Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Antônio Oliveira Mello
Entrevistado por Márcia Ruiz e Luiz Gustavo Lima
Patos de Minas, 28/06/2017
Realização Museu da Pessoa
KRP_HV29_ Antônio Oliveira Mello
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Vai ser um bate-papo, professor, a gente vai perguntar as coisas da sua vida, história de Paracatu, um pouquinho da sua obra, é mais um bate-papo, tá? O senhor não precisa se preocupar com a câmera, pode olhar pra gente.
R – Eu tô preocupado só com o meu bolso.
P/1 – Professor, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Eu queria agradecer, em nome do Museu da Pessoa e da Kinross, a sua participação, o senhor ter aberto a sua casa pra nos receber. E eu queria que o senhor falasse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Antônio de Oliveira Mello, meu Mello com dois Ls, eu gosto de acentuar isso, porque eu sei que em Paracatu (MG) há vários e aqui em Patos [de Minas, MG] mesmo eu fui confundido na prefeitura porque eu meu Mello era com um L só e tinha um Antônio de Oliveira Melo com um L só, aí eu tive que dar o grito.
P/1 – E a data de nascimento?
R – Vinte e dois de abril de 1937, 80 anos bem feitos.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Itamar de Oliveira Mello, Adalgiza Jordão de Oliveira Mello.
P/1 – E qual era a atividade deles, professor?
R – Meu pai, primeiro foi na roça. Ele nasceu na Capoeira Grande (MG), hoje naquela região do Mundo Novo. E foi criado ali até a morte do pai dele, em 1929. Em 1929, foi caçar a vida, porque ele ficou órfão de mãe aos três anos de idade, em 1906, ele era de 1903. Em 1906, a mãe dele veio a falecer e ele foi criado pela irmã mais velha. E meu pai ficou lá com o meu avô nesse período, com a morte do meu avô, ele era rapaz de 26 anos, ele se mudou pra cidade e foi ter sua vida independente. E nessa vida independente dele, ele se dedicou ao comércio de venda. Não é comércio como se fala hoje, não. À venda. Vender. Passou a ter uma venda, onde se comprava de tudo, se vendia de tudo, que não fosse tecido, nem remédio, tudo de alimentação.
P/1 – E os seus avós por parte de pai e por parte de mãe?
R – Por parte de pai, eu não conheci nenhum. Minha avó, nem ele conheceu. Minha avó era da família Sá Guimarães e era tia do meu pai. Como é a história? Espera aí, meu filho, deixe-me pensar isso aqui um pouco. Aquilo lá é uma confusão... Minha bisavó é bisavó de minha mãe, eu tenho essa história. Porque a mãe do meu pai, a mãe do meu avô materno e a mãe de minha avó materna eram três irmãs, então meu pai era primo em primeiro grau dos sogros e primo em segundo grau, duas vezes, da minha mãe. Então tem que ter esse cuidado. Agora, do lado da minha... A minha avó materna se chamava Isabel de Sá Guimarães, falecida em 1903, e meu avô paterno era Manuel Vitor de Oliveira Mello, conhecido como Neco da Capoeira Grande, que era fazendeiro nessa região, e morreu no ano de 1929, também não o conheci.
P/1 – E a fazenda dos avós era fazenda do quê? Era de gado?
R – Bom, era chapada. Era aquele terreno que eles não acreditavam no valor que hoje tem. Era chapada e era criação de gado e aquela alimentação de subsistência. Então a produção do arroz, do feijão, aquelas coisas para o dia a dia. Era só isso.
P/1 – E, professor, o senhor sabe a origem da família?
R – Olha, a origem que eu sei é a seguinte, que eu posso te informar... Mas você não quer saber de minha mãe também, não?
P/1 – Quero.
R – Quando meu pai... Meu pai é de origem... Oliveira Mello é um povo de origem do Morro Agudo, lá em Paracatu. Agora, a minha mãe... E meu pai tinha o Sá Guimarães, porque minha bisavó... E tinha Neiva. Tudo era misturado: Neiva, Sá Guimarães, Jordão, Oliveira Mello, tudo misturou, virou uma bagunça. Nessa mistura, eu tinha a minha bisavó materna, a origem da família... Sá Guimarães foi do município hoje de Unaí (MG), daquela região, Gonçalo. Ele se chamava Gonçalo Sá Guimarães, foi o único que eu consegui levantar desde o começo. E esse Gonçalo, descenderam dele a minha avó... Como ela chamava, gente? A memória não tá ajudando.
P/1 – Não faz mal se o senhor não lembrar. Era avó materna, né?
R – Paterna e materna é a mesma coisa, é uma só. Eu esqueci o nome dela. Esqueci.
P/1 – Não tem problema.
R – Essa é Sá Guimarães. Ela era mãe das minhas bisavós e minha avó ao mesmo tempo, que a mãe do meu pai era Sá Guimarães também, e a mãe da minha avó materna também era Sá Guimarães. Então, consequentemente, eu era bisneto... Como é? Eu era bisneto da bisavó da minha mãe, e ao mesmo tempo trineto, por causa desse entrelaçamento familiar do lado da minha mãe. E do lado do meu pai também, porque era Sá Guimarães, virou Sá Guimarães. Agora, eles tinham o Neiva também. Luiza da Silva Neiva, que foi do outro lado do meu pai, e também dos meus avós, ela tinha uma participação de geração ali. Eu não me preocupo muito com a genealogia, não. Era tudo roceiro lá, não tem documento nenhum. Minha avó, por exemplo, nem pai... A maior paixão dele, nunca ter visto, saber o retrato, nem como era a fisionomia da minha avó, porque não havia retrato, não havia nada. Ela foi enterrada em frente à igreja de Pouso Alegre (MG), tá lá num pasto, ninguém nem sabe onde ela foi enterrada, aqueles tempos, 1903, pensa bem.
P/1 – E o senhor comentou que o seu pai tinha uma venda, que na verdade era um secos e molhados.
R – Era um secos e molhados. Meu pai era uma pessoa muito inteligente que não teve estudo. Porque meu avô adotava o critério de pegar uma filha, como no caso dele, pegou minha tia Teodora, que era mais velha, mandou pra cidade, para o grupo, pra aprender a ler e a escrever, voltou pra roça pra lecionar para os irmãos mais novos. E foi assim que meu pai aprendeu a escrever, e por sinal ele tinha uma caligrafia muito bonita, e escrevia relativamente bem. E