Projeto Conte Sua História
Depoimento de Dora Muller
Entrevistada por Carol Margiotte e Henrique Brasil
São Paulo, 24/03/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV681
Transcrito por Rosana Rocha de Almeida
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Bom dia, Dona Dora.
R – Bom dia!
P/1 ...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Dora Muller
Entrevistada por Carol Margiotte e Henrique Brasil
São Paulo, 24/03/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV681
Transcrito por Rosana Rocha de Almeida
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Bom dia, Dona Dora.
R – Bom dia!
P/1 – Obrigada por estar aqui hoje com a gente.
R – Eu que agradeço.
P/1 – E, para começar, por gentileza, seu nome completo.
R – Dora Muller Gomes.
P/1 – Local e data de nascimento da senhora.
R – 12 de setembro de 1937.
P/1 – Onde?
R – Vila Madalena
P/1 – São Paulo, né?
R – São Paulo.
P/1 – E, Dona Dora, a senhora sabe a história do dia do nascimento da senhora? Seus pais te contavam?
R – Sim, foi muito bonita a minha história. Eu nasci ao meio-dia. Nesse tempo, não existiam pessoa que... Simplesmente, era um parto em casa. Eu nasci com quatro quilos e 900!
P/1 –
E sua mãe conta como percebeu?
R – Sim!
P/1 – Pode contar pra gente toda história que a senhora conhece do nascimento!
R – É, foi assim: morávamos ali na Luís Anhaia, naquele tempo. Esse número foi mudado umas duas vezes, antes era o 28 e depois virou 118, teve uma mudança de números de rua. Nas casas, porém, né? E ali eram casinhas simples que foram compradas a poder de, suponhamos, naquela época, era uma nota dos seus valores. As casas não tinham muro, eram de arame farpado as divisões das casas. Eu ainda me lembro, muito vagamente, de ter esse muro de arame farpado. Depois é que meu pai foi fazendo o muro das casas, que eu me lembre. Eu tive uma doença muito delicada. Hoje fala-se em difteria, mas naquele tempo era o crupe. A mãe percebia no mamar: a criança que não mamava e não respirava bem. Tínhamos dois médicos aqui em Pinheiros e Vila Madalena, que serviam: eram Doutor Lotito e Doutor Rizzo, que hoje tem até ali pelo Bonfiglioli, pequenos lugares, Rizzo, João Rizzo, tudo aí.
P/1 – E, ainda no nascimento da senhora, sabe por que escolheram o nome Dora?
R – Porque parece-me que tinha uma corrida de carros naquela época e tinha uma corredora. Chamava-se Dora, e meu pai achou bonito e pôs Dora.
P/1 – E, falando nos seus pais, qual o nome deles?
R – Hermann Otto Muller, alemão, veio da Alemanha com um aninho, nascido em 1908. Contava minha avó – Frau Nina ela chamava! – que ele veio num baú, no navio. Se chorava, não podia chorar. Eles vieram expulsos da Alemanha, daquele lugar, de Mecklenburg.
P/1 – E ele contava, sua avó contava?
R – Contava!
P/1 – Como foi a decisão de vir para o Brasil? Pode contar pra gente.
R – Sim, foi uma história muito bonita. Ela foi governanta na Avenida Paulista, de famílias tradicionais alemãs. Meu pai tinha o tio Ludovic, Alfredo, Walter, tinha Elisabeth e meu pai, Hermann.
P/1 – E eles contavam como foi a viagem de lá para cá?
R – Sim, contavam. Naquele tempo, quantos meses demorava? Três? Quatro? Chegaram aqui e foram para Mogi, já direto. Vieram para os “imigrantes”, que deve ter nome daquela época, né?
P/1 – E por parte da mãe?
R – Minha parte da minha mãe... Minha mãe já era por parte de calabreses, minha mãe já nasceu aqui em São Paulo. Mas minha avó também veio de navio, vieram em duas irmãs, tia Rosinha e a avó Angelina, e foram tudo para a Vila Mariana. Era localização de espanhóis, italianos, portugueses. Ali, se adaptaram nesses lugares, eram carroceiros. Contava-se. Como aqui em Pinheiros, teve muito, muito. Começou a imigrar muita gente para cá.
P/1 – E o nome da mãe da senhora?
R – Catarina Abatte Muller.
P/1 – E a senhora sabe como seus pais se conheceram?
R – Sim. Conheceram assim: meu pai não se deu muito bem com o padrasto dele e ele foi morar numa família alemã que existia aqui na Mourato Coelho, perto da Teodoro Sampaio. Ele morou ali, e minha avó morava já ali, a família, moravam na Cardeal Arcoverde. E meu pai deu-se muito bem com os meus tios, da parte da minha avó, que eram em nove! Nove! E meu pai começou a consertar ferro, era um meio de ganhar, com 14, 15, 16 anos, que assim contava meu pai. Depois ele conheceu o tio José Fillardi, era gente de perto de Leme, mas era Descalvado. Ficaram colegas, que compraram uma casa ao lado da nossa e começaram. Mas, antes disso, meu pai foi morar na casa da minha avó, existia esse tipo de coisa. E a minha mãe namorou com o meu pai e logo casaram-se. Mas, naquele tempo... Meu avô Francisco não era calabrês, era já nascido aqui na Bela Vista, nesse lugar onde se localizava colônia italiana. E aí casou com minha mãe, não sei o ano, isso eu não sei, mas ainda tenho coisas em casa, alguma coisa que relacione ao casamento deles. Mas o meu avô fez uma casa, veja a ideia de pessoas antigas, né? Eram pessoas que... Também morador aqui na Rua Fernão Dias, eram de transporte de carne do tendal! Hoje, são frigoríficos, né? Antigamente, não, os meus tios foram de tendal, tendal chamava-se o frigorifico em Ibiúna, que falava: “Ah, vou lá para Ibiúna”. Ficava dois ou três dias em Ibiúna para trazer carne. Transporte para cá. Meu avô fez uma casa em Carapicuíba, minha avó não quis ir, o que esse avô fez? Pegou todas as coisas, o pouco que tinha, pôs na rua e pôs fogo. Ficaram tudo na rua. Meu pai... Eu tinha uma tia que chamava... Quase idade da minha irmã, naquele tempo era assim, a filha estava grávida, mas a mãe ainda estava tendo filho. Então, meu pai pegou, alugou uma casa na Maria Carolina, uma travessa da Rua Pinheiros, e pegou todos eles pequenos ainda, foi assim! Depois, a minha mãe estava tendo a minha irmã, veio aqui com um aninho pra Mourato Coelho, na casa de uns alemães também, nossos conhecidos. Na Mourato Coelho tinha muita gente alemã. Muita gente alemã.
P/1 – Dona Dora, falando dos seus avós, para deixar registrado, pode falar o nome deles?
R – A minha avó chamava-se Angelina. Chamavam ela de Angelina, mas acho que era
ngela Capuano, tinha um irmão, que era meu padrinho, Francisco Capuano. Tinha uma cantina na Bela Vista, maravilhosa. Era o único que tinha uma cantina na Bela Vista, onde a minha madrinha fazia macarrão fusilli, coisa fina, com agulha.
