Depoimento de Aílton Krenak
Entrevistado por Stela Tredice e Thiago Majolo
São Paulo, 23 de maio de 2006
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista número BIO_TM011
Revisado por Carolina Ruy e Camila Catani Ferraro
P/1 – Pra começar, eu queria que você dissesse pra gente o nome completo seu, o local e a data de nascimento.
R – Eu nasci no Vale do Rio Doce, num lugar que nós chamamos de Córrego do Itabirinha. É a região antiga das nossas famílias, né, da tribo Krenak. E o meu nome é Aílton Krenak, eu sou um camarada deste povo que viveu, durante muito tempo, na região do Rio Doce.
P/1 – Tá. Eu queria que você começasse...
P/2 – Faltou a data só...
P/1 – Ah, é! A data.
R – 29 de setembro de 1953.
P/1 – Tá bom.
R – Este ano estou fazendo 53 anos. É legal, assim. Meio século, né? Eu quero ver como é que vai ser um século. Depois um e meio.
P/1 – Perspectiva grande. Como é que você começou a se interessar por lutas ambientais, causas ambientais?
R – Quando eu era pequeno e vi, pela primeira vez, assim digamos, isso há quase 50 anos atrás, as carretas, aqueles caminhões diesel grandões entrando lá na nossa região de floresta e desmatando a última região de floresta do Rio Doce e levando aquelas toras impressionantes, assim, quase da altura desse ambiente que nós estamos aqui, aquelas toras de cedro, que precisava um caminhão para carregar uma peça de cada vez. E eu fiquei olhando aquela violência e eu ficava com uma vontade enorme de tombar aqueles caminhões e jogar eles dentro do rio. Eu acho que foi minha primeira reação, não assim, não compreensão, né, mas minha primeira reação instintiva mesmo, assim, de bichinho humano, contra a predação da natureza e contra a mudança do meu ambiente, né? Porque eu gostava do meu ambiente. Quando o meu ambiente... quando começaram a tirar os esteios do meu ambiente, a minha primeira reação foi de raiva contra os caminhões. Ficava pensando...
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Entrevistado por Stela Tredice e Thiago Majolo
São Paulo, 23 de maio de 2006
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista número BIO_TM011
Revisado por Carolina Ruy e Camila Catani Ferraro
P/1 – Pra começar, eu queria que você dissesse pra gente o nome completo seu, o local e a data de nascimento.
R – Eu nasci no Vale do Rio Doce, num lugar que nós chamamos de Córrego do Itabirinha. É a região antiga das nossas famílias, né, da tribo Krenak. E o meu nome é Aílton Krenak, eu sou um camarada deste povo que viveu, durante muito tempo, na região do Rio Doce.
P/1 – Tá. Eu queria que você começasse...
P/2 – Faltou a data só...
P/1 – Ah, é! A data.
R – 29 de setembro de 1953.
P/1 – Tá bom.
R – Este ano estou fazendo 53 anos. É legal, assim. Meio século, né? Eu quero ver como é que vai ser um século. Depois um e meio.
P/1 – Perspectiva grande. Como é que você começou a se interessar por lutas ambientais, causas ambientais?
R – Quando eu era pequeno e vi, pela primeira vez, assim digamos, isso há quase 50 anos atrás, as carretas, aqueles caminhões diesel grandões entrando lá na nossa região de floresta e desmatando a última região de floresta do Rio Doce e levando aquelas toras impressionantes, assim, quase da altura desse ambiente que nós estamos aqui, aquelas toras de cedro, que precisava um caminhão para carregar uma peça de cada vez. E eu fiquei olhando aquela violência e eu ficava com uma vontade enorme de tombar aqueles caminhões e jogar eles dentro do rio. Eu acho que foi minha primeira reação, não assim, não compreensão, né, mas minha primeira reação instintiva mesmo, assim, de bichinho humano, contra a predação da natureza e contra a mudança do meu ambiente, né? Porque eu gostava do meu ambiente. Quando o meu ambiente... quando começaram a tirar os esteios do meu ambiente, a minha primeira reação foi de raiva contra os caminhões. Ficava pensando em um jeito de sabotar aqueles caminhões.
P/1 – Já mais pra frente na sua vida, eu queria que você contasse como foi... um pouco do gesto que você teve na Assembléia Constituinte quando pintou o rosto de jenipapo. Conta um pouco esta história pra gente.
