P/1 – Então eu vou pedir pra senhora falar novamente o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Maria Júlia Monteiro Dias. Nascida no dia 01 de julho de 1934.
P/1 – Em que cidade, dona Júlia?
R – Porto Seguro, na Bahia.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
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P/1 – Então eu vou pedir pra senhora falar novamente o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Maria Júlia Monteiro Dias. Nascida no dia 01 de julho de 1934.
P/1 – Em que cidade, dona Júlia?
R – Porto Seguro, na Bahia.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – João Higino de Figueiredo e minha mãe Perpétua Monteiro de Figueiredo.
P/1 – E o seu João Higino trabalhava com o quê?
R – Ele era escrivão dos Feitos Cíveis e Criminais aqui em Porto Seguro.
P/1 – E a mãe da senhora trabalhava?
R – Era doméstica.
P/1 – E a senhora tem o apelido de Julinha por quê?
R – Julinha?
P/1 – É.
R – Porque, pela ternura do meu povo, a meiguice, o carinho, aí puseram Julinha porque o meu nome é Maria Júlia, mas pra mimar mais ainda a cabocla puseram o nome Julinha. (risos)
P/1 – Por que a senhora fala que a senhora é cabocla?
R – Porque todas as pessoas nascidas aqui, em Porto Seguro, tem o sangue do índio, de caboclo e o meu corre nas veias o legítimo sangue do índio Pataxó.
P/1 – Ah, tá. A senhora se recorda dos seus avós, dona Julinha?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não me recordo porque a minha mãe já se casou numa idade bem madura, então eu não me recordo, eu não alcancei mais.
P1 – Não tem problema. E irmãos, a senhora tem?
R – Irmão eu tenho um: João Higino Filho.
P/1 – E ele?
R – É advogado e é presidente da Academia de Letras, em Ilhéus.
P/1 – Ilhéus, então tá. Dona Julinha, lembra, descreve pra gente assim: a senhora cresceu aqui em Porto Seguro?
R – Nasci aqui, me criei aqui, me casei aqui. Apareceu nessa ocasião uma colônia de...
P/1 – Férias?
R – Não, descendente que essa menina é.
P/1 – De japoneses?
R – Japoneses, sim. E que foi instalada depois de Eunápolis, aonde tinha, o nome era Instituto Nacional de Colonização e Imigração e Colonização, INIC. Isso aí eu me casei com um motorista-chefe dessa turma. Por nome, Álvaro Dias Ferreira. E aí casei-me com ele, vivemos felizes sem nem sequer namorar.
P/1 – É mesmo?
R – Dá certo. Meu pai disse: “Não, de maneira nenhuma: não quero!” E deu certo, vivemos felizes. Hoje tenho oito filhos, 18, 19 bisnetos que nasceu um ontem.
P/1 – Ah é? Então vamos voltar um pouquinho: descreve pra gente, dona Julinha, como que era Porto Seguro quando a senhora era criança, o quê que a senhora fazia, onde a senhora gostava de ir.
R – Porto Seguro, na época que eu era criança, era uma tapera, uma verdadeira tapera, não tinha água nem luz, isto aqui essa frente aqui, essa Passarela do Álcool era uma areia solta, né, uma areia solta. Não tinha nada, nada, era um atraso terrível! E hoje essa grandeza imensa que nós estamos vivendo, né? Mas era assim.
P/1 – E a senhora costuma brincar? Onde a senhora brincava?
R – Brincava, a gente fazia as brincadeiras aqui em frente ao mar mesmo, brincávamos de roda. Tinha um mato aqui, que nesse tempo não tinha o cais, era um estacado, e tinha um mato por nome salsa, ela era rasteira e dava umas flores bonitas lilás, aí a gente pegava aquele cipó imenso da salsa e pulava corda com aquele cipó, né? A turma toda, as mocinhas aqui. Fazíamos terrão de rei, bloco de carnaval, naquele tempo não era bloco, era cordão de carnaval que a gente chamava, né? E vivíamos felizes também. Baile de pastorinhas, era. Meu pai escrevia e mandava colocar a música e o pau quebrava aí (risos), a brincadeira era uma coisa séria mesmo. Já vivíamos felizes, Porto Seguro sempre foi a coisa mais louca do mundo, desde o atraso já era bom de se viver. Quando chegava uma pessoa de fora, aqui era o mesmo que chegar um Deus, um rei, era recebido por todos nós da melhor maneira possível e que coisa séria a gente fazia com quem que chegava, era assim, uma coisa de louco.
P/1 – E os estudos, dona Julinha, o que a senhora estudou?
R – Só o primário. Eu fui até o terceiro ano primário com a professora Nair Guimarães Dias Cravo. (risos) Mas aprendi, até hoje não esqueci um dos ditados da minha professora Nair, se quiser que eu diga eu posso dizer aqui: “Nova pátria, como não havia de me lembrar, pai... Estive revivendo o dia em que saí de lá solteira ainda, deixando as companheiras dos meus fogueiros de criança. Estive contemplando em imaginação o cemitério da nossa aldeia em que está a sepultura de minha mãe, mas... Calei-me e disfarcei para não lhe dar essa mágoa, pai, pensei que não se lembrasse? Lembro-me filha, lembro-me bem, quem esqueça a sua terra não tem coração.” (risos) Com os meus 11 anos de idade, dez a 11 anos com a professora Nair.
P/1 – E vocês apresentavam?
R – Era ditado, ela ditava pra gente escrever, mas eu decorava. Tinha uma memória boa, todos aqueles ditados eu decorava, tanto que depois, ela já estava com 90 e poucos anos, eu fui fazer uma visita em Salvador, ela chorou já pelos braços dos dois que estavam carregando ela lá, chorou por causa desse ditado quando eu fui falar. Disse: “Venha ficar aqui comigo uns dias”, mas faleceu logo após ouvir a leitura dos ditados.
P/1 – E, dona Julinha, como era a escola nessa época? Tinha uniforme?
R – Tinha.
P/1 – Que horário que ia, eram meninos e meninas que estudavam juntos?