P/1 – Com agulha?
R – É, com agulha. Eu, pequenininha, subia num banquinho e ajudava ela. Na Rua Treze de Maio. Descia-se tudo, escada para baixo, que ainda existem casas assim lá. É que subiram para cima, cantinas lindas, mas ali era tudo para baixo.
P/1 – E o esposo da sua avó, o seu avô?
R – Francisco Abatte.
P/1 – E do outro lado?
R – Da parte do meu pai? Eu não sei se era Luiz, se não me engano, tenho o passaporte do meu pai, ainda passaporte. Falava-se passaporte de 1914, né? Chamava-se Luiz, mas não sei se era Muller, porque lá na Alemanha tinha que sair com o nome Muller, senão, não passava. Assim era a história.
P/1 – E a avó por parte de pai?
R – Fredericka Muller.
P/1 – A senhora chegou a conhecer os quatro, Dona Dora?
R – Não. Minha avó, sim, a Fredericka, minha avó Angelina e meu avô Francisco.
P/1 – E a senhora tem alguma lembrança deles, alguma cena que faz a senhora se lembrar da sua convivência com eles?
R – Sim, muito! Era Fernão Dias, aqui no 248, a casa antiga. De domingo era o passeio ir na casa da vovó.
P/1 – E como eles eram no tratamento com vocês?
R – Ah, era uma beleza! Era muita gente, era um entrando e saindo, eram nove irmãos! Nove! Você quer o nome dos irmãos?
P/1 – Se a senhora souber, pode falar pra gente.
R – Rezieri, tio Gabriel, tia Serafina, tia Annunziata, tio Fioravante, olha os nomes! E tinha os apelidos: o Rezieri era Zerinho, o Fioravante era Vandinho e o tio Gabriel ficou Gabriel e tio Luiz, era Luiggi. E tinha a tia Fina, que era Serafina, uma Josefina, uma Maria, a minha mãe Catarina e Annunziata.
P/1 – E desses encontros...
R – Ah, eram uns casamentos bonitos! A minha mãe era madrinha, a gente era dama, era assim.
P/1 – Quais eram as comidas que eram feitas para todo mundo junto?
R – Ah, isso aí deixa a gente até... Os meus tios tinham transporte de carne. Nós não sabíamos o que era comprar uma carne no açougue. Eles traziam tudo. Era tudo feito em casa. Macarrão era feito em casa, pão era feito em casa. Aqui, porém, aqui na Cardeal, se falava que tinha um forno só, então, juntavam-se as pessoas, a mulherada, as senhoras da época, faziam o pão, cada dia tinha uma para fazer o pão. Não se comprava pão, fazia em casa pão.
P/1 – E como era organizado o uso desse forno?
R – Como assim?
P/1 – Como que sabia o seu dia de ir?
R – Ah, o dia dessas mulheres era muito diferente. Não é como hoje, uma sai de manhã e volta só à noite. Não! Tinha os seus afazeres em casa. Fazer comida, derreter banha. É! Cheguei a comer muito pão com banha, branca feito neve, deliciosa. Minha avó fazia. A outra também fazia, a avó alemã também fazia geleia de jabuticaba, hum!
P/1 – E a senhora acompanhava?
R – Sim, eu estava sempre junto. Acompanhava, era pequena. A minha irmã não muito, a minha irmã era mais caseira, ficava muito mais quietinha, ali no canto, mas eu estava sempre. Como ainda (risos) procuro saber ainda!
P/1 – A senhora pode descrever pra gente como eram esses dias de usar o forno? O preparo em casa até a chegada no forno? Se a senhora puder contar como era esse processo...
R – É, então, que eu me lembre, minha avó ajudava muito, principalmente as lavadeiras, que tinham muitas senhoras que lavavam roupa em casa, pegavam roupa para lavar, para ganhar algum, porque não dava, não dava. Então, tinha o dia, ou minha mãe ou minha avó faziam, cada dia era o forno de uma. A Dona Josefa, que eu me lembre, nós tínhamos aqui uma gente, seu João saqueiro, ele vendia saco na rua, ele morreu vendendo e vendeu muito por aqui. Vendia saco, saco que punha batata, que hoje é tudo diferente. E vendia! Estudou todos os filhos, são professores, uns já morreram, advogados, tudo. Essa senhora, Dona Josefa, pegou tuberculose. A minha avó tratou dela, deixava já o leite. Tinha leite de cabra. Não comprávamos leite. Leite de cabra! Passava homem vendendo cabra, trazia as cabras, vinham aqui da Estrada da Boiada.
P/1 – Onde fica essa Estrada da Boiada, Dona Dora?
R – A Diógenes Ribeiro de Lima, essa rica estrada, que era tudo areião.
P/1 – E por que ela tinha esse nome, Dona Dora?
R – Porque vinha... Já da Lapa, traziam coisas aqui para o mercado, o mercadão, que eu me lembre muito bem, ele foi localizado já três vezes de lugar. Hoje que está ao lado da... Esqueço o nome daquela rua ao lado do mercadão, me lembro muito bem, onde ficam os ônibus.
P/2 – Alguma coisa Christi, não me lembro agora.
R – Não é Campo Alegre, não, Campo Alegre é ao lado da Igreja do Montserrat. Então, hoje tem feitura, mas antes ele dava uma ponta sabe onde? Onde vira a Faria Lima, que vem. Tinha a Cooperativa de Cotia e tinha o mercado, mas já foi modificado tudo. Era lá no meio, pode ver que tem ali na Faria Lima, tem um mastro que ali diz que é o centro do Largo da Batata, ali ficavam os cavalos pra beber água, ali era o mercado. Era tudo fora, quem vinha de fora trazia tudo a mercadoria. Galinha, frango, aves. Vinha tudo naqueles engradados fechados, me lembro muito bem.
P/1 – E, para encerrar essa parte de comida, Dona Dora...
R – Fala, bem!
P/1 – Tem alguma receita especial que a senhora aprendeu com sua mãe ou com sua avó?
R – Ah, meu Deus!
P/1 – Que a senhora faz ainda hoje, que é sucesso na família?
R – Era que se fazia nhoque. Não se comprava macarrão, se fazia macarrão. Minha mãe fazia, por exemplo, a massa, e o meu pai abria com o pau do macarrão, abria a massa. Chamava-se “laguina” aquela roda de macarrão. Aí, enrola, corta. Não tinha máquina, não tinha nada.
P/1 – E seus pais, além da senhora, teve mais outro filho?
R – Não, somos só duas irmãs, Maria e eu.
P/1 – E como era essa convivência em casa? Seus pais foram morar depois de casados...
R – Fomos! Meu pai conseguiu, eletricista, já comprou uma casinha na Rua Luís Anhaia, que é aquela casinha que eu lhe mostrei. Essa casinha foi comprada, uma, primeiramente, e meu pai trabalhando fora. Eletricista. Ia montar fábrica, instalava motores. Conseguiu comprar ao lado.
P/1 – Conta pra gente como era essa casa, desde a senhora entrando nela, descreve pra gente os ambientes.
