Entrevista de Camila de Sá
Entrevistada por Taís Pereira e Rafael Santos
São Paulo, 10 de outubro de 2019
Projeto Conte Sua História
PCSH_HV 838
Transcrita por Selma Paiva
P/1 - Me fale seu nome, onde você nasceu, data do seu nascimento. Conta um pouquinho.
R - Meu nome é Camila d...Continuar leitura
Entrevista de Camila de Sá
Entrevistada por Taís Pereira e Rafael Santos
São Paulo, 10 de outubro de 2019
Projeto Conte Sua História
PCSH_HV 838
Transcrita por Selma Paiva
P/1 - Me fale seu nome, onde você nasceu, data do seu nascimento. Conta um pouquinho.
R - Meu nome é Camila de Sá, nasci em São Bernardo do Campo, num bairro chamado Baeta Neves. Nasci no dia vinte de fevereiro de 1989.
P/1 - Então, me conte aí sobre esse bairro, sobre a sua infância. Como é que foi esse Baeta Neves aí, nos seus primeiros anos de vida? O que você lembra?
R - Do bairro eu não tenho tantas lembranças, porque eu acho que o que me marcou mais, foi a minha convivência no sítio, onde minha avó era caseira, não é? Então, ela era caseira lá em Arujá, junto com meu tio ________ (01:09), porque a minha avó japonesa e o tio __________ (01:12) e meu avô, que também era nipo-brasileiro e lá a gente construiu muito da relação com os passarinhos, da relação com o rio, com as árvores, a gente teve uma oportunidade de ter uma convivência muito íntima com a natureza e eu acho que isso me marcou mais. Quando eu paro para lembrar da minha infância, acho que as principais imagens vêm desse lugar, não exatamente do meu bairro, mas o meu bairro sempre foi muito acolhedor. Ele é um bairro mestiço, assim como eu, como as minhas irmãs, ele está entre o centro e a periferia de São Bernardo. Então, lá a gente sempre estudou em escola pública e teve muito acesso a essa diversidade toda, entre os nossos colegas, os nossos amigos. Os meus parentes por parte de pai são todos pernambucanos. Então, a gente sempre viveu coletivamente no quintal, com meus tios, primos, uma família imensa, minha avó teve dezessete filhos. Desses dezessete filhos, dez fizeram a passagem, muito precocemente, por conta das condições, mas meu pai veio aos treze anos para cá, e lá se instalaram. Os meus pais se conheceram numa granja de ovos, em São Bernardo do Campo. Então, para além desse contato com os pássaros que eu tive nessa chácara, acho que isso me aproximou muito desse universo, não é? Dessa fauna alada. (risos)
P/1 - Vocês iam muitas vezes? Qual era a frequência que vocês iam para essa chácara? Como era esse ritmo? Como eram essas viagens?
R - Aí, só uma coisinha... você acha que... qual é o tempo mais ou menos de uma resposta? Só para eu ter uma noção de quanto ela pode durar, um minuto, uma hora?
P/1 - O tempo certo é o tempo que ela tem para durar.
R - É?
P/1 -
A gente não está preocupado com isso.
R - Está.
P/1 - A gente está batendo um papo e não tem certo ou errado e pode deixar, que se tiver alguma coisa que a gente queira saber, se você não falou, a gente vai puxar.
R - Perfeito.
P/1 - Mas se você estiver falando e estiver passando no que a gente tem aqui, a gente vai deixar ir. Não se preocupa. Só se preocupa em lembrar e sentir. O resto a gente faz. Então, vamos lá. Conta para a gente desses momentos que vocês passavam nessa chácara. Como vocês iam? No fim de semana, nas férias? Como era?
R - A gente ia para lá praticamente todos os finais de semana, quando possível. O meu pai tinha uma kombi, que era o único carro que cabia todo mundo, porque nós somos em quatro irmãos em casa, não é? Um carro de passeio não conseguiria acolher todo mundo. Então, a gente ia de kombi geralmente, quando não, minha mãe levava a gente de ônibus e aí eu ainda era bebê quando ela começou a ir para lá, e éramos duas, não é? Porque minha irmã é gêmea. Então, diz ela, que ela tinha que ser muito criativa (risos) para carregar todo mundo e levar até ao destino. Meu irmão às vezes segurava no bolso da calça dela, atrás; a minha irmã na mão dela e a gente ia assim. E lá, a minha tia era muito presente, tia Luiza, que acho que é sempre bom lembrar, não é, que significa luz. Acho que foi uma luz muito imensa que guiou esses meus primeiros passos, dentro desse campo sensível. Ela gostava muito de escrever, acho que foi a primeira poeta que eu conheci. Ela escrevia diários, escreveu no meu diário diversas vezes, eu guardo até hoje. Ela foi para o Japão três vezes e sempre que ela voltava do Japão, ela voltava muito triste. Então, acho que era muito bom ela morar lá na chácara, que conseguia acolhê-la também e confortá-la nesses momentos. Mas acho que é importante trazer isso da minha tia, porque eu acho que ela traz muito da questão, do que é ser nipo-brasileiro aqui no Brasil, e do que é não pertencer exatamente ao Brasil e não pertencer ao Japão também. Então, ela viveu muito essa angústia. E hoje eu vejo que ser mestiça, de certa forma, é mais fácil até, porque pelo menos as pessoas conseguem enxergar a minha brasilidade, não é? Mas para a minha mãe, para minha tia, era muito mais difícil. Enfim, acho que é uma questão. Mas, nessa chácara, então, ela era muito presente. Ela tinha alguns rituais que ela fazia todos os dias, e um deles era acender uma fogueira. A minha irmã gêmea e eu, a gente sempre acompanhou com muita empolgação e entusiasmo esse tipo de ritual. Às vezes a gente colocava umas madeiras e aí criava uma fumaça que parecia que a gente estava nas nuvens e a gente ficava (risos) muito envolvida neste tipo de brincadeira com ela. A gente brincava muito com a terra, com a argila e aí foi, acho, um dos meus primeiros contatos com argila, que é uma coisa que ainda eu nutro, um fazer que eu nutro, é matéria prima muito importante nas cerâmicas que eu produzo e eu sei que começou lá. Então, lá também eu lembro de uma outra brincadeira que a gente fazia, que era recolher as pétalas das Primaveras, porque o meu avô, como eu já disse, era jardineiro. Então, era muito bonito. Nossa, muito exuberante, mesmo. A gente recolhia e fazia sucos e perfumes com essas pétalas, (risos) e uma vez, além dessa minha tia, tinha uma outra tia lá, minha tia avó Emília. Ela teve paralisia, quando ela era criança e parece que ela caiu num buraco, e desde então, ela se relacionava de um jeito só dela com as pessoas. E aí a gente ofereceu uma vez, esse suco para ela e ela foi a única pessoa que aceitou, claro, e bebeu o suco de pétalas e a gente ficou: “Ai, meu Deus, agora ela vai morrer. (risos) O que é que vai acontecer?”. Enfim, são memórias muito singelas que eu trago desse tempo, não é? E eu vejo como isso reverbera. Tem muita presença da aromaterapia no meu trabalho. Eu acho que vem bastante disso, não é? Que foi nutrido ali.
