Nasci em um dia provavelmente muito frio; não tanto por ser fim de junho, mas muito mais por ter sido em um lugar muito alto, num vale estrategicamente colocado no alto de uma serra no interior de Minas Gerais.
Eu cheguei como a primeira filha, mas já havia dois irmãos com meus pais. Na fazenda, que era herança do pai de minha mãe; um descendente de italiano com espanhol; passei meus primeiros anos, vendo meus irmãos levarem as ovelhas para pastar e minha mãe tosquiá-las uma vez por ano. Era pura magia para mim vê-las entrando como bolas de algodão sujo no subsolo da casa e saírem rosadas, com as marcas da tesoura não muito linear, deixando um punhado de lã suja , que depois era fervida e trabalhada, até virar cobertas coloridas tecidas por minha mãe em um enorme tear que ocupava uma sala inteira de uma casa velha, que havia sido a casa de meus avós.
Vivi essa vida paradisíaca até meu quinto aniversário, quando meu pai decidiu que eu deveria ir para a escola. Meus irmãos, Orlando e Hélio, moravam com minha avó, mas uma menina não poderia viver longe dos pais. Então meu pai comprou uma casa em Piumhi, nos mudamos em maio de 1974. Ainda perco a respiração quando me lembro do meu espanto ao ver tantas casas junto, enfileiradas, com calçada, e tanta gente curiosa, conversando ou olhando o que acontecia por ali. Meus tios gostavam de nos elogiar, notando como os pequenos aborígenes eram capazes de andar duas quadras até a casa da avó sem se perder. Se soubessem como éramos infinitamente mais vividos que seus filhos. Como era bom pescar "cambevas" nas águas frias que desciam da serra, correr atrás dos carneirinhos novos, jogar bosta de vaca na Agostinha Bernarda, uma ermitã de idade indefinível que vivia sozinha em um casebre ao lado de um mato denso e que, por longos períodos, era a única pessoa com outro sobrenome que víamos. Ah, se meus tios soubessem das histórias da segunda guerra que nosso pai contava, como ele falava da...
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Nasci em um dia provavelmente muito frio; não tanto por ser fim de junho, mas muito mais por ter sido em um lugar muito alto, num vale estrategicamente colocado no alto de uma serra no interior de Minas Gerais.
Eu cheguei como a primeira filha, mas já havia dois irmãos com meus pais. Na fazenda, que era herança do pai de minha mãe; um descendente de italiano com espanhol; passei meus primeiros anos, vendo meus irmãos levarem as ovelhas para pastar e minha mãe tosquiá-las uma vez por ano. Era pura magia para mim vê-las entrando como bolas de algodão sujo no subsolo da casa e saírem rosadas, com as marcas da tesoura não muito linear, deixando um punhado de lã suja , que depois era fervida e trabalhada, até virar cobertas coloridas tecidas por minha mãe em um enorme tear que ocupava uma sala inteira de uma casa velha, que havia sido a casa de meus avós.
Vivi essa vida paradisíaca até meu quinto aniversário, quando meu pai decidiu que eu deveria ir para a escola. Meus irmãos, Orlando e Hélio, moravam com minha avó, mas uma menina não poderia viver longe dos pais. Então meu pai comprou uma casa em Piumhi, nos mudamos em maio de 1974. Ainda perco a respiração quando me lembro do meu espanto ao ver tantas casas junto, enfileiradas, com calçada, e tanta gente curiosa, conversando ou olhando o que acontecia por ali. Meus tios gostavam de nos elogiar, notando como os pequenos aborígenes eram capazes de andar duas quadras até a casa da avó sem se perder. Se soubessem como éramos infinitamente mais vividos que seus filhos. Como era bom pescar "cambevas" nas águas frias que desciam da serra, correr atrás dos carneirinhos novos, jogar bosta de vaca na Agostinha Bernarda, uma ermitã de idade indefinível que vivia sozinha em um casebre ao lado de um mato denso e que, por longos períodos, era a única pessoa com outro sobrenome que víamos. Ah, se meus tios soubessem das histórias da segunda guerra que nosso pai contava, como ele falava da época de sua juventude, de como conviveu com gente de todos os tipos e como foi difícil para um rapaz de família tão censurável conseguir a mão da filha de Seu Alcedino, o mais católico e mais sisudo dos fazendeiros dali, além de, é claro, um dos mais providos de terras. É por ignorar essa enciclopédia que trazíamos na cabeça que não entendiam porque íamos tão bem na escola, com certeza, melhor que seus filhos empertigados e bem educadinhos. Os anos que se seguiram foram regulares, com minha mãe lutando muito para dar educação aos sete filhos, (nenhum anjinho) e meu pai trabalhando duro em uma fazenda menor, mas bem próxima da cidade.
Me dei muito bem na escola. Meu pai plantou em mim uma sementinha que crescia e me fazia devorar livros e livros. Li de tudo: desde Irmãos Grimm até Sartre. Fui sozinha aprendendo a escolher a boa obra e amar as idéias. Quando tinha quatorze anos, meu pai foi ludibriado por um advogado e tivemos que voltar a morar na fazenda e alugar a casa na cidade. Nos mudamos em dezembro, na época em que mais tinha amigos, mais lia, mais saía; chegava a passar dez horas fora de casa depois da aula. Nesse período, eu aprendia o que era cerveja, o que era sexo, o que era o fumo ou o pó que os amigos me ofereciam e eu recusava, sabendo que me traria mais amarguras que sorrisos. Quando eu estava descobrindo a vida, meu pai quis nos tirar da cidade. Passei dois meses em profunda depressão e meus irmãos, que usavam uma linguagem mais fácil, pediram tanto que ele nos deixou ficar na casa, sozinhos, para estudar. Resultado: me tornei a chefe de uma casa com quinze anos, tendo que cuidar e de um garoto de quatorze, uma garotinha de doze e o menorzinho, com dez anos. Foram dois anos, estudando de manhã, trabalhando e brigando com os irmãos à tarde, passeando à noite e indo para a fazenda nos fins de semana. Depois, fui para Campinas fazer cursinho, me assustei de novo com as casas enfileiradas, não em centenas, mas em muitos milhares, agora. Entrei nas turmas de Publicidade da USP e Análise de Sistemas da PUCC. Como São Paulo era grande demais para mim, comecei a trabalhar no Banespa, fiz o curso na PUCC, decidi que arte para mim não pode ser trabalho. Me casei em 1994, mudei para São Paulo e tive um filho em junho de 1996. Meu filho nasceu em São Paulo, num dia frio, numa linda maternidade perto da Av. Paulista. Meu filho, Luca, é muito parecido comigo, mas apenas por fora. Brinca com todas as pessoas que olham para ele e que jamais imaginam que sua mãe tinha pavor de pessoas estranhas, que morava em um lugar lindo, sem ver outras pessoas que não as da família por meses e que até hoje não se sente muito à vontade quando tem que cumprir papéis sociais.
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