R – Ah, meu pai adorava um terraço, um terracinho ao lado, sempre. Entrada lateral, portãozinho de ferro, isso existia, murinho baixo podia naquele tempo. E ao lado tínhamos uma entrada lateral, as casas eram assim. Comprada, Luís Anhaia, que meu sogro também comprou, na Mourato Coelho. Isso depois, quando a gente se conheceu, é que a gente soube.
P/1 – E como era a divisão dos quartos?
R – Ah, não, eram dois quartos e cozinha, tinha ao lado ainda terra para plantar.
P/1 –
E tinha divisão de tarefas em casa?
R – A minha irmã ficava em casa. Nós tínhamos o grupo escolar nosso, era lá onde é o Bradesco, lá em cima, era o Grupo Escolar Vila Madalena, que hoje é o Brasílio Machado. Nosso, lá, era o Grupo Escolar Vila Madalena. Depois, virou uma fábrica de roupa, Berta, hoje é o Bradesco. Uma estudava de manhã e outra de tarde. A mesma saia que uma ia de manhã a de tarde ia, o botão passava. Era uma mala só. Depois, meu pai aumentou, graças a Deus, foi indo. Fizemos o Colégio Stella Maris, na Cardeal Arcoverde. Antes, era bordado, costura, fizemos esse colégio.
P/1 – E, quando uma estava no colégio e a outra ficava em casa, o que fazia em casa?
R – Ah, sim, meu pai, sempre de manhã, tinha dois tios solteiros ainda, que moravam no fundo, que meu pai aumentou um quarto pra eles morarem, porque também não tinha onde morar. E ajudavam em casa, monetariamente. Então, já enchia, porque nós tínhamos água de poço. Enchia um quinto, que se falava, que nem de vinho. Não tem o quinto de vinho? Chamava-se quinto. Mas era enorme, meu pai pôs uma torneira pra ficar no tanque, e a gente acendia o fogo, o carvão. Era fogão a carvão. Já punha uma chaleira com água, quando minha mãe vinha já tinha, né?
P/1 – E como eram os costumes da família? Seu pai alemão tinha algum costume que foi passado em casa? Como era essa convivência com seus pais?
R – Eles já se conheciam muito novos, a convivência era muito boa do meu pai com a minha mãe. Meu pai era muito delicado, apesar de ser uma pessoa que mal sabia escrever. Eletricista, e fez ainda na Light uma carteira pra fazer ligação de poste. A Light, que era lá na Xavier de Toledo, tinha uma carteira, exigia. Ele fez o exame e ganhou. Ele e o japonês. O japonês era engenheiro e o engenheiro ia em casa para o meu pai desenhar, na prática.
P/1 – E, Dora, quais eram as brincadeiras de infância?
R – Na rua, maravilhosas. Tenho pena das crianças hoje que têm esse celular, que mal falam com o pai. Nenhum bom dia e nenhum boa noite. Concorda comigo? Nós não. Brincamos, sim, de amarelinha, com a casca de banana. Podíamos fazer uma fogueira de festa junina na rua. A organização dos vizinhos era maravilhosa, era o seu Magno, o Landi, a Dona Elza alemã! Os vizinhos ali ajuntavam-se e uma fazia pipoca, outra o café, batata-doce, o quentão, e ali saía a festa. Outro fazia balão. Era muito bonito. As crianças não sabem nada. Os pais precisam pagar pra ir sair e ir pra um sítio onde paga-se um ingresso pra ir ver galinha, pintinho. Fala a verdade? As minhas netas... Eu já sou bisavó! Eu já sou bisavó de três, Lucas, Gabriel e Bruno... Não, quatro! Sou de quatro, mas não conheço nenhum, são netos que se afastaram. Já é outra educação. Nós nunca saímos de casa de avô e de avó, né?
P/1 – E a senhora se lembra de alguma brincadeira com a sua irmã?
R – Sim, nós brincávamos muito, tínhamos Páscoa! Meus tios alemães, um trabalhava em casa de alemão, era faxineiro, tio Alfredo. Cuidava de alemães. Coisa mais linda! Ele já vinha, os patrões já davam pra ele, a gente nunca viu. Muito discretamente, ele já fazia o jeitinho de um ninho, depois faziam o jeito de coelho. Era a festa de Páscoa. E fomos privilegiados dessas coisas bonitas. Hoje, não, você vai comprar, a criança vai junto escolher o ovo. Nós não, nos surpreendíamos. Eles punham no jardim, no bucho, se vê aqueles redondinhos hoje, as cerquinhas antigamente eram tudo... Então, punha ovinhos ali, a gente fazia caminhada. Hoje, as crianças não têm nada disso, eu me lembro de tudo isso. Brincar muito com as minhas colegas ali, já mais nova, 12, 13 anos, a gente tinha as amiguinhas.
P/1 – E teve algum castigo que a senhora levou dos seus pais?
R – Não, não teve muito, não. Saía muito, às vezes escondido, com uma prima, pra gente ir pra uma festinha da outra colega (risos). Pra ir pra um bailinho!
P/1 – E seus pais nunca descobriram?
R – Se sabiam, era discretamente.
P/1 – E o que eram esses bailinhos?
R – Ah, mas era tão divertido! Não é de coisas de hoje que a gente escuta aí, que tem revólver. Não! Mal tinha o quê? Um bule de café e ainda juntávamos ali três ou quatro amigas e íamos comprar um bolo pra dividir lá e fazer... O que interessava para nós era dançar. Que hoje não é, hoje não é. Onde eu conheci meu marido...
P/1 – Conta pra gente como foi esse encontro!
R – Mas eu já conhecia ele, o menino. Ele estudava no Mackenzie, era família já que... Filho único, tinham dinheiro, estavam muito bem e conheci ele de menino. Depois, eu nunca mais vi ele. Ele estudou no Porto Seguro e no Mackenzie, não quis estudar mais. Era maravilhoso, tenho até o boletim dele, em casa, de francês. O João. Ele veio menino para cá, para a Mourato Coelho, onde te mostrei a casa.
P/1 – E como foi esse reencontro com ele?
