P/1 – Boa tarde, Cisinha.
R – Boa tarde.
P/1 – Antes de mais nada gostaria de agradecer a sua presença, sua contribuição ao projeto Memória 60 anos do AFS Intercultura Brasil. E vou começar a entrevista pedindo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Lucy Pai...Continuar leitura
P/1 – Boa tarde, Cisinha.
R – Boa tarde.
P/1 – Antes de mais nada gostaria de agradecer a sua presença, sua contribuição ao projeto Memória 60 anos do AFS Intercultura Brasil. E vou começar a entrevista pedindo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Lucy Paixão Linhares e meu apelido é Cisinha. Eu nasci no Rio [Rio de Janeiro] em 1954, 12 de junho de 1954.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Havanir Brito Paixão Linhares e Rodolfo Paixão Linhares.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meu pai era advogado e professor universitário e a minha mãe era dona de casa.
P/1 – Você poderia falar um pouco sobre a origem da sua família, dos seus avós, o que eles faziam?
R – Meus pais eram ambos cariocas. Meu pai vinha de uma família burguesa que, como muitas famílias, empobreceu, mas que vinha com essa memória de ter tido dinheiro. A minha mãe não, a minha mãe era uma mulher de pequena burguesia, de classe média do Méier, carioca também, e que era dona de casa. Então nós moramos a vida toda na Tijuca, depois que meus pais se casaram. Eu tenho três irmãs, nós éramos uma família de quatro filhas. E eu acho que tinha alguma coisa de realmente especial porque embora a minha mãe fosse conservadora no que dizia respeito aos costumes, de alguma forma ela teve quatro filhas muito liberais, principalmente praquela época da Tijuca. A gente questionava um monte de coisas e eu acho que isso aparece na vida que nós temos hoje, que são quatro mulheres muito independentes, todo mundo trabalha, todo mundo tem sua vida muito estruturada. Eu acho que era uma família, embora minha mãe fosse dona de casa, [que] tinha alguma coisa ali de possibilidade de mudança e de dar espaço. Na verdade eu acho que o meu pai foi o primeiro feminista que eu conheci porque ele se pelava de medo da minha mãe; quando ela acordava de mau humor ele chegava pra gente e dizia assim: “Cuidado que ela hoje está uma jararaca” e a gente já sabia que tinha que sair do caminho. A gente cresceu com essa noção da mulher empoderada. Embora ela não tivesse o dinheiro dela, quem ganhava o dinheiro era ele, ele entregava o dinheiro na mão dela e quem administrava era ela. A gente tinha essa visão de que a mulher tinha poder. E isso eu acho que foi muito importante na vida da gente.
P/1 – E um pouquinho sobre a origem da família, os avós, o que eles faziam?
R – O pai do meu pai era militar, a minha avó era dona de casa e o pai da minha mãe era dentista. Dentista como era dentista naquela época, que não tinha faculdade, era um prático. Dentista era um prático, mas era dentista. A minha avó, mãe da minha mãe, era uma pessoa que tinha uma formação, embora ela vivesse no subúrbio, ela teve aulas de piano, de francês, era uma classe média com aspirações a dar uma formação pros filhos. Minha avó pintava. Todas essas coisas que as famílias de classe média alta queriam dar pros filhos, a minha avó teve acesso, ela estudou francês, estudou piano, pintura. Mas ela não conseguiu reproduzir isso com os filhos dela, a minha mãe era uma pessoa que terminou o segundo grau e se casou, com 17 anos ela se casou, com 18 ela tinha um filho e com 19 tinha dois. E passaram alguns anos até eu nascer e depois mais nove anos até a minha irmã mais nova nascer. Passou a vida inteira cuidando de filho.
P/1 – E tem alguma lembrança marcante da infância, da rua, brincadeiras?
R – Nós morávamos numa rua da Tijuca muito calma, muito tranquila, quase não tinha carro. A lembrança é de crianças brincando na rua, é uma coisa muito da minha geração, a gente ainda teve acesso à brincadeira de rua, de queimado na rua. E quando vinha um carro parava a brincadeira, rua de paralelepípedo, onde as mães apareciam na janela e gritavam: “Pra dentro!”. E a gente reconhecia pela voz quem era a mãe de quem. Eu frequentava um clube, que era o Tijuca Tênis Clube e é uma infância bem de classe média mesmo, aquela coisa que a mãe está em casa, o pai trabalha, o provedor; você tem os amigos de bairro.
P/2 – Tinha alguma brincadeira preferida?
R – Eu me lembro muito da gente brincar de pique-esconde, brincar de queimada na rua. Os prédios todos, não tinha essa história de grade, de cercas, as crianças ficavam na rua. E aí tinha um prédio de repente que tinha um canteiro maior, a gente montava uma mesa de pingue-pongue, jogávamos pingue-pongue. Era uma coisa de muita rua, muita rua. Você chegava da escola, tirava o uniforme e descia pra brincar na rua, a rua era o espaço da criança. Eu acho que era uma relação invertida de que a casa era o espaço do adulto e a rua era o espaço da criança, que é uma coisa que até que o antropólogo Roberto da Mata joga um pouco com essa história, como é que a vida nos centros urbanos se estrutura, que a rua é o lugar do adulto e a casa é o lugar da criança. A minha geração conheceu essa inversão, as crianças ficavam na rua até a hora de comer, até a hora de dormir. E os adultos ficavam em casa a não ser que eles tivessem um compromisso.
P/1 – E já do período da escola, ainda na infância, tem alguma lembrança?
R – Escola pública, que é uma realidade completamente diferente. Eu e minhas duas irmãs mais velhas estudamos em escola pública a vida inteira e a minha irmã mais nova que tem nove anos de diferença pra mim ficou dois anos em escola pública e minha mãe foi obrigada a tirar porque a escola pública tinha ficado impossível. Tem toda uma explicação política pra desestruturação do ensino público no Brasil, não é o caso da gente discutir aqui, mas a minha irmã viveu isso, ela foi a única de nós que estudou em escola particular. E aí ela foi a vida inteira em escola particular, inclusive na universidade, enquanto que eu e as minhas irmãs todas fizemos UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Eu fiz mestrado na UFRJ, faculdade, fiz o mestrado no Museu Nacional, no programa de pós-graduação em Antropologia Social e nunca na minha vida paguei para estudar. Eu acho que isso é coisa de uma geração, que acabou. Nove anos depois de mim já não existia mais. Eu fiz normal, fiz Instituto de Educação, já peguei um instituto no descenso. As minhas irmãs, que eram quatro e cinco anos mais velhas do que eu, pegaram o auge do Instituto de Educação. Era assim, toda menina de classe média tinha vontade de entrar. Tinha uma prova dificílima, era um mini vestibular porque era muito difícil entrar no Instituto de Educação, era escola normal de excelência. E quando eu entrei no Instituto de Educação, cinco anos depois, as meninas de classe média, a profissão já estava
sendo tão desvalorizada que as meninas de classe média abriam outros horizontes. Já tinha o clássico e o científico e as moças já começavam a olhar possibilidades de fazerem outras coisas. E eu, por exemplo, fiz o Instituto de Educação, me formei e nunca dei aula, já numa diferença pras minhas irmãs, que aos 18 anos foram trabalhar como professoras e faziam faculdade e davam aula. Eu fui pelo AFS para os Estados Unidos quando eu voltei eu comecei a dar aula de inglês. E nunca precisei dar aula em escola primária, então eu fiz faculdade dar aula de inglês.
P/1 – Antes da gente começar no AFS, como que ele aparece na sua vida?
