher, em todos os anos, todos os séculos, de estar à sombra dos homens, de não ter a capacidade e tudo mais, a gente precisa falar a respeito disso, a gente precisa ver os casos de mulheres que quebraram as barreiras e que estão construindo esse novo universo feminino. De novo, pra mim é uma honra ter sido convidada para participar de um projeto assim, então puts, vamos embora, ninguém solta a mão aí.
--------FIM DA ENTREVISTA------Recolher