R – Eu não vi mais o meu marido, ele não quis estudar mais e nunca mais eu vi. Naquela idade que eu te mostrei, aos 16, 17 anos, eu nunca mais vi meu marido. Tínhamos ali na Inácio Pereira da Rocha uma tia da minha mãe, tia Marieta Capuano, ela costurava botão. Hoje, você escolhe botão, mas nós costurávamos botão no cartão. Ela ia buscar numa fábrica aqui na Teodoro Sampaio, não tem nada a ver com o nome, mas eram uns alemães de Santa Catarina, Muller também, era uma fábrica de botão Muller. Então, ia buscar um saco, a gente ficava costurando, punha nas cartelas e fazia uma dúzia. E naquele tempo se juntava – eu não sei quanto que é uma grosa – eu sabia assim, uma dúzia, meia dúzia, não é? Mas uma grosa eu não sabia. Eu sei que eu punha tudo nas cartelas. E essa tia da minha mãe, que era tia da minha mãe, mas, pra gente aprender a pegar numa agulha e enfiar a agulha, era pra ir costurar botão. Um dia, eu costurando botão, aparece o meu marido. Isso fazia uns quatro anos que eu não via. Mas eu tinha um flerte com outra pessoa, que eu gostaria de encontrar com ele, mas eu não tive oportunidade mais. E vou pra casa do meu filho, lá em Ponta Grossa, e passo na cidade dele, Itararé. Gostaria de saber dessa pessoa, que hoje deve estar com – se não morreu, né? – com 85, 86 anos. E vieram ele e o meu marido! Eu tinha feito um vestido pra mim, engraçadinho, e estava com o cabelo todo levantado assim, com um rabo de cavalo. Ele falou: “Não é possível!”. Meus primos estavam todos lá, era filho da tia Marieta: “Olha o que nós trouxemos pra senhora ver, mãe” – pra tia Marieta – “Trouxemos o João e o José”. Qual foi a surpresa deles dois? Mas o João não sabia que eu tinha flerte com o José. Então, era dia de São João. Fizemos a sorte no prato, eu com uma amiga, a Lúcia, que faleceu um ano antes do meu marido. Hoje, ela estaria com 83 anos, a Lúcia Couto. Fizemos da vela. Hoje, não tem sorte, a sorte de São João. A vela fica acesa, põe no prato com água. E por minha saiu, nunca me esqueço, saiu um jota! Eu falei assim: “Ah, mas que engraçado!”, e todos vieram na mesa. Eu tinha essa foto, não sei onde foi parar, tiraram uma foto. Nós todos olhando. Mas uma coisa muito maluca, nós todos olhando o prato. Sabe que ano era aí? Até ontem eu brinquei numa aula que nós tivemos na igreja, “Conte uma história”, e eu contei. Ano de 53, por aí, onde saiu o Brasileirinho de Waldir Azevedo, Brasileirinho e Delicado, foi a coisa mais linda o chorinho. E nós tínhamos uma vitrolinha, e eles trouxeram o disco pra gente dançar. Aí, o meu marido me tirou pra dançar, mas não tinha nada de namoro, nada, nada. Nem teve namoro, nada. Esse José, coitado, ficou pensando: “O que aconteceu com essa menina?”, porque eu fiquei olhando para os dois. Passou. Dançamos, brincamos São João e foi uma festa, muito bem. Teve uma outra festa na casa da minha prima, uma filha da tia Marieta, lá em Sapopemba. Sapopemba começa, acho que é Quarta Parada, não sei, Mooca? E termina lá num sítio lá, porque ela é imensa, atravessa São Paulo, parece. Essa Estrada de Sapopemba. Lá fomos nós nessa festa. Minha irmã não era casada ainda, fomos todos dentro de um caminhão, num furgão do meu cunhado, fomos nessa festa. Eu já costurava pra mim, para as minhas primas, tudo. Fui com uma saia bonita, com uma blusa muito bonita que eu fiz e foi. Estava dançando com o tal José quando me aparece o João! É verdade. Foi fatal esse dia. Eu já tinha o quê? Catorze anos, mais ou menos. Ele falou: “Você hoje não me escapa!”. Aquele dia foi só assim: ”Não, não quero, ainda não estou pensando...”. “Mas como que você namora...” “Isso não é namoro, é uma amizade.” Mas o coitado do José, eu tenho pena até hoje dele. Se eu, por coincidência, visse esse José, eu ia pedir muita desculpa pra ele. Fiquei com pena. Porque eu sei que ele foi no meu casamento. Quando eu fiz 15 anos, a minha mãe fez uma festinha e eu convidei o João porque minha mãe falou o seguinte: “Se você convidar o José, não tem festa, não tem”. Eu falei: “Não vou convidar ninguém”. Teve a festa. Esqueci, vou mandar o meu bolo de 15 anos, maravilhoso. Não tive de casamento porque foi uma tristeza, meu sogro quase que faleceu nesse dia. Então, apresentei o meu namorado, o João, e ficou. Eu tinha 15 anos quando comecei.
P/1 – Mas ele chegou a fazer algum pedido?
R – Fez.
P/1 – Como é que foi?
R – “É hoje que você vai namorar comigo.” Dançamos uma valsa linda e ficamos juntos. E ficou José pra ver. O José passava na lanchonete que ele tinha lá na Rua Santa Ifigênia, pegado ao Cine Paratodos, que hoje demoliram tudo aquilo. Então, ele passava, que ia para Itararé de trem. Chegou a falar com o meu marido se era sério o namoro. Meu marido falou que sim, que era. E ficamos.
P/1 – Dona Dora, ainda na festa de São João que a senhora fez...
R – A sorte?
P/1 – Chama sorte, né?
R – Sim.
P/1 – Saiu o jota.
R – Era jota!
P/1 – Pois é, mas o José e João também são jota!
R – Foi para o João!
P/1 – A senhora sabia que um dos dois ia ser!
R – É, eu queria saber onde está esse José, que eu sei que é em Itararé. Encontrei numa lista telefônica um telefone dele. Lista! Quando tinha lista telefônica, hoje não tem mais nada. E eu rasguei essa página, porque eu tinha medo que meu marido visse. Chama-se José Viesbra, em Itararé.
P/1 – E, Dona Dora, como a sua família recebeu o João?
R – Ah, por exemplo, o meu sogro, José Gualter Gomes, olha! Ele era português, foi padeiro e conheceu um parente nosso, tio Augusto, português, conheceu uma tia minha, a tia Graciela, moravam aqui na Aspicuelta. Ele falou: “Mas a sua mãe” – quando ele me conheceu – “a sua tia é parecida com você, e a sua mãe, como é que chama? Porque eu conheço o seu tio Augusto”. Eu falei: “É padeiro, sim”. Bom, essa amizade foi muito longa, foi longe. Mas o meu sogro, infelizmente, morreu 15 dias antes de o meu filho nascer, o mais velho. Meu sogro faleceu dia 17 de janeiro e meu filho nasceu dia 3 de fevereiro de 1957, o José. E minha mãe conheceu muito bem, não sabia. Mas meu sogro falava assim pra mim: “Oh, boneca, quem é o seu pai?”. Naquele tempo, eles queriam saber tudo, que eu fui conhecer às vésperas de Natal. Eu falei: “Meu pai é eletricista”. “Mas por acaso ele chama-se Otávio?” Falei: “É!”. “Então, fez a instalação toda da casa da frente!”, porque eles já moravam na casa do fundo. Naquela casa do 992, com o portãozinho ao lado, tem uma casa do fundo, que foi nos dado de casamento. É um casarão lá! Nós perdemos, na inocência, na inocência.
P/1 – Antes, como foi planejar o casamento? Como resolveram se casar?