R – Ah, essa é uma questão legal. O AFS aparece na minha vida quando eu tinha 14 anos porque meu namorado de adolescente, Ricardo Pereira, que trabalhou aqui depois no AFS muitos anos, se candidatou ao AFS. Eu tinha 14 anos, o Ricardo tinha 17, se candidatou ao AFS e no ano seguinte, eu já com 15 anos, o Ricardo viajou pros Estados Unidos pelo AFS. Eu fiquei muito curiosa com essa possibilidade, meus pais meio receosos, mas quando o Ricardo voltou dos Estados Unidos tinha sido uma experiência tão legal, tão bem sucedida que os meus pais permitiram que dois anos depois eu me candidatasse. Quando eu fiz prova pro AFS eu já tinha muita familiaridade com a ideia do que era o AFS. Eu viajei pros Estados Unidos e tive uma experiência transformadora, a experiência do AFS na minha vida foi transformadora. De dois pontos de vista. Primeiro, como intercambista. E mais tarde como profissional do AFS Intercultura Brasil. Foram dois momentos muito marcantes na minha vida. E por que é que o meu intercâmbio foi tão especial na minha vida? Primeiro porque eu tive uma família maravilhosa com quem eu mantenho contato até hoje, ao longo de 40 e tantos anos eu mantive contato com essa família muito proximamente. Meus pais americanos morreram há alguns anos, mas eu tenho um irmão americano que é parte da minha vida. O filho dele hoje em dia adora o Brasil, vive no Brasil, fez um ano de intercâmbio na universidade, morou em Santa Catarina, em Florianópolis, eles têm um intercâmbio lá com a Universidade Federal de Santa Catarina. Virou uma relação muito próxima. Essa experiência, naquela época você não tinha internet, as cartas demoravam um mês pra chegar, telefone era caríssimo. Então uma experiência de intercâmbio era realmente de imersão cultural, isso foi muito importante. Mas além disso, o AFS tem uma coisa de localizar estudantes de várias partes do mundo numa área geográfica e o AFS trabalha com esses estudantes durante o ano inteiro fazendo uma série de atividades com esses estudantes. Igualmente importante na minha imersão cultural foi o contato com jovens da minha idade de todas as partes do mundo. Eu me lembro de um momento muito específico, quando uma amiga do Ceilão que era estudante do AFS, numa dessas noites em que a gente se sentava em volta de uma fogueira com marshmallow, aquela coisa bem típica, pra discutir a experiência que a gente estava tendo e o que a gente esperava do retorno pra casa. E essa menina ia voltar pro Ceilão pra se casar com um indiano 40 anos mais velho do que ela. E nós, os jovens daquele espaço, daquele ônibus, porque a gente fazia uma viagem no final da experiência que atravessava os Estados Unidos num ônibus, acampando, era uma experiência maravilhosa. E essa conversa foi numa dessas ocasiões já na nossa viagem de volta pra Nova York. Todos nós dissemos: “Foge! Pede asilo político. Vem pro Brasil, a minha mãe te recebe”. E ela falou pra gente que não, que não era como nós estávamos pensando, que os pais dela não eram más pessoas e que a ideia do amor romântico era muito também recente na sociedade ocidental. E eu me lembro que eu falei: “Como assim, amor romântico? Existe outro amor que não seja romântico? Todo amor é romântico”. E ela deu uma aula pra gente de história da civilização dizendo que não, que na verdade o amor é um cultivo e que diferentes culturas cultivavam esse sentimento em momentos diferentes do casamento. Que nós, na civilização ocidental, cultivávamos o amor antes do casamento, que era como uma fogueira antes do casamento que se apagava durante o casamento, enquanto que no caso deles o amor era cultivado, começava frio, sem fogueira, e que você acendia essa fogueira durante o casamento. E eu me lembro que eu fiquei fascinadíssima e comecei a procurar livros que me falassem das diferenças culturais. E quando eu voltei ao Brasil eu fui procurar qual era a profissão que se relacionava com isso e decidi ser antropóloga. A história do AFS na minha vida é essa história que me define como pessoa. Eu acho que a pessoa que eu sou é definida pela minha experiência do AFS. A minha opção de ser antropóloga, de olhar pro outro que é culturalmente distinto de mim, longe de rejeitar esse outro diferente eu fui em busca desse outro diferente. Então eu fiz Ciências Sociais, depois eu fiz um mestrado em Antropologia e fui trabalhar com índio, que era o outro mais radicalmente diferente que eu pude encontrar.
P/1 – Mas antes da gente começar já essa época da universidade, tal, ainda vamos conversar um pouco mais sobre o intercâmbio. Qual o programa que você foi, quanto tempo ficou lá e por que a escolha dos Estados Unidos?
R – Na época que eu fui, na verdade eu fui no primeiro ano do programa Global. Eu viajei em 1972. Primeiro ou segundo, talvez não tenha sido o primeiro, mas era o início do programa Global. Todo mundo do mundo inteiro viajava pros Estados Unidos. E eles mandavam pro mundo inteiro. Quando eu viajei estava começando esse programa Global que você podia ir pra outros lugares, mas na verdade nem passou pela minha cabeça, me parecia muito natural, chamava-se American Field Service, me parecia muito natural viajar pros Estados Unidos. É como eu te falei, o intercâmbio foi um sonho, o que você pode imaginar de perfeito. Eu fui morar em Los Angeles, em um bairro chamado Pacific Palisades, perdão, a escola é Pacific Palisades, o bairro é Palisades. E era um bairro maravilhoso, eu tive uma sorte porque além da família ser maravilhosa, era uma família que tinha posses, o que me permitiu viajar pelos Estados Unidos inteiro, esquiar em Aspen no Natal (risos). Eu tinha milhares de amigos, a minha irmã mais velha estudava em Berkeley, era plena guerra do Vietnã, com Los Angeles e a Califórnia pegando fogo. Minha irmã brasileira nessa época estava exilada no Chile e a minha mãe americana era uma pessoa super liberal e o nosso endereço na Califórnia passou a ser um endereço onde os exilados brasileiros no Chile mandavam cartas pros Estados Unidos porque se mandassem direto pro Brasil eram interceptadas pela repressão. Eles mandavam as cartas, minha irmã começou com os amigos próximos e acabou virando público. As cartas chegavam no meu endereço na Califórnia, dos exilados brasileiros, e a minha mãe americana comprava caixas de envelopes e selo e me ajudava a botar as cartas dentro de envelopes. Eles mandavam envelopes do conhecido do conhecido que não estava sendo monitorado, a gente botava as cartas dentro dos envelopes e de lá a gente mandava pro Brasil. Era esse momento, 1972. O Brasil sob uma ditadura militar, a minha irmã mais velha exilada e eu participando das demonstrações contra a guerra do Vietnã. A minha irmã, em Berkeley me recebia, eu fui pra lá várias vezes. O meu irmão americano, esse que hoje em dia é muito próximo de mim, morava no Colorado, era o início desse Movimento Verde de proteção à natureza, ele tinha esse perfil, quando ele se formou ele foi morar no Maine, porque era o mais longe da civilização que ele podia ter, eu fui exposta a uma série de coisas que ainda não se falava no Brasil. Eu fui exposta ao Movimento Ecológico, ao Movimento Verde. Eu me lembro a primeira vez que uma amiga minha me trouxe de presente uma plantinha, eu me lembro de ter pensado: “O quê, uma planta? Quem que dá uma planta de presente de aniversário?”. E anos depois, 20 anos depois, as pessoas começaram a dar plantas, não flores, a flor plantada. Eu acho que esse ano foi um abrir de possibilidades, de enxergar coisas novas, eu tive muita sorte.