P/1 - Você falou dos seus irmãos, não é? Conta para mim. Seu pai, sua mãe, seus irmãos. Conta um pouquinho.
R - Está bom. Irmãos nós somos em quatro, então. A mais velha chama Ediane Kelly de Sá, foi o único nome que meu pai escolheu. Então, ele tem um caráter mais pernambucano, eu acho, o Ediane. O meu pai chama Elisvaldo Antônio de Sá, a relação entre os dois é muito próxima. O meu pai é pernambucano, morou em Floresta, que fica no interior de Pernambuco, em cima do Rio São Francisco ali, até os treze anos. Lá diz que a vida era muito simples, mesmo e que os meus avós não tinham mais condições de manter a vida ali e, além de tudo, tem uma história que ninguém sabe contar direito, mas que ele acabou saindo um pouco fugido de lá. É. Mas a gente não precisa falar sobre isso. (risos) E aí, tem o meu irmão mais velho, Rafael, que é do meio e minha irmã gêmea, que tem cinco minutos de diferença de mim, não é? A Bianca nasceu completamente diferente de mim. Nós fomos geradas em placentas diferentes. E eu acho curioso, que Bianca em italiano significa branca e ela nasceu branca e eu nasci preta assim, quando eu nasci. Minha mãe se surpreendeu muito com aquilo. À princípio era para eu me chamar Beatriz. Aí ela olhou para mim e falou: “Não. Acho que ela não tem cara de Beatriz. Aí ela meu deu o nome de Camila, e eu amo esse nome, porque eu acho que ele tem uma sonoridade muito delicada. E aí também acho que isso é algo que influencia muito o meu percurso, não é, de ter uma irmã gêmea, que é muito diferente de mim e, no fim das contas, ela acabou se casando com um italiano, (risos) descendente de italiano e hoje ela se chama Bianca de Sá Genosini. Eu acho que eu vivi muitos bullyngs dentro da minha família, enquanto a que nasceu preta, e aí isso acho que me suscitou necessidade de buscar uma outra parte da minha ancestralidade via Pernambuco, que não fosse branca, porque a maior parte dos parentes do meu pai são brancos, e tem ele e mais algumas tias que nasceram com a coloração parda. Então, eu fui investigar um pouco isso, ao longo da minha trajetória. E aí até que descobri que tem uma tataravó indígena lá de Floresta. Então, isso virou uma chave assim, para mim, foi muito importante. Perceber os preconceitos, como eles se reproduziam dentro da minha família e como cabia a mim e aos meus irmãos que tivessem mais consciência dizer: “Não”. A gente pode se relacionar de outra forma com tudo isso, porque tudo isso é tão rico. Tudo isso abre possibilidades que são muito profundas, muito férteis.
P/1 - Tem alguma história interessante com a irmã gêmea? Uma que você lembra e fala: “Nossa, essa é boa de contar”?
R - Ai, são tantas histórias com ela. A gente era muito grudada, quando a gente era criança, até uns doze, treze. A primeira que me veio, na verdade é uma lembrança meio triste. Será? Pode ser? É ...a Bianca e eu, realmente a gente era muito próxima, até que, quando a gente terminou o colegial, a gente estudava junto, no colégio, tudo, gostava das mesmas pessoas (risos) e aí chegou esse momento, que cada uma tinha que decidir um curso na faculdade, não é? E ela escolheu Engenharia e eu escolhi Ciências Sociais, não é? Porque eu precisava investigar tudo isso, o que era isso e tal. E aí eu acabei indo lá para Franca, para a Unesp de Franca e ela ficou em São Bernardo. Foi a primeira vez, que eu me lembro assim, claramente assim, que a gente ficou longe. E aí, eu fui para lá e foi uma noite só, mas aquilo foi tão difícil, que eu passei a noite chorando. Diz minha mãe que a Bianca não parou um minuto de chorar. Aí, no dia seguinte, eu liguei e falei: “Minha irmã precisa de mim, mãe, vem me buscar”. (risos) A minha irmã precisa de mim, não é? (risos). Eu jamais…e acabei voltando e não segui curso lá, por conta disso. Então, nosso primeiro momento de separação foi muito duro para a gente, a gente não conseguiu. E aí depois a gente teve outras oportunidades de conseguir fazer isso, não é?
P/1 - E aí você falou que vocês estudaram em escola pública?
R - Sim.
P/1 - Em São Bernardo, mesmo?
R - Sim.
P/1 – Como era, perto de casa? Como era na escola, com a irmã e tal? Conta um pouco da sua escola para a gente.
R - No pré era uma escola bem perto de casa, dava uns cinco minutos andando. Eu lembro que a gente foi colocada em turmas diferentes, porque minha mãe dizia que ia ter muita comparação entre nós e, realmente, fora da escola era o tempo todo, as pessoas davam roupas iguais, só com a cor diferente, era tudo de par, não é? E nessa escola a gente teve essa primeira experiência de estar separada. Eu lembro que eu sentia falta, ao mesmo tempo virava uma referência, e a gente ganhava destaque, por ser as gêmeas da pré-escola, não é?
P/1 - É mesmo?
R - Sim. As pessoas se referiam a nós dessa forma. Na pré-escola eu lembro que teve uma coisa de me acharem meio superdotada, umas coisas assim, porque eu aprendi a escrever muito rápido, ler, não é? E me colocava numas situações bem constrangedoras, assim, dia do faxineiro, dia dos pais, dia das mães, sempre me colocavam lá no palco para ler alguma coisa. Acho que, de certa forma, demonstrar que a escola era boa. Então, eu lembro que tinha um lugar assim, meio estranho, meio esquisito, naquela pré-escola. E aí, quando eu fui para o Gofredo, que foi onde eu estudei o primário... não se fala mais assim, não é? (risos) Não consigo me atualizar. Eu sei, mas sempre, quando eu vou falar assim, me refiro assim. O ensino ...
