Projeto: Braskem – Um Novo Lembrar / Compartilhando Experiência Entre a
Comunidade e a Organização
Depoimento de Apolônio Leite da Silva
Entrevistado por Isla Nakano e Laura Lucena
Local: Santo André - SP
Data: 24 de setembro de 2012
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: BK_HV...Continuar leitura
Projeto: Braskem – Um Novo Lembrar / Compartilhando Experiência Entre a
Comunidade e a Organização
Depoimento de Apolônio Leite da Silva
Entrevistado por Isla Nakano e Laura Lucena
Local: Santo André - SP
Data: 24 de setembro de 2012
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: BK_HV010
Transcrito por Liliane Custódio (MW Transcrições)
P/1 - Isla Nakano
P/2 - Laura Lucena
R - Apolônio Leite da Silva
P/1 – Bom, seu Apolônio, pra começar eu queria agradecer ao senhor ter tirado um pouquinho de seu tempo pra conversar com gente. E pra gente deixar registrado, eu queria que falasse o seu nome completo, onde nasceu e a data de nascimento.
P/1 – Pra falar agora?
R – Isso. Vamos falar, vamos lá. O senhor pode falar o seu nome completo primeiro.
R – Apolônio Leite da Silva.
P/1 – O senhor nasceu aonde?
R – Em Tupanatinga.
P/1 – E quando o senhor nasceu?
R – Em 21 de abril de 1921.
P/1 – E seu Apolônio, qual era o nome dos pais do senhor?
R – Ricardo Leite da Silva e Vicência da Paz Barreto.
P/1 – E o senhor chegou a conhecer seus avós?
R – Conheci não.
P/1 – Seu Apolônio, me conta, o que seu pai fazia e a sua mãe?
R – Eles eram pobres e viviam da roça, e da roça não passava, porque eram muito difíceis as coisas dessa época. Então, hoje tá mais fácil. Nada tinha valor, você trabalhava muito [e] não tinha valor. Hoje tudo tem valor. Então, quer dizer, que hoje tudo tem valor. Que quando eu nasci, que me entendi de gente, [se] via uma zoada do carro, a gente corria com medo. Era esse 29 velho, antigo. Depois veio o Chevrolet Cara Branca, veio o Cabina de Pau, veio o Ford Cara Branca e Aero Willys, veio o Jipe, mas o primeiro carro era o 29. Era baratinho. Tinha uma mulher lá que comprou um carro por 1 real e 50 [centavos], eram dez “tonho” e 50 centavos, dez “tonho” e 500, que quando ela foi trocar o carro. Já pediram três mil réis, aí ela não quis de perder o negócio. Eu sou velho minha filha, antigo. Quando passou o primeiro avião, nós corremos tudo pra forna de pedra - era o mundo que vinha acabando. (risos) E, então, hoje tá tudo diferente, é o ônibus bonito, o carro bonito; é tudo bem feito. E, na minha época, não tinha isso. Apareceu o ônibus de Bom Conselho a Garanhuns, era feito de madeira, bem feito, bonito que era danado. A gente chamava o quê? Uma sopa. (risos) A sopa é de comer, né? Depois que passou pra jardineira, marinete, hoje tá uma beleza. É tudo diferente hoje.
P/1 – E seu Apolônio, quando o senhor era pequeno, se lembra da casa do senhor?
R – Lembro que era de palha. (risos) Era tudo feito de palha, coberto de palha. Eu me lembro de tudo do passados. Que quando era pequeno, com idade de 9 anos para 10 - eu me lembro de tudo.
P/1 – E o senhor tinha irmãos?
R – Eu não tenho mais nenhuma irmã, nenhum irmão, nem pai, nem mãe, nem tio e nem padrinho. Eu tô sozinho no meio do mundo. Eu não tô só, porque eu tenho essa velha feia que é amarga. Eu tenho os netos, os bisnetos e um rapaz, mais eu, dentro de casa. E o resto é casado. Um mora em São Caetano, outro mora em Mauá, em Ribeirão Pires e uma mora em Maceió, Alagoas.
P/1 – Mas quantos irmãos o senhor teve?
R – Seis. Morreram três... Morreram cinco e eu tô vivo. (risos) A morte deles... Pegaram tudo pra mim, na minha vida.
P/1 – Seu Apolônio, conta pra gente como era a cidade do senhor, a vila do senhor?
R – A vila da gente eram quatro casas. Hoje tá uma cidade que ninguém conhece. Aumentou demais com essa nação de hoje, tá muito grande Tupanatinga. Aumentou bastante.
P/1 – E [de] quem eram essas quatro casas? Além da do senhor, quais eram as outras?
R – Falou?
P/1 – Essas quatro casas. Tinha a do senhor, e quem eram os vizinhos?
R – A vila era uma meia dúzia de casas. Eu nasci na serra, no meio da família. Na família, tinha uma tia, duas tias e os primos, só. E o resto, tudo, era estranho.
P/1 – E seu Apolônio, do que o senhor gostava de brincar quando o senhor era pequeno?
R – Cavalo de pau. (risos)
P/1 – Como era essa brincadeira?
R – A gente montava numa vara, botava uma cordinha na cabeça da vara e saía açoitando de chicote dizendo que era o cavalo: “Vamos! Esquipa!”. (risos) Eu me lembro de tudo.
P/1 – E quais outras brincadeiras que tinham além da do cavalo de pau?
R – Gangorra. Nós fincávamos um pau no chão, cavávamos um buraco na madeira, meio a meio, e nós corríamos, rodávamos na areia. Nós caíamos, achávamos graça. (risos) E então eu fui criado desse jeito, minha filha. Eu nasci no meio de duas serras. Dava um grito [e] a serra respondia, dizia: “Eu tô aqui”. A serra respondia: “Eu tô aqui também”. É verdade.
P/1 – E como eram pra mantimento, com comida, essas coisas? Como os pais do senhor faziam?
R – Nós ralávamos a mandioca no ralo, espremia na mão e fazia o biju. (risos) Moía no moinho ou no moinho de pedra, fazia o xerém e comia com feijão. Caça do mato: preá, mocó, cotia, tatu, veado, tamanduá, cangambá, saruê, preá, mocó. Nós comíamos tudo. Rato, eu pegava aquele ratão - aqui é seboso rato - arrancava o rabo, jogava fora e pelava, assava na brasa pra comer com fubá, (risos) socada no pirão. (risos) Era assim, eu fui criado desse jeito.