P/1 – E a escola?
R – A minha escola era uma escola de alta burguesia porque o sistema educacional americano, embora ele seja público, o dinheiro que mantém a escola é o imposto da comunidade local. Por isso é que você tem que morar dentro de um determinado perímetro pra ser capaz de mandar o seu filho naquela escola X. Se você morar fora daquele perímetro ele já vai numa outra escola daquele perímetro. Por quê? Porque são os impostos da comunidade que mantêm a escola. Como Palisades é um bairro muito rico até hoje, a escola era uma escola de elite. Era uma escola que recebia três estudantes do AFS porque tinha dinheiro pra bancar, receber esses estudantes e era uma escola que não tinha miscigenação. Mas em 70 [1970] começou a política de busing em Los Angeles, toda escola tinha que cumprir uma cota racial. A minha escola trazia jovens negros do outro lado da cidade de ônibus pra escola, era um momento efervescente, era o momento dos Panteras Negras nos Estados Unidos. Eu sempre gostei muito de política, eu tinha uma irmã que era militante política no Brasil e me envolvi muitíssimo. Nós éramos três estudantes na escola. Eu, um alemão e um francês. O francês era bretão, então não se apresentava como francês, dizia que ele era bretão e que a comunidade dele era dominada pelo Estado Nacional Francês. O alemão era contra a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. Nós íamos fazer palestra e as nossas palestras começaram a virar um sucesso porque eu falava contra a ditadura militar e como que os Estados Unidos tinham ajudado aos golpes militares na América Latina, ficava todo mundo boquiaberto, eu tinha 17 anos e falando aquelas coisas. O alemão falando contra a OTAN e o francês falando contra o Estado Nacional Francês. Então começou a ser um burburinho essa história e a gente tinha uma lista de pedidos de palestra que o comitê do AFS na escola tinha que escolher porque senão a gente não frequentava a classe porque tinha pedido pra gente falar em tudo quanto é lugar. E aí chegou num ponto que a gente ia dar palestra e tinha professor de História na palestra pedindo pros meninos falarem da OTAN e o que acontecia na América Latina porque era uma oportunidade dos estudantes americanos participarem disso. Eu acho que do ponto de vista intelectual foi super rico, eu sempre adorei História, então eu tinha aula de História Americana e eu adorava questionar, participar. E eu me lembro de fazer indagações pro meu pai americano, que era uma pessoa muito interessante, sobre, por exemplo, uma vez eu cheguei pra ele, e essa informação até hoje na minha vida é importante, e disse pra ele: “Olha, vocês dizem que os Estados Unidos é o país das oportunidades, que as oportunidades são iguais pra todos, mas eu tenho ido fazer palestra em escola pública pichada, quebrada, arrebentada”. Naquela época já tinha escola em Los Angeles com detector de metal por causa da violência. E ele disse pra mim: “O que é igual é a lei que estabelece que x% do meu salário vai pra educação da minha comunidade. Se eu trabalhei em três empregos pra ter acesso a uma vizinhança melhor é porque eu me esforcei mais do que o outro que mora numa vizinhança pobre”. E esse conceito foi absolutamente estranho e por que eu digo que isso é importante até hoje? Porque quando eu fui ler Weber na faculdade, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, eu entendi que na ética protestante essa é a lógica, cada um é responsável por si mesmo, enquanto que na ética católica tem essa coisa da culpa, de você, como assim? E nos estados sociais democratas, na França, você tem o imposto sendo dividido igualmente. No Brasil não é assim porque nós nunca tivemos um Estado verdadeiramente social democrata, mas na Europa é assim. E eu me lembro dessas coisas me chamarem a atenção na época, eu com 17, 18 anos começar a indagar, “mas como é isso?”. Esse momento do intercâmbio foi um momento de abrir a minha cabeça de pensar assim: “Quais são as questões que me interessam?”. E quando eu voltei pro Brasil eu fui em busca disso, tentar entender e buscar respostas pra uma série de questões que tinham sido questões de diferenças culturais, questões políticas, questões históricas. Aquele momento foi um momento muito “Aha”, tipo: “É isso que eu quero fazer”.
P/1 – E encontrou alguma dificuldade que foi superada?
R – Honestamente, a tal da curva da adaptação...
P/1 – Não existiu pra você?
R – Não, existiu um pouco sim. Eu acho que quando você chega, o primeiro momento é de insegurança, é de desconforto. Na verdade não é nem desconforto, você está fora da sua zona de conforto.
P/1 – Você falava inglês?
R – Eu tinha estudado um ano antes de ir, eu falava um pouco. Mas quando você é jovem em seis meses você está entendendo tudo e já falando inglês, é muito rápido. Eu tive muita sorte de ter caído nessa família maravilhosa, nessa comunidade super interessante num momento... Era de uma liberalidade. Essa geração americana é extremamente mais conservadora do que a geração da década de 70 [1970]; a geração da década de 70 estava questionando tudo. Pra mim, que saí de uma família conservadora, de um bairro conservador como era a Tijuca na época, cair na Califórnia, em Los Angeles, num bairro na beira do mar, aquele monte de surfista.
P/1 – E seus pais, como que eles reagiam com tudo isso?
R – Os meus pais brasileiros?
P/2 – É. Incentivaram o intercâmbio, você se comunicava com eles?
R – Eu acho que aí a questão de que o Ricardo Pereira, que era o meu namoradinho, tinha ido antes e tinha sido muito bem sucedido, e ele falava muito bem do intercâmbio, meio que deu tranquilidade pros meus pais. E depois eles não sabiam o que estava acontecendo comigo lá, eles simplesmente não sabiam, porque naquela época a carta levava um mês quase, então até ir e até voltar... E é claro, você escolhe o que você conta, eu não dizia que ia acampar com meus amigos, coisa que meus pais aqui ficariam preocupadíssimos. E a família lá era muito liberal, eu ia acampar, enfim, eu tava na vida, eu ia pra Berkeley encontrar minha irmã, participar, ela dizia: “Olha, vai ter uma manifestação, a Angela Davis está vindo pra manifestação”. A minha mãe americana me botava no ônibus, eu ia embora pra Berkeley, a gente passeava em São Francisco, eu ia na manifestação (risos) e voltava.
P/1 – E as amizades? Elas ficavam naquele circuito casa, família hospedeira e escola ou ia além disso?
R – Eu acho que ia além disso. Eu gostava muito de frequentar o Centro Internacional de Estudantes da UCLA, que era a Universidade da Califórnia de Los Angeles. Eu e uma amiga inglesa que também era intercambista e mais uma amiga americana da escola que ficou super amiga da gente. A gente adorava, a gente achava os meninos da high school bobos, a gente adorava ir pro Centro Internacional de Estudantes. E lá a gente conhecia gente também do mundo todo. Eu tinha muita curiosidade, essa coisa do mundo. Eu tinha um monte de amigos na escola, mas o menino de 17 anos americano tem muito pouca informação, então esse “bobo” entre aspas, ele era mesmo, tinha uma formação diferente. Eu não ficava interessada muito em ter vida social. Eu era muito convidada pras festas, eu ia. Tinha uma coisa que o comitê do AFS cobrava de você, nós tínhamos obrigações sociais. Você tinha que ir aos aniversários, você tinha que comparecer aos convites, tinha reunião uma vez por mês, tinha um monte de palestras, tudo isso ocupava a gente pra caramba. Mas eu tinha um monte de amigos da universidade, os amigos da Julie, da minha irmã que estava em Berkeley viraram meus amigos.
P/2 – Você mantém contato com eles?