R – Meninos e meninas tudo junto e também um turno só das oito às 12, e a farda era de marinheiro. A fardinha branca, saia pregueada e os punhozinhos de marinheiro. Os meninos naquele tempo não era nem bermuda, calcinha curta, né, com as mesmas coisas do marinheiro.
P/1 – E todo dia?
R – Todo dia. Todo dia não só por festa aquela fardinha, né, só nas festas de escola mesmo, né?
P/1 – E o uniforme do dia-a-dia?
R – Daí é como quisesse, pudesse ir em casa. Tamanco do corredor da escola era mar.
P/1 – Era o quê?
R – Tamanco, porque ninguém tinha, a pobreza era imensa aqui, era uma coisa séria, era uma vila de pescadores aqui embaixo, né, e então...
P/1 – A cidade vivia da pesca?
R – Da pesca. Do cacau também, às vezes da piaçaba, mas a pobreza era infinda, uma coisa séria.
P/1 – E as comidas tradicionais aqui de Porto Seguro quando a senhora era criança?
R – Era moqueca do peixe, o catado do siri, o que era mais meu Deus do céu? Polvo, moqueca do polvo, a fartura era imensa dessas coisas aqui, de fome ninguém morria.
P/1 – Como é que faz um catado de siri?
R – Catado do siri pega ele, tira aquela parte ali de cima e vai quebrando direitinho catando só a carnezinha dele toda, trabalho terrível. Dali prepara todinho, daí com leite de coco, azeite de oliva, cheiro verde, que é uma delícia, pra mim é o meu primeiro prato. Era, hoje em dia eu já não posso mais. (risos)
P/2 – E você mora por aqui desde aquela época?
R – Moro desde aquela época.
P/2 – Aqui na Passarela?
R – Na Passarela. Nasci aqui na Passarela, não ali naquela casa, mais adiante.
P/2 – E como era aqui antes?
R – É como eu estou lhe dizendo, aquela areia solta sem nada, as casas caindo tudo arrasado mesmo. Tinha um sobrado velho aqui que a gente passava correndo com medo até de dia.
P/1 – Por quê?
R – Sete horas, todo mundo ia dormir.
P/1 – Mar por que o medo?
R – Por que o medo? Porque ele ficou assim de jeito que ali só ficava os mendigos, não sabe? Então a gente passava com medo daquilo ali sem telhado, sem nada, mas os mendigos se abrigavam ali.
P/2 – E as lendas da, a lenda da Inaí que...
R – Da Inaiá.
P/2 – Da Inaiá?
R – É, eu tenho até escrito aí um pedacinho: que ela se apaixonou por um marujo e na hora que ele foi embora, ela se jogou aí nas águas. Apaixonou por ele, pelo homem branco.
P/1 – Tem muitas lendas que você ouvia na infância?
R – Tem. Tem uma da Josefina, uma que era esposa de um juiz de direito e que chegando aqui, ele mandou ela primeiro pra aqui, e depois ele veio de navio. Quando ele chegou, o irmão tinha dado uma carta a ele, o irmão dele apaixonado que ela era linda, a Josefina tinha uns cabelos loiros, batia aqui quase no joelho, bonita, olhos azuis, uma coisa de louco! E o irmão do juiz apaixonado fez uma carta pra ela, porque ela não quis ele, então fez uma carta para o irmão dizendo que ela tinha caso com ele, fez a pior infelicidade da vida. Ele veio e quando chegou que aí que ela foi buscá-lo a bordo do navio ele já veio batendo nela desde lá, porque nesse tempo se usava a bengala, o fraque, né, naquela, no tempo do atraso. Ele já veio com a bengala batendo, batendo nela desde lá até quando chegou em casa. E lá cortou o cabelo da moça todinho, deixou no casco puro. E ela então apaixonada com aquilo que não saía ficou o nome apelidado Casa do Martírio, porque foi aonde ela sofreu tanto. Até um dia ela tomou um veneno por nome verde-paris e ali se acabou. Foi o primeiro, a primeira morte de um suicida foi essa aí, foi com as próprias mãos. Então nesse tempo não se enterrava quem fazia isso no cemitério, ela foi enterrada aqui na mata, era mato puro ali, hoje em dia é a Rua da Cova da Moça, que é essa lenda que eu estou dizendo. Rua Cova da Moça que é a Josefina.
P/1 – É por conta da história da Josefina.
R – É, Josefina. Então meu pai dizia que o mais analfabeto que tinha aqui fez até um verso e disse: “Quando vem rompendo a aurora, que o galo canta e o boi berra, os passarinhos entoam: miséria em nossa terra.” Que, né, o quadro triste da menina morta. É assim.
P/1 – E dona Julinha, como é que esse Porto Seguro começou a mudar? Quando que a senhora percebe, assim, que a cidade começou?
R – Ele começou a mudar foi em 75, mais ou menos. Daí pra frente que veio essa, o asfalto, a estrada essa BR-101, sei lá. Daí pra cá é que foi melhorando, melhorando, depois explodiu mesmo, foi uma coisa séria. Uma coisa de ganhar dinheiro, eu mesma ganhei dinheiro aqui de colocar numa lata e num saco pra contar quando tivesse tempo. (risos) A primeira lanchonete aqui foi a nossa, o primeiro posto de gasolina aqui foi nosso, ali na Praça Inaiá, sabe ali e pronto. Tudo era ali: Posto e Lanchonete do Vavá. Vavá era o apelido do meu esposo, que era Álvaro e chamava ele Vavá, tudo foi ali.
P/2 – E a senhora trabalhou com alfabetização também, né?
R – Sim, e eu mesmo sendo, sem nada quase saber porque saí do terceiro ano primário, como já disse. Mas fui professora em Eunápolis, professora leiga ensinando a ler as primeiras letras. Fui professora na cidade histórica muito tempo e estou aqui até hoje.
P/2 – A senhora também fez uns blocos, né?
R – Ah sim, blocos carnavalescos, faço até hoje e saio também. Não viu eu de índia fantasiada ali na frente (risos), as fotos?
P/2 – Como chama mesmo o bloco?
R – “Nós somos nós” porque é o bloco da melhor idade, mas nós temos garra, temos aquela força de vontade de viver, a morte está se enfestejando e nós estamos lutando contra ela, não sabe, porque queremos viver. E é também no meu bloco entra essa turma toda: jovens, crianças, tudo.