R – Bem, aí eu já estava um pouquinho mais, digamos, informado, né? Na minha infância, na minha juventude, eu experimentei, na verdade, foi a progressão daquela imagem do caminhão tirando as nossas árvores de cedro, né, de braúna, e tirando a floresta, tirando a mata. O que eu senti foi uma radicalização, uma progressão desse processo de desmontar a minha casa. Eu assisti desmontar o Rio Doce. Eu assisti à chegada da ferrovia, assisti à chegada das siderúrgicas, assisti a um lugar que antes era considerado, assim, uma das últimas regiões com mata nativa no Rio Doce se transformar no que eles chamavam de Vale do Aço. O Vale do Aço é onde o Brasil montou as suas siderúrgicas e fez, na verdade, todo o caminho da industrialização, modernização do país, né, com aquela transição ali no final da década de 40, 50, depois Juscelino, Vale do Rio Doce, a própria empresa, essa transnacional hoje, que ficam insistindo em colar na cabeça da gente de que ela é brasileira. Tem até uma campanha agora, bonitinha aí, que o governo está fazendo, "sou brasileiro" e tal, com as locomotivas da Vale do Rio Doce, não sei que brasileiros que são. Não são dos mesmos brasileiros que eu sou, não. Deve ser uma outra linhagem de brasileiros. E assisti a essa predação do nosso meio ambiente. Quando nós chegamos na Constituinte em 88, eu já estava assim, né, pela tampa. E vendo os representantes de uma Assembléia Nacional Constituinte que tinha sido convocada discutindo o destino, assim, dos últimos redutos naturais do nosso país, que são os territórios indígenas, onde ainda tem mata, onde ainda tem floresta, onde tem biodiversidade, onde tem gente vivendo em conexão estreita com a natureza, com seu habitat. Talvez sejam os últimos lugares onde ainda tem sentido a expressão habitat pra seres humanos, né? Porque as pessoas que vivem na cidade, eles podem chamar esses lugares de habitat, mas é um artifício absoluto, né? Como pode ser habitat um lugar que te asfixia, te amedronta, te encurrala? Isso não é habitat. Habitat é o lugar onde o ser humano experimenta a expansão e o seu crescimento em contato com a natureza, com o vento, com o rio, com a montanha, com a floresta, com os pássaros, com os bichos todos, no ciclo da natureza. Aí existe uma conexão entre estar vivo e o lugar onde você está. E quando eu vi esta ameaça de ocupar esses últimos lugares com mineração, com garimpo, com madeireira, com tudo, a minha reação foi... eu falei: "Não, esses caras... eu vou brigar com eles." E na nossa cultura tem um gesto, tem um rito, que é o de pintar o rosto ou pintar todo o corpo, na verdade, com uma tinta de jenipapo, uma tintura de uma planta, pra gente declarar que a gente está de luto. E a minha atitude de pintar meu rosto era o máximo que eu podia fazer ali dentro daquele ambiente. Eu não podia me pintar todo. Inclusive porque era um lugar onde você só podia entrar de terno. Eu não sabia também, porque eu pensei que eu ia entrar lá de qualquer jeito. Quando eu conversei com os meus amigos que... na época, inclusive eu fui ao gabinete do Fábio. O Fábio era um constituinte, tinha um mandato constituinte. Tinham outros, o Marcio Santilli, tinham os outros colegas meus, eu não sei se eu posso ficar mencionando o nome das pessoas, assim, no tema que a gente está falando. Mas eu fui procurar esses meus amigos e eles me disseram: "Não, cara. Você não pode entrar lá na plenária. Lá dentro você não pode entrar, não. Lá entram os parlamentares, os constituintes. Ou então gente daqui da casa, os jornalistas. Você vai ter que ter uma credencial pra você entrar lá." E quando eu contei pra eles que eu ia fazer um pronunciamento e que eu pensava em aprontar um protesto, eles me disseram: "Não, não faça isso lá, não. Porque a segurança é muito estreita. Pega muito em cima de quem está lá dentro." Mas eu consegui, talvez até com a ajuda involuntária desses meus amigos no gabinete deles, pegar um paletó de um, pegar a gravata do outro, e me fantasiei de deputado pra poder entrar lá no plenário e pra ter a oportunidade, inclusive, de falar no púlpito, né? Eu falei na mesa. O presidente da casa, naquele dia, tinha no programa a oportunidade de atender a uma daquelas assinaturas, aquelas campanhas da constituinte; houve uma campanha popular. Então tinha