R – Olha, eu tenho dois grandes amigos, um era o melhor amigo do meu irmão, só que ele estudava perto de Los Angeles, numa universidade, Santa Bárbara, e ele frequentemente estava em Los Angeles, então ele me levava muito pra sair. Alguns dos grandes shows da minha vida, inesquecíveis, eu vi com Brian Krantz, ele hoje em dia é advogado do Partido Democrata, é um cara muito legal e a gente mantém contato, é amigo. E essa menina americana que eu mencionei que foi a minha melhor amiga veio pro Brasil e morou com a minha família um ano assim que eu voltei pro Brasil. Não foi intercâmbio mas ela veio porque ela era minha amiga e morou no Brasil um ano. E isso também foi fundamental na vida dela. Ela hoje em dia trabalha com Educação e é especialista em diversidade...
P/1 – E como que foi o retorno pra essa Tijuca tradicional e conservadora?
R – Aí foi duro. Eu tive o choque da adaptação que está descrito nos livros. Foi muito duro. Eu acho que não foi mais duro porque eu voltei com o mesmo namorado, que foi o meu primeiro marido, foi a pessoa com quem eu me casei, que também trabalhou aqui no AFS muitos anos e que tinha passado pela mesma experiência. Ele entendia muito bem o que era essa volta. E junto a gente conseguiu lidar com isso. Agora, gente, eram outros tempos, vocês não podem imaginar. Eu me casei, casei na igreja, com 20 anos, com meu único namorado da vida inteira. E me separei três anos depois. Porque na verdade é uma coisa de você virar adulto, a gente casou adolescente ainda e viramos adultos juntos e aí a gente queria coisas diferentes da vida. Mas essa volta foi intermediada pela presença desse meu namorado que tinha vivido a mesma experiência que eu.
P/1 – E o Instituto de Educação tinha hábito de enviar alunos pra intercâmbio?
R – Não.
P/1 – Você encontrou alguma resistência quando voltou, por exemplo, dentro do colégio?
R – Não, eu voltei dos Estados Unidos com diploma de high school, que é o que eu uso. Eu fiz a tradução juramentada e foi o que eu usei a vida toda. Mas a minha mãe me obrigou a voltar pro Instituto, fazer mais seis meses, pra ter o diploma, diploma esse que eu nunca fui buscar. É engraçado, mas o Instituto de Educação não teve nenhuma importância na minha vida, nenhuma. Eu diria que eu tive uma professora, o Instituto de Educação tinha Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa com uma professora maravilhosa durante os três anos. Se eu te disser que não teve nenhuma importância na minha vida talvez não seja uma verdade absoluta porque essa classe de Literatura foi importante na minha vida. Eu comecei a ler Fernando Pessoa no Instituto de Educação com 17 anos e isso foi importante na minha vida. Eu gosto muito de escrever, eu escrevo bem e eu acho que isso se deve a essa formação do Instituto de Educação. Fora isso...
P/1 – Você sentiu alguma mudança em você logo depois do intercâmbio?
R – Claro.
P/1 – Você disse que escolheu Antropologia em virtude do intercâmbio. Quais foram essas mudanças perceptíveis logo em seguida?
R – Eu acho que eu voltei com a percepção de que o mundo existia, de que o mundo estava ali ao alcance da gente, que eu não queria viver uma vida limitada à Tijuca, ao Rio, ao Brasil, que tinha um monte de coisa interessante acontecendo fora. Essa curiosidade pelo outro que era diferente de mim, isso desabrochou lá. Seis meses antes de eu ir no intercâmbio eu tinha ido visitar a minha irmã no Chile, a minha irmã estava exilada no Chile e eu tinha ido visitá-la. E lá tinha começado esse processo de interesse por outras sociedades, por outras formas de viver, que realmente explodiu nos Estados Unidos. E quando eu voltei é isso, eu não cabia mais naquele mundo da Tijuca, das festinhas de clube, daqueles padrões, que naquela época você tinha a divisão, as moças de família e as meninas que não prestam, as meninas que dormem com os namorados. E eu voltei dizendo: “Eu não quero nada disso pra mim”. Eu voltei e um ano depois eu estava casada. E esse casamento foi eu acho que um fechamento dessa adolescência porque eu fazia faculdade, o Ricardo fazia faculdade e trabalhava aqui no AFS. Na época.
P/2 – Logo que você voltou você não cortou o vínculo com o AFS, você manteve?
R – Não, o AFS foi uma presença na minha vida. Imagina, eu voltei, atuava no comitê como voluntária. Eu fui voluntária e esse meu trabalho de voluntária era meio complicado porque o meu namorado, o meu marido, era da Secretaria Executiva, tinha uma área que era meio difícil de administrar, mas o AFS era parte do nosso dia a dia porque ele trabalhava lá. Eu entrei pra faculdade, um ano e meio depois eu comecei a fazer um estágio no Museu do Índio e o Ricardo trabalhava no AFS e fazia duas faculdades. Ele trabalhava seis horas no AFS, de manhã ele fazia Fundação Getúlio Vargas, de noite ele fazia Comunicação na UFF [Universidade Federal Fluminense] e eu fazia IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais] e trabalhava no Museu do Índio que na época era no Maracanã, naquele prédio ali bem em frente ao Maracanã. E a gente tinha uma vida, assim, a casa da gente era super aberta pros amigos. Aí na faculdade eu acho que eu me encontrei. Na verdade aqueles amigos de escola anteriormente no Brasil não tinham a mesma cabeça que eu. E eu entrei no IFCS em 1974. Eu cheguei em agosto de 73 de volta e março de 74, ou seja, seis meses depois, eu já estava no IFCS. O IFCS tinha tido uma devastação dos professores que tinham sido demitidos, tinha um monte de gente na cadeia. Em plena ditadura militar, uma época feroz. E logo um ano depois, em 75, começou o movimento de resistência dentro do IFCS, eu sempre fiz movimento estudantil, mergulhei de cabeça na política e eu aí eu e meu marido começamos a traçar caminhos diferentes. Ricardo era jornalista, assim que ele se formou ele saiu do AFS e foi trabalhar na TV Globo. E na TV Globo ele seguiu um caminho que não me interessava. E ele também não se interessava pelo meu. Nós morávamos no Flamengo e pra mim programa legal era pegar o trem com meus amigos da zona sul e irmos pro subúrbio pra show de chorinho no Suvaco de Cobra, pra reunião do movimento estudantil, tinha um jornal começando chamado Em Tempo, era um jornal de resistência à ditadura, que eu levava horas, seis horas numa reunião do Em Tempo, eu achava isso o máximo. Você tinha o Comitê Brasileiro de Anistia, o CBA, onde eu tinha uma militância intensa no CBA. Eu tinha uma vida social e política que foi se distanciando desse meu namorado de adolescência, queridíssimo, mas que a gente foi fazendo escolhas.
P/1 – Não tiveram filhos?
R – Graças a Deus. Porque eu acho que isso teria sido um problema. Eu adorava ele, tinha o maior carinho por ele, mas a gente já não se divertia com as mesmas coisas. Eu não tinha nenhum prazer em sair pra restaurante fino, eu não tinha nenhum prazer em circular num meio que ele circulava. E ele também não tinha o menor prazer em ir pro subúrbio no fim de semana. E eu achava o máximo. Três anos depois da gente ter casado a gente se separou. E eu me casei com meu professor de faculdade, meu professor de Economia, Bernardo Karan, que tinha os mesmos interesses que eu, a gente tinha um grupo de estudos de marxismo, ele era o mentor do grupo de estudo. Nós tínhamos toda essa atividade política intensa, eu me lembro de uma reunião, daqui a dois minutos eu me lembro o nome, que nós fomos todos pra São Paulo, todo mundo do movimento estudantil e que os helicópteros sobrevoavam a PUC [Pontifícia Universidade Católica] de São Paulo, o lugar onde estava tendo a reunião. Eu tinha uma vivência com Bernardo, a gente tinha um monte de amigos em comum e aí obviamente houve uma aproximação e eu me casei de novo e estou casada até hoje com o Bernardo.