P/2 – E quando você se apresenta?
R – Hein?
P/2 – Vocês se apresentam quando?
R – Quando? Sábado de carnaval e segunda.
P/2 – Tem o Bloco Fantástico?
R – Fantástico não é nosso não.
P/1 – É concorrente?
R – Faço parte também. Não, eu faço parte de todos: no do Índio, no do Fantástico, em tudo. Mas agora o nosso é Nós somos nós.
P/1 – Mas dona Julinha, sai antes dos trios elétricos o bloco?
R – Sai antes porque ele é com aquela, dá-se o nome de charanga, os instrumentozinhos mesmo daqui da cidade. Pandeiro e instrumentozinhos de sopro, aquelas coisas violão, tambor e aquilo tudo.
P/2 – A senhora falou que tem muitos afilhados aqui em Porto Seguro e muita gente que a senhora conhece.
R – Tem demais.
P/2 – Se envolve muito.
R – É, eu comando aqui um grupo de quase cem senhoras da melhor idade, né? A liderança, modéstia parte, é minha mesmo. Que consideração tamanha! Não ouviu ele dizer? No meu aniversário parece que abriram as portas do céu e do inferno, que eu não sei da onde vem tanta gente que não pude nem dar assistência aquele povo todo, e é assim.
P/2 – Festejando, né?
R – Festejando.
P/2 – Tem umas outras festas que a senhora também participou?
R – É o Baile dos Pastorinhos, como eu já lhe disse, a Terra de Reis, o bloco de carnaval, o Rancho de São João que fizemos agora esse ano também. O Rancho é o bloco todo ali reunido e entra nas casas, as casas já esperam com o licor do jenipapo que é tradição com o franguinho assado, com bolos de aipim, que é mandioca, né? Essas coisas.
P/1 – O Rancho de São João é no dia de São João?
R – No dia de São João.
P/1 – Então vamos fazer assim: vamos começar a descrever essas festas aqui? A senhora falou de Reis, né?
R – É, de Reis.
P/1 – Então assim: quando que acontece a Festa de Reis, como que é a preparação, quem que é o festeiro?
R – A Festa de Reis ela é no dia 6... 5 e 6 de janeiro. O festeiro chama, é uma festeira, chama-se Valcir, não sabe, que é da minha turma também, ela é quem faz.
P/1 – Todo ano ela quem organiza?
R – Todo ano ela faz, Valcir e Ló, são as duas que fazem, todas as coroas, todas as velhinhas de chapeuzinho branco com a fita caída aqui e vestido branco, uma cestinha de flores no braço e corremos a rua toda aí.
P/1 – Em procissão, é procissão?
R – É, cantando assim, é louvando o nascimento de Jesus, né?
P/1 – Como é que são as cantigas?
R – Eu não sei cantar não, mas vou falar, é assim ó, pera aí... Meu Deus! Pera aí... Viu como falha a memória, mas eu vou lembrar.
P/1 – A senhora não quer cantar?
R – A voz não presta não.
P/1 – Não, mas é só pra registrar.
R – É assim ó: “Ó noite cheia de encanto. Ó noite cheia de amor. Em que vem a luz do mundo. Nosso excelso criador!” E aí por diante. Se ela tivesse aqui com a voz bonita ia cantar pra vocês ouvirem.
P/1 – E o cordão de carnaval é esse que a senhora comanda?
R – É esse junto com a Sila também, eu e Sila fazemos juntas, é o Nós somos nós. Até eu mesma tirei uns versinhos: “Nós somos nós e com certeza somos os maiorais. E na hora da folia é desse bloco que eles gostam mais!” “Não é preciso vacilar, venha comprar seu abadá. Pra que vacilo, pra que seu Queiroz, se Porto Seguro é de todo nós!”
P/1 – E que outras festas tem?
R – Aí depois disso é só as festas de lago mesmo, de Nossa Senhora da Penha, que é uma festa boa também, ótima aí na cidade história. E a da Nossa Senhora d’Ajuda que é no dia 15 de agosto.
P/1 – Nossa Senhora?
R – D’Ajuda.
P/1 – D’Ajuda.
R – D’Ajuda que é do Arraial ali. Ajuda.
P/1 – E como é que é essas festas? Vai pro centro histórico, como é que é?
R – Não, é festa de lago mesmo é na rua. Ali é um sambão danado, ali aquela coisa de louco mesmo, muito boa também. Vem feito uma feirinha livre também, tem de tudo ali que vocês queiram.
P/1 – Tipo quermesse?
R – Tipo quermesse, leilão, essas coisas todas.
P/1 – Tem barraquinha.
R – Barraquinha demais.
P/1 – Leilão do quê que faz?
R – Fazem, às vezes, um pernil de porco assado, faz um peru assado, essas coisas e sai ali, quem der mais esse leva, né?
P/1 – Garantiu o jantar. (risos)
R – É. (risos)
P/1 – E dona Julinha, o pessoal aqui não fica incomodado, assim, com esse crescimento de Porto Seguro, toda essa vinda dos turistas? Como é que é a convivência de quem é da terra com os turistas que vem toda semana?
R – Eles se dão muito bem, ficam tristes quando eles aqui não vêm. Porque a sobrevivência nossa está no turismo, né? Estou dizendo a você o quanto nós já passamos, já sofremos naquele tempo do atraso de Porto Seguro, era triste. Hoje não, não tem mais. Você vai no Arraial d’Ajuda não tem ninguém pobre mais, quando vivia a maioria de vender mangaba, que é uma fruta da região, caju e vassoura de ramo, de um mato que pegavam ali, fazia as vassourinhas e vendia. E hoje não tem ninguém pobre, todo mundo tem o seu carro do ano, seu sítio, sua pousada e vivem felizes.
P/1 – E não tem atrito com os turistas?
R – Nada! Que amor tão grande nós temos aos turistas, né?
P/1 – Quê que Porto Seguro tem de especial?
R – Que tem de especial? As praias, né? Daqui pro lado do norte são 25 quilômetros de praia boa, né? Lá pro sul não se fala, até Caraíva coisa... Foi Deus mesmo que mandou pra nossa felicidade, a nossa tranquilidade uma coisa linda dessa, maravilhosa!