os deputados eleitos e tinha os representantes de movimentos sociais, que eram nomeados por mobilização popular. Então houve uma mobilização no país inteiro, nós colhemos 115 mil assinaturas em defesa da demarcação desses territórios tradicionais indígenas e da proteção desses lugares. E eu fui o camarada incumbido de ir lá verbalizar esse movimento, expressar a opinião deste movimento e sensibilizar os constituintes, porque eles votavam, eu não votava. Eu não podia propor matéria, né? Eu podia ir lá defender uma idéia. E eu botei o paletó, peguei uma pequena vasilha onde... um potinho, como esses potes que você pode botar um creme, pra botar a tintura de jenipapo e botei ela no bolso do paletó. E entrei com ela, a minha pequena bomba escondida. Quando o presidente da mesa me deu a palavra e disse que... anunciou, né, aquela formalidade toda, que a sociedade brasileira se mobilizou em torno desta temática e foram levantadas 115 mil assinaturas no país inteiro se manifestando em relação ao tema, e que o representante desta emenda, né, que ia se pronunciar era o Aílton Krenak, e me deram o microfone. Os deputados estavam na maior algazarra. Parecia um mercado árabe, o ambiente do Congresso. E eu pensei, né, todo mundo deve ter pensado: "Ninguém vai escutar este camarada”.Aí eu parei lá na frente do microfone e eu olhei a cena, rapaz. Porque eles parecem crianças, né? Aquele monte de deputado trocando trem um com outro, caneta, enfiando coisa de baixo da mesa, aquela coisa. Eu fiquei olhando, eu falei: "Só se eu der uma pedrada nesses caras pra eles me olharem. Porque eu não sou ninguém na cabeça deles, né? Eles não vão me ouvir." Mas aconteceu uma coisa curiosa, porque eu... o presidente disse que... o parlamentar que estava dirigindo a mesa disse: "Pode falar." Na hora que ele me disse: "Pode falar," eu disse: "Bom dia," e passei, a hora que eles... "Bom dia," e passei uma faixa de tinta preta no rosto, atravessando o rosto assim. Aí, eu acho que o primeiro que viu, falou: "O que que aquele doido está fazendo?" Dali a pouco estava todo mundo em pé, gente, me olhando. E se alvoroçaram e andaram em direção ao púlpito onde eu estava, andaram em direção. Aí começou uma onda e eu continuei falando e pintando o meu rosto e aí começaram a chegar fotógrafo, os cinegrafistas, os caras que estavam prestando atenção nos deputados abandonaram os deputados e vieram me filmar, me fotografar. Virou a maior briga pra ver quem conseguia trepar no palanque pra me fotografar mais de perto. Foi uma confusão enorme. Eu não sei se os seguranças também se confundiram. E aí o povo que estava na ante-sala entraram com os seguranças... Eu acho que foi uma invasão da plenária. Foi mesmo. Porque eu saí de lá assim num ambiente de invasão. E se vocês perguntarem: "Aílton, cadê o texto que você falou?" Eu vou te dizer que não teve texto. Eles não ouviram um texto, na verdade. Eu disse pra eles: "Bom dia,” e falei com eles: "Os senhores estão votando uma matéria que, se for encaminhada dessa maneira, ela significa uma ameaça para o meu povo. Um povo que vive em casas de palha, em cabanas, e que não ameaça, de maneira nenhuma, o crescimento, o desenvolvimento do Brasil. Se vocês fizerem isso, sangue do meu povo vai cair na sua cabeça." Eu joguei uma maldição neles. É uma maldição, né? "O sangue do meu povo vai cair na sua cabeça." Foi um alvoroço que vocês não imaginam. Vocês acreditam que 430... e foi a matéria pra votação, eu falei e a matéria foi pra votação. 430 deputados votaram “sim.” E os outros foram todos abstenção. Ninguém votou contra. Nem os caras mais, assim, tarados contra a floresta, contra a Amazônia, contra os índios tiveram coragem de votar contra. Os caras se abstiveram, é isso que fala? Falaram: "Não, não vou votar, não. Deixa este assunto pra lá." E quem entendeu, votou a favor. Então é esse o capítulo que tem na constituição, a partir daquele artigo 231, a cabeça do artigo que trata dos direitos dos índios. Ele foi aprovado e a legislação que a gente tem hoje, que implementa a constituição com relação aos índios, ela é resultado dessa mobilização de muita gente.
P/2 – Depois disso, a gente vai pra 92. E eu queria saber o seu envolvimento, se você participou da Eco-92, o que você fez, qual foi seu envolvimento.