P/2 – Mas e o AFS? Você continuou como voluntária ou há um hiato aí?
R – Não, o AFS nesse momento tem um corte quando eu opto pela atividade política de resistência à ditadura, tem um corte com o AFS e eu só fui retomar esse contato com o AFS muitos anos depois. Uma amiga minha de faculdade, a Liliane, era o meu vínculo de contato com o AFS, porque a Liliane trabalhou no AFS 20 e tantos anos. Eu tinha notícias do AFS através da Liliane, mas a minha opção nesse momento era de militância política. Quando eu me formei e virei uma profissional eu fui trabalhar com índio, profissionalmente. A minha militância política virou na área, eu fui fundadora e da primeira diretoria da Comissão Pró-Índio no Rio de Janeiro. Nós fundamos essa ONG [Organização Não Governamental], as ONGs era um conceito ainda muito novo e nós fundamos a Comissão Pró-Índio do Rio de Janeiro. A minha militância durante muitos anos foi na área política e na área da questão indígena. Na época lutávamos pela demarcação das terras indígenas. A gente produziu plástico pra colar nos carros que diziam “Pela Demarcação das Terras Indígenas”. E virou uma febre, você via que tudo quanto é carro tinha o plástico. E é isso, um bando de garotas, nós trabalhávamos no Museu do Índio, no Centro de Documentação Etnológica, era todo o material do Rondon, da Comissão Rondon que tinha sido abandonado durante 30 anos e a gente no Centro de Documentação Etnológica fomos recuperar essa documentação. A minha tese de mestrado foi muito em cima dessa questão de terra indígena, dessa documentação do museu. Eu aí começo um período de 17 anos de militância na questão política e na questão indígena, onde o meu contato com o AFS era através da Liliane. Mas eu acho que o AFS, embora não estivesse no meu dia a dia, estava dentro de mim o tempo todo. Porque o meu exercício profissional, a minha curiosidade pelo outro, a minha opção por trabalhar com índio, tudo isso tinha sido germinado nesse meu ano muito intenso, muito espetacular da minha vida. Realmente eu acho que tem uma única palavra pra definir o meu ano, é espetacular. Foi um ano de sonho, de tanta riqueza, tanta informação, tanta coisa legal acontecendo e isso eu acho que vem dentro de mim. Durante esses 17 anos eu trabalhei com a questão indígena e em 1993 eu fiquei grávida da minha segunda filha e o meu marido, o Bernardo, meu ex-professor, me disse: “Olha, você quer ter outro filho tudo bem, mas você não vai pro mato me largando no Rio com neném”. Porque cada vez que eu ia, eu trabalhava com os índios Ticuna na fronteira do Brasil com a Colômbia e era tão caro passagem de avião naquela época que pra você ir tinha que ficar um tempo maior. Então ele disse pra mim: “Se você quer ter outro filho vamos ter, mas você tem que achar outra coisa pra fazer enquanto ela for pequena”. Eu comecei a procurar e surgiu uma vaga do AFS, eu soube porque a Liliane era superintendente e eu vim fazer entrevista e vim trabalhar no AFS. Aí começa uma outra etapa de importância do AFS na minha vida. Eu fiquei no AFS quatro anos e no início eu trabalhava com programas e depois eu fui gerenciar a área de desenvolvimento. Porque o AFS tinha recebido uma verba da Fundação Kellogg e eles precisavam de alguém que gerenciasse esse fundo da Fundação Kellogg e que criasse novos programas e pensasse em outras coisas. Esse tempo que eu trabalhei fazendo isso como Gerente de Desenvolvimento eu acho que foi um ano ou dois anos de novo espetaculares na minha vida porque eu descobri uma área nova profissional que é onde eu estou até hoje, que é o interculturalismo. É legal fazer uma distinção, o que é Antropologia e o que é o Interculturalismo, porque é muito próximo. Eu diria que a Antropologia toca no núcleo da cultura, um antropólogo está preocupado em entender a lógica de funcionamento da cultura. O interculturalista está preocupado em focar na fronteira, o lugar onde duas culturas se encontram e o que acontece quando as culturas se encontram. Esse segundo momento do AFS na minha vida também foi espetacular porque embora os princípios do interculturalismo já estivessem presentes na minha vida pela minha experiência de intercambista eu não conhecia essa área como uma área profissional. E o interculturalismo é uma área profissional com fundadores do campo de conhecimento, com muita literatura. Não é assim: “Eu vivi isso então eu quero trabalhar com isso”, não é isso, você tem que buscar uma formação.
P/1 – E como é que foi isso, como é que você trouxe?
R – Deixa eu mostrar aqui pra vocês porque isso é uma coisa muito legal. Isso aqui é um material que eu tenho o maior orgulho de dizer que fui eu que criei. Nós criamos com o dinheiro da Fundação Kellogg o Centro Intercultura para a Cidadania e a gente tinha três projetos super interessantes com o dinheiro do Centro Intercultura. Um deles eram as atividades do Centro Intercultura, isso aqui é um material que a gente fez pros voluntários do AFS trabalharem com a questão da diversidade na escola. Nós escolhemos temas e criamos uma ficha pra cada tema e criamos critérios de análise que cortaram todos os temas. Só pra contar pra vocês porque isso é uma questão que me dá muito orgulho. Uma das questões que a gente abordou foi casamento e família. A ideia era mostrar pros estudantes das escolas que casamento e família são princípios que mudam de acordo com a cultura e que cultura não é só cultura nacional, brasileira ou americana; você tem cultura de classe, você tem cultura de região, você tem um monte de cortes na cultura que geram uma percepção diferente sobre família, sobre adolescência, sobre lazer, sobre direitos. A gente usou esses critérios que foram classe social, nacionalidade, regionalidade, história, ideologia e religião. E cada um dos temas foram analisados segundo esses pressupostos. Em cada uma dessas fichas tem um monte de sugestões de atividades. Você não precisava usar o material inteiro, o professor de Geografia poderia vir no material e escolher, por exemplo, trabalhar com habitação. E trabalhar com estudante na sala como é a habitação dependendo da região, da classe social, da cultura variava. Fazer isso... Eu contratei pessoas que escreveram as fichas, a concepção do material foi minha junto com o pessoal da diretoria do AFS, com quem dialogava o tempo todo sobre as iniciativas, mas foi um momento muito rico. Nós tínhamos um outro projeto chamado Elos Com As Escolas em que a gente preparava os voluntários pra trabalhar com as escolas. Foi um momento muito legal, foram dois anos em que eu cresci profissionalmente pra caramba. O AFS tem uma importância na minha vida espetacular. Primeiro como adolescente, pra perceber o mundo, e depois já como profissional, como adulta, me permitindo descobrir um espaço novo, uma atividade profissional nova e no final de dois anos a verba da Fundação Kellogg tinha acabado e houve uma reestruturação política no AFS e eu saí do AFS. Mas eu saí e abri uma consultoria chamada ICA que é
International Cultural Assistance, onde eu dou treinamentos e consultoria pra empresas em duas áreas diferentes. Uma é na área do treinamento intercultural e isso é, por exemplo, empresas multinacionais que precisam preparar a sua equipe pra trabalhar com a matriz, eu dou treinamento intercultural. Empresas multinacionais que expatriam pessoas, tanto brasileiros que vão para o exterior como estrangeiros que vêm para o Brasil, eu dou treinamento intercultural. Essa é uma área. E a outra área que eu atuo é na diversidade, que é um prazer que vocês não podem imaginar, muito legal. Eu acabei de semana passada ir para um lugar chamado Barcarena, interior do Pará dar o treinamento para uma empresa francesa da área de mineração sobre diversidade. Então você ir trabalhar com os executivos e com pessoal supervisor de linha de produção sobre a importância da diversidade, discutir com eles o que é diversidade, o valor que tem pra empresa, a empresa está acenando pra eles que quer diversidade e como é que a gente pode trazer isso pro dia a dia deles. Então é assim, ser paga pra fazer isso realmente é um sonho.