P/2 – Fala um pouco pra gente de como você vê a coisa de ser a primeira cidade do Brasil que você contou, lembra?
R – Ah, isso me deixa emocionada e empolgada por ser filha dessa terra também, né? Sabendo que ela é a mãe do Brasil. Então você estava dizendo que gostou, eu digo: “Quem vem aqui volta,
porque todo filho, quando encontra a sua mãe, é bem recebido e se sente feliz e quer vê-la novamente”. É o que se dá com Porto Seguro, todo mundo quer que venha, isto é um ímã, atrai a qualquer um. Verdade mesmo.
P/1 – Relacionado à origem da tudo.
R – A origem, é.
P/1 – E como é que foi mudando, assim, as casas assim. Descreve como... A arquitetura das casas ela mudou?
R – Pois é, mudou.
P/1 – Ou foi adaptando?
R – Foi mudando porque foi chegando o pessoal de fora que tinha maior conhecimento, construindo as coisas direitinho. Que ninguém tinha um banheiro em casa com azulejo, ia lá pro fundo do quintal, cada quintal imensa que até era interessante naquele tempo. Depois, o próprio prefeito daqui, que era Manoel Carneiro, na época, vinha com os turistas e dizia: “Olha, isso aqui vai crescer muito e preciso que vocês façam isso, isso aí dentro de casa. Vamos remodelando, reformando.” E isso aconteceu. Alguns foram vendendo as casas porque não tinha condição, morando em outro bairro mais distante, que morava aqui no centro que era pequenininho, era isso aqui ó.
P/1 – Era aqui, hoje a Passarela do Álcool?
R – Era a 2 de Julho e isso daqui, não tinha nada. Nada, não tinha nada mesmo.
P/1 – E por que que a rua começou a ser chamada de Passarela do Álcool?
R – Porque aí as bebidas todas eram aqui.
P/1 – Todos os barzinhos.
R – Todos os barzinhos aqui, até hoje essas barraquinhas dali pra lá é só bebidas. O Capeta que eles chamam. (risos)
P/1 – O que é o Capeta?
R – Capeta é uma bebida que deixa a pessoa louca.
P/1 – O quê que tem no Capeta?
R – Quê que tem, você que é jovem? Não sei, eu sei que quem toma aí gosta da coisa. (risos)
P/1 – Aguenta a noite inteira?
R – Tanto o homem quanto a mulher.
P/1 – Aguenta a noite inteira?
R – A noite inteira.
P/2 – A senhora contou pra mim que escreveu muitas poesias, né?
R – É, mas...
P/2 – Sempre fez muitas coisas.
R – Sempre tem quem corrija o certo ou o errado, mas eu escrevi.
P/2 - Falava muito sobre o seu amor por Porto Seguro.
R – É. Eu tô com o caderninho lá cheio, até devia trazer pra...
P/1 – E com quem a senhora aprendeu a fazer poesia?
R – Porque o meu irmão é poeta, o meu pai também era, né? Meu pai fazia coisas que Deus duvida! Fazia, escrevia um drama, como fez aqui o Sangue que ora, mas abalou essa terra, tudo escrito e levava ao público, pegava a turma toda pra ensaiar e fazia apresentação.
P/1 – Desse drama?
R – E também o da princesa.
P/1 – Conta, conta as duas histórias pra gente.
R – É o da princesa, não, o do Sangue que ora era que uma não acreditava em Deus, coisa nenhuma e acabou se tornando cristã e... Não, ela tomou um castigo muito grande que não acreditava em Deus, a irmã acreditava e ela não. Mas uma coisa imensa, bem grande, eu tô contando já o final. Então por último ela tornou-se uma mendiga toda rasgada aí pela rua tirando esmola. Aí um dia ela veio e disse pra irmã: “Perdoai uma desgraçada, já não sou mais desdêmona e acreditava que existia um Deus!” Aí melhorou de situação e tudo isso, com aquele abalo a irmã morreu na hora e tornou-se... Sim, ela ainda veio com um punhal pra matar a irmã. Foi um negócio desse assim que eu não tenho muita lembrança. E a princesa, que era uma princesa, mas que se apaixonou por um mercador e pretinho. A princesa linda, né? Então esse eu ainda me lembro uns pedaços bons da princesa.
P/1 – E ele ensaiava o grupo de teatro?
R – Ensaiava tudo.
P/1 – Onde que apresentava?
R – No público, aí no ar livre fazia um palanque aí pronto. Fez muitas vezes aí. O da princesa ela disse, ela dizia: “Eu sou a jovem princesa que no meu palácio brilha. Ignoro lei de amores e passos os meus dias tranquila. Logo que amanhece o dia vou ao jardim colher flores. Com minhas vassalas ao lado”, duas vassalas, duas criadas, “sem cuidado e sem amores.” Nisso já está ali dizendo que não queria saber de amor passa o mercador vendendo jóias, o pretinho, né, bem escurinho. Aí disse: “Hoje cheguei de Paris e trago para vender as jóias mais preciosas que no mundo pode haver. Trago o espelho encantador que admira o mundo inteiro, porém não dou nem vendo enquanto eu viver solteiro!” Ela que viu se apaixonou pelo pretinho e mandou as duas vassalas, disse vai lá: “Vem de cá minhas vassalas, chamai aquele mercador, quero comprar o anel do mais rico que tiver para ofertar ao meu pai quando ele aqui vier.” Aí o mercador botando banca ainda disse: “Meu espelho eu não vendo, nem vos posso ofertar, porque é para uma jovem com quem ei de me casar”. A princesa falou: “Serei eu a tua jovem? Que no altar do (emineu?) jurarei laços sagrados, tu serás esposo meu!” Ele disse: “Ah, que fortuna acabo de receber. Será um sonho? Um delírio que me faz enlouquecer?” Ela: “Não é sonho, não é nada, Alcino, mercador querido, eu serei a tua esposa, tu serás o meu marido!” Aí até o final que isso era apresentado no natal pra no final quando vinha um anjo, não sei o quê, _________, aí nascia o menino Jesus. Aquelas coisas de outrora, do meu tempo da antiguidade.