R – Bom, o nosso envolvimento, o meu envolvimento, esse nosso que eu chamo de nosso coletivo, é que nós iniciamos ele antes. Nós começamos ele, na verdade, em 89, 90, a gente já estava mobilizado em torno da conferência do Rio. Nós fizemos a campanha para conferência, em primeiro lugar, vir pro Brasil, né? Porque até 91 a conferência não estava ainda carimbada que ia ser no Brasil. A Rio-92 só foi confirmada pra ser no Brasil mesmo no final do ano de 91, a gente já estava quase em 92. Tinha uma discussão se o Brasil tinha infra-estrutura, segurança para os chefes de estado, se tinha capacidade pra receber uma conferência daquela importância, né? E houve negociações o tempo inteiro, inclusive porque a gente estava saindo de um período de governo muito perturbado e a gente estava entrando em um outro ainda mais esquisito ainda. A gente estava entrando no governo Collor, né? Então, nós saindo do governo Sarney e entrando no governo Collor. O governo Sarney, que tinha expulsado uma missão francesa que estava no Brasil sobrevoando a Amazônia com um ultraleve, um dirigível. Era um convênio internacional que ensaiava algumas cooperações, assim, nessa coisa de mudanças climáticas, de monitoramento de florestas tropicais, eram uns ensaios antes da conferência. E teve uma baixaria aqui no Brasil, o governo brasileiro prendeu cientistas, expulsou os cientistas dizendo que eles eram espiões. Então, é lógico, os países doadores, os países contribuintes que iam bancar, com dinheiro, a montagem da conferência no Brasil, eles queriam saber se o governo brasileiro tinha sensibilidade para o tema e se tinha interesse em acolher um debate sobre o destino do planeta, né? E nessas mobilizações que nós fizemos, nós mobilizamos comunidades indígenas, ribeirinhas, os seringueiros. O Chico Mendes ainda estava vivo, gente, quando a gente estava em torno desse tema de nos preparar pra receber aqui no Brasil a conferência, porque a gente achava que trazer a conferência pra cá para o Brasil, só isso já era um show de bola, entendeu? A gente pensava assim, a gente nem estava pensando no conteúdo. A gente só achava o seguinte: que um continente, né, e um país que tem a oportunidade de montar a tenda de uma conferência mundial sobre... para o meio ambiente, só isso a gente já achava que valia a pena. Depois, quando nós, no debate político, a gente ia conversar com o Itamaraty, conversar com os diplomatas brasileiros. O Marcos Terena, eu e o Marcos Terena, o Raoni, muitas outras lideranças indígenas, nos engajamos desse processo a tal ponto que teve gente nossa que foi pra Nova York antes da conferência. Foi pra conversar, fazer lobby, conversar com organizações ambientalistas e conversar com gente da ONU mesmo, com o secretariado da ONU, puxando a conferência pra cá. Nós mobilizamos os índios da América Latina em torno disso. No Equador, aquela época, tinha uma referência importante pra América Latina, que era uma espécie, assim, de conselho dos povos indígenas das Américas. E essa organização indígena, a gente fez um pacto que se a conferência fosse no Brasil, viriam os índios do México, dos Estados Unidos, da América Latina inteira, como identidades, como identidades regionais, que a gente ia fazer uma presença bacana na conferência. E foi interessante, porque na conferência do Rio realmente tiveram aqui os índios das Américas todas. Vieram os índios do Canadá, dos Estados Unidos, do México, da América Latina toda, Peru...
P/2 – Mas quais os resultados?
R – ...E, nós mobilizamos, nós mobilizamos comunidades florestais, comunidades indígenas no Brasil e na América Latina em torno da realização da conferência. Aqui eu estou falando da pré-conferência, digamos assim, né, antes. E dentro da conferência, quando a gente viu o ambiente da conferência, a gente se surpreendeu, né, que a gente viu que o ambiente da conferência era um ambiente onde a nossa voz, a nossa participação era mediada pelos governos. E houve inclusive uma ação nossa, assim, a gente teve que atuar muito ativamente pra gente conseguir se pronunciar nos espaços formais da conferência, porque o lugar do povo eram as paralelas; mas nós nos juntamos com o Greenpeace, nos juntamos com os Amigos da Terra, nos juntamos com uma galera muito doida, que veio de tudo quanto é canto do mundo, da Índia, e aí, com essa gente, nós estouramos a corda. Eu acho que a experiência, a minha experiência antiga de ficar atravessando os limites, de entrar no Congresso e pintar a cara, ela me animava também a entrar no espaço da Conferência do Rio e a gente se posicionar, né? E nós nos posicionamos a ponto de o Marcos Terena ter sido o porta-voz da Carta da Terra, um documento que foi lido no plenário da Conferência, na Conferência do Rio de Janeiro, na Eco-92. Foi lido um documento que era um documento gerado pela opinião de índios, de ambientalistas, de uma espécie de coalizão. Era uma coalizão global se posicionando com relação aos governos, com relação à