P/1 – Mas você poderia falar um pouco como funcionava a parceria com a Fundação Kellogg e como que as parcerias na época em que você era diretora, atuava na área de desenvolvimento do AFS?
R – A parceria com a Fundação Kellogg nós recebemos um grant que era um fundo e no final de um ano nós tivemos que apresentar um relatório dizendo o que a gente tinha feito e eles renovaram essa doação por mais um ano, o que foi um sucesso absoluto porque 50% dos projetos da Fundação Kellogg não eram renovados pro segundo ano e o nosso projeto foi renovado. E tivemos essa doação por dois anos que era o máximo que eles davam. Na verdade a parceria com a Fundação Kellogg se extinguia no momento em que ele dava o dinheiro pra você. E nós dentro da Secretaria Executiva, junto com os voluntários, montávamos o projeto, e junto com a Diretoria. Uma das coisas legais que o Centro Intercultura fez foi fazer um intercâmbio interno, a gente mandava menino de escola pública e meninos pobres que não teriam condições de viajar no intercâmbio internacional e que a gente também não tinha bolsa suficiente pra mandar aquele monte de menino, a gente fez durante dois anos um intercâmbio interno. O menino saía do Nordeste e ia pra Santa Catarina; o menino saía de Santa Catarina e vinha pro Rio, a gente trocou menino no Brasil inteiro.
P/1 – Esse era o programa chamado Jovem Cidadão?
R – Jovem Cidadão, exatamente.
P/1 – E de que época mais ou menos? Década de 90?
R – Esse programa foi 95, 96. O programa Jovem Cidadão foi criado exatamente com esse grant da Fundação Kellogg e quem dirigia essa área do escritório da Secretaria Executiva era eu junto com a diretoria. Nessa época quem era o superintendente era o Ricardo Sales e mais os voluntários. Tinha um diálogo permanente entre nós.
P/1 – E o sistema se encaixava com o programa de Bolsa Zero? Pra fazer esse intercâmbio, por exemplo, Salvador-Assis, que eu acho que é um dos pioneiros.
R – São duas coisas diferentes. Bolsa Zero é uma bolsa do programa tradicional em que a gente conseguia doações de empresas, de indivíduos e a própria Secretaria Executiva colocava dinheiro também. Durante uma época isso era financiado pelo AFS Internacional, mas depois que houve a separação entre os AFSs nacionais e o internacional os próprios países tinham que bancar suas Bolsas Zero. A Bolsa Zero era uma outra coisa. Esse programa de intercâmbio interno é que era financiado pela Fundação Kellogg, eram coisas diferentes.
P/1 – E você sabe explicar por que houve essa separação entre o AFS Brasil e o AFS Internacional?
R – Olha, eu acho que foi uma questão financeira, o AFS Internacional não conseguia mais bancar as atividades do AFS no mundo inteiro, foi uma questão realmente de sobrevivência. Eles deram um prazo para que os AFSs nacionais fossem capazes de se bancar sozinhos. A Liliane poderia te falar os pormenores dessa porque ela era superintendente quando houve esse corte, mas os motivos foram financeiros porque era isso, o AFS Internacional já não conseguia mais bancar os AFSs nacionais no mundo todo.
P/1 – A senhora foi a criadora e idealizadora desse programa Jovem Cidadão?
R – Eu acho que é muito forte dizer que eu fui a idealizadora. Eu era a gerente do projeto. Eu acho que o nome ali era gerente, não era nem diretora porque a gente não tinha esse cargo de diretora. Eu era a gerente desse projeto, era um diálogo permanente. Você tinha os voluntários da diretoria, do board como a gente chamava e você tinha o escritório, a gente debatia isso na Secretaria Executiva o tempo todo e a tinha o diálogo com os voluntários dizendo pra gente o que eles queriam. Por exemplo, eu como gerente criei esse material pro Elo Com as Escolas, os outros programas é um diálogo permanente nosso com o board, com os voluntários, com todo mundo.
P/2 – Posso retomar a questão desse material?
R – Claro.
P/2 – Ele era distribuído nas escolas, como era esse processo de contato?
R – Nós fizemos duas mil cópias desse material e é uma pena que esse material tenha se perdido porque ele é graficamente super bonito, super legal. Pra vocês terem uma ideia, a Secretaria Executiva não tinha nenhuma cópia do material. Eu tinha três cópias que eu abraçava, sentia o maior ciúmes das minhas três cópias, mas quando eu soube que a Secretaria Executiva não tinha nenhuma eu dei uma das minhas três cópias pra Secretaria Executiva. Nós distribuímos esse material pros comitês. E a ideia era que os comitês fizessem um trabalho com as escolas, que eles levassem o material e a etapa seguinte seria os voluntários serem treinados em como usar o material pra poder treinar os professores em como usar o material. Só que o projeto acabou. Eu saí, eu fui demitida do AFS e esse projeto acabou ficando. E o AFS tem essa questão de que os voluntários se renovam, essa é uma realidade. E muitas vezes a memória se perde porque é isso. Imagine vocês que se eu tivesse trazido esse material pra Secretaria Executiva não tinha mais nenhum registro que eu tinha esse material. O AFS da Alemanha anos atrás, eu acho que foi 2009 ou 2010, ou talvez um pouco antes, me convidou para ir apresentar esse material na festa de aniversário de 50 anos deles. Na verdade eu acho que a gente pode dizer que tem talvez quase dez anos. Eles tinham conhecimento desse material e esse material não constava na Secretaria Executiva porque eu acho que na medida em que se renovam os funcionários da Secretaria Executiva e se renovam os voluntários, se renova a Diretoria, você vai perdendo história.
P/1 – E atualmente qual é a sua relação com o AFS?
R – Eu acho que é uma relação muito próxima porque o AFS é um dos players, vamos dizer assim, é um dos atores no campo intercultural. Campo intercultural internacionalmente é estruturado com alguns atores importantes e o AFS é uma referência porque o AFS foi a primeira organização de intercâmbio estudantil que não era comercial. Vocês conhecem a história do AFS, não tinha intuito comercial e se preocupava com o aprendizado intercultura. Tanto que agora o AFS se define como uma organização da área educacional. Então eu vivo esbarrando nas pessoas do AFS nas conferências internacionais que eu participo. Pra você ter uma ideia, existe uma sociedade de interculturalista. A minha profissionalização na área veio por aí, que quando eu trabalhava na Secretaria Executiva eu descobri a Sietar.
P/1 – Fale um pouco sobre ela porque ela é membro associada disso, né?