R – Foi muito difícil, porque meu sogro apareceu com uma doença, isso foi num tipo de um desastre que ele teve. Bateu. Foram buscar vinho em São Roque, ele tinha um carro, e a barra da direção quebrou, rodopiou e bateu no poste. Era um Ford muito bonito, mas depois ele mandou arrumar, tinham, podia. “Ah, leva lá no mecânico, já faz tudo.” Não é como hoje que tem seguro, todas essas coisas, não. E ele apresentou, começou a apresentar uma magreza, um homem portuguesão forte, mais de 100 quilos. Mas minha sogra era um pouco ingênua, e eu não tinha mais, como coisas de família que acontecem em doenças, a gente fica mais ligada. E eu falei: “Mas ele está com o pescoço muito fino, Dona Adélia”. “Imagine, que é isso!” “Veja bem, ele não está bem.” E foi mesmo. Num domingo, minha sogra foi visitar o pai e a mãe ali na Rua Fidalga, e eu, fazia muito frio, um tempo de junho, mais ou menos, era assim. E eu falei: “Nossa, por que o senhor está assim tão pálido?”. “Ah, porque ontem viemos tarde.” Eles trabalhavam e em cidade fechava à meia-noite bar. Hoje não, hoje é diferente. Então, eu falei: “Mas o senhor não está bem”. Ele levantou a camisa e ele estava com umas manchas vermelhas. Falei: “O senhor não está bem! E cadê o João?”. “Não, o João foi falar com o sócio, ele está pra chegar.” Mas eu fiquei muito aflita de pensar que a minha sogra não chegava e ele não estava bem. Ele estava andando pra lá e pra cá, não estava bem. Nisso, meu marido chegou. Nós namorávamos, estávamos noivos. Naquela época, que existia namoro e noivado, mas o nosso noivado era uma vez por semana só. Só sábado e domingo, e olhe lá. Então, eu falei: “O seu pai não está bem”. Falou: “Imagine!”. “Não, ele me mostrou!” Ele falou: “Oh, pai!”. Ele chamava o pai de: “Oh, papai, o que o senhor tem?”. “Eu não estou me sentindo bem. A Boneca falou que tem um médico da família.” Era domingo, falei: “João, vamos chamar o Doutor Cláudio Pedatela, aqui na Iquitos”, nosso médico morava aqui, era médico de família. E ele já começou. Eu e meu marido fomos lá busca-lo, viemos a pé, cortávamos ali, foi na Mourato Coelho. E falou: “Faz esse exame, esse exame”. Meu sogro era benemérito lá da Beneficência Portuguesa, da Sociedade dos Padeiros. E fomos aqui e acolá tirar exames e tudo. Foi fazer exame de sangue e tal e coisa, mas ele em uma semana diluiu. Não é como hoje que tem chance de tratamentos. Naquele tempo, não. Falar num câncer, nossa! Só que o médico nos chamou. Primeiro fui na Praça João Mendes – e eu lá sabia onde era a Praça João Mendes –, que tinha um médico ali que eu fui buscar o exame. Aí, o meu marido falou: “Você pega o bonde...” – nós tínhamos o bonde na Fradique Coutinho, subia e descia o bonde – “e desce lá na Xavier de Toledo e anda o Viaduto do Chá e vai para o Largo São Francisco e vai lá pra João Mendes, que você vai dar atrás da catedral”. Fui, fui buscar o exame. O exame, a moça lá na recepção falou: “Quem é você?”. Falei: “Sou nora da pessoa pra buscar um exame”. Eu não tinha identidade, não tinha identidade nessa época. Eu fui tirar identidade depois que eu casei. Então, ela falou: “Olha, aqui não consta coisa boa. Você vai procurar o teu noivo e vocês têm que ir no médico para levar esse exame”, antes de dar na mão dessa pessoa que fez esse exame. E nós viemos lá da Senador Feijó a pé até o Mappin. No Mappin, tinha lotação naquele tempo, ao lado do Mappin, em frente ao Municipal. Pegamos o lotação e falei: “Não, vamos direto lá no Doutor Cláudio e levamos esse exame”. Mas eu passei antes em casa porque estava muito nervosa. Porque eu sempre sofri um pouco de depressão e minha mãe nunca... Qualquer coisa eu chorava. E isso chegamos para o médico e Doutor Cláudio falou: “Vocês já marcaram casamento?”, assim, bem democrático. Falei: “Não”. “Vai marcar. Aqui tem data já.” E nós fomos e marcamos o nosso casamento na Nossa Senhora de Fátima, foi num janeiro, e ele durou um ano. O meu marido ficou sem pai aos 22 anos. Esse pai era tudo pra ele, tudo! Ele caiu por terra. Também não tinha um antidepressivo, era água com açúcar. Casamos, eu logo engravidei e, vendo essa pessoa diluir, também eu fiquei depressiva, muito, muito, muito. Ele ainda foi comprar o berço do meu filho, lindo, maravilhoso, do José. Foi. “Vamos escolher o berço.” Fomos no Paschoal Bianco, aqui no Largo de Pinheiros, lindo! E casamos, mas eu continuadamente tratei de muito doente na família. Acabou agora, quatro anos atrás, da minha irmã e o marido. Não tinham filhos, um mês e meio eu enterrei dois (choro). Todo esse tempo eu cuidei de gente. Mãe, que esclerosou. Meu marido, que ficou, teve um acidente com ele, também com câncer, operou. Ele trabalhava aqui no restaurante na Mourato Coelho, dez anos de gerente. O ladrão, num feriado, dois pegaram ele, e dois, o cozinheiro, e fizeram ele andar de gatinho e pisaram aqui nas costas dele e arrebentou o intestino. João morreu. Eu morava aqui na Rua Judith, aqui na Vila Beatriz, onde tem a Farmácia São Paulo, onde eu tive o outro filho. Um diferente do outro quase 18 anos. Assim acho que termina a minha história. E vendi uma casa (choro). Vendi uma casa na Luís Anhaia, comprei um apartamento aqui, não me dei bem. O apartamento grande, e troquei por um pequeno, porque não tinha feito o inventário do meu marido. Aí, dividiu o dinheiro para o José, outro para o Hermann, e assim foi a vida. Eu continuo ainda, costuro na Igreja Metodista, ainda ontem brinquei com as minhas colegas: “Amanhã, vou contar uma história”. Eu falei pra elas: “Vou!”. Ainda citei, a comunicação teve nomes de músicas da época, de 60, de 70, de 50. Eu falei: “Não, eu só sei de uma, a história mais bonita...”. Ainda fui eu que falei. Estávamos em mais de 50, fui a única que falei: “Em 54 ou 53, saiu Brasileirinho e Delicado”. E falei no tal José. Elas ainda bateram palma e falaram: “Queremos ver você...”. Uma veio e falou: “Ou você vai receber um sim ou um não”. Falei: “Vou receber um sim, é vocês que vão me ver (choro) no seu...”. Como seria?
P/1 – Museu?
R – Museu. Está bom?
P/1 – Ainda não! (risos)
R – Mais alguma pergunta?
P/1 – Tenho algumas. Se a senhora quiser usar um lencinho, tomar uma água. Eu aceito um lencinho também, Dona Dora, se a senhora puder me passar.
R – Ainda costuro lá na igreja, com a graça de Deus. Já faz dez anos que eu costuro ali. Eu vou agora operar, dia 23 vou operar a catarata. Vou tirar a medida da lente lá no Cema [Centro de Medicina Avançada] na Mooca, oftalmologia lá, ótimo. Aí, precisa trocar tudo.