P/1 - Fundamental.
R - Fundamental, não é?
P/2 -
É fundamental.
R – Ah, é, agora é fundamental. Está certo. Verdade. Então, no ensino fundamental, a gente estudou juntas, na mesma sala, era uma escola bem próxima, o Gofredo, que onde eu vou estagiar, as minhas últimas horas de estágio agora, para terminar a faculdade, a licenciatura. Lá eu conheci uma professora que mudou a minha vida também, ela chama Maria do Carmo, foi minha professora da primeira à quarta série. Ela dizia que ela era espírita, e ela colocava música clássica para a gente ter aula, não é? Para a gente se espreguiçar, se preparar para a aula. E aquilo me sensibilizava muito. Até que chegou um dia que teve um festival de pipas, e aí os meus irmãos me ajudaram, a gente conseguiu ganhar esse campeonato. Eu lembro como se fosse hoje da gente tentando empinar aquela pipa, e não conseguia, mas era muito lindo, não é, tudo aquilo, as crianças todas. E aí ela me deu um ioiô de cristal, essa professora, não é? Que ela disse que ela tinha desde os quinze anos e ela tinha uns quarenta anos já. Eu falei: “Nossa, isso é muito especial, meu Deus, o que eu vou fazer com isso?”. Naquele mesmo dia, à tarde, puff ... caiu no chão enquanto eu brincava e quebrei. Aí eu fiquei tão horrorizada com aquilo, sem saber como contar para ela, que aí acabou, então, esse período da quarta série, e eu não tinha mais coragem de visita-la. Porque eu ia ter que contar essa história para ela. Então, a gente tinha muita afinidade, mas eu não nutri esse encontro, não é? E aí, depois de um ano, minha mãe a encontrou no mercado, e ela falou que ficou extremamente decepcionada, porque a Camila não foi buscar a pastinha dela. (risos) Essa pessoa eu reencontrei, faz uns três meses, num terreiro onde eu fui me cuidar de questões bastante profundas. Ela estava ali de cambona. Então, eu sinto que é uma pessoa bem importante na minha vida, não é? E ela, ademais, então eu descobri que não era espírita exatamente, ela era da umbanda, depois de vinte anos, praticamente, e diziam que ela tinha uma amiga. E aí, depois de alguns anos, a minha mãe me contou, me sentou assim, na mesa, ao lado dela, e falou: “Tenho um coisa muito importante para te dizer, em relação à sua professora, que você ama tanto, que aí ela disse que ela não tinha uma amiga, na verdade ela era lésbica”. E aquilo foi muito impactante para mim.
P/1 - Como é que você se sentiu?
R - Eu me senti traída. Completamente traída. Falei: “Nossa, mas ela dizia que era amiga. Ela mentiu para mim todo esse tempo?”. E essa amiga aparecia sempre no dia das crianças, ou durante um tempo também, que ela esteve afastada, porque ela teve câncer de mama e aí, quando fizeram a cirurgia, ela ficou afastada, e essa pessoa ia lá, cuidar da gente. A Marlene. E aí, depois disso foi muito importante, porque atualmente eu sou bissexual, mas teve toda uma trajetória dentro desse universo de se reconhecer lésbica, que eu vejo ... ah, eu agradeço muito, não é, por ter tido esse contato com ela. Enfim, muitas questões. (risos) Mas isso, de tê-la encontrado ali no terreiro, eu fiquei chocada. Eu olhei e falei: “Gente, não é possível”.
P/1 - Antes da gente passar para a adolescência e para a juventude, você falou que a sua tia foi a primeira poetisa que você reconheceu, que você conheceu.
R - Sim.
P/1 - Você lembra de algum poema dela? Ou alguma frase, alguma coisa, algo que você...
R - Eu não me lembro, porque a minha tia escrevia nos diários dela e ela queimou todos esses diários numa dessas fogueiras, antes dela fazer a passagem, não é? Então, ela resolveu fazer essa passagem, não é? E isso, enfim, provocou dores muito profundas na minha família toda. Eu tinha aproximadamente doze, treze anos, por aí, e o único texto dela que ficou, foi um caderno de receitas que ela escreveu, que ela deixou para mim, e uma frase que ela deixou no meu diário, mas eu não vou me lembrar exatamente, mas dizia como: “Agradeço, pois você é uma das únicas coisas verdadeiras que eu sigo tendo contato”. Eu lembro de algo assim, mas é uma memória que, por mais triste que seja, eu acho que ela dá muito combustível para tudo o que eu tenho feito e para a minha família toda. A gente sabe que ela é uma estrela nesse céu. Está sorrindo para a gente, toda vez que a gente olha. E acho que é importante a gente nutrir essa relação, mesmo, com os antepassados, não é? E de certa forma, a gente dar continuidade às coisas que ela começou, não é? Aos encantos que ela teve, aos caminhos que ela abriu. Então, é isso. Uma pessoa a quem eu tenho muita gratidão.
P/1 - E aí me conta da Camila jovem. O que você gostava de fazer, como foi quando você começou a sair mais sozinha, com independência, como foi esse momento da vida?
R - Eu sempre me senti meio _______ (24:13) assim, sabe? Criança meio velha. E a minha juventude não foi muito diferente. Sempre fui muito caseira. Então, os meus amigos iam para a balada, mas eu tinha sono quando eu os acompanhava, (risos) eu ficava muito em casa mesmo, gostava de ler, gostava muito de tocar violão. Descobri o violão quando eu estava no colégio, não é? E isso mudou muito a minha vida. Eu só queria tocar violão. Coitada da minha mãe.
P/1 - Você começou a estudar violão?
R - Sim. Lá em São Bernardo, não é? Na Câmara de Cultura, que era um projeto social, que tinha lá. Acho que ainda tem, não é? Tem a conterrânea aqui, de São Bernardo?
P/1 - Sim.