prioridade da Eco-92, a importância de ter uma convenção que fosse real, que levasse em conta as prioridades que o planeta estava apontando. E a primeira delas, que a gente agarrou com muito empenho, foi a que tomava a questão da urgência de um programa para as florestas tropicais. E nós conseguimos, nesse evento, o compromisso do Primeiro Ministro do governo da Alemanha, eu acho que era... não me lembro se o sobrenome dele era Brand, Brant... o chanceler. Foi o chanceler. Esse chanceler, ele disse: "Os países desenvolvidos têm a obrigação de contribuir para um fundo de proteção das florestas tropicais e criar mecanismos de transferência desses recursos para os países que estão na faixa do planeta onde as florestas tropicais ainda resistem. E devem também criar mecanismos de compensação para aqueles lugares onde eles já perderam a floresta e tem ainda gente precisando de trabalho, e que podem se engajar no serviço de recuperação de mata ciliar, de reflorestamento." Ele não entrou, obviamente, no detalhe do que ia ser feito, mas foi um anúncio. E ele fez esse anúncio, foi uma coisa muito interessante, porque ele fez esse anúncio, alguns outros países europeus aderiram numa boa, de cara a idéia e, em 95, este programa já estava em pleno desenvolvimento. Aquele programa pra florestas tropicais, é o programa que o Banco Mundial depois integrou, né? E depois tem aquele... tem GTZ, tem vários outros programas coordenados com essa idéia de manter fundos pra pesquisa, pra desenvolvimento florestal, pra monitoramento e pra ação mesmo com relação à floresta tropical. Eu acho que esse foi o efeito mais imediato para as comunidades, assim, de interesse, como a minha comunidade Krenak e outras comunidades indígenas. Eu acho que esse foi o resultado mais, digamos assim, imediato da Conferência do Rio, que foi na mesma década de 90. E depois, no resto da década de 90, a gente começou a assistir muito retrocesso, muita marcha-ré com relação aos compromissos da Conferência, sendo que eu acho que o mais grave, e que persiste até hoje, foi o fato de os Estados Unidos liderar um movimento contra o Protocolo de Kyoto, que estabelece metas com relação à emissão de veneno na atmosfera e os outros aspectos que envolvem mudanças climáticas: redução dessas tecnologias agressivas... e eu acho que muitos outros aspectos da Convenção da Biodiversidade, que ainda precisam ser implementados, eles dependem mais dos governos hoje. E dependem pouco da mobilização das pessoas. Eu senti isso agora, na COP 8, em Curitiba, né? Esta 8ª Conferência das Partes pra implementar a convenção, nós, de novo, juntamos tudo mundo, foram os índios das Américas juntos. Vieram até os Navajos pra trazer fazer uma pressãozinha americana em cima dos delegados do norte. Nós temos um fórum internacional chamado Indian Treat Council, é o Conselho dos Tratados Indígenas. Este Conselho dos Tratados Indígenas, ele é o fórum mais efetivo, mais atuante com relação aos convênios internacionais; sejam os convênios da OIT, os convênios de clima, de florestas, eles são os caras mais ativos. No acompanhamento da agenda lá em Genebra, nas sessões de diferentes comissões da ONU, eles são muito atuantes. Tem gente que já se especializou em convênios internacionais, tem indígenas que são lawyers, que são advogados, não é isso? Especialistas em direito internacional e que eu não sei a paciência que eles têm, porque eu não teria paciência pra isso, mas eles passam três meses por ano em Genebra. Agora no mês de junho, julho... junho, julho e agosto, eles estão em Genebra. E nos últimos 20 anos, nós conseguimos comprometer a ONU com a criação de um programa que, no mês de junho, julho e agosto, recebe índios do mundo inteiro pra um programa de bolsas, que eles permanecem em Genebra acompanhando as diferentes temáticas que eles... as suas comunidades, as suas organizações de base elegem como prioridade pra estes camaradas. Às vezes vai um rapaz de 19 anos, 20 anos, que só sabe falar a língua da tribo dele, e eu acho legal por isso, porque recebe um camarada que só se comunica na língua da tribo dele ou do país de origem dele, e ele chega lá em Genebra, fica três meses lá com a bolsa de pesquisa, né, vive legalzinho, fica em um alojamento de bolsistas, tem transporte, tem uma grana pra comer e aprender as coisas, e volta para o seu país de origem depois com uma cápsula de idéias implantadas na cabecinha pra ele, se quiser, atuar, né? E nós estamos sempre trabalhando com este tema, em uma perspectiva de rede, articulando não só índios do Brasil, mas comunidades florestais que têm o mesmo interesse que nós, que sofrem as mesmas ameaças que nós no mundo inteiro, né?
P/2 – Aílton, só voltando um pouquinho ainda pra Rio-92, um dos principais resultados foi a Convenção da Biodiversidade, né?
R – Sim.
P/2 – Qual é a sua opinião em relação a esta convenção no âmbito nacional? Quais são as conseqüências, os desdobramentos? Como é que você vê esta convenção?