P/1 – E tinha alguma comida que a sua mãe fazia que era a mais gostosa de todas?
R – Era o angu. O angu era gostoso que era danado. (risos)
P/1 – Como ela fazia o angu?
R - Moía num moinho, na máquina - nós chamávamos máquina, hoje é moinho -, e então lavava, tirava aquela palha, botava na água quente, fervia e fazia o angu. Botava a massa dentro, fervia, fazia o angu pra comer com quê? Com caldo de feijão. (risos) Eu fui criado malcriado. Hoje eu não como fruta, não como banana, não como laranja, não como melancia. Verdura, pra mim, não existe. Eu só como farinha, feijão, cuscuz de milho, pão de milho e farinha de mandioca, só. Carne eu não como, carne de galinha eu não como, carne de frango, nem de boi. Eu comia gordura, mas tenho colesterol, parei de comer gordura. E então eu fui criado desse jeito.
P1 – Seu Apolônio, conta uma coisa, o senhor ia visitar uma cidade mais próxima, maior, quando o senhor era pequeno? Como era?
R – Não, tinha Buíque, Arcoverde, Pesqueira, Belo Jardim e Caruaru, e Garanhuns, mas ninguém ia lá, nós não tínhamos capacidade de ir lá.
P/1 – O senhor nunca foi... O senhor já foi a alguma festa junina da região, alguma festa típica?
R – Não, nunca fui. Nunca fui à festa nenhuma.
P/1 – E tinha alguma festa na sua vila?
R – Tinha.
P/1 – Qual era? Conta pra gente.
R – Era mês de agosto, nove noites. Eram nove noites de festa. Tinha a dos rapazes, tinha a das moças, tinha a dos casados, tinha a dos vaqueiros e tinha não sei o que mais. A da meia-noite era a dos casados. E, então, eu fui criado desse jeito.
P/1 – Aonde eram essas festas? Em que lugar?
R – Era em Tupanatinga.
P/1 – Mas era na igreja, em que lugar?
R – Tinham duas igrejas: São Benedito e Santa Clara. São Benedito o olho alumiava, preto que era danado, era da cor dessa sacola aí. Preto, retinto.
P/1 – E conta pra gente umas histórias marcantes desse período, seu Apolônio, que o senhor lembra.
R – Eu pegava tatu, (risos) tamanduá, cangambá, preá. Armava arapuca pra pegar nambu, passarinho. Eu fui criado desse jeito, numa vida triste. Agora, hoje tá bom, tá muito bom. Hoje é muita civilidade, muita coisa, tudo diferente, mas no meu tempo era horroroso. Meus pais eram pobres. Nós não tínhamos uma cabrita pra beber leite, nós fomos criados com papa d’água, que nem eu falei para o rapaz. Minha mãe rapava uma rapadura, já tinha uma panela d’água fervendo e um prato de barro, botava farinha dentro com a rapadura, pegava a panela d’água e fazia aquele mingau, e então deitava a gente no colo. Eu mesmo não me lembro disso, mas eu a via dando papa aos meninos, mingau. E então ela mexia, botava num prato de barro. Louça não existia, minha filha. Não existia louça de jeito nenhum, pra nós não existia. Na cidade tinha, mas ninguém morava na cidade. E então minha mãe botava pra esfriar um pouquinho, e danava o dedo, na boca dos meninos com o dedo. Quando ele começava a engolir, minha mãe empurrava pra dentro. Criou cada “homão” forte, musculoso. Eu tinha dois irmãos que morreram aqui, tudo “homão”, forte, bonito - morreram de cachaça. O caçula morreu, eles sentavam aqui, um deles chorou (risos) dizendo que era corno. Eu digo: “Mas de tua mulher não tem nenhum filho de outro homem, tudo é teu, porque é a tua cara direitinho e tua qualidade”. Ele era preto, mas o cabelo bom, cabelo que nem o de vocês, cabelo escorrido, caboclo índio danado. E então ele morreu de cachaça. Todos os dois morreram bêbados, um morreu com a garrafa na cabeceira. Então, bateu as botas. Eu tô sozinho, não tenho ninguém - só tenho quatro filhos, um neto aí, dois bisnetos. Neto eu tenho pra caramba, e bisnetos. Eu tenho 14 bisnetos, netos eu não sei nem da conta.
P/1 – E seu Apolônio, quem eram as outras crianças da vila do senhor?
R – Era tudo bonzinho. Não tinha briga, nada. Não tinha esse negócio de maconha. O que tinha muito era ladrão de bode, roubava um bode danado.
P/1 – Como roubavam bode? Como era isso?
R – De noite, com farolete. Eu nunca roubei não, (risos) mas o cabra ia para o malhador, pegava três, quatro bodes, seis, encangava na corda e ia pra cidade. Tinha um rapaz no Meirim [povoado de pescadores] e não tinha um que luxasse mais do que ele. Aí Cícero Gomes, que sentiu falta dos bodes, que foi para o malhador, quando foram umas 12 horas da noite, ele viu um farol e já viu o ladrão, aí pegou seis bodes e deixou ir embora. Nesse tempo, que foi no Meirim, eu já era casado. Então, no outro dia, ele saiu rastejando, chegou ao muro, colocou os bodes. Aí Cícero Gomes viu os bodes, chamou o Zé Panta, disse: “Ô Zé Panta, me acompanhe aqui”. Disse: “Esses bodes são meus”, “É mesmo, Cícero?”. Disse: “É. E foi teu irmão que pegou. Eu não mando dar uma pisa nele porque é teu irmão”. Ele é vereador da cidade. “E então o mande embora. Se ele pegar mais um bode meu, eu mando dar uma pisa nele ou matar.” Aí ele veio pra Paulo Afonso, em Paulo Afonso ele morreu, e então se acabou ele. Novo, um rapaz novo, mas não tinha um rapaz que luxasse que nem ele. Trocava uma roupa bem cedo e de tarde já tava com outra. O par de sapato era toda hora, ele trocava o sapato. E ele morreu, então largou de roubar. (risos)
P/1 – E seu Apolônio, o senhor se lembra de alguma molecagem do senhor, que aprontou? O pai do senhor ficou bravo? Teve alguma história?
R – Olha, falar a verdade, eu nunca aprontei nada. Nunca aprontei. Na minha idade, que eu conheço, que eu nasci, me criei, a gente tinha uma ordem assim: se nós tivéssemos sentados aqui, como nós estamos aqui de frente, eu duvidava o moleque que passar [e] só bastava o olho do velho olhar, o cabra recuava logo. E, hoje em dia, você tá sentada aqui, os moleques é tempo de derrubar a gente, não tem educação. Mas, antigamente, tinha educação, então eu fui criado desse jeito.
P/1 – E como era o pai do senhor?
R – Como era meu pai?
P/1 – É.
R – Meu pai era preto [e] valente que era o filho do diabo. (risos) Valente. Ele bebia uma pinga e nessa pinga ele fechava a colônia toda. Ele tinha uma espingarda que a boca era dessa grossura, da boca a gente via a bucha embaixo. Ele dava um tiro, todo mundo fechava a porta. Era valente o finado meu pai. Tanto era valente na pinga, como era fora da pinga. Ninguém gostava do finado meu pai onde ele morava, onde ele morou. E, então, quer dizer que eu fui criado... O bigodão, eu tinha bigode, não era careca. Eu tinha cabelo pra duas pessoas, então eu fui criado numa situação beleza. Eu tenho filhos que são bons, que foram criados aqui nessa favela, mas são trabalhadores, inteligentes, são homens. Um trabalha na guarda, outra mora em Maceió, um mora em São Caetano, esse vive da marreta, mas vive bem, vive melhor do que eu vendendo esses doces, muito melhor.
P/1 – E seu Apolônio, me conta uma coisa, o senhor chegou a ir pra escola algum dia?
R – Nunca fui à escola.
P/1 – Não tinha escola?
R – Não tinha. Nós não tínhamos um professor, não tínhamos uma domesticação, não tinha nada, não tinha uma instrução de nada.
P/2 – Seu Apolônio, como o senhor caçava tatu? E quem lhe ensinou a caçar tatu?
R – Nós tínhamos um cachorro, levávamos para o mato, ele acuava, o cachorro, o tatu, peba, tamanduá. E então eu fui criado desse jeito.
P/2 – Mas quem ensinou o senhor a caçar assim?
R – A inteligência da pessoa. Nós criávamos os cachorros e íamos para mato, os cachorros andavam, trabalhavam acuados e nós só íamos arrancar o tatu. Cavava o buraco no chão, que ele entrava, um daqui pra ali [e] nós arrancávamos o tatu.
P/1 – E seu Apolônio, como era Natal? Tinha Natal, tinha alguma festa assim?
R – Não tinha festa.
P/1 – E tinha velório?
R – Tinha.
P/1 – Como era velório quando alguém morria?
R – Eu vou te dizer uma coisa: era de cortar o coração. A gente levava numa rede, levava o defunto numa rede e gritando os irmãos das armas: “Cheguem irmãos das armas”. A gente já conhecia, aí um ia, pegava, tocava pra frente, ia para o cemitério, lá enterrava. Pronto, trazia a rede pra casa. Eu tenho uma rede novinha e um manto, tá guardado aqui pra minha morte. A mulher disse: “Pra que tu guardas isso?”. Eu digo: “Quando eu morrer, vocês botam no caixão”. Ou espalha, ou bota na cabeceira, mas se tampar o caixão a tampa não tapa, não fecha. Mas tá guardada, tá num saco de plástico bem dobradinha, [é] novinha a rede. Um manto...
P/1 – E casamento? Tinha casamento, seu Apolônio?
R – Tinha.
P/1 – Como eram os casamentos?
R – O casamento era na igreja. Eu casei na fazenda dessa mulher. Então, tinha casamento, mas hoje em dia não tem mais, né? Hoje em dia o casamento é juntar e viver. Aqui tem vizinho que tá com 25 anos de juntos e são unidos. Eu falei pra ela, eu digo: “Tu casas?”. Diz: “Não quero casar, porque eu vou alegrar mais meu marido, mais meu homem, então nós juntos estamos melhor”. Tem moço, tem rapaz, uma moça, e vivem bem. Não tem diferença de casado. Eu tô com 58 anos que vivo mais essa. Quem é que vive hoje 58 anos? Não tem quem viva. Hoje é um ano, um ano e meio, seis meses, um mês, dois, três, pra viver. A vivência é essa hoje em dia. Então quer dizer que junto seria melhor. Se eu fosse um rapaz, eu não queria me casar de jeito nenhum. Eu tenho um rapaz velho aí, tá com 48 anos, ele não quer casar. A mulher é doida por ele, moça e tudo. É um “tipão” de menino danado, fortão, bitelão, gordão, bonitão. (risos) É forte, gordo, não tem quem diga que é filho meu. A mãe é quem sabe se é filho meu. (risos) Dá uma risada também. (risos)
P/1 – E seu Apolônio, me conta uma coisa, e a juventude do senhor depois da infância, ficou mais velho, o que o senhor fazia?
R – Olha, eu não tive infância nenhuma. Eu fui criado sem infância. A infância que eu tenho é de 53 pra cá. De 53, eu peguei a andar aqui pra São Paulo, Paraná, Brasília. Então, o Estado de São Paulo eu conheço todinho, o Paraná eu fui até ao sertão do Paraná, mas, na minha juventude, eu não tenho nada pra contar.
P/1 – Mas o senhor trabalhava? Onde o senhor trabalhava?
R – Trabalhava. Olha, o que eu trabalhei na vida, não há jornada que caiba. Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Brasília, o estado de São Paulo, o estado do Paraná, não tá nem escrito. Ainda hoje eu trabalho.
P/1 – E qual foi o primeiro emprego do senhor, assim, de salário?
R – Que foi em Paulo Afonso.
P/1 – E como foi lá em Paulo Afonso? Conta essa história pra gente desde o comecinho.
R – Em Paulo Afonso, eu cheguei em 59, me empreguei. Aí abandonei o serviço, fui pra Brasília. Voltei pra Paulo Afonso de novo, cacei emprego, não achei porque eu tinha abandonado a firma. Então, eu soltei uma mentira para o engenheiro [e] acreditou na mentira.
P/1 – Qual mentira?
R – Que meu pai tinha morrido. (risos) Ele acreditou na mentira, aí me fichou. Eu trabalhei nove anos em Paulo Afonso, nove anos. Mas eu não tive... No meu tempo de rapaz... Agora, de 53 pra cá, eu tive muito prazer na vida, viu? Mas na minha juventude não, eu fui criado num reio danado.
P/1 – Como o senhor decidiu vir pra São Paulo?
R – Olha, que pra eu vir pra São Paulo, eu fui na do meu pai, ele não queria deixar, disse: “Não vai pra São Paulo, não”. Eu digo: “Olha, esse mandiocal que eu tenho aqui, eu te dou”. Eu já tinha vendido a roça a João Lucas, um vizinho. Aí eu dei a mandioca pra ele, só a mandioca. A roça eu tinha vendido por três mil e pouco, por três mil, que chama mil réis. Então, quer dizer, que aí ele não queria deixar e deixou. Teve uma festa em Santa Clara, em Tupanatinga, aí eu pedi a ele um bigodão, o bigode torcia, barbudão. Aí eu pedi a ele, ele disse: “Não vai à festa de Santa Clara, não vai”. Que sabe que as mães são muito compadecidas com a gente, aí eu falei pra mãe. A mãe que falou com o finado meu pai, disse: “Olha, Ricardo, deixe Apolônio ir pra festa”. Disse: “Ele vai, mas amanhã ele esteja aqui”. Eu fui e no outro dia eu tava em casa. Longe, era longe, 14 léguas, 14 léguas dá mais de... São seis quilômetros por uma légua, 14 dá... Não sei quanto dá. E, então, era muito longe. Eu fui, aí peguei o caminhão no outro dia pra Arcoverde. Na hora certa eu tava em casa, mas se passasse da hora, o couro comia mesmo. Eu fui bem criado, rapaz. Hoje você vê esses meninos, não têm educação, não têm nada, não respeitam o pai, não respeitam a mãe, não respeitam avô. Eu tenho dois bisnetos aí, moram ali naquela de frente, que tá aberto, passam aqui, não dão nem as horas pra mim. É de olhar pra mim, mais a avó, olha aqui pra casa do vizinho, passam duros pra lá e pra cá, não têm satisfação pra mim. E [olha que] são netos, bisnetos. Mas, antigamente, tinham.
P/2 – Seu Apolônio, a mãe do senhor era brava?
R – Não.
P/2 – Não?
R – Era não.
P/1 – Como ela era?
R – Era muito boa, muito humana, muito paciente, não brigava com ninguém e todo mundo gostava dela. Agora, o finado meu pai era brabo que era um siri. (risos) Eu não sei como ele morreu na cama dele. Porque Deus é pai, deu derrame nele, comeu um pirão de bode (risos) e foi se deitar, acordou no chão. Minha mãe o viu caído e ele bordejando que nem bode: “Tu tá brincando, Ricardo?”. E ele sem falar. Aí ela levantou, chamou os vizinhos, assombrou-se. Chamou o vizinho, o vizinho veio, botou-o em cima da cama e disse: “Morreu”. Então quer dizer que se meu pai não morre, ele ainda tava vivo - ele já estaria com uns cem anos, mais de cem anos. E [minha] mãe morreu com 106 anos. E se eu puxei da parte de mãe, do meu pai, é tudo gente urubu, vive 110, 95, 97, cem anos, cento e tantos. Só morre com mais de cem a minha família, tanto de uma parte como da outra. Se eu puxei o sangue deles, eu vou aturar 150 anos. (risos) Eu já tô caduco um pouco, mas eu espero viver.
P/1 – E seu Apolônio, conta pra gente essa história que o senhor contou para o Marcelo, do caboclo Jalangão, antes de o senhor vir para São Paulo.
R – Olha, o caboclo Jalangão, tinha uma mulher lá... Eu trabalhava em Paulo Afonso, na firma, na hidrelétrica, eu trabalhei dez anos e tinha umas viagens pra fazer pra Recife, pra Garanhuns, Angelim, Caruaru, então eu pelejava pra ir e não ia. Aí tinha o galego, que era filho dessa Joana, aí diz: “Mãe, sabe de alguma coisa? Vamos lá, mas vamos levar os frangos”. Aí eu comprei dois frangos na feira, já era empregado, e ele comprou dois, e nós fomos. Aí sangrava um sangue vivo e bebia, batia e jogava ali. Aí caboclo Jalangão abaixou, disse: “Você vai viajar, para o mês você viaja”. Como foi dito e feito, eu viajei, peguei um dinheiro danado, nunca vi - era tudo por conta da companhia, da hidrelétrica. Eu viajei, passei 30 dias na boa. Voltei, peguei outra para Angelim, pra Pernambuco de novo. Aí uma noite eu tava dormindo, eu acho que essa mulher ressoou no meu pé do ouvido: “Ronc, ronc”. Aí eu fui lá, o Exu baixou nela. Desde essa noite, eu tava dormindo, e uma pessoa ressonando na minha cabeceira. Ele disse: “Era eu”. Até me arrepio quando eu falo. Disse: “E nada acontece com você, porque eu tô perto de você”. Nem aqui, nem em canto nenhum, nada acontece comigo. Olha, nunca aconteceu nada comigo até hoje, eu acho que ele tá rodeando. (risos) Mas eu não o vejo não, nem assombração eu não vejo dele. Mas ele tava ressonando mesmo na minha cabeceira, tava, ele falou que era ele. Então eu nunca vi assombração nenhuma. E ele falou que nada me ofendia, como de fato até hoje... Olha, todo mundo me conhece aqui, a maioria me conhece. Eu tava aqui, esse vizinho aqui bebia umas pingas pesadas e tinham dois peões comendo uns docinhos aí. Ele, de ir pra casa bêbado, veio pra minha porta me insultar, me deixou mais baixo que uma sola de sapato. Esses peões aí falaram: “O que esse velho quer com você?”. Eu digo: “Ele tá bêbado”. Como queriam dar uma coça nele... Mas não aguentava um tapa, porque se eu desse um tapa nele, eu derrubava. Aí ele foi embora, o tirei na boa. Foi embora pra casa, voltou de novo, me esculhambou pra caramba [e] eu o tirei na boa. Tá com uns 15 anos que nós somos intrigados. Esse aqui também é vizinho, é meio intrigado. Você sabe, onde o menino chupa a bala, o chiclete e o pirulito, derrama o papel? E eu saí varrendo o papelzinho no muro dele, encostando no muro dele e já tava com a sacola, e a pá na mão, e a vassoura, mas esse homem abriu a janela, o portão, brabo que só um siri. Eu digo: “Ô, Zé, isso não é caso de a gente brigar, nem discutir não”. Ele acalmou um pouco, eu digo: “Ô, Zé, que tire sua bola pra lá, rapaz”. Aí ele acalmou um pouquinho, eu digo: “Ô, Zé, você quer saber de uma verdade?”. Ele: “Fala”. Mas falou estourado mesmo: “Você quer ser melhor do que os outros”. E Zé enfrentava com cada olho desse tamanho, eu digo: “Vai me pegar. Vão se pegar”. Eu corri pra dentro de casa, ele ficou rateando no terreiro aí. Eu não brigo com ninguém não minha filha, meu jeito é esse. Só por vida até eu bater as botas, porque aqui é lugar de gente ruim.
P/1 – E seu Apolônio, eu queria que o senhor contasse um pouquinho pra gente como foi a viagem de ônibus pra São Paulo. Onde o senhor veio morar?
R – Olha, eu vim de pau de arara. (risos)
P/1 – Como foi essa viagem?
R – Eram uns bancos atravessados no caminhão, coberto de lona. E cheguei aqui a São Paulo todo vermelho de barro. Voltei pra Pernambuco de novo em pau de arara. Em 53, não tinha ônibus pra aqui. Não tinha, só pau de arara. Então era uma poeira danada, todo vermelho de barro da poeira. Então, quer dizer, que de volta... Depois teve a Teotônio, a Princesa do Agreste. É empresa bonita a Princesa do Agreste. A Teotônio eu não sei. Depois, São Paulo emendou com Nordeste. Se você for aqui por Vitória, tá emendado. E se for aqui por Minas, tá emendado a mesma coisa, não tem diferença. O que tem aqui, tem no Nordeste a mesma coisa. Televisão, antena parabólica - o que é bom, tem. Eu cheguei à casa de uma neta em Maceió, ela dizia: “Vô, vem olhar meu quarto aqui”. Cismei. Aí o que vai fazer o gosto dela. Mas menino, era um quarto maravilha. Aí eu a acompanhei, cheguei à cozinha, era uma beleza. O que tem aqui, tem no Nordeste, minha filha.
P/1 – Mas seu Apolônio, quando o senhor chegou aqui, onde o senhor foi morar?
R – Aqui mesmo.
P/1 – E como era aqui?
R – Aqui tinha 40 barracos, não tinha mais do que 40. Tinham uns goianos ali, uma carreira de mineiro aqui, outra ali, tinha Gumercindo e uns 40 barracos. Do outro lado, só era lama e carquejo. Você ia beber uma pinga e o carquejo lá na lama. Não tinha nenhuma casa do outro lado. E hoje tá uma comunidade boa.
P/1 – E como era aqui, seu Apolônio, na época?
R – Nós bebíamos água de poço. Água encanada ninguém tinha, luz era vela. Então, aqui não tinha nada.
P/2 – E como o senhor ficou sabendo daqui, seu Apolônio? Alguém falou para o senhor pra vir aqui?
R – Não. Eu morei um mês, mais um irmão, aí em Capuava, esse que morreu. Depois, eu comprei esse barraco com um mineiro, era de tábua velha - só era rato e barata. Hoje é de bloco. Eu passei aqui, eu não morei um mês em Capuava, mais de um mês, mais ou menos, não chegaram a dois meses. Aí eu passei para aqui. Então ainda hoje estou. Cheguei aqui em 75, no mês de março de 75. Cheguei aqui no mês de fevereiro e em março me mudei pra aqui. Até hoje. Tá com 37 anos que eu moro aqui e não tenho nada na vida, só a vida.
P/1 – E qual foi o primeiro trabalho do senhor aqui?
R – Meu trabalho? Eu trabalhei dois anos na Cofap, depois saí, me deram as contas, os direitos. E fiquei vendendo uma balinha, um bilhete da federal, só, até hoje. Aí me aposentaram por invalidez, ganho um salário mínimo, a mulher ganha outro, e assim por diante. Estamos vivendo, mas não tenho nada. [Se] você entrar dentro de casa, não tem nada dentro de casa: uma mesinha velha, uma cadeirinha velha, lá em cima um sofá velho, uma televisão. Olha, o rapaz aí - olha que bitelão -, não tem quem diga que é filho meu. Os outros todos são barrigudos, troncudos.
P/1 – E seu Apolônio, qual é a história do armazém aqui? Quando o senhor montou aqui?
R – Como eu montei?
P/1 – É. Quando o senhor montou a vendinha?
R – Olha, isso aqui era sustento de tudo. Eu tinha estoque lá dentro, mas deu uma água quente, minha filha, que eu não tenho nada hoje. Eu tenho essas balinhas que não tá passando... Fechado, somente. Mas aqui eu vendo muito pouco. A minha felicidade é o salário que eu ganho, mais a mulher. Esse filho não trabalha. É bom, não bebe, não fuma, não me dá cuidado, anoitece em casa, mas é doente, ele teve um infarto, ele tava com 33 anos. Foi fazer um exame agora, hoje até acusou no exame. Ele é cozinheiro, cozinha bem pra caramba. Ele ganhava uma nota boa que ele arrumou no emprego esses tempos, mas até o infarto acusou, no exame acusou o infarto dele. Aí não teve mais jeito. Tá comendo e bebendo, dormindo a hora que quer, acorda a hora que quer, abuso meu mais da mãe não tem, então tá numa vida boa. A vida dele é melhor que a minha. (risos) É muito melhor.
P/1 – Seu Apolônio, como aqui em Capuava... Os moradores faziam alguma festa? Tinha algum evento aqui?
R – Olha, aqui é festa todo dia.
P/1 – Mas naquela época, lá atrás, o que tinha?
R – Não tinha. Não tinha festa, não. Agora, hoje é uma bagunça danada. É uma bagunça que não tem quem aguente. Tinha um baiano aqui que era bagunceiro, mataram um aí, correram tudinho daqui. Tá uma beleza aqui o trecho, tá bom demais. Eles fazem uma baguncinha quando faz um aniversário, somente. Mas bagunça aqui, não tem não. Só esses meninos que bagunçam tudo aí. Dá umas cinco horas aqui, é uma meninada danada correndo. Ninguém pode empatar, é uma “zoada” danada. Agora tá quieto, mas quando dão cinco horas pra seis horas, aqui enche de menino. Aqui no meu terreiro não. Aqui ninguém joga bola, não joga nada. Quando tem três, quatro moleques aqui sentados, eu boto tudo pra correr - não tem bagunça no meu terreiro. Mas, ali em cima, é bagunceiro que é danado, ali na frente. Quando a bola passa aqui, olha, que a bola aqui, eles jogavam muita bola, mas eu peguei de dar bronca, afastaram tudo. Se der, às vezes, a molecada daqui é fogo.
P/1 – E seu Apolônio, me conta uma coisa: quando vieram o asfalto, água, luz?
R – Olha, a luz aqui veio... A água aqui veio primeiro do que a luz. O finado Agrinaldo puxou água, que trabalhava na Semasa, aí puxou uma encanação até aqui. Ali, montou uma torneira [e] quem morava ali em cima vinha pegar aí. Depois veio a luz, Nico Grilo inaugurou a luz daqui, aí ficou iluminada toda a casa, mas nós queimávamos vela, viu? Nós amanhecíamos o dia com as listras de vela, da cera da vela. Mas hoje tem luz, tem água. Em toda casa, tem água aqui.
P/2 – Seu Apolônio, quem eram os moradores mais antigos, o senhor lembra?
R – Olha, aqui tem eu, o Quelé, o Gumercindo, o Luís, a velha Zabé, Antônio Bispo, os meninos do finado Vitor, Edith, só. Tem nove dos mais velhos. Só nove. Oito ou nove dos mais velhos, de quando eu cheguei.
P/2 – E vocês conversam bastante?
R – Conversamos. Nós conversamos. Nós temos muito conhecimento com eles. Gumercindo, Edith, Luís, Quelé, Zabé, Antônio Bispo, eu, os meninos do finado Vitor, tem outro mais, porque eu não lembro, eu só sei que são nove, que tem dos mais velhos.
P/1 – Seu Apolônio, conta umas histórias suas aqui em Capuava [de] quando o senhor era mais novo, se o senhor passeava [e] o que o senhor gostava de fazer por aqui.
R – Não, aqui eu nunca fui a um forró, nunca fui a um... Eu bebi muita cachaça, eu era um bebedor de cachaça danada. Mas, aqui, eu nunca fui a um forró de jeito nenhum. Tinha baladaio por aí, mas eu nunca fui.
P/1 – E qual é a história do senhor com a [sua] esposa? Como vocês se conheceram?
R – Olha, (risos) nós tirávamos água de um poço com 65 metros de fundura, e ela era garotinha... Eu sou mais velho do que ela, ela tem 76 e eu tô com 92. Então, ela bonitinha, ela era bonita - hoje ela é feia. (risos) Aí eu comecei a puxar água e ela [com] o olho bonito pra mim. Era bonitinha, galeguinha danada, cabelo rico - era rico esse pessoal dela, tudo rico. Aí, pra encurtar a história, eu falei de casamento pra ela, ela quis, aí peguemos [a] namorar. Eu ia para o galpão dela na roça, ela ficava olhando pelo... Abria a brecha da palha e ficava olhando com um olhinho azul. (risos) Aí eu ia pra fazenda deles, era fazendeiro mesmo o pai dela, tinha duas famílias, de Zefinha eram sete, dessa mulher minha, e da primeira mulher eram seis. Quando ele morreu, 30 vacas com bezerros cada herdeiro. Aí tinha um bancão da porta, eu chegava na porta, me sentava e ela passava. Sentava lá na ponta do bancão, muito saliente, sem vergonha, (risos) ia dando um pulinho, que quando eu me encostava, ia chegando com um metro, um metro e pouco, ela se levantava, ficava olhando aqui pela brecha da porta, mas nunca dei um beliscão nela. Que quando eu casei, eu tirei os atrasos, viu? (risos) Mas era braba que era danada. Antigamente, o rapaz namorava uma moça, mas se ela arrumasse outro, ele falava que não era cabrito pra mamar de dois, então eu me casei com essa. Tá com 48 anos. Nós casamos em 54, quantos anos?
P/1 – Cinquenta e oito.
R – Cinquenta e oito, né?
P/1 – É, cinquenta e oito.
R – Casei-me em 54 com ela. Ainda hoje nós estamos vivendo. Antigamente, tinha casamento, mas hoje em dia não tem mais não.
P/1 – Mas seu Apolônio, o senhor mudou com ela pra cá, como foi a mudança do senhor pra cá com ela? Ela veio junto, como foi isso?
R – Veio. Não, eu vim só a primeira vez, depois na segunda vez ela veio comigo. E então, aí eu peguei [de] viajar pra aqui mais ela, nós fomos até o Estado de São Paulo, Brasília. Ela nunca foi ao Paraná, mas o Estado de São Paulo, nós trabalhamos no Estado de São Paulo, plantamos muito algodão, muito arroz para o patrão. Então ela viajou comigo.
P/1 – E os filhos do senhor, onde eles nasceram? Tinha hospital aqui perto?
R – Os filhos? Se moram perto?
P/1 – Não. Onde os filhos do senhor nasceram? Tinha hospital por aqui, posto de saúde?
R – Nasceram... Uma é Pernambucana, essa que mora em Alagoas, o resto tudo é baiano. Morreram dois paranaenses, dois paulistas. Morreu um na Fazenda Ouro Branco... Morrem dois, um na Fazenda Ouro Branco e uma morreu em Paulo Afonso. E quatro estão vivos. Três estão vivos. Quatro.
P/1 – O senhor falou que trabalhou na Cofap aqui, como era o trabalho do senhor lá?
R – Na Cofap?
P/1 – É.
R – Era faxineiro. Trabalhei dois anos na Cofap, dois anos e um mês, aí me mandaram embora. Eles queriam me botar na fundição, mas eu tava com a pressão alta e não dava - e eu sem saber. Se eu tivesse ido pra fundição, eu já tinha morrido. Com a caloria do fogo, a pressão subia. Tinha me matado. Aí eu saí da Cofap, me deram os direitos. Eu fiquei [como] vendedor de leite, comecei a vender os doces, isso aqui era bem cheinho.
P/1 – O que o senhor vendia?
R – Tudo. Eu vendia café, açúcar, feijão, macarrão, arroz, óleo, sabão, café. Eu tinha estoque lá dentro.
P/1 – E quem vinha comprar sempre?
R – O pessoal me comprava. Os daqui me compravam tudo. Todo mês eu fazia compra. Eu tinha freezer aí. Mas acabou tudo, eu só tenho a vida e a saúde muito pouca.
P/2 – Seu Apolônio, e os bichinhos de estimação? Desde quando o senhor tem os passarinhos?
R – De estimação?
P/1 – Isso.
R – Eu tenho quatro de estimação.
P/1 – Mas desde quando? Faz tempo?
R – Faz tempo. Eu gosto muito de passarinho, então eu tinha dez gaiolas aqui de passarinho. Eu tenho cinco gaiolas com passarinho, somente. Mas eu gosto muito de criar as coisas. Vocês também não gostam não, de criar? (risos) Eu não tenho cachorro, nem um gato aqui, porque eu não tenho onde criar. Senão eu tinha um gato, um cachorro, eu tinha aí.
P/1 – Seu Apolônio, me conta uma coisa, onde o senhor comprava as coisas pra vendinha?
R – No mercado.
P/1 – Onde era esse mercado? Qual era?
R – Do Matia. Ali em cima. Ele vinha trazer num caminhão aqui. O Matia tá muito rico. O filho é vereador, tá candidatado agora pra vereador, já se candidatou pra deputado estadual. Tá milionário. É empresário o filho dele. Ele tá velho, mais a mãe. É um filho único, então ele toma conta de tudo. É mercadão o dele, é igual o Walmart.
P/1 – Como era o Primavera? Como era o Primavera antigamente?
R – Olha, o Primavera antigamente era uma porta só. Hoje tá grande, vai como daqui à avenida. É de um quarteirão a outro, de uma rua à outra. É mercadão o dele. O Gilberto, o vereador, filho dele, é tudo passado por ele. Vai morrer rico, não vai? Já tá rico.
P/1 – E quem ficava lá no Primavera? Quem trabalhava lá?
R – Era o Matia e o filho, e a mulher. Ele tinha uns dois empregados, o neguinho ainda hoje tá com ele, tem uns 30 anos [que] o neguinho [tá] com ele. E tinha umas duas empregadas, mas depois que ele aumentou o mercado... Depois, ele fez outro pra cá, aí fez o mercadão - é de um quarteirão a outro, é de uma rua à outra, como daqui pra avenida. Tá rico o Matia. E o Gilberto é o filho único dele, filho único.
P/1 – E essa história de ser dono de venda, os clientes, tem alguma história engraçada, alguma coisa que o senhor tenha vivenciado?
R – (risos) Olha, esse ponto eu não tenho nem o que contar, porque eu nunca... Eu sou um homem simples, sem vaidade, sem nada, bebi muita cachaça, muito forrozeiro, “muiezeiro”. Eu bebi muita cachaça, botei muitas coisas no mato por “mode” da cachaça. Em Paulo Afonso eu tava bem, eu trabalhei nove anos na hidrelétrica. Quando eles me mandaram embora, me dispensaram da firma, eu fiquei com uma casa boa, um terreno, uma bodega e um engenho de cana, em 74. O cruzeiro era cheio na minha mão, minha filha, mas eu endoideci pra vir pra aqui, tomei na jaca. Aqui eu não arrumei nada até hoje.
P/1 – E por que o senhor decidiu sair de lá e vir pra cá? O que o fez vir?
R – Cachaça que faz isso, eu bebia muita pinga. Tava meio embriagado, aí eu combinei com a velha (risos) [e] ela disse: “Vende. Pode vender”. Dentro de uma semana eu queimei tudo. Dei os passarinhos - toda vida eu gostei de passarinho -, dei a espingarda, o facão, cadeira, guarda-comida, dei tudo pra vir pra aqui. Tomei na encrenca. Eu tava bem em Paulo Afonso, menina. A feira era perto, eu tirava o engenho daqui e botava como daqui na avenida o engenho, quebrava cana até uma hora dessa. E aqui eu não tenho nada, só tenho a vida e essa velha, e o filho, somente. (risos)
P/1 – E os filhos do senhor, brincavam de que aqui? Do que eles gostavam de brincar?
R – Olha, aqui não brincavam com nada. Aqui não tinha moradia, não. Aqui, quando eu cheguei aqui, eram 40 barracos, o pessoal era pouco. Criaram-se aqui dentro meus filhos. São todos trabalhadores, mas farra não tinha. Quem começou foi esse “farrar” muito. Bebia uma pinga danada. Hoje não bebe, não fuma, não joga, não sai de casa, é uma moça dentro de casa. E a minha felicidade mais da mãe é ele, faz tudo dentro de casa, a limpar a casa, faz comida, café, tudo, dentro de casa. E outra, meus filhos nunca me deram trabalho não. Começou esse que saiu agora, esse começou aqui numa bebedeira mais uns amigos, mas deixou. Ele é doente, [então] deixou pra beber em casa, mais eu [e] a mãe. Não tem um abuso, não tem nada, nem eu abuso ele e nem a mãe. Então, a vida dele tá boa, uma vida boa danada. Tá melhor do que eu dentro de casa, tá mesmo. (risos) Uma vida boa, uma vida sossegada, se deita a hora que quer, se levanta a hora que quer. Levanto-me, o café já tá feito, já tá na garrafa, vai comprar o pão. A hora que ele quer comprar o pão, vai, e na hora que ele não quer: “Tu já foi comprar pão, Mané?”, “Não, eu vou já”. Toma banho primeiro pra poder ir. A vida boa.
P/1 – E seu Apolônio, o senhor já voltou lá pra Pernambuco, pra tua terra, pra visitar?
R – Já voltei.
P/1 – Como foi?
R – Foi bom. Foi legal.
P/1 – Mas conta pra gente, qual foi a primeira vez que o senhor voltou?
R – Eu passei 17 anos sem ir lá. Quando eu cheguei lá, [tava] tudo diferente. Os que eu deixei pobre, achei tudo rico. Caminhão, carro importado, casa boa, muito serviço, muito trabalho, chácara boa, casa boa, todo móvel novo. E foram criados, minha filha, com linha de fuso. Vocês não conhecem fuso, não - linha de algodão. As calças deles eram remendadas com linha de algodão; dava careta, não sabia de que loja vinha o pano. Passei uns 17 anos sem ir lá e me topei com um: “Bicho, tu tá por aqui, Apolônio?”. Até uns seis meses. Eu digo: “Eu não te conheço, não”. Disse: “Apolônio, eu te conheço em São Paulo, no estrangeiro. Onde tu estiver, eu te conheço. Eu vou dizer meu nome pra ver se você lembra”. Eu digo: “Fala”. Aí ele falou. Disse: “Eu sou o Zé Paulo”. Eu digo: “É nada”. O bicho tava num brinco danado, bem vestido, bem calçado, cabelo bem cortado, barba bem feita, uma pele fina danada. Ele era moreno, mas tava quase branco. Disse: “Vai lá à casa. Hoje não vá não, porque eu vou sair de casa hoje e não sei se venho hoje ou amanhã de manhã”. Eu digo: “Tá certo”, “Mas amanhã tu vai lá em casa”. Mainha era viva nesse tempo, morava lá. Aí amanheceu o dia, eu digo: “Ô mãe, eu vou à casa do Zé Paulo”. Disse: “Tu acerta?”. Eu digo: “Eu acerto, ele mora aí por detrás do Banco do Brasil”. Aí eu saí caçando a rua, encontrei a rua. Mas umas casas bonitas, danadas, bem feitas, eu digo: “Ele não mora aqui não, ele me enganou”. Aí eu enxerguei o número da casa dele, que ele deu, aí bati à porta, que saiu uma moreninha, uma tamborete de forró, carrancuda a danada, falei bom dia, eu digo: “O Zé tá aqui?”. Disse: “Não, ele foi à rua. Não, ele já apontou lá”. Lá pra dentro, foi pra cozinha. “Tu não entrou, não?”, “Tua mulher nunca me viu, rapaz. Tá pensando que eu sou algum ladrão ou algum assaltante, ela tem razão de não dar atenção”. Disse: “Entra pra dentro”. Mas entrei dentro da casa desse homem, olha, de tudo tinha: televisão, geladeira, sofá. Olha, de tudo tinha. Uma casa bem mobiliada a danada. Digo: “Tá rico mesmo, Zé”, “Tu, como tá em São Paulo?”. Digo: “Eu tô bem... Bem mal”. (risos) Ele disse: “Vamos à minha chácara”. Ele só sabia dirigir um carrinho de mão. Deu ré no carro, o carro novo, zerado, disse: “Entra aqui dentro”. Nós rodamos como daqui pra Santo André. Chegamos à chácara desse homem, tinha três Mercedes cheias de tomate, uma de banana. Toda fruta tinha: coco, cana, banana. Toda fruta tinha. Tomate tinha pra encrenca, tinham três “mercedão” cheios de tomate pra Pesqueira. Ele disse: “Vamos embora?”. Eu digo: “Vamos”, “Leva um cacho de banana desse pra tia”. Eu digo: “Zé, eu não gosto de banana muito, não”. Disse: “Leva esse daqui que tá começando amadurecer”. Aí ele cortou, tirou o cacho, botou dentro do carro, chegou a casa, parou o carro, me deu o cacho de banana, eu entrei, ele foi pra casa. Mas rico, tudo rico. Aqueles meninos que eu deixei pobres, estavam tudo bem de vida. O Pernambuco mudou muito, o Nordeste. É muito seco o Nordeste, naquele sertão, mas no agreste é bom. O agreste é que nem o sul. Hoje tá seco porque essa seca é geral, mas onde eu nasci e me criei é bom. Eu tô aqui com 37 anos, fui criado desse jeito.
P/1 – Seu Apolônio, me fala uma coisa, o que significa para o senhor morar aqui?
R – Eu nunca tinha pagado aluguel, minha filha. Aí eu fui pagar aluguel ao irmão aí em Capuava, aí do outro lado do rio. Eu não me dei pagando aluguel, aí comprei esse barraco aqui e me mudei pra aqui em 75, no mês de março eu me mudei pra aqui. Eu tô morando aqui e não tô arrependido, não. Tenho muita coisa aqui. Essa beira da avenida é uma cidade e entrando lá pra dentro é que tem coisa.
P/1 – E o que o senhor mais gosta daqui?
R – Eu gosto daqui mais... É porque aqui é sossegado, não tem bagunça. A bagunça aqui só é dos meninos. Ninguém briga aqui com os vizinhos, nada disso. Aqui é muito sossegada a morada. Eu gosto daqui só por isso, mas doido pra ir embora. Eu só não vou que “mode” essa velha, eu tenho dó de deixá-la. Porque nós estamos com 58 anos, que nós vivemos, nós nunca nos apartamos - só quando eu vou a Alagoas, que passo 30, 40 dias. Aí volto pra casa, a mesma coisa, mas nunca nos apartamos. Eu só não tô no Norte só por causa dela, se não eu a largava e já tinha ido, mas a amizade é fogo, o bem é demais. (risos)
P/1 – E seu Apolônio, qual foi a fase mais difícil do senhor aqui?
R – De quê?
P/1 – A fase, a coisa mais difícil para o senhor aqui nesses todos esses anos?
R – Olha, difícil pra mim, aqui tem muita coisa difícil, não tem? Porque trabalhar eu não trabalho mais, ninguém me quer nem pra apanhar lixo. E outra coisa, aqui tem muita coisa difícil. Eu só tô vivendo aqui porque sou aposentado, eu e Zefinha. Mas os filhos não me dão nada. Quando vêm aqui, comem a bala, o chiclete, comem o que tem na panela e vão embora, não trazem um quarto de café pra mim. Então aqui tudo é difícil pra mim.
P/1 – E qual foi o momento mais feliz do senhor aqui? O momento mais feliz?
R – Tá sendo esse. (risos) O momento feliz é esse. Tô vivo, contando a história e, então, indo pra frente. Mas cuidado na foicinha [morte], a foicinha tá por aí (risos).
P/1 – E seu Apolônio, se o senhor pudesse contar mais alguma história pra gente, alguma coisa que tenha marcado a tua vida? Conta pra gente.
R – Olha, a minha vida, a minha luta, ainda hoje eu luto pra viver. Então, quer dizer, que a luta é... Tem que lutar pra viver, né? Então, sem lutar, ninguém vive. Então quer dizer que eu tô feliz, muito mesmo. Eu tenho a velha, tenho os filhos, tenho os netos, os bisnetos, [então] tá bom demais. Tô vivo contando a história. Então, assim por diante.
P/1 – Então, seu Apolônio, em nome... Pode falar.
R – E você vai ficar velhinha também, e você também, e ele também. Vai ficar velha, cabelinho branco, cacetinho na mão. Não estão de cacete ainda não, né? (risos)
P/1 – Então, seu Apolônio, em nome do Museu da Pessoa e da Braskem, eu agradeço o senhor de ter tirado esse seu tempinho pra conversar com a gente.
R – Tá bom.
P/2 – Muito obrigada.
P/1 – Muito obrigada.
R – Nada. De nada, filha.
[Fim do depoimento]Recolher