P/1 – Ô dona Julinha, mas assim, o pai da senhora ensaiava, a senhora acompanha?
R – Acompanhava e decorava tudo. Eu ainda menor, menorzinha, as outras tudo moças feito do tempo que eu me recordo quando ele começou a fazer, eu decorava das meninas primeiro do que o meu porque eu não estava fazendo parte nem nada daquilo. Mas eu decorava tudo.
P/1 – E a senhora encenava também?
R – Depois então, quando eu cresci, eu também saía. E até hoje a gente ainda faz aqui pra relembrar o passado a gente faz.
P/2 – Tinha outros grupos também?
R – Tinha.
P/2 – Você via quando era grupos que...
R – Aqui vivia de fazer essas coisas mesmo. É porque tem uma pessoa aqui, ela está em Eunápolis, mas essa era a atriz da cidade, professora Valdete, hoje já está velha também, mas se lembra de tudo, canta tudo direitinho, só você vendo. Tem a voz linda linda linda.
P/1 – E ela ensinava vocês?
R – Hoje ela ligou pra mim agora à tarde, se você tivesse aqui você ia ver o que iria lhe acontecer, mas ela foi pra lá. Eu tô dizendo pra você que essas velhas não andam bem, a de lá ela tá meia pinel também, sabe? (risos) Foi fazer um tratamento em Eunápolis.
P/1 – Dona Julinha, vamos dar uma paradinha só para arrumar o microfone que eles... (pausa) Então vamos voltar. E a senhora acompanhava esses ensaios e tinha uma grande atriz da cidade.
R – Tinha a professora Valdete. Hoje está da minha idade também, mas ainda com a mente brilhante: recita, canta, dança, só você vendo.
P/1 – Agora, dona Julinha, da onde vem assim o seu pai tinha esse interesse de trabalhar com poesia, com teatro, como é que tem isso na família da senhora?
R – Eu não sei nem explicar. Eu tinha um também, um parente de meu pai que diz que era o redator-chefe de um jornal sem nem ter jornal aqui em Porto Seguro nem nada, escrevia na parede tudo que se passava. De manhã cedo, a turma corria ia ver o que ele tinha escrito.
P/1 – Que parede era essa?
R – A parede lá na cidade histórica, as paredes imensas, né, ele escrevia o que se passou durante o dia...
P/1 – As notícias.
R – As notícias ali. Depois ia apagava tudo, chamava assim, meu Deus do céu. Nesse livro até tem o nome dele também, eu esqueci o nome dele.
P/1 – Não tem problema.
R – É inteligente também. Eu não sei da onde vem essa inteligência, né, veio da parte de meu pai porque da minha mãe não era não. Mamãe mal assinava o nome, mal mesmo, mas meu pai não.
P/1 – Mas ela tinha outros dons? Ela tinha outros dons?
R – Da casa, da culinária.
P/1 – É?
R – Se você chegasse lá em casa você ficava louca de ver os pratos formidáveis que ela fazia, os doces de toda qualidade. Isso é que era.
P/1 – Quê que a senhora lembra, assim, dela fazendo, o que ela gostava de fazer?
R – Fazia uma tal de cocadinha mola, não sabe, pra sobremesa, fazia dela branca, ela escurinha. E fazia um doce de banana, o doce da laranja da terra. Tudo isso eu me lembro perfeitamente. Tinha um armário só pra isso lá em casa. Aí ela dizia ao meu pai: “Você quer doce, João?” Ele dizia: “Doce nunca amargou!” (risos) Ele ficava no doce direto. (risos) Isso eu me lembro dessas coisas todas.
P/2 – E hoje em dia o que a senhora faz?
R – Eu hoje em dia não faço nada. Eu gosto de estar com a minha turma, tomar um Campari, ir pra seresta, ficar lá vendo as músicas de outrora, não sabe? Mas hoje eu não tô podendo mais, eu tô proibida de tomar o meu Campari. Eu tenho até uma poesia lá sobre isso que eu fiz.
P/1 – O Campari?
R – Sobre o Campari que eu tomo e não tem coisa melhor, né? E a cerveja. Agora, no dia da festa de Nossa Senhora d’Ajuda eu vou tomar minha cerveja lá. E minha mesa já está certa.
P/1 – Reservada.
R – Fica, todo mundo vai para onde eu estou, é interessante, eu vou sozinha daqui mas lá. Se pudesse ir pra lá pra filmar você ia ver, tudo está ao meu lado, né, todo mundo.
P/2 – A senhora tem um carisma muito grande, né, dona Julinha?
R – É, não sei o que é isso, não sei, não sei. No dia que pensaram que eu ia morrer até um time de futebol tava lá, todos que estavam no campo já estavam lá esperando pensando que eu tinha morrido.
P/1 – Nossa!
R – Morri não, não vou agora não!
P/1 – Mas quê que a senhora faz pra ter tantos amigos, tantos fãs?
R – Não sei nem o que é. O povo é sempre que dizia, um prefeito que tinha aqui, o Baldino, era menino o filho de Baiano, né, que Baiano era o prefeito, o pai dele, depois ele se candidatou e venceu o Baldino. Então ele dizia: “O meu povo aqui precisa somente de um sorriso, mais nada. Faça isso, não se afugente do meu povo não que você vai ver.” E é isso com que eu conquisto o meu povo, é isso: rindo, abraçando, conversando, beijando a todos ali e pronto, não precisa mais nada!
P/1 – Mas isso é da senhora ou é do povo de Porto Seguro em geral?
R – Eu acho que o povo não é todo também, né, a maioria. A maioria é pessoa boa também, acolhedora. Lá em casa a porta, se ficar aberta nesse dia, é um dia de festa lá em casa, pode botar o feijão no fogo com mais fartura que vem gente. (risos) Não falta ninguém não lá. Também não é só no momento de isso não, na doença também eu vejo que são amigos mesmo.
P/1 – As pessoas estão presentes.
R – Uns até de compraram o remédio que eu estou precisando ali, quando eu peço já vem com o remédio. “Eu comprei pra você!” “Eu trouxe aquele assim!” Coisa séria.