R – Eu vejo essa convenção como uma coisa muito, assim, bacana. Eu vejo ela como um arco-íris no céu. Eu tenho a maior reverência pelo fato de a gente ter conseguido, no meio de tanto barulho, ter extraído um compromisso que, se não engaja todo mundo, pelo menos engaja os que querem e cria uma espécie de roteiro que pode demorar dez anos, 20 anos, 30 anos, pode demorar, por exemplo, como aquela Convenção 169. Não sei se vocês conhecem assim, de nome, Convenção 169 da OIT. Essa convenção, gente, ela foi feita em 1957, e ela foi proposta para proteger populações que vivem em região de fronteira. Obviamente que eles não estavam pensando nos índios. Eles estavam pensando, naquela época, nos conflitos lá do Oriente Médio, o norte da África, o Oriente Médio. Porque a gente estava saindo da Segunda Guerra Mundial e o mundo estava meio traumatizado, né? Então este convênio era um convênio pra tratar sobre trânsito de populações, sobre o movimento de gente, muita gente, andando em uma fronteira.
P/2 – Um convênio da ONU.
R – É. E hoje é um dos instrumentos mais atuantes e efetivos pra proteger populações tribais: pra proteger os índios da Amazônia que vivem na fronteira com a Colômbia, com o Peru, pra proteger os índios do Canadá que vivem na fronteira com os Estados Unidos, porque senão uma tribo que vive nos Estados Unidos e no Canadá não ia poder visitar a outra ou, pra visitar a outra, ia ter que passar por todos os constrangimentos que um estrangeiro passa. Porque que um índio Mohawk, ou um índio Kree, que vive no norte dos Estados Unidos, tem que ter um passaporte pra ir ver a mãe dele do lado de lá do rio? Ela só mora do outro lado do rio. Quem inventou a fronteira do Canadá com os Estados Unidos foi algum tarado que não perguntou a opinião dos nativos sobre isso. Da mesma maneira que os guaranis, que vivem no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Mato Grosso do Sul, Paraná, São Paulo, um guarani não pode pedir pra sair daqui de Itanhaém, pedir um passaporte pra visitar os parentes dele que estejam no Departamento do Beni, lá na Bolívia, ou em qualquer outro lugar da Argentina. E a gente tinha o constrangimento de não poder visitar nossas famílias, nossos parentes tribais, porque a gente estava atravessando a fronteira nacional. E muitas outras relações que têm a ver com essa coisa de trânsito entre fronteira, os governos nacionais, as políticas desses governos nacionais, os direitos humanos estão afetos a isso, o direito à língua, sabe, o direito ao idioma... que as pessoas que vivem hoje, plasmadas, dentro de uma cultura, assim, que chapa todo mundo, eles não percebem a importância da língua, porque fala: "Não, todo mundo fala inglês. Todo mundo fala uma língua só." Já se acostumou com essa língua do computador, da Internet. Mas as línguas, elas... a diversidade de línguas, a diversidade lingüística, ela é tão importante quanto o tanto de sapo e perereca que tem em uma lagoa, entendeu? Ela é tão importante quanto a floresta, quanto a diversidade, a biodiversidade. Porque é a diversidade dos humanos que se apercebe da diversidade do planeta. Se nós formos todos chapados, clonados, nós não precisamos de diversidade do planeta, porque nós, o nosso chip, já vai ser um chip monocórdio. Ele vai ser um samba de uma nota só. Então, se o nosso chip humano é um samba de uma nota só, o planeta também pode ir pra o beleléu. Não precisa. O planeta pode ser chapado. Agora, se nós estamos de alguma maneira vinculados a uma memória de uma humanidade, e de uma humanidade que se projeta, né, no sentido passado, presente, futuro, nós queremos ter alguma herança. No período, digamos assim, mais moderno da história humana, foram inventados museus. Os museus, de certa maneira, eles representavam, eles expressavam o desejo, a vontade das diversidades das culturas, dos povos, de reter alguma coisa. Hoje os museus não têm mais importância. Você percebem como que os museus foram engolidos, né? Eu falei Idade Moderna porque eu considero que a gente já, nós já... os pós-modernos jogaram tudo no lixo, né? E os museus foram embora com isso. Eu tinha feito aquele comentário sobre um acervo que eu visitei dos botocudos, um museu que foi construído no século XIX... XVIII, XIX, na Rússia. À época, aquele museu era um templo, assim, de conhecimento da humanidade. Pedro, o Grande, o imperador russo que andava o mundo inteiro, que mandava os viajantes ir no mundo inteiro coletar coisas, buscar coisas e montar aquela coisa fantástica, ele teve vontade de gastar grana, construindo aqueles departamentos, aquelas coisas todas, reproduzindo aldeias inteiras. É lindo o lugar. Só que ele já está no passado. Parece que você está em um museu de