R - E aí, foi uma professora chamada Renata, ela deu quatro meses de curso, e eu me encantei perdidamente pelo instrumento, por ela também, eu fiquei muito encantada, foi um pouco dessa descoberta: “Nossa, o que é que é isso que eu estou sentindo?” Aí misturou tudo e, enfim, a gente fez uma apresentação, terminados os quatro meses, e desde então, foi uma aprendizagem, bastante autodidata, e às vezes com auxílio de pessoas próximas. Meu irmão toca guitarra desde que acho que ele se entende por gente e violão, então, ele deu uns toques. Meu primeiro violão era dele, na verdade, que ele me emprestou. E desde que a gente tem uns dez anos, a Bianca e eu, minha irmã gêmea e eu, a gente compõe, não é? A gente frequentava a igreja católica, meu pai era bem católico, colocou a gente na catequese, e tudo, e a gente fazia músicas. Eu lembro até hoje das música meio para Deus, músicas de Jesus, do Anjo da Guarda.
P/1 - Mas que vocês compunham?
R – Hum hum. E a gente escrevia num caderninho, a gente chegou a fazer um livro com essas musiquinhas e entregou para o pedreiro, que a gente era encantada.
P/1 - O pedreiro era fã de vocês também. Plateia.
R - A gente era meio apaixonadas pelo pedreiro. (risos). E a minha mãe chamava ele de anjinho, e a gente fez uma música para o Anjo da Guarda e entregou para ele o livrinho. Eu me arrependo até hoje, porque são músicas que a gente ... só tem uma música que eu me lembro. Mas acho que não convém cantar aqui. (risos)
P/1 - (risos) Você é que sabe. E como foram esses amores florescendo, na sua juventude?
R - Na juventude? Então, era muito confuso, não é? Porque muito do que eu sentia, às vezes por mulheres, era repreendido, entendido de outra forma. Mas tinha um mocinho, o Karl Marx, o nome dele.
P/1 - Gente.
R - Que não era socialista, mas morava no bairro. Foi meu primeiro namorado. E foi uma pessoa muito singela, naquele momento. Mas era incrível, eu e a Bianca, a gente sempre se apaixonava pela mesma pessoa. Então, era sempre momentos de encanto e ao mesmo tempo conflito. (risos) Mas foi depois que eu fui me abrindo, e me reconhecendo, me conhecendo, e tendo encontros com mulheres que foram muito importantes na minha vida.
P/1 - E quais eram os seus sonhos? Você lembra, nessa época? O que você pensava? Sonhava para você?
R - Eu guardo ainda hoje alguns cadernos, livros que a gente faz em atividades de Português, em aulas de Português, que dizia que eu queria, meu sonho era fazer jornalismo, ser redatora, comprar um terreno bem grande, em que cada irmão meu teria uma casinha e a gente moraria juntos, e que minha mãe poderia ter um jardim, não é? Eu sinto que ainda é o sonho da minha mãe, mas ela segue na casa onde eu nasci, no Baeta, que é toda cimentada. Ela faz esse jardim com vasos. Ela reinventou, não é, tudo isso. Mas eu acho que o meu sonho não mudou muito, de lá para cá. Claro que eu não imagino a gente vivendo, não é, os meus irmãos e eu, no mesmo terreno. Talvez com outras pessoas. Agora os meus irmãos são irmãos de mundo, mas sigo nessa esperança, de poder oferecer esse pedaço de terra para minha mãe fazer o jardim dela na terra, assim, mesmo. Mas era basicamente isso, assim, não é? A gente tinha que pensar o que a gente queria ser quando crescer e aí eu pensei em jornalismo, porque eu tinha um gravadorzinho que minha mãe me deu e aí eu fui fazer entrevista com todo mundo (risos) quando eu ia na...
P/1 - Você fazia entrevistas?
R - Fazia entrevista. Quando eu fazia viagens com os meus pais, meus irmãos, a gente ia para uma fazenda. A minha avó, minha ________ (30:10) mudou. Então, ela saiu de Arujá e foi morar em Sabino, que fica no interior de São Paulo, do lado de Lins, que é uma cidade de bastante imigração japonesa também, não é? Inclusive, passa pela cidade um trecho do Rio Tietê, mas ele é límpido. É uma coisa impressionante. Dá para enxergar os peixinhos, assim, passando. Diz que vem dessa capacidade do rio se reciclar, se revigorar, se revitalizar. Então, a gente ia sempre para Sabino, não é, quando era jovem, aí levava esse gravador, e aí a gente ficava gravando a chuva, gravava a vaquinha e a gente pescava muito com os meus avós. A gente sempre levava ___________ (31:08) que era uma marmitinha de inhame, e ovos, não é? Os meus pais sempre cultivaram esse hábito do ovo, se conheceram numa granja e nossa, meu pai, ainda hoje, segue comendo até três ovos por dia. A gente levava esses ovos cozidos para comer, enquanto a gente pescava. Enfim, acho que as minhas expectativas naquele momento eram essas, de trabalhar com comunicação, com palavras, e depois de conhecer o violão, era também de conseguir cantar e fazer tudo isso sem culpa, não é?
P/1 - E você foi para Ciências Sociais, que você falou.
R - Fui.
P/1 - Como foi essa escolha?
R - Eu acho que veio dessas necessidades que eu comentei, de me entender, de me compreender. O que é que é essa pele, não é? Por que eu a habito? Como a gente pode coabitar uma diversidade tão grande aqui no Brasil? Primeiramente na minha casa, depois no meu bairro, depois no país. Eu precisava entender isso. Eu já me interessava muito por culturas indígenas, aí eu soube de um troço chamado Antropologia, aí falei: “Ah, eu acho que o caminho é por aí”. Todo mundo me questionou, porque: “Ciências Sociais não dá dinheiro, como é que você vai viver?” e tudo, mas eu pensei que as coisas iam se resolvendo no caminho, não é? Como foi. Só que, enquanto eu fazia Ciências Sociais, eu já comecei a trabalhar com arte e educação. Então, por causa dessa relação com o violão, eu comecei um curso de canto popular, um curso técnico, no Etec, e aí eu já comecei a dar aula em ONG, e aí já foi puxando para esse outro lado, não é, das artes. Então, eu trabalhei em algumas ONGs com pessoas com deficiência neuro-motora. Que era um caminho que ia se abrindo parece que quase que naturalmente. Tentei alguns lugares burocráticos, trabalhei na Secretaria de Cultura, durante um tempo, fazendo estágio lá, indo até, no começo, de salto alto e depois vendo que não cabia naquilo. Eu lembro de sair chorando de lá, que foi no dia que a minha cachorrinha morreu e para mim foi a gota d’água e um empurrãozinho que eu precisava para assumir que aquilo não dava. Tentei vários outros caminhos, mas eu percebia que eu ficava muito triste, era impossível me manter naquelas condições. E aí eu vi que o caminho que estava aberto era o da arte e educação mesmo, que aquilo fazia sentido, me nutria.