P/1 – E uma das amigas é a Preta?
R – Preta é a minha vizinha aqui.
P/1 – A senhora conhece ela faz tempo?
R – Pouco tempo, mas eu sei que é gente boa também a Preta.
P/1 – É?
R – Preta, esses dias o ladrão pulou lá no meu quarto, não foi Preta? Ela ficou mesmo que louca, tomou toda a providencia aí. O ladrão subiu por aqui, pelo telhado dela aqui e foi cair lá em casa. Mas não me fez nada não, só roubou o celular e saiu, foi embora. E dormindo eu estava, dormindo eu fiquei que não vi também.
P/2 – Ô dona Júlia, tem muitos artistas aqui também em Porto Seguro?
R – Artistas? Daqui mesmo não, né? Só da lambada que eles se tornam artistas que saem por aí, tudo isso, e tem o nome bem elevado com o negócio das lombadas, aquelas danças. Mas outra coisa não só os que vem de fora mesmo.
P/2 – E os poetas?
R – Poetas também um pouco. (risos)
P/1 – Mas a senhora...
R – Agora eu queria ter estudado, que beleza, né? Hoje em dia eu não ia passar pela vergonha de não saber o que tava fazendo.
P/1 – Imagina! A senhora quer recitar poesia do seu irmão?
R – Eu vou recitar do meu irmão, da autoria de meu irmão são essas três aqui. Veja primeiro antes da poesia o que ele fala aqui, ó: “Ah Porto Seguro, a tua história é bela, é grandiosa, cheia de heróicos lances fascinantes. Uma história opulenta, majestosa de sagas e lendas deslumbrantes. Cite-se a de Inaiá, a mais formosa, a selvagem de olhos penetrantes, que seu amor provou ao lusitano afogando-se nas águas do oceano.” Pegou bem?
P/2 – Ficou ótimo!
R – Agora vamos ver aqui a homenagem que meu irmão fez a Porto Seguro, não, aos portosegurenses. Isso pelos 500 anos da descoberta do Brasil: “Porto Seguro, meu soberbo encanto. Terra formosa onde nasci sorrindo. Cantando amores no teu rico manto. Nos ternos braços maternais dormindo. Que Deus entoe em teu louvor um canto de amor, de glória e de esplendor mais lindo. Quero em teu seio repousar do mundo, fitando as cores do teu céu profundo. Se me recordo teu passado imenso, sinto em meu peito uma alegria infinda. Ó minha terra, ó meu amor, meu senso é de elevar-te a expressão mais linda e de exaltar-te e como só eu penso, eis que meu estro em teu louvor se finda cantando sempre, e no mais puro eleve, pois só a ti, pois só a ti o meu coração eu devo. És terra mater do Brasil gigante. A quem mostrar-te na inocência ao norte. A terra virgem onde Cabral errante, viveu momentos de esplendor e sorte. Hoje liberta de um sofrer constante, e de um sofrer constante, em que viveste o dissabor e a morte. Sem ter do filho majestoso e belo, a honra e glória do menor desvelo”. Mais? Não, né?
P/1 – Pode.
R – Chega?
P/1 – Não, pode ler mais uma.
R – Deixa eu ver. “Mais nada importa ó minha altiva musa. De nada importa esse viver penoso. Enquanto o Monte Pascoal da Lusa, resplandecer perene e majestoso fitando o mar na triste voz confusa. Há de elevar o nome teu saudoso. Há de elevar o nome teu na história, cingida fronte dos lavreis da glória.” Pronto.
P/1 – Olha. Ele costuma publicar essas poesias?
R – Ele publicou, essa já é a segunda vez nesse livro. Ele fez uma somente Exaltação a Porto Seguro com essa poesia só, e a agora esse aqui. Que esse livro eu queria oferecer a vocês, está aqui com a dedicatória de uma pessoa aqui, mas eu pego outro para o de cá e quero dar a vocês, viu?
P/1 – Tá jóia.
R – Pode até tirar essa folha aqui.
P/1 – Ô dona Julinha, vamos voltar um pouquinho falar assim de como começou a lanchonete da senhora, quando começou o posto? O que começou primeiro?
R – A lanchonete foi... Todos os dois juntos. O posto começou ali, a gente vendendo a gasolina num tambor, aqueles tambores que vinha mesmo a gasolina, o querosene, não sei o que, numa mangueira, e a casinha de tábua pequenininha que só cabia o meu marido ali dentro pra não tomar o sol do dia. (risos) Era, começamos assim. E a lanchonete foi preciso mandar um de Eunápolis pra fazer um curso lá perto de Salvador por lá pra poder atender o povo que ninguém sabia fazer um sanduíche, nem um suco, nem nada mesmo na ocasião. Então começou assim, foi a primeira lanchonete. E chamou a atenção aqui da minha terra, abafou mesmo. Estou dizendo a você que a gente guardava dinheiro nesse tempo no saco e na lata pra contar quando tivesse tempo. Não tinha Passarela do Álcool, não tinha nada, éramos nós ali só.
P/1 – E já estava começando a ter o turismo?
R – Já, já estava começando. Isso foi de 77, mais ou menos, 76 até 80, depois hoje é loja ali. Aí encheu logo, aí vem um vem outro.
P/2 – Como chamava a lanchonete?
R – Posto e Lanchonete do Vavá.
P/1 – E agora a senhora tem a pousada ali?
R – Mas ali só funciona no verão quando vem um grupo assim de umas 45 pessoas ou aí, pra eu não me preocupar, pra não ter mais trabalho aí eles cozinha, eles fazem tudo lá mesmo. Me dão presentes e me tratam como que eu seja a mãe deles lá, né? De manhã a minha mesa do café já tá ali com tudo, eles trazem e botam ali naquela sala onde nós ficamos. E aquela casa ali vai dali até a Getúlio Vargas, aquele comprimento sem fim. Pois é.
P/1 – Então falar um pouco assim, voltar um pouquinho e falar das origens da senhora, né, que a senhora falou que tem sangue caboclo, que tem a mistura do... Então assim, o que a senhora conhece da história dos Pataxós aqui na região? Quê que a senhora conhece dessa história?