P/1 – Dona Dora, eu tenho várias perguntas.
R – Ainda?
P/1 – Ainda, mas a gente ainda tem tempo, são 11 e meia.
R – Certo.
P/1 – A primeira é que eu quero saber desse tempo logo após o casamento. Como é que foram os primeiros dias de casada, quais os desafios? Como foi conviver com uma pessoa?
R – É difícil. Hoje penso dessa maneira, hoje eu penso diferente, não critico, não acho justo um casal que namore: “Vamos dar um tempo?”, juntos. Para se conhecerem, certo? Se estou falando errado, eu penso dessa maneira. Que é melhor ainda se conhecerem, não terem filhos tão cedo! Porque um filho, posso falar de cátedra, não existia nenhum preservativo. Um homem se acanhava de usar um preservativo. Hoje, a gente fala claramente, né? Eu acho que não deve ter filhos tão já, pensar muito bem e nem muito novos também não. Apesar que a mocidade, a meninada hoje em dia está bem diferente. Eu tenho uma neta de 15 anos e a gente fala. Muito bonita, um corpo, grandona. A mãe é nortista e pegou raça alemã, ficou, né? Tem a Joana, a Giulia e a Catarina, é uma mais lindinha que a outra. Eu tenho medo, me preocupo muito com essa mocidade leviana. E com tudo que tem em volta. A vida mudou muito, mas tem um nível de pessoas que têm mais de 25, 28 e tal, está pensando muito em casar. Não é o casamento, não. Falo por mim, enfrenta muitos obstáculos, muita coisa. A mulher nunca está pronta pra levar essa bordoada. Não, não está. Você me recrimine se eu estiver... E nem o homem! A gente escuta entrevistas de televisão, vê, o pouco que eu vejo. Não vejo muito, porque tem muita ciumeira, desculpa de falar, né? A meninada está indo embora cedo, morrendo, não está? A gente fica triste. Porque a estatística dá. Será que estou falando certo ou falando errado? A estatística dá, morrem três mulheres por dia, jovem, ou se separou e o homem não aceitou ou a mulher arrumou um outro homem e a mulher sai pra trabalhar, deixou crianças ou filhos em casa. Está tendo um problema muito grande, que preocupa demais. O que vai ser? O que surge daqui pra frente?
P/1 – E como foi pra senhora esse começo, essa intimidade de casal?
R – Difícil, difícil, difícil enfrentar marido que não se ajeita com coisas de serviço. As pessoas fecharam porta pra ele. Foi difícil, não foi fácil, não.
P/1 – E como foi descobrir a primeira gravidez?
R – No primeiro mês, eu já estava grávida. Pode se contar, o meu filho faz 61, já fez agora em fevereiro, e eu faço 81 em setembro. A diferença é 20 anos. Logo engravidei. E do outro não. Nesse intervalo, nós tivemos uma queda violenta na vida, uma enchente na Zona Cerealista nos levou... Na zona do mercado, dava enchente, levou toda nossa mercadoria. Ficamos cinco anos na falência. Não foi fácil. Eu, como que sabia fazer muito tricô e costurava, a cabeça da gente como mãe, que via trabalhar, o que eu fiz? Montei uma máquina de tricô e comecei a trabalhar com tricô de máquina em casa. Fazia japonas, fazia xales. Depois, meu marido não se deu aqui, foi morar em Campinas, na Paula Bueno. Fiquei três anos lá.
P/1 – Como foi a decisão de ir para Campinas?
R – Não foi fácil. O José não se deu lá, o meu filho. No ginásio, precisei mandar aqui pra minha irmã, e meu marido num balcão, eu não me adaptava num balcão. Eu me adaptava numa cozinha. Ficamos três anos lá. Aí, vendemos lá, saímos numa boa e tudo. Viemos para Santana, meu marido veio. Como ele conhecia a Zona Cerealista lá do Mercado, o que ele foi ser? Como existe até hoje ainda, essas pessoas que saem com o carroção e vão vendendo, vão procurando vendedor para o caminhoneiro, ou feijão, o que vem de fora. Porque hoje o Brasil está parado. O Brasil está parado! Ceasa [Centro Estadual de Abastecimento], um saco de batata foi pra quê? Não sei se vocês viram na televisão. Então, por aí você vai ver, tudo vai aumentar. Estão parados! Seja legumes, carnes, aves, enfim. Meu marido foi pra lá, vender. Vendia alho, alho que vinha da Argentina, de carroça, lá na zona atacadista. Aí, começou a pegar freguesia e já abriu outro negócio e foi pra frente, mas também precisou vender logo porque a zona atacadista ali deu uma queda violenta. Ele passou esse armazém pra frente e veio ser gerente de um restaurante aqui na Mourato Coelho, dez anos.
P/1 – Que, aí, vocês voltaram pra São Paulo?
R – Voltamos para São Paulo. Eu fui ser uma zeladora de um prédio, na Leôncio de Magalhães, 830, em Santana. Eu com uma garota, hoje tem minha idade, mas no tempo que eu entrei na casa da minha sogra, ela era uma menina como eu e sempre me acompanhou. Ou foi nas quedas tristes, nas alegrias, não tendo dinheiro ou tendo dinheiro, ela sempre me acompanhou, a Edna. E ultimamente ela estava comigo. Meu marido assinava carteira, consegui. Ela hoje recebe aposentadoria, se aposentou comigo. A gente ficou muito triste, dois anos e meio a três, mais ou menos, porque ela apareceu... Não falava nada, muito quieta. São gente de Minas, e ela apareceu com uma feridinha no céu da boca. E nós temos a prefeitura lá na feira, lá em cima, a prefeitura, né? Doutor Paulo olhou a boca dela: “Hum, hum”. Foi para o dentista, Doutor Leandro, ao lado, na própria, nada! Já marcou oncologia, fomos lá na oncologia na travessa da Brigadeiro Luís Antônio, foi muito triste. Ela tirou um tumor imenso da boca, ao lado. Hoje ela não tem. Foi feita uma prótese no céu da boca, e eu, nesse tempo, estava trabalhando no ateliê, lá na Pompeia, com uma amiga minha. Eu deixei de trabalhar para cuidar dela. Mas ela já saiu desse lugar, lá na oncologia, já drenada, com nariz... Sabe como é? Largo do Arouche, Santa Casa, Santa Casa, Largo do Arouche. Largo do Arouche é onde tratam pescoço e cabeça, coisa mais chocante. Eu me debilitei. E eu, na frente dela, eu estava talvez fraca, um pé debaixo do outro, na minha sala. Fui para debaixo do sofá, não consegui tirar o meu pé, caí, bati a cabeça na parede e quebrei o fêmur. E fui lá para o Pari fazer uma prótese. Mas é uma pequena prótese de polietileno. Ando muito bem, mas não foi fácil. E ela está bem, mas não pode vir. Ela mora na Cohab 5 [Companhia de Habitação Popular], em Osasco, não vem mais pra cá. Vamos nos ver aí sábado, porque temos um casamento aqui no boteco, não do Silva, do outro.