R – Exatamente. Então a Sietar é uma sociedade de interculturalismo. Depois se você quiser eu dou o nome por escrito, é Society for Intercultural Education, Training and Research. A Sietar era uma sociedade que reunia interculturalistas do mundo inteiro, eu soube disso através do AFS. Eu me associei e assim que eu saí do AFS e abri a minha consultoria eu comecei a frequentar as reuniões da Sietar. Muito rápido eu descobri que como empresária eu era péssima, eu detesto vender. Eu sou uma antropóloga, eu não sou uma empresária. A minha consultoria, o meu primeiro cliente foi a Disney, depois eu conto pra vocês, mas eu não consegui ter outros clientes. A Sietar foi fundamental na minha vida porque fui indo às reuniões e apresentando material sobre o Brasil, cada vez que tinha uma conferência eu apresentava, eu fui fazendo o meu nome. Alguns anos mais tarde eu fundei a Sietar no Brasil e fui a primeira presidente da Sietar no Brasil. A Sietar no Brasil agora está na sua terceira gestão. A primeira presidente fui eu, a segunda foi a Inês Meneses, a terceira a Mariana Barros, que é a presidente atual. O AFS, uma das voluntárias do AFS, a Fernanda de Curitiba é voluntária da Sietar. E a gente vive dialogando, a gente vive conversando.
P/1 – Mas como se relaciona a Sietar com o AFS? Tem voluntários das duas ONGs, são ONGs?
R – Porque a Sietar é uma sociedade de profissionais, então como se relaciona? As pessoas que trabalham no AFS com o AFS, que são profissionais da área intercultural, e aí você tem que fazer uma diferença do voluntário. O voluntário tem uma atividade ali no comitê que diz respeito ao dia a dia, ele até sabe dar um treinamento pro cara que chega, ele tem algumas metodologias da área que chegam ao conhecimento do voluntário, mas o voluntário não é um profissional da área intercultural, ele vai fazer faculdade de engenharia, vai fazer outras coisas e geralmente quando ele se forma ele vai em frente com a vida dele. Na minha época aqui na Secretaria Executiva os voluntários adultos que nós tínhamos eram voluntários que tinham recebido estudantes nas suas casas ou eram mães de intercambistas, eram os adultos que a gente tinha e o resto era garotada que tinha chegado e que antes de se profissionalizar dava alguns anos de trabalho voluntário pro AFS. Eu diria que a Sietar é uma sociedade de profissionais, você tem que ser profissional da área intercultural pra se associar. E como você tem no AFS muitos profissionais da área intercultural trabalhando no AFS eles acabam se associando à Sietar. O diálogo passa por aí. A Fernanda, que é a voluntária do comitê Curitiba, ela está se profissionalizando como interculturalista, por isso ela veio buscar a Sietar, porque ela quer ser uma profissional da área.
P/2 – E na Sietar vocês fazem apresentações, discutem temas, ela é anual?
R – Nós temos uma conferência anual onde as pessoas apresentam trabalhos e nós temos uma série de atividades durante o ano todo. Por exemplo, daqui a duas semanas, no dia 19, nós temos uma atividade sobre as perspectivas do mercado intercultural de uma interculturalista americana que está visitando o Brasil, veio pra fazer um trabalho. E aí o que ela faz? Ela entra em contato com a Sietar do Brasil e diz: “Olha, eu tenho possibilidade de oferecer, voluntariamente, um seminário com o assunto que eu venho trabalhando e eu gostaria de em troca ouvir dos interculturalistas brasileiros sobre o mercado no Brasil”. Ela vai fazer uma palestra falando sobre o mercado internacional e gostaria de ouvir da gente o que acontece no mercado brasileiro.
P/1 – E essa formação, leva quanto tempo? Essa profissionalização.
R – Eu acho que isso é muito individual, muito variado. Eu conheço gente que trabalha como interculturalista, eu já vinha da área porque eu sou antropóloga e trabalhei a vida inteira. Gente, eu me formei em 1977, vai fazer 40 anos daqui a dois anos, me formei em 1977, é muito tempo. Eu vinha de um mestrado em Antropologia, eu fui buscar a formação, por exemplo, nas conferências da Sietar, fazendo cursos, volta e meia você tem um curso sendo oferecido, quando eu acho interessante eu vou. Ou aqui no Brasil antes da conferência a gente já teve, por exemplo, o Milton Bennett, que ele trabalha com uma teoria importante, oferecendo curso. Eu fui fazer esse curso, por exemplo. Agora o campo intercultural tem gente, por exemplo, que vem da área de línguas, era professor de inglês, e aí percebe que a língua vai muito além daquele conhecimento específico, que você precisa entender a cultura, vai atrás de um curso. Na área intercultural você tem um monte de cursos, mestrados. No Brasil você não tem nenhuma graduação nem mestrado em interculturalismo, o mais próximo que você consegue chegar é na Antropologia.
P/1 – Mas o mercado de trabalho no Brasil, como está esse cenário?
R – O mercado de trabalho do interculturalismo é um mercado duro. Eu conheço pouca gente que vive do interculturalismo, eu sou uma delas. Eu acho que no Brasil não tem mais do que cinco, seis profissionais que vivem do interculturalismo, realmente não são muitos. Eu particularmente, como eu não gosto de vender, eu não vendo, o meu trabalho vem todo do exterior. Tem gente da Sietar, por exemplo, que tem empresa, tem umas quatro empresas no Brasil que atuam no mercado intercultural, talvez mais, estou falando aqui e já pensei numas seis, sete. Empresas que vão pro mercado pra disputar o mercado. Eu detesto isso, eu não gosto de vender. Eu fiz um nome internacional indo nas conferências internacionais e apresentando. Então você tem grandes provedores no mercado intercultural, grandes provedores, que disputam as empresas multinacionais lá fora. E eu sou a treinadora deles no Brasil, então trabalho chega pra mim por e-mail: “Olha, tem um treinamento tal, assim, assim, assim”. Eu na verdade tenho um cliente (risos), que foi esse cliente que eu fui no Pará, essa empresa francesa. Eu fui contatada por eles, por uma indicação desse tipo, eu não fui atrás deles, eles é que me descobriram e era um treinamento global que estava sendo dado pela matriz na França, em vários países do mundo e eu dei esse treinamento no Brasil.
P/2 – Você pode resumir pra gente o que é esse treinamento, como foi?
R – Qual treinamento você está falando?
P/2 – Esse especificamente.
R – Treinamento em diversidade. O que é um treinamento de diversidade na empresa? Isso é um conceito. As empresas descobriram que diversidade é uma vantagem competitiva, não é só uma questão de politicamente correto. Porque alguns anos atrás você tinha o politicamente correto atuando, você tinha a questão das cotas nas empresas americanas que cumpriam cotas na matriz e chegava a empresa no Brasil e não tinha um negro trabalhando. Eles começavam a pressionar pra que a filial brasileira buscasse negros por conta de um compromisso que eles tinham na matriz. Hoje o treinamento de diversidade passa por essa concepção de que a diversidade é uma vantagem competitiva, coloca a empresa que tem a diversidade na frente das outras. Por quê? Porque quando você tem gente com cabeça diferente, com formação diferente, buscando solução, buscando inovação, é muito mais fácil do que quando você tem um monte de gente pensando igual. Hoje as empresas trabalham com essa noção de que a diversidade é uma vantagem competitiva, elas me contratam pra montar um treinamento e ir lá falar pra eles. Eu falo pra gerente e eu falo pra gente de chão de fábrica. E é muito legal, é muito interessante. E você tem também um treinamento intercultural, que foi o que eu disse pra vocês, você tem o pessoal do RH [Recursos Humanos] de uma empresa americana que vive um conflito com o RH americano e acha que os caras são grosseiros. A empresa chega e diz pra mim: “Olha, está tendo ruído, a gente quer um treinamento intercultural pra equipe”. E aí eu vou falar o que é comunicação entre culturas diferentes. Na verdade você tem uma metodologia da área. Eu, por exemplo, adoto uma determinada metodologia. Tem a metodologia do Milton Bennett, por exemplo, que é uma outra direção, uma outra linha. E você vai lá e treina as pessoas nas diferenças culturais. É claro que você tem uma variação enorme de pessoa pra pessoa, mas você tem grandes tendências.
