Nunca tive amigos [na escola]. Eu fui ter amigo, sem brincadeira, eu tinha quinze para dezesseis anos, minha primeira amiga foi a anticristo da escola (risos). Era engraçado, porque até os meus dezessete anos, eu cultuei a doutrina da igreja da minha mãe, fui batizado... Então, assim, eu sofria ...Continuar leitura
Nunca tive amigos [na escola]. Eu fui ter amigo, sem brincadeira, eu tinha quinze para dezesseis anos, minha primeira amiga foi a anticristo da escola (risos). Era engraçado, porque até os meus dezessete anos, eu cultuei a doutrina da igreja da minha mãe, fui batizado... Então, assim, eu sofria bullying de novo porque eu tinha que ter aquele cabelo enorme, cumprido, aquela saia lá no chão e eu odiava. Eu odiava porque eu não me sentia pertencente àqueles olhares que davam para o meu corpo, eu nunca gostei de delinear meu corpo, diferente da minha irmã que gostava de vestido. Eu fui me incomodando com meu corpo com dez anos de idade, quando meus seios começaram a crescer, eu não queria aquilo em mim, eu não me via como menina.
Eu sofria muito essa degeneração de imagem, mas eu não tinha como comprar minha roupa, eu não tinha como ser, ali, o moleque que eu era, que eu me sentia.
A Adriana era anticristo e a gente se juntou não sei o porquê, acho que as pessoas a renegavam por ser anticristo, e as pessoas me renegavam pelo o que eu era, pela forma que eu me vestia, eu não falava com ninguém, eu não tinha amizade com ninguém e a Adriana não queria amizade com ninguém, de repente, um dia, a gente sentou um do lado do outro e ela me falou exatamente assim: “E, ai?” e nossa amizade começou.
Minha primeira paixão foi por uma professora. Acho que todo mundo se apaixonou por professor na vida, eu não sou o único, foi pela minha professora de Física, com 15 anos. Foi a paixão mais linda da minha vida, foi a paixão que me motivou a começar a escrever os poemas. E essa mesma motivação fez com que eu ganhasse premiações dentro da escola com os meus poemas, porque era tão bonito aquilo que eu estava sentindo, era tão mágico aquilo que eu sentia, me preenchi tanto daquilo, que as palavras saiam nas escritas de uma forma muito bonita.
Teve uma competição de poesia na escola, eu me inscrevi e era um poema dedicado a ela, só que sem falar que era ela, né? Porque eu tinha 15 anos e ela tinha 35, mas foi o poema que foi premiado e foi ilustrado na escola inteira.
Eu era assim, eu me vestia de uma forma na escola, eu ia de saia, cabelo cumprido, ok, eu tinha um dinheirinho que era me dado para o lanche, só que em vez de comprar lanche, eu comprava anéis, porque eu sempre adorei anéis, comprava colar de cristal. Então, na época, já que eu não podia me vestir como eu queria, como eu me sentia, eu comprava esses apetrechos, que a minha mãe não sabia, quando eu chegava em casa colocava tudo na mochila, aí pronto, estava limpinho do jeito que eu tinha saído, tipo “o beato”.
Na escola, não. Na escola eu colocava óculos colorido, colocava anéis no dedo, eu lembrava muito Janis Joplin, na época, era muito engraçado, porque as pessoas começaram a me chamar de Janis.
A partir do momento que eu quisesse usar o que eu queria, eu tinha que comprar, me sustentar para isso e não viver na casa da minha mãe, porque ela era extremista religiosa. Minha primeira calça eu comprei juntando o dinheiro do lanche.
Como eu andava com a minha amiga anticristo, eu comprei uma calça preta, rasguei inteira e inventei para minha mãe que precisava de um tênis para fazer Educação Física. Na escola tinha uma arvore enorme na porta de entrada, perto da diretoria. Então, eu saia de casa mais cedo, ia em um horário que não tinha ninguém perto daquela árvore, colocava a minha calça, guardava a saia e ia para escola. Era a forma que eu podia ser eu, infelizmente, não tendo o apoio da minha mãe.
Eu vivia duas personalidades, porque não queria magoar minha mãe, minha mãe já tinha sofrido muito, mas eu estava me magoando. Eu estava sendo uma pessoa que a qualquer momento ela descobriria que não era o que ela queria que fosse.
Até que chegou o dia que aconteceu, minha mãe chegou de surpresa na escola e eu estava descendo os degraus para poder ir para o pátio, com a minha amiga anticristo. Olha, se tem um momento em que eu fiquei... Eu queria que tivesse um terremoto no mundo naquele momento para que eu pudesse ter tempo de trocar de roupa e minha mãe me ver do jeito que ela me viu saindo de casa, um buraco, alguma coisa, me teletransportar... Foi horrível, meu coração ficou acelerado a mais de cem.
Só aos trinta anos eu tomei coragem o suficiente para poder assumir tudo... Foi com trinta anos, trabalhando dentro de um salão, que eu vi que eu estava totalmente infeliz, porque ali dentro eu tinha que andar como uma mulher, mas quando eu saia dali eu me vestia como homem, como eu queria, como eu me sentia.
Trabalhei com administração, com gerenciamento, com áreas nada a ver com o lado artístico, nada a ver, até essa conscientização que eu não podia viver sendo ela, se eu sou ele.
Depois que eu saí da área estética, eu fiquei sem saber o que eu ia fazer da minha vida, uma coisa eu tinha certeza: eu não queria trabalhar em algo que me fizesse ter que vestir de uma forma que eu não me sentisse bem
Aos 34 anos, eu contratei um personal, enfim, teve esse acidente de sobrepeso nas minhas costas, porque ele fez um treinamento que seria para homens, só que meu corpo é de mulher, estou transitando para um formato masculino. Aí eu comecei a escrever, eu estava muito mais ativo na militância, no ativismo dos homens trans, comecei a conversar com mais homens trans.
Hoje o que é mais importante para mim é dar vazão a essa parte linda que eu esqueci de mim há muitos anos. Com esse acidente, eu renasci totalmente. Eu não sou mais aquela pessoa do passado, muitas coisas eu deixei para lá e hoje estou tentando recuperar todos esses dezessete anos que eu deixei passar por mim. O mais importante para mim hoje é nunca mais abandonar a minha arte, esse expressar de vida que eu tenho, isso para mim é o mais importante.Recolher