P/1 – No boteco? Como assim? (risos)
R – É um casamento! Da Alessandra, que mora em frente, mora no prédio. Ela vai se casar e vai fazer o casamento no boteco. Ótimo!
P/1 – Muito bom!
R – Mas não é? Olha, foi surpreendente para mim. Ela já está com esse rapaz, ela já é desquitada e ela tem um filho. Eu conheci o irmão, era amigo do meu filho mais velho. Eu conheci, ela era pequenininha. A mãe e o pai faleceram, a gente sempre se deu. E ela veio me convidar. E ela tratou muito dessa menina em casa porque eu não pude tratar ela, eu fui para o hospital.
P/1 – E, Dona Dora, queria saber como é que foi que, depois de 18 ou 15 anos, a senhora engravidou de novo?
R – Pois é! Agora lhe falo, engravidei acho que com 38 anos, mas nunca evitei, nunca. Fiz tratamento, sim, até meu marido fez tratamento, mas não engravidava. Num regime que eu fiquei, em Campinas, pesando quase 80 quilos, ou mais um pouco. E fui ser madrinha de uma prima do meu marido. E tinha um vestido preto que eu precisava entrar nele, não podia comprar outro. Eu fui, fiz um regime para emagrecer, o remédio do emagrecimento, eu engravidei. Nunca me esqueço. Era tireoide.
P/1 – E como é que foi receber a notícia de que estava grávida?
R – Boa pergunta, até meu filho mais velho falou. Quando eu soube que estava grávida, eu tinha vergonha de falar para o meu pai! Tinha receio. Então, eu comecei a falar para o meu filho, né? Aí, meu filho, ele estava aqui e eu estava em Santana, porque ele estava com rubéola e não sabia. E, no telefone, meu filho falou: “Mãe, o que aconteceu com a senhora? O meu pai sabe?” (risos). “Sabe!” É verdade. Fui fazer um exame lá em Santana, na Voluntários da Pátria, um laboratório, e ele falou: “Minha senhora, a senhora está grávida”. Era um conhecimento lá da minha vizinha, que morávamos lá no apartamento, ela falou assim: “A senhora está grávida de três meses”.
P/1 – E como se chama o segundo filho?
R – Hermann Otto Muller, o nome do meu pai. O primeiro é José Dias Gomes, e o outro Hermann Otto Muller.
P/1 – E como seu pai recebeu a notícia, no fim?
R – Nossa, só chorou quando me viu. Eu e ele. Eu e ele. Chorou muito. Filhinha daqui, filhinha dali. Ele não chamava nós pelo nome, era “filhinha”.
P/1 – E o seu sogro lhe chamava de “boneca”?
R – Boneca.
P/1 – Por quê?
R – Ele achava, porque eu era pequena, miúda, magrinha. E fazer tudo aquilo que eu fazia. Se era num domingo, eu ia almoçar, minha sogra não estava, eu já fazia. Tinha lá na geladeira as coisas. Eu fazia molho. “Mas como você sabe tudo isso?” A gente via mãe, avó, tia fazer. Nunca me apertei de cozinha, tsc, tsc. Foi nisso que a gente ganhou dinheiro. Fiz muito salgado para fora, eu com meu marido. Fazíamos para buffet, ele era muito prático de cozinha.
P/1 – Dona Dora, a gente está caminhando para o fim, mas eu queria fazer mais algumas perguntas.
R – Fala, bem.
P/1 – Como é a sua relação hoje com os vizinhos do BNH [Banco Nacional da Habitação]?
R – Olha, eu me dou assim, sou do primeiro andar, número quatro. Ao lado, é uma psiquiatra, pouco vejo, mas me dou muito bem com ela. Ao lado, um casal, que também saem de manhã e voltam à noite. E a Margarida ali. Com a graça de Deus, me dou bem com todos, o Henrique, começamos a conversar, eu estava tomando sol com bengala. Ele me ajudou, e pegamos essa amizade, eu contando um pouquinho assim, coisas. E ele se interessou. Eu falava, levei ele para conhecer a Rua Luís Anhaia, onde a minha irmã... Tenho ainda uma casa ali na Luís Anhaia. Tenho não. Está “aluga-se” ou “vende-se” essa casa, em frente, é da minha irmã. Acontece que a casa é maravilhosa, linda. Suponhamos, ali, vocês, eu estou fazendo uma colocação, porque a casa é impecável, boa. Ela é construída há uns 40 e poucos anos. Quem desce, é 123, é o lado direito. Essa rua só desce. Porque ela tem portão, nós ganhamos isso, por causa dos bares. Essa rua ficou muito desmoralizada, sabe? Então, ali nós tivemos uma senhora que trabalhava no Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]. Ela faleceu há pouco tempo. E ela, sempre a gente debateu. O meu pai, o meu cunhado lá, que fizeram essa questão dos portões. Pode ver que essa rua tem portão, e sempre a prefeitura está em cima. Agora, ganhamos há pouco tempo, porque tem uma família Costa que também se interessou. E não podia mais, não podiam, porque se serviam muito dessa rua, os barzinhos. Muito, foi muito judiada. E essa casa está “vende-se” ou “aluga-se”. E essa casa ainda tem... O falecido marido da minha irmã não foi de uma cabeça boa, o que ele fez? Devia muito, advogado pegou. Mas falo o seguinte: se eu estou postando numa internet, ele deixou de abrir o testamento, falo categoricamente. Ele não abriu o testamento. É o advogado, posso falar o nome?
P/1 – Pode.
R – É João Potenza, ele ficou com tudo. Paguei uma casa na Rua Judith, que é a rua onde nasceu meu filho. Essa casa ainda está, se não me engano, em leilão. Paguei 25 anos para a carteira hipotecária, ele sabe. Quer dizer, não quero entrar em mérito, por telefone não é, é por justiça. Mas eu vou entrar. Se ganhar, não sei, mas que eu tenho direito de 50 por cento, tenho. Quem vai me ver isso tudo é o Henrique.
P/1 – E, Dona Dora, eu queria saber como foi ser avó?
R – Ah, foi muito bom, mas foi numa época que eu acho que não... Foi bom em termos. O Bruno nasceu, mas, no tempo que o meu marido faleceu, o meu filho estava se separando. Ele já estava 15 anos casado, não deu certo. Foi assim. Foi o Bruno, e depois eles pegaram um casal de crianças, a Amanda e o Gabriel, pra criar, e ela engravidou do Lucas. Foi um pedaço muito triste pra mim, quando eu soube que eles estavam se separando. O Lucas ainda não estava com 18 anos. Tanto é que precisaram ficar na casa da Mourato Coelho até 18 anos, para o meu filho não pagar, porque ele precisou ir embora para Monte Verde. Em Monte Verde, ele tem uma casa muito bonita, está à venda, pode procurar aí no teu... Rua Lira, 210, Monte Verde. Uma casa maravilhosa. Ele que fez a instalação, ele e a Márcia. Dão-se muito bem. Agora ele está agora em Umuarama, Ponta Grossa. Ele é da parte hidráulica e elétrica. O Hermann é estoquista, tem três meninas, Joana, Giulia e Catarina. Lindas.