P/1 - Como é que você se sentia com as crianças, fazendo o trabalho?
R - Ah. Então, eu já comecei com jovens, com deficiência neuro motora. Era muito desafiador, mas eu sentia como se eu pudesse escutá-los, não é? E eu tinha interesse em escutá-los. Então, a troca acontecia e eles também me escutavam muito profundamente. Então, acho que foi através desse lugar da escuta que a ponte se deu ali, e aí depois eu senti que, para que essa ponte fosse melhor firmada, precisava de uma formação mais específica. E aí que eu tentei ... aí que eu assumi as Artes Visuais, fui fazer ciclos de graduação, Artes Visuais.
P/1 - Você terminou a faculdade de Ciências Sociais?
R - Terminei. Foram cinco anos. Eu fiz lá na FFLCH, foi um universo mágico para mim conhecer a USP, mas ao mesmo tempo muito cheio de contradições. Então, eu ia todo dia de São Bernardo para a Cidade Universitária, às vezes pegava horário de trânsito, dava quase três horas para chegar lá. Então, tinha dia que eu passava seis horas no ônibus. Então, era bem desafiador nesse sentido, e eu passava mal se eu lia no ônibus. Então, não tinha jeito. Mas aí foi bom, eu comecei até a cultivar um lugar meditativo assim, no transporte, não é? E nas Ciências Sociais eu conheci pessoas que caminham comigo até hoje. Logo nos primeiros meses eu conheci o Ricardo Henrique, que atualmente é um professor de ioga, mas eu lembro que eu estava passando pelo corredor das Sociais, havia um menino descendo o corrimão da escada de cabeça para baixo assim, muito velozmente, falei: “Meu Deus do céu, quem é essa pessoa?”. E aí fui lá tentar salvá-lo. E aí aquele encontro, também, mudou bastante a minha vida. A gente morou juntos, e começamos a trilhar um caminho entre a arte e educação e arte e terapia. E até o ano passado a gente trabalhava juntos nesse lugar da arte terapia, na Unati, na universidade aberta para a terceira idade na Unesp. Enfim, ele não terminou as Ciências Sociais, esse meu amigo, ele fez um pouco de Pedagogia, também não terminou, mas está terminando agora, na semana que vem, o curso de licenciatura em teatro, na mesma universidade que eu. Então, a gente vai se formar juntos. E aí eu vou tocar no TCC dele e ele vai estar presente no meu. Enfim, há muito tempo a gente começou e os caminhos seguem aí, fazendo sentido.
P/1 - E as inquietações que você tinha no começo da faculdade? Como é que foi isso?
R - Então, nas Ciências Sociais eu sentia que era um grupo diverso, mas principalmente muito elitizado. Então, eu não me reconhecia naquelas pessoas. Eu sabia mais ou menos de onde elas tinham vindo, e a maior parte vinha de escolas particulares, vinha de escolas da Vila, de Waldorf e aquilo era tão distante para mim. Então, eu acabei me aliando a um grupo um pouquinho mais próximo da minha realidade, mas me sentia meio deslocada, mesmo, lá, assim, como se eu não tivesse o direito de estar fazendo aquilo, sabe? Porque aquilo não era, a princípio, voltado para o mercado de trabalho, mas ... como diz ... ele não era direto, não é? E talvez, para as pessoas que vieram de onde eu vim, era o caminho pré fabricado. Então, era como se eu tivesse saindo um pouco da coisa, sabe? Saindo do que tinha sido planejado para mim. Que às vezes eu me sentia desconfortável nesse lugar. Por que que eu estou aqui refletindo sobre tantas coisas, sendo que eu tenho que pagar minhas contas, eu tenho que, sabe, pensar num jeito mais prático sobre tudo isso. Então, vivia muitas crises também, como se realmente aquilo não me pertencesse, não é? Aí aos poucos foi fazendo mais sentido, foi insistindo, não é? Mas nas Ciências Sociais também eu conheci, através de um encantamento afetivo, um grupo chamado Marimbondos, que era um grupo de teatro amador. E aí eu entrei nesse grupo, a princípio para ficar perto dessa pessoa, (risos) que eu tinha me encantado e aos poucos aquilo foi fazendo tanto sentido na minha vida, que aí tinha uma auto-gestão ali, compartilhada, tinha toda uma proposta de educação entre nós. Então, eu passei a facilitar algumas oficinas lá dentro, e a gente fez muitos experimentos que transformaram o olhar que eu tinha da USP, não é? Então, a gente fez um projeto chamado Circular Cantante, que a gente fazia algumas intervenções dentro do ônibus circular de lá, que inclusive me atropelou enquanto eu andava de bicicleta. (risos)
P/1 - Nossa.
R - Mas que não foi nada grave. Enfim, mas a gente interagia de uma outra forma, então eu acho que foi um dos motivos para eu ficar até o final, senão não teria aguentado cinco anos lá, não. E aí eu trabalhei lá dentro também. A gente estava fazendo uma trilha, eu era adolescente ainda, não é? E aí eles pararam a gente com uma câmera, acho que era da Record, era de um lugar chique assim, e aí (risos) entrevistaram, perguntaram: “E aí, o que você estão achando do passeio?”. Era muito simples. Mas eu fiquei tão nervosa na frente da câmera que eu falei: É muito maravilhoso”, mas eu falei maravilhoso umas quatro vezes na frase. (risos) Eu falei: “Nossa, Camila, realmente está nervosa, não é?”, mas: “Ainda não está gravando, não”. (risos)
P/1 - (risos) Você estava falando da situação __________ (41:14).
R - Ah é, nas Ciências Sociais.
P/1 - E estava fazendo Arte já ou não?
R - Nas Ciências Sociais, aí foi o Marimbondos.
P/1 - Isso.