P/1 – Nesse sentido, já vislumbrando essa questão de mercado que foi colocada, essa visão de futuro e do próprio mercado que foi colocado por você, onde o AFS aparece? Como seria o AFS nesses próximos anos com relação a esse segmento? Você que já atuou no AFS.
R – Boa pergunta essa. Eu acho que essa sacação de que o AFS não é uma organização de intercâmbio, é uma organização educacional, a gente fala isso há 20 anos, há 30 anos e parece que agora é uma tendência na organização como um todo. Porque isso é óbvio. Veja só, por que é que alguém vai mandar um filho no intercâmbio do AFS onde você não escolhe o destino e o preço é o mesmo se você pode entrar ali numa porta e dizer assim: “Eu quero mandar meu filho pra morar nos Estados Unidos, na Califórnia. Só quero se for pra morar na Califórnia, senão não quero”, os caras mandam você pra Califórnia. Por que é que alguém vai escolher o AFS que diz pra você assim: “Não, o importante é ter o aprendizado intercultural. Teu filho pode ir para os Estados Unidos ou pode ir pra Tailândia”. Só vem buscar o AFS quem está interessado no aprendizado intercultural. Eu, por exemplo, mandei minha filha mais velha pra Nova Zelândia. Ela se candidatou e foi mandada pra Nova Zelândia. E isso é uma coisa muito do AFS, como é que as gerações se perpetuam. É muito frequente filho de intercambista ser intercambista porque quem vive a experiência sabe a importância da experiência. E como o AFS lida com o intercâmbio de uma forma diferente. Por que eu pude ter aquele momento espetacular na minha experiência? Porque era com o AFS. Porque tinha ali alguém sentado naquela fogueira com a gente propiciando essa conversa, em que a menina pôde falar pra gente do amor romântico. Um outro tipo de intercâmbio não tem isso, os caras te jogam lá, tomara que seja uma boa família porque se não for... Tem cada história horrorosa de intercambista passando sufoco porque o cara recebeu, foi pago pra receber intercambista enquanto o AFS não tem isso, o AFS é uma organização de base voluntária, você tem que acreditar no valor da aprendizagem intercultural pra você querer que o seu filho viaje pelo AFS.
P/1 – Então essa é a saída, o futuro do AFS?
R – Eu acho que esse é o futuro do AFS. O AFS é uma organização de aprendizagem intercultural. E ele tem que fazer o marketing dele em cima disso. Você não vem aqui: “Ah, eu quero que meu filho aprenda inglês nos Estados Unidos”. Querido, vai lá no outro, porque a ideia aqui não é essa, a ideia aqui é a aprendizagem intercultural, é outra história.
P/1 – E quais seriam os maiores aprendizados que você teve com o AFS, levando em conta tanto a tua época de intercambista como de servidora do AFS?
R – Eu acho que é isso, é você entender o valor da lógica do outro que é diferente de você, pensa diferente de você. E entender que existe um sentido naquilo. Ninguém faz as coisas porque acordou com vontade, algumas vezes a gente até faz, mas na maior parte das vezes a gente é treinado pra agir de um jeito e não de outro. Você começa um treinamento, por exemplo, de uma criança, na hora que ela nasceu, quem é mãe sabe disso, você quer que o bebê espace as mamadas na madrugada, você começa a treinar a fome do bebê pra que ele em vez de mamar de duas em duas horas passe a mamar de três em três, de quatro em quatro, isso é treinamento. E educação é isso, educação é treinamento. E as culturas tem lógicas próprias. E quando a gente fala de cultura não é só cultura nacional, a cultura brasileira, a cultura japonesa, é cultura de classe social, é cultura de região, é cultura de gênero que agora está na moda, a geração de vocês fala cultura de gênero o tempo todo. É cultura de região, de profissão, cabeça de engenheiro é diferente de cabeça de filósofo. Você tem camadas da cultura. E a verdade é isso, eu acho que quando você é intercambista você aprende isso de uma forma meio sensível, um outro que é diferente de mim, é um primeiro momento de um contato profundo de uma cultura que é diferente da sua. Cada um faz disso uma coisa diferente. Eu virei profissional, mas nem todo mundo que fez intercâmbio virou profissional da área, as pessoas vivem isso de uma forma muito individual. Eu particularmente vivi isso de uma forma muito intensa e fui buscar viver isso profissionalmente. Eu acho que são dois momentos mesmo, é o momento de intercambista que é uma sensibilização pra questão da cultura e depois como profissional, o AFS me abrindo de novo, mais uma vez na minha vida, me abrindo as portas do mundo profissional que eu desconhecia. Porque eu vim pro AFS como antropóloga e saí daqui interculturalista, eu acho que realmente o AFS na minha vida foi muito marcante mesmo, foi espetaculoso (risos). Ele providenciou, possibilitou experiências muito profundas na minha vida.
P/1 – E agora nós estamos caminhando pro final da nossa entrevista e eu só vou fazer mais duas perguntinhas pra você. Uma é: O que você acha do AFS estar contando a sua história através do Projeto Memória?
R – Eu acho fundamental. Eu acabei de falar pra vocês que a memória do AFS se perde, é uma pena. Uma pena que na medida que você tenha renovação dos voluntários, na medida que você tenha renovação do corpo corporativo que trabalha na Secretaria Executiva que você vai perdendo a memória. Então eu acho que essa iniciativa é maravilhosa, porque é isso, tem que resgatar um pouco. O AFS tem figuras na sua história, de pessoas que participaram do AFS que são fundamentais. Você pega a socióloga Maria Victoria Benevides, em São Paulo, pessoa da maior importância na Sociologia, na história brasileira, foi intercambista. Você tem um monte de gente, de intelectuais importantes que foram intercambistas do AFS. E você não tem nada que gere depoimento dessas pessoas, que vá buscar o depoimento dessas pessoas.
P/1 – E agora por fim, o que você achou de ter dado esse depoimento, como se sentiu?
R – Fiquei super orgulhosa de ter sido convidada pra falar. Eu, afinal de contas, estou afastada do dia a dia da Secretaria Executiva, fiquei muito feliz de ter sido convidada porque acho que realmente é como eu disse a vocês, o AFS teve uma interferência na minha vida de adolescente, de profissional, muito grande. Eu tenho um carinho enorme pelo AFS, vivo oferecendo, me proponho ao trabalho voluntário, no caso não com os meninos que chegam, mas eu acho que eu poderia estar aí ajudando a formar os voluntários que trabalham com os meninos, trabalhando aí com o pessoal da Secretaria Executiva, passando um pouco dessa experiência que a gente teve. Por exemplo, eu adoraria poder voltar e trabalhar com esse material que eu acho lindo, acho que é um material maravilhoso.
P/1 – Infelizmente nós temos que encerrar essa entrevista.
R – Super obrigada, foi um prazer estar com vocês.
P/1 – A gente é que agradece. Em nome do Museu da Pessoa e do AFS Intercultura Brasil, a gente agradece a sua contribuição, muito obrigada.
R – Muito obrigada também.Recolher