R – Eu conheço o seguinte: esses Pataxós eles residiam lá na Barra Velha, aonde eu tinha ali o meu avô que se chamava Tibério, morava ali também, era irmão de um que foi o cacique ali da tribo por nome Epifânio, era irmão dele o Epifânio, Tibério. Mas ninguém me dá notícia mais. Eu quis até fui pedir a carteira do índio, porque eu tinha direito, só se eu fosse pra Barra Velha. Eu vou sair daqui pra ir pra Barra Velha, né, não dá mais não. Morar lá não dá.
P/1 – E é por lado de pai ou de mãe que a senhora...
R – É por lado de mãe.
P/1 – De mãe.
R – A minha mãe ela era bem branquinha, bem alvinha, filha de português com índio. E já meu pai era crioulo, né? Minha mãe era bem branca, mas ele era crioulo mesmo.
P/1 – Dona Julinha, desculpa, não pode falar, desculpa.
R – Pode falar você.
P/1 – Tem assim algum hábito na casa da senhora que a sua mãe tinha que a senhora acha que tem origem indígena?
R – Indígena?
P/1 – De comida, quê que?
R – Tem é... O cauim, a bebida que a gente faz, que hoje quase ninguém mais faz. Você compra um potezinho de barro e a mandioca, corta ela todinha ali e dá uma fervida e põe ela ali no pote e amarra ali a boca dele ali até ele ficar assim como, como é que se diz? Fermentado. Quando você abre assim, aí você toma ele com açúcar. Então os índios diziam que servia pra limpeza de pele, que a pele fica linda isso e aquilo. E eu sempre faço isso em casa pros meninos saberem que mamãe fazia sempre. Aí a minha mãe contava que na época dela menina quem tinha os dentes perfeitos mastigava a mandioca com os dentes. (risos) Não cortava não, mastigava com os dentes e jogava ali no pote pra fazer, viu, o índio.
P/1 – Pra fazer o cauim?
R – Pra fazer o cauim. Pegava as crianças pra fazer isso porque tinha os dentes perfeitos, mastigava ali e botava. Minha mãe que dizia, né?
P/2 – Dona Júlia, essa mania que você disse de cortar o seu próprio cabelo...
R – Eu mesmo corto. Eu pego ele assim, ponho pra cima, eu mesmo já cortei porque estava esperando vocês. Peguei assim e chut, e deixo os pedacinhos aqui e o outro cá, pronto. Que é a origem do índio mesmo. (risos)
P/1 – De cortar o cabelo assim?
R – Cortar o cabelo.
P/1 – E você aprendeu com a sua mãe, a senhora...
R – Não, com mamãe não, comigo mesmo. Eu faço, eu vou pra Caraíva para o meio dos índios, pego eles todos, entro na igreja, mostrei a foto pra você? É, e eles me obedecem e vão comigo na igreja, entro lá na hora da missa, com galho de mato, com tudo de índio também. É, eu vou.
P/1 – E não dá confusão assim com a igreja Católica?
R – Não, não dá não. A Católica não, eu pedi até a festa de lá o padre falou assim. Eu estava com duas garrafas de bebida assim na mesa aí ele disse. Eu digo: “Eu queria, achei tão decadente essa festa agora aqui de Caraíva, eu vim quando eu era menina, eu tive aqui que beleza. Então eu queria pedir pra fazer como era antigamente com comidas a vontade pra esse povo todo que chegar”. Ele disse: “Mas tira a bebida daí da mesa porque se superior dele chegasse ali não ia consentir”. Mas me deu a festa pra fazer, nós fizemos oito dias de festa em Caraíva. Foi essa que eu mostrei as fotos a ela.
P/1 – E o quê que teve nesses oito dias de festa?
R – Ah, daqui deram um boi, por nome Ailton Dantas deu um boi. O que era prefeito mandou fazer uma feira imensa para o que quisesse lá e foi oito dias comendo cada qual se servindo com a sua própria mão. Os índios adoraram, nunca mais eles viram uma daquela ali, eu não vou mais fazer, não tenho mais condição.
P/2 – Você vai lá visitar eles?
R – Eu vou sempre.
P/2 – Nas tribos mesmo?
R – Na tribo mesmo, na Barra Velha é uma tribo mesmo. Eles dizem: “Fique porque vai ter uma festinha aí”, eu digo: “Ah, mas não dá pra ficar não”. Fui num bugue, aquela areia solta danada lá, né? Uma coisa séria.
P/1 – E que mais, assim, a senhora identifica de origem indígena da senhora?
R – Sim, é isso que eu estou lhe dizendo e eu mesma noto em mim que eu tenho toda a cisma do índio. Quando eu vou ali na rua, se aquilo vier na minha cabeça: “volte, não vá mais”, eu volto e venho pra cá. “Mas, meu Deus, por que que eu voltei, eu não ia?” Isso é coisa de índio mesmo. É verdade. Depois de já estar longe: “Volte, vá pra casa”, aí eu volto. É assim. Porque diz que o índio, você diz uma coisa a ele que ele não gosta ele vai calado, e volta no outro dia para lhe dar a resposta. (risos) Daquilo que ele não gostou no outro dia que ele vai lhe responder. Agora eu já não faço isso, já evito, né? Qualquer coisa que me desagrade, venho pra casa calada e lá mesmo fico, que é o mais certo, né? E também aqui em Porto Seguro nada faz sem a minha presença, dum velório ao aniversário de um aninho tudo é comigo, todo convite eu tenho demais lá em casa. Aí eu levo a turma que não recebe o convite, eu digo: “Só vou com a minha turma, levo tantas hoje”, “Tá certo!” “Hoje levo tantas”. É assim. Vai passando a vida.
P/2 – O que você acha do jeito dos índios?
R – Eles agora estão civilizados, né? Tem uns até que estão fazendo direito e tal. Naquele tempo é que você pensava que eles estavam querendo tirar a vida de um, hoje não estão mansos. Umas índias bonitas que tem aí na Coroa Vermelha, só você vendo, lindas mesmo, umas morenas bonitas.
P/1 – O quê que mais chama a atenção da senhora nos traços dos índios?
R – O meu?
P/1 – O que a senhora gosta assim?