R - Teatro. Esse teatro me salvou, porque eu acho que ele me motivou a estar até o quinto ano lá. E durante esse período também eu comecei a me direcionar para Antropologia, Foi onde eu conheci Alice Haibara, minha comadre, atual mãe do meu afilhado Uri, que também mudou bastante a minha trajetória, também moramos juntas, no coletivo. A gente tinha um coletivo chamado Amor à Terra. Esse foi o grande divisor de águas, não é? Amor à Terra, então, era um coletivo que a gente dizia afetivo, poético, artístico, que foram pessoas que se encontraram, a gente chamava de família de mundo, porque realmente a gente se reconhecia numa camada muito sutil e profunda, e aí nós tínhamos um amigo, chamado Guilherme, segue sendo amigo, Guilherme Menezes. Então, o Guilherme se instalou lá no Jardim Bonfiglioli, um bairro próximo ali da USP e chamou a gente para morar juntos, não é? E esse lugar passou a se chamar Recanto dos Caboclos, foi uma briga, porque a gente queria que se chamasse Recanto dos Caboclas, (risos) mas enfim, a gente conseguiu se alinhar depois. Então, esse foi um momento muito rico, assim, com relação às experiências nesse campo com os índios, principalmente com os índios que vinham do Acre. Lá a gente os acolhia, tanto para cerimonias, quanto para pousos, mesmo e aí acho que muito do que eu não entendia começou a fazer mais sentido, dentro de um lugar íntimo, para mim. Então, eu entrei no Centro de Estudos Ameríndios, nos meus últimos anos da faculdade, lá eu fazia a monitoria, cuidava da biblioteca de Educação Indígena e da organização das pesquisas e depois eu trabalhei junto com a Alice no Prêmio de Culturas Indígenas, durante pouquíssimo tempo, mas eu acho que foi muito transformador, ter entrado em contato com a medicina da ayahuasca e as medicinas desses povos do Acre, eu acho que organizou tudo internamente, não é? Então, eu acho que muito do meu trabalho atual, chamado Riacho dos Quatro Ventos, que é um álbum musical, partiu de referências que foram disponibilizadas naquelas experiências, não é? A música que abre o álbum, é uma música que veio para mim enquanto eu fazia faxina no salão dessa casa. Então, cada pessoa tinha que cuidar de um cômodo, como uma casa coletiva, tem essa organização, aí um faz comida, cuida da cozinha, o outro limpa banheiro. Então, durante um tempo eu limpava o salão e a lavanderia e, nesse salão, então, vieram algumas canções. Então, acho que foi muito importante essa passagem ali. Eu posso trazer alguma canção, aí a gente já experimenta outra forma de se comunicar. Tem um poema que abre, deixa eu ver se eu me lembro agora. É assim:
“A determinação de um hábito num tempo geracional, perdura o que sou. A mudança de um hábito no meu passo transforma gerações. Um espinho de cacto nordestino perfura a pétala de uma cerejeira. A flor sangrou um orvalho lacrimal no ventre da árvore, e dela germinou o sorriso de minha mãe. Leva devoção de um satélite natural as curvas orbitais do meu tronco ancestral. Jurema está viva em cada desatar de encruzilhada na minha cabeça. Seu arco cardíaco sustenta a simplicidade. E aponta que o caminho é um só”.
Juremê, oi Juremê, oi Juremê ou Jurema
Juremê, oi Juremê, oi Juremê ou Jurema
Com a força que agride, com as couraças
Meu canto é bonito e ancestral
Tua folha traz a cura verdadeira
Vai convidando a mata inteira
Vai sem medo, eia
Que a onça encantada é quem protege
O segredo nas vértebras da terra e do cocar
Juremê, oi Juremê, oi Juremê, oi Jurema
Juremê, oi Juremê, oi Juremê, oi Jurema
Uiaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiii...uaieeeee .... iaiê...iaiá...
Ehhhhhhhhhhhh, ehhhhhhhhhhhhh, ehhhhhhhhhhh
E iaiê, E iaiê
Salve. Salve as foinha. Ok.
P/1 - As composições você já fazia nessa casa compartilhada, coletiva?
R – Hum hum.
P/1 - E daí você começou a cantar? Como foi? O que você fazia nesse momento, profissionalmente, como era o seu trabalho?
R - Eu trabalhava numa ONG chamada Transformar, com oficinas de arte para desenvolvimento da pessoa com deficiência. Lá dava aulas de ... na verdade, eu era assistente de aulas de música, dava aulas de criação poética, misturava muitas coisas que não eram muito aprofundadas, assim, não é? Eu sabia muitas coisas, mas não sabia muito nada, assim, profundamente. Aí eu misturava tudo isso, não é? Que foi quando eu comecei a pensar numa faculdade de Artes. Porque eu achei que eu precisava aprofundar mesmo, não é? Mas, foi um momento mais intenso do Amor à Terra, que foi essa escola de mundo, escola afetiva. Então, a gente às vezes passava vários dias juntos, a gente amanhecia, fazia comida, a gente tocava, compartilhava alguma ideia de criação, fazia o que cada pessoa tinha que fazer, e dormia junto todo mundo na mesma casa, acordava de novo. Então, a gente teve essa oportunidade de encontro. Tanto ali, no Recanto dos Caboclos, quanto na casa da Ana, que era uma outra integrante, dançarina do grupo, também ficava no Jardim Bonfiglioli. A gente fez muitos experimentos em dança, em diversas linguagens. A gente dividia o coletivo por linguagens e aí cada um era responsável por uma linguagem e trazer projetos. Eu fiquei responsável pela linguagem da poesia e comecei uma revista, que chama Transvista, é possível acessar pela internet, a gente não chegou a fazer impressão, mas Transvista, poesia para transver o mundo, que vem de um poema do Manuel de Barros: “Um olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo”. Muito simples, não é? E aí essa revista, era uma revista colaborativa, que reunia poemas e artes de quem estivesse interessado, e fazia os links, as pontes. Ponte era uma palavra chave assim, para a gente, tem até um poema chamado Ponte, que é mais ou menos assim, que foi um dos motes, não é, desse projeto:
“Pisar com a palma dos pés, com a pluma das mãos, com a prece da pele, cada ponto dessa terra. De cada par de pontas uma ponte se abre, caminho por ela. De cada ponte por onde passo, ponte aérea, ponte etérea, ponte tábua, deixo brotar um ponto novo, um ponto cruz, um ponto estrela, um ponto ponte. Inspirar-se, deve ser como abrir pontes dentro de si. Descobrir um porto novo, quem sabe assim, já de partida, para caminhar de novo e de novo e seguir viagem. Nossos pés estão repletos de raízes dançarinas, e o mundo é um ninho imenso... ah ... de raízes dançarinas com vocação para manguezal”. Então, a gente brincava, fazia pontes, não é? Às vezes as pessoas não se conheciam, que enviavam poema, que enviavam a imagem, mas a gente articulava, e a gente fazia isso através das estações do ano. Então, tinha Transvista de primavera, Transvista de verão, Transvista de outono, inverno. Então, acho que foi minha grande escola, nesse tempo. E a gente tinha tempo para fazer essas coisas, que é um privilégio, não é? Naquele momento, então, eu acho que a gente conseguia viver assim, a baixo custo, não é? Tudo o que a gente fazia era muito artesanal. E a gente começou a pensar em editais, depois de algum tempo, aí foi quando tudo se desmoronou, porque a gente não sabia falar aquela linguagem, mesmo as relações que a gente tinha entre a gente, eram tão delicadas, tão afetivas, que eu acho que não comportavam esse tipo de horizonte, não é? Então, quando a gente se inscreveu para o Rumos do Itaú, ruiu, assim. A gente fez um encontro, chamado Abacaxi, que a proposta era que cada pessoa na roda pudesse trazer as suas farpas, não é, seus espinhos, daquela casca de abacaxi, enquanto cortava. E a gente pegava uma faca e ia cortando e falando. Foi uma lavação de roupa suja, que a gente nem imaginava, não é? E aí, depois desse Abacaxi, então a gente resolveu cada um seguir seu caminho. Aí o meu foi primeiro um grande luto e aí, nesse luto, eu resolvi ir para Santos. Para mim, era difícil suportar a vida em São Paulo sem eles, porque todos os nossos sonhos tinham se projetado sobre aquela plataforma. A gente ia comprar uma terra juntos, ia cultivar essa terra com nossos sonhos todos, nossas artes. E aí não aconteceu, boa parte foi para o nordeste. A Aura foi para o nordeste, o Tiago. Eu falei: “Ah, eu não vou ficar em São Paulo”. E aí eu prestei, foi um momento da minha vida bem estranho, não é? Assim, de busca e de confusão. Eu fui fazer Serviço Social, lá em Santos. (risos) Aí eu cheguei lá, no primeiro dia de aula meu professor falou: “O que você está fazendo aqui? Você já fez Ciências Sociais”. Eu falei: “Não. Eu acho que eu preciso servir de alguma forma”. Enfim, eu não sabia exatamente por que é que eu estava lá, não é? E aí um amigo veio lá da Bahia e veio me dar um chacoalhão, falou: “Nossa, o que é que você está fazendo aqui? Você está tentando reproduzir o que você queria, não é, com a gente?”. Naquele momento que ele foi lá eu já tinha uma casa, compartilhada com pessoas, que tinham interesses em artes, mas não eram eles. Não fazia sentido. A Casa Zen, não é? E aí, depois de alguns meses, eu voltei para São Paulo e comecei a reconstruir aqui. Então, acho que a partir dessa experiência, voltei de Santos e aí ficaram várias sementinhas desse momento de vivências mais intensas, não é? E aí um deles foi o Ninho, não é? O Ninho Cantante, que eu acho que foi o grande momento de reerguer forças e de ver. É possível viver de arte, é necessário ter relação com as crianças para você gerar essa força, esse ânimo e tem tanta coisa aí para ser curada com essa energia. Então, funcionou, não é? Eu escrevi o projeto durante uma noite, uma madrugada seguida assim, para o Virada Sustentável, no edital da prefeitura, e era um ninho, feito de palha, dimensão de dois metros e meio de diâmetro e dentro a gente faria origamis, contaria histórias, estaria aberto para encontros espontâneos também, e aí foi legal, não é? A primeira experiência deu certo, a programadora quis que eu fizesse os quatro dias, para que a gente chegasse na meta de mil tsurus, que a gente conseguisse dobrar mil origamis. A gente não chegou na meta, aí eu falei: “Ah, então, vou seguir fazendo isso em outros lugares”. Aí acabei seguindo e eu fiz durante dois anos e pouco, circulando por unidades do Sesc e coisas afins, e aí acho que foi o momento que eu entrei nas Artes Visuais, enfim, e aqui chegamos.
P/1 - E como foi essa questão? Como você juntou toda essa tua história, nesse momento que você se consolida, não é? Porque você traz muito essa imagem: “Chegamos aqui”. Como você carrega, como você vê isso, de toda essa tua história?
R - Acho que foram muitas quedas, não é e acho que muitos desafios. Eu acho que aqui eu trouxe alguns, mas aí acho que tem vários outros, como a vida de todo ser. Eu acho que eu vejo como uma possibilidade de reconstrução mesmo, não é? Eu trabalho muito a parte, eu sinto, de dádivas dos meus antepassados, mesmo. Então, eu vejo que é importante eu reverenciá-los, não é? Eu sinto como se eu tivesse reproduzido algumas quedas, que eles também sofreram, e que eu tenho um amparo maior em termos, mesmo, de possibilidade afetiva, familiar, material, para trilhar outros caminhos. Eu disse que os meus antepassados, a linha da minha mãe, realmente tem uma densidade ali, não é, que é muito difícil da gente lidar, por conta das passagens que foram muito trágicas, todas elas. A minha bisavó, quando ela veio para o Brasil, não pôde ficar com a família dela, verdadeira, do Japão. Então, ela teve que ser adotada por uma família que poderia fazer essa travessia. Então, acho que, naquele momento, o desafio começou, assim, um desafio bem profundo, bem emotivo, bem afetivo e os meus tios todos, acho que eles vivenciaram um pouco das reverberações desse corte, não é? E hoje eu vejo que a gente, eu e meus irmãos, a gente tem mais possibilidade de lidar com isso. Então, eu concebo o trabalho artístico como um trabalho de cura, mesmo. Como medicinas, como formas inclusive da gente conseguir lidar com os nossos desafios. Então, o meu trabalho atual principal chama Jardim das Palavras e ele começou, começou ali, não é, com eles todos, mas foi muito curioso, porque me veio, eu não lembro se foi um sonho exatamente, mas eu morava numa casa na Barra Funda, no começo das Artes Visuais, eu falei: “Nossa, eu preciso”... e era um quartinho muito pequenininho assim, não é? Tinha um metro e meio de largura, ele era meio enclausurante, não tinha janela, falei: “Nossa, preciso transformar isso”. Tinha um gaveteiro. Aí eu falei: “Acho que eu preciso de um cabideiro”. E me veio que tinha que ser de bambu. Que ia ocupar o quarto inteiro, não é? Não via sentido prático, não é? Mas eu falei: “Não. Eu preciso”. Aí eu comecei a pesquisar na internet, durante muitos dias e ver que era muito custoso para fazer, carreto e tudo o mais para trazer aqui para São Paulo. E eu meio que desencanei da ideia, até que eu resolvi pintar o quarto. E aí, no que eu fui pintar o quarto, eu precisei de tinta, fui numa loja de tinta na Sé, quando eu estava com a lata de tinta passando pelas catracas da Sé, eu vi doze bambus encostados num pilar na frente das catracas. Eu falei: “Nossa, como assim o preto”, parecia que era de presente, mesmo. Aí eu me aproximei de lá e falei: “Nossa” - falei para o guarda, não é?