P/1 – Dona Dora, nós estamos encerrando. A senhora está bem?
R – Estou bem!
P/1 – Tenho mais duas perguntas para fazer, mas queria saber se tem alguma história que a senhora queira contar, que eu não estimulei a senhora a dizer pra gente.
R – Como assim?
P/1 – Faltou alguma história?
R – Da Vila Madalena, eu conheço muita coisa, muita coisa boa. Eu nasci e vivi na Vila Madalena. Conheci muita coisa, isso progrediu muito. Pode ver que o comércio está subindo. Temos universidade aqui na Mourato Coelho, maravilhosa. Temos aqui na Fidalga outra, um colégio bom, temos... Moda! Enfim, está subindo. Casas de minhas amigas, que eram casas residenciais, viraram comércios, bares. A minha mesmo, que eu morava, no 992, é uma casa maravilhosa. É um restaurante.
P/1 – E como foi ou como é acompanhar essa transformação?
R – Ah, foi muito triste. Não foi fácil, não. Porque nos tirou o sossego da vizinhança, que não é bom se dizer, pessoal daqui, vem de fora. Principalmente, vamos ter jogo, né? Estão se aprontando, pode ver. Mourato Coelho, aqui até aqui, começando a João Miguel Jarra, pode notar, que já tem, está vindo, vindo, vindo. Comércio, os bares já modificados. Onde é um restaurante hoje em dia, reparem bem, ali na... De quem sobe, ao lado esquerdo, tem uma choperia, onde vende chope, ao lado existia um salão de baile, um antigo. Chamava-se “Ofubá”. A mocidade aqui eram poucas, mas era ali. Não sei se tem ainda o número dessa construção da casa, porque um dia eu passei e estavam reformando. Eu falei: “Isso aqui foi assim, assim, assim”. Eles falaram: “Nós estamos sabendo da história”, eles conservaram até a janela, sabe? Uns rapazes, muito bonito! E você vê, outro que vai ser estupendo ali, Wizard com a Fidalga, ali pra mim deve ser a Brahma. Não sei se vocês já repararam, os cilindros lá dentro. Eu reparei outro dia, eu desci por ali, que vim do posto de saúde, e, por ali, eu perguntei pra eles: “O que vai ser aqui?”, o outro falou: “É uma choperia”. Eu fiz assim: “Oh, yes!” (risos). Coisa bacana. Vejam, já pensou? O meu marido falou: “Não, isso não vai dar nada”. Onde é o Romanesca, que tem ali na Mourato Coelho, era um restaurante que se falava, não é que tem réchaud, não, é à la carte, era fino, era tudo ali. Hoje, é uma casa de salão pra festa de criança e o salão é maravilhoso lá.
P/1 – Muito bem, Dona Dora, temos que encerrar porque está dando o horário da senhora e eu tenho mais duas últimas perguntas. A primeira é: como a senhora se sentiu hoje contando a sua história?
R – Gostei muito, me senti muito com prazer. Eu acho que nossa Vila Madalena tinha que ser contada, porque como é que eu tive essa brilhante coragem de falar? De subir bonde, de descer bonde, de tirar isso! Foi muito bonito, foi lindo demais. Temos uma igreja maravilhosa que é a Vila Madalena, Santa Madalena, de Miguel Arcanjo, está muito linda. Eu me lembro tão bem. Era uma capelinha e hoje é uma senhora, maravilhosa. Está sendo festejada aí festa junina. Nós temos um padre que é das Perdizes, teólogo da... Como é que chama em Perdizes? USP [Universidade de São Paulo]? Não, USP é aqui. Nas Perdizes, como que chama a universidade das Perdizes?
P/2 – PUC [Pontifícia Universidade Católica]?
R – PUC, ele é teólogo. Eu fiz as capas da semana santa, fiz dez capas, maravilhosas, tudo branca, duas pretas, na semana santa, para eles lá. Fui considerada costureira (risos)! E eu agradeço muito a tua paciência, e isso vai se resumir, claro, muita coisa. Espero que passe para o meu filho, José.
P/1 – E, para encerrar, tem mais uma pergunta.
R – Fale.
P/1 – Quais são os sonhos da senhora?
R – Será que eu tenho sonho ainda? Eu tenho. Se eu encontrasse com esse José... É! Mas me falaram que ele, essa gente tinha aqui comércio, foram para lá e tinham comércio também, mas foram morrendo familiares e foram se afastando para os interiores de Itararé. Mas eu gostaria. Quem sabe se alguém pega... Um filho! Porque eu sei que uma coisa triste se passou na vida dele, ele perdeu uma filha. Hoje, estaria com a idade do meu filho. Ele perdeu uma menina com leucemia. Eu me lembro disso, muito bem, que eu encontrei com ele, ele estava muito triste que a filha estava num hospital. E ela morreu. Eu gostaria, esse era meu sonho, de vê-lo, quem sabe se alguém da família lá vê. Ele jamais vai me ver e vai entender. Ele me conheceu quando eu tinha 14 anos.
P/1 – E o que a senhora diria pra ele hoje?
R – Gostaria de vê-lo, José, e a gente se abraçar (choro)! Difícil falar. Foi um amor de juventude mesmo. Se fosse fazer, dava uma novela. Conheci a mãe dele, uma irmã dele. Eu sei que tinha um irmão que tocava violão. Tinha um conjunto aqui, ali pra Fradique Coutinho e tudo. Mas procurei saber, mas ninguém soube me falar mais nada. O conhecimento bom dele é que ele conviveu com essa família Capuano, eram todos da mesma idade. Ele trabalhou na Invictus na Consolação e depois parece-me que ele se aposentou. Não sei, esse hidrômetro de rua, que caducam, que falam, chega uma certa hora e precisa trocar. Eu me lembro que ele passou, depois eu soube por um parente meu, que me viu. Ele passou na Leôncio de Magalhães e me viu. E tem parentesco lá perto de Sapopemba, é um bairro muito grande que tem perto de Sapopemba. Mas esse meu primo que ele se dava bem também faleceu. Se estava vivo, estava com a minha idade, o Paulo. Paulo Damiani. Ele conviveu muito com esse Paulo Damiani. É isso aí, minha filha.
P/1 – Muito bem, Dora.
R – Gostou?
P/1 – Muito, muito. Então, Dora, em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada pelo depoimento.
R – Eu que agradeço, de todo meu coração.
P/1 – Muito obrigada mesmo.
R – E ontem que falei para as minhas amigas lá, tudo a mesma idade nossa, ela falou: “Ou você vai receber um não ou um sim”. E eu falei: “Não, eu vou receber um sim!”. Aí, depois, você passa para nós. Elas são tudo... Eu que não sou vidrada nisso, não aceitei, sou antiga, não sei. Tenho celular pequenininho só: “Está bem, está bom?”, e só.
P/1 – A gente passa depois para a senhora mostrar para elas.
R – Você vai dar um e-mail? Como seria?
P/1 – A gente combina depois como faz.
R – Certo?
P/1 – Certo, muito obrigada, Dora.
R – Não sei se vocês gostaram.
P/1 – Adoramos.
R – Então, está bom.Recolher