R – Eu acho que o cabelo, o cabelo, né? O olho do índio também. O meu modo de viver: tudo eu como, não tenho esse problema de fazer regime nada não. Isso também pertence a eles, seja a comida mais forte, nada me faz mal, nada, nada. Que o branco já não faz assim não: “Ah, não vou comer isso não, porque colesterol...” Nunca quis saber de pressão alta, colesterol e nem nada. Hoje tô com tudo isso, mas nunca procurei saber nem se sou diabética, não quero saber nada. Agora que tava internada que fui sem poder falar, sem poder dar um passo. É esse mesmo.
P/1 – Vamos dar uma paradinha pra tomar remédio?
(pausa)
R – Eu completei aqui não é tudo de minha autoria não, um pouco que é meu. Eu tenho uns livros lá de poesia antiga e tudo isso, aí mando brasa.
P/1 – Então pode recitar pra gente, dona Julinha!
R – “Amar é viver, não, viver é amar. É ter um dia. É ter um dia um amigo, uma mão que nos afague, uma voz que nos diga os seus queixumes, e que as nossas mágoas com amor apague. “Amai-vos”, disse Deus criando o mundo. “Amemos”, disse Adão no paraíso. “Amor”, murmura o mar nos seus queixumes. “Amor”, repete a terra no sorriso. “Amemos”, disse... Amemos este mundo é tão tristonho... A vida como sonho brilha e passa, porque não havemos para calar as dores. Levar aos lábios do Campari a taça”
P/1 – (risos).
R – “O mundo, o mundo que te importa o mundo, velho invejoso e coisa tão mesquinha. E para esquecer tais coisas desse mundo junte-se agora a turma da Julinha, cabocla arretada de Porto Seguro.” (risos)
P/1 – (risos) Ô dona Julinha, na entrevista da senhora tem duas coisas assim, três coisas que permeiam muito: o sangue indígena, a poesia e o Campari.
R – E o Campari.
P/1 – Quê que essas três coisas tem de especial pra senhora?
R – Pra mim eles tem tudo de bom na minha vida, é minha, são essas três coisas, é o símbolo da minha vida: o Campari, a poesia e o sangue indígena.
P/1 – Nossa, maravilhoso!
R – Pra mim que beleza, viu?
P/2 – Você tem uma poesia sobre essa coisa indígena, sua assim?
R – Não, não tenho não.
P/1 – Carrega no sangue, né?
R – É, carrego no sangue, na veia.
P/1 – E dona Julinha, se a gente for pensar assim numa história mais oficial de Porto Seguro, a senhora tem algum conhecimento assim?
R – Assim, não tenho não!
P/1 – Tem de vivência, né?
R – É.
P/1 – E daqui pra frente, assim, o que a senhora sonha pra Porto Seguro?
R – Eu sonho que cada vez ele cresça e que o povo aqui reconheça a vida em que vivemos outrora de infelicidade, de pobreza e de tristeza, de tudo de ruim. E hoje que todo mundo vive empolgado, feliz nada lhe faltando. Em primeiro lugar o pão de cada dia que é o principal. Eu mesma não faço questão de grandeza nenhuma, nem riqueza, mas quero saber de todo dia eu tenho o certo pra pagar o meu telefone e a luz, a água e a minha alimentação você vê, junto com o meu povo todo dessa terra.
P/1 – E os netos e netas?
R – Netos e netas, a maravilha que Deus me deu! “Quem criou você minha filha?” “Vovó me criou”, quando era pequenininha. “Vovó me criou!”, né? Que a história dos pais é uma história interessante.
P/1 – Diga.
R – Ele com 14 anos, e ela também, começaram a namorar e sem ninguém esperar surge essa criança, né? Ele menino chegava lá em casa abria a boca chorar porque estava estudando em Ilhéus, não podia ficar aí pra dar notícias. Fizemos o possível, deixei dentro de casa, nasceu essa menina que é linda, maravilhosa, que é o meu (encanto?), não sabe? Eu estava dizendo a ela que a menina esses dias me perguntou: “Minha avó, qual dos netos você mais gosta?” eu disse: “Gosto de todos, o amor da sua avó é igual. Mas tem três coisas aqui que eu vou lhe dizer que eu criei essa, a outra que estava aquela magrinha, e uma que não tem mãe que a mãe morreu”, que é minha neta também que vive comigo.
P/1 – Qual que é o nome delas?
R – Essa daqui tem um nome árabe: Saaisla, o nome dessa. A outra Alana, a que não tem mãe. Aquela que mora comigo, que estava conversando com vocês é Lara. Então essas três, né? O amor é igual, mas tem esse destaque das três. Essa criei mesmo assim, acompanhei tudo desde o dia que nasceu até. E quando nasceu, parece que ela me olhou assim e fez: “Toma conta de mim minha avó, porque minha mãe não tem juízo!” Era uma criança, 14 anos, passou ali agora a mãe. As duas juntas parecem duas irmãs.
P/1 – Com certeza. E dona Julinha, assim pra gente ir finalizando a entrevista, a senhora já é uma pessoa conhecida aqui, né?
R – Demais.
P/1 – Mas o quê que a senhora achou assim de ter feito a entrevista com a gente pra um museu virtual, falando da sua história, da sua infância?
R – Ah, eu estou muito feliz, fiquei mesmo empolgada com esse problema que houve hoje aí. O prazer meu é imenso, é indizível, não tenho nem palavras pra dizer a vocês como fiquei feliz. Sabe que estou doente, estou sentindo já um pouco de falta de ar, mas estou feliz. Pra mim vai ser uma grandeza maravilhosa, pra mim e para o povo da minha terra quando ver eles todos, vão não dizer que ficou não foi despeito nem inveja, fiquem felizes também, vem a mim todos eles.
P/1 – Com certeza, fantástico. Então eu queria agradecer a senhora em nome do Museu da Pessoa, agradecer a Preta por ter cedido a galeria que estão imagens lindas. Eu queria agradecer demais e muito obrigada.
R – Nada, meu amor. Eu que agradeço a vocês de me escolherem pra isso.
P/1 – E ao Alex também que nos trouxe até a senhora.
R – Pois é, foi ótimo!
P/1 – Obrigada.Recolher