- “quem será que deixou aqui? Tem dono?” Aí ele: “Não, isso está aqui há muito tempo já, a gente já estava pensando em levar embora, porque isso pode machucar as pessoas, não é?” Falei: “Não, não precisa, não”. Esperei mais um pouquinho e levei, foi bem difícil de carregar, porque era um dia com chuva, mas tudo começou a fazer sentido, porque aí eu carreguei, aí a chuva, aí passou debaixo da chuva a noite toda e fui encontrar um senhor do candomblé esses dias, na semana passada, aí ele falou, não é, do bambu, que bambu, bambuzal é morada de Iansã, não é? E só trabalha com Egun, trabalha com os antepassados. Aí, quando eu morava ainda nessa casa na Barra Funda, eu comecei a ouvir barulhos à noite e tudo e teve algumas interferências. A gente descobriu que a casa do lado era um Ilê Ifá, que não é exatamente do candomblé, é uma outra linhagem afro, mas que vem dali e aí eu falei: “Nossa, acho que eu preciso falar com esse Baba, porque eu estou sentindo muita interferência nos meus sonhos e tudo, e tinha sacrifício e tal, não é? Aí fui conversar com ele, e aí ele falou: “Olha, na verdade, não é casa física que precisa ser protegida, porque isso, não se preocupa, a gente cuida bem”. “Hã?” “A gente cuida bem, não é, (risos) do espaço. Você tem que proteger a sua casa, nós temos quatro pilares aqui” - ele falou - “a sua casa é sua cabeça. Então, para conversar com você eu preciso abrir o Ifá, porque ele que diz a verdade, não sou eu que vai dizer a verdade para você”. E aí ele acabou abrindo o Ifá e falou disso de eu ser regida por Xangô, que na linhagem dele não poderia acontecer, então, eu sou de Iansã. Aí ele falou assim: “E você vai trabalhar, inclusive, profissionalmente, em relação direta com seus antepassados”. Então, tudo passou a fazer sentido, não é? Essa instalação é construída toda de bambus. E os instrumentos, inclusive, não é? E eu sinto que é uma forma de reverenciar, mesmo. Aí ele falou, esse senhor que eu encontrei lá em Monteiro Lobato, a semana passada, disse que é importante a gente cultivar essa relação. Então, acho que, na verdade, os trabalhos todos são uma forma de reverenciar os que vieram antes, eu acho que dá um amparo para mim mesma, assim, no meu caminho, não é? Acho que é um pouco por aí.
P/1 - E os sonhos?
R - Sonhos? Acho que eu sigo com aqueles mesmo, que eu falei, de conseguir prover minha mãe de alguma terrinha que ela possa plantar o jardim dela, e que eu siga tendo um espaço vazio dentro de mim. Eu acho que é importante me manter em movimento, para cultivar esse espaço. Acho que é isso. Isso, dentro de São Paulo, não é uma tarefa tão fácil. Mas a gente consegue.
P/1 - A gente quer saber um pouquinho de ti, como foi fazer essa entrevista, falar?
R - Ah, foi muito inesperado, (risos) mas foi uma surpresa boa, acho que eu estava querendo compartilhar essas coisas, mesmo. Então, eu só agradeço, ao Jonas também. Acho que ainda é uma situação, de um lado desconfortável, que não é uma situação tão recorrente, mas me surpreendeu também, acho que eu consegui ficar mais à vontade do que eu costumo ficar. Então, eu agradeço. Vocês também prepararam um espaço, não é? Tanto sutilmente, desde os cantos ali, a (01:07:25) o Jonas, até a exposição de vocês.
P/1 - Tem alguma coisa que você queira falar, que a gente não tocou e que você lembrou, ou que tenha sentido e que precisa estar aqui registrado?
R - Acho que não. Acho que eu trouxe o essencial. Talvez mais uma música. Para a gente fechar?
P/1 - Com certeza.
R - Ah, eu posso cantar uma música infantil agora. Será? Essa música é do repertório Cantos do Jardim, desse trabalho do Jardim, do Jardim das Palavras. Eu vou cantar um pouquinho, aí eu vou emendar numa outra mas bem pouquinho.
P/1 - Fique à vontade.
R – “Jasmim, jasmim, duas voltas que vive em mim
Jasmim, jasmim, duas voltas que vive em mim
Eu crescer para fora, eu crescer para cheiro bom,
Eu crescer para perfumar o meu amor
Eu crescer para sua, eu crescer para canto bom
Eu crescer para encantar o meu amor
Eu crescer para fora, eu crescer para cheiro bom
Eu crescer para perfumar o meu amor
Eu crescer para sua, eu crescer pra canto bom
Eu crescer para encantar o meu amor”
“Passa, passa passarinho
Nas asas do coração cê fez um ninho
Passa, passa passarinho
Nas asas do coração cê faz um ninho
Passa, passa passarinho
Nas asas do coração cê faz um ninho
Por debaixo dessa serra, acalanto a beira mar
Vai abrindo outra janela, me cobrindo de luar
Coração de passarinho não tem pressa para pousar
Pois sabe que todo menino e menina também
Está no tempo de voar
Passa, passa passarinho
Nas asas coração cê faz um ninho”.
Prrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
Alguém sabe assoviar?
Fiuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu
(risos)
Aplausos
P/1 – Lindo!Recolher