cera. Você chega naquele lugar, assim, ele não dialoga com o sentido da ciência, que dinâmico, que é vivo. Ele fica lá... você chega, você vê uma aldeia chinesa. Você vê uma aldeia amazônica. Eles conseguiram reproduzir ambientes de uma aldeia amazônica, né? Com cara lá, com tudo. Só que hoje, um menino que está na escola, um menino de seis anos, ele vai olhar aquele museu e ele vai falar: "Não dá." Entendeu? "Isto é parque dos dinossauros." Porque não dialoga com a velocidade com que um menino hoje, que está no ensino fundamental, percebe a história, percebe o fenômeno da cultura. E esse menininho, se não tomar cuidado, esse menininho, ele vai aprender que o mundo não precisa de línguas. Que basta o Windows. Se ele souber a linguagem do Windows, tá bom. Bom, a linguagem do Windows está boa pra robô. Pra seres humanos precisa de muito, muito, muito, muito mais outras coisas. E pra seres humanos precisa biodiversidade. E é por isso que eu acho que esta Convenção da Biodiversidade, se a gente, sem desrespeitar nenhuma tradição, se a gente fosse levar em consideração as emergências, esta Convenção da Biodiversidade, ela é um capítulo da bíblia do futuro. Da mesma maneira que a humanidade reverenciou um texto sagrado, a bíblia no passado, nos últimos, sei lá... Cinco mil anos, eu espero que nos próximos cinco mil anos daqui pra frente, a gente crie conhecimento, sensibilidade, cultura, pras nossas crianças reverenciarem um texto que diz assim, que você não pode extinguir um microorganismo, um ser vivo, porque se você extinguir aquele microorganismo, aquela bactéria, se você eliminar ela, aquela célula, se você acabar com ela, você está acabando com a beleza, com a riqueza e com a diversidade do planeta. Este é um capítulo da minha bíblia do futuro. Na minha bíblia do futuro, não vai estar assim: "Amarás uns aos outros, não rouba, não pega a mulher do outro”.Na minha bíblia do futuro vai estar assim: "Não anula, não extingue nenhum segmento desse DNA aqui, que forma a cadeia da biodiversidade, porque senão você está pecando." Você está pecando contra a vida, contra você. Não é contra deus. E minha esperança é que esses passos que a gente deu, eles sejam pequenos passos que ainda vão ser acompanhados de mais conhecimento, de mais afinidade dos humanos com a nossa origem, porque senão o mundo pode virar um laboratório, o mundo pode virar uma nave em movimento no cosmos, este planeta como nós conhecemos, mas os camaradas que vão habitar ele, não vão ser mais... não serão mais os humanos. Pelo menos não esses antigos humanos que a gente aprendeu a amar, cheirar eles, conhecer eles pelas suas manias, pelas suas práticas, pelo seu jeito, pelas suas paixões, pelas suas visões. Vão ser outros, vão ser uns camaradas mais parecidos com uma nave espacial, com habitantes de estações espaciais. Mas os antigos humanos, como nós aprendemos a gostar deles, eles não terão lugar em um mundo onde a diversidade acabou, né? Onde acabaram as línguas, acabaram os rios, as florestas, as montanhas.
P/2 – E, Aílton, qual que você acha... quais são as perspectivas, os desafios do Brasil, pensando na preservação e no uso sustentável dos nossos recursos? Como que você vê esta perspectiva do Brasil?
R – Eu vejo com muita expectativa, no sentido bom. Porque, por alguma razão, nós ficamos... Eu acho que, no passado recente, talvez alguns de nós... vocês são novinhos, o Thiago então, não sabe nem o que foi a Constituinte de 88, só lendo... mas o pessoal mais velho tinha um ressentimento que era o seguinte: que o Brasil era um país que era visto pelos outros como se a gente fosse uma selva. Tinha um folclore de que, se você chegasse no Rio de Janeiro, um jacaré te comia, né? Os índios te apanhavam. Então, esse tributo que nós pagamos por essa desinformação dos outros com relação a nós, na verdade ele foi muito bom. Porque enquanto eles tinham essa visão de caricatura da gente, nós ficamos aqui com uma das maiores reservas do planeta, onde o progresso, esse progresso agressivo e violento, ainda não tinha botado os pés. Só agora, no final do século XX, que a gente começou a ser devassado por sondas e novas tecnologias que podem mesmo, em um curto espaço de tempo, acabar com esse tesouro, né? Eu acho que, do ponto de vista físico mesmo, a floresta que nós temos, que é a maior extensão de floresta tropical do planeta – eu não estou fazendo nenhuma bravata. É verdade. Você pode pegar os dados da Nasa, de tudo – a maior reserva de floresta tropical do planeta, “naturalzona”, ela está aqui, coincidindo com as fronteiras nacionais do Brasil. Então nós temos uma responsabilidade compartilhada com os outros povos que é o de cuidar desse imenso jardim, gente. É um jardim maravilhoso, né? Ele tem o sentido de ser jardim, por causa da diversidade e beleza, e ele tem o sentido de ser um tesouro por causa da riqueza que ele expressa. Eu às vezes fico imaginando que, no futuro, vamos imaginar que no século XXII e por aí afora, essas fronteiras nacionais já tenham sido totalmente banidas, a gente vai estar num ambiente onde consórcios e cooperações muito pluralistas entre povos de diferentes lugares do mundo vão fazer gestão territorial, gestão de recursos, mas não mais como geopolítica. Vai deixar de ser uma coisa... você tomar conta de um lugar vai deixar de ser estratégico pra você dominar os outros e vai passar a ser estratégico para o global, entendeu? É mais ou menos assim, o seu coração ou o seu fígado funcionar não é estratégico pro estômago. É fundamental pra você ficar vivo. A parábola que eu estou contando é assim: um dia, preservar, manter a biodiversidade, estabelecer práticas de uso da biodiversidade e da sua manutenção vai deixar de ser estratégico para o Brasil, para os Estados Unidos, ou pra qualquer um cabeçudo, e vai passar a ser vital para a humanidade. Digamos que hoje já é vital, mas que a consciência das pessoas ainda não alcança essa prioridade. Então, como nós ainda temos muitas mazelas, isso vira um luxo. Proteger a biodiversidade em um planeta onde você tem milhões de pessoas morrendo de fome, onde você tem a África... daqui a pouco vai ter gente, assim, cozinhando com a canela do outro. Você vai pegar a canela, o osso seco da canela do outro pra botar fogo, porque eles já acabaram com a capoeira deles, acabaram com a savana, acabaram com vegetação toda – a não ser o Congo e, se eu não me engano, Gana... não, Gana também não, porque Gana não tem floresta.... Se não fosse o Togo, uma faxinha só assim da África Equatorial, não é isso? É que sobrou floresta. O resto foi tudo pelado. Na Rússia, aqueles antigos países que formavam aquela parte imensa da Rússia, a Rússia acabou com a floresta deles. Eles só têm a taiga, né? Aquele lugar de gelo que só os mongóis, muito treinadinhos, é que conseguem viver lá no meio dela, e mesmo assim, se puder, eles vão tirar ela pra fazer palito, né? O Japão acabou com a sua floresta nativa. A China está indo em um processo cada vez mais brutal de incorporar essa coisa do capitalismo, de fabricar tudo, de destruir a floresta deles. Então, me preocupa que a gente não possa priorizar a proteção das áreas naturais. Me preocupa que a gente não possa priorizar, por exemplo, as águas doces, a floresta e as espécies vivas que ainda podemos preservar, né? Porque se a gente continuar no passo que nós estamos, a gente vai perder muita riqueza, muita beleza que os seres humanos podiam experimentar de conviver no sentido de qualidade da vida, de beleza, né? Porque eu não penso na diversidade dos recursos do planeta como apropriação material desses recursos. Eu penso na diversidade dos recursos do planeta como enriquecimento dos seres humanos, como qualidade de vida para os seres humanos. Se as biotecnologias puderem nos botar do outro lado do rio, na outra margem do rio, onde a nossa subsistência possa ser viabilizada com tecnologias brandas, com práticas que não destroem a natureza, o nosso desenvolvimento seria outro, né?
P/2 – Aílton, pra gente encerrar, que lição você vem tirando da sua carreira nesta questão, nessa luta ambiental?
R – A lição que eu aprendo é a lição da vida, né? Eu tenho um contato com, sei lá, com visões e com experiências transcendentes que poderia ser identificado como ritual, valores que são ligados à religiosidade, à tradição. E nesse ambiente é que eu sou compensado, digamos assim. A minha gratidão, o meu presente, o que eu ganho de bem com isso, ele está menos ligado com as realidades visíveis e mais ligado com a subjetividade mesmo, né? Eu acho que eu ganho um presente que não se limita ao que eu posso ter hoje, ao que eu posso deixar para os meus filhos em um lugar. Eu ganho uma coisa que me transcende também.
P/2 – E o que você acha de ter participado desse projeto de memória?
R – Eu achei muito legal, eu fiquei... agradeço a vocês a gentileza de me incluir entre as pessoas que tinham alguma coisa a dizer. Como falei com vocês, no início da história, receber a Convenção da Biodiversidade, sediar a Conferência do Rio, a Eco-92, pra nós já era tudo o que a gente queria. Influenciar na conferência e integrar ela, e atuar depois na implementação dela já é mais do que a gente esperava. E ter uma história pra contar sobre essa conferência e vocês quererem ouvir é o maior show. Eu acho legal pra caramba.
P/2 – Muito obrigada, Aílton. Um prazer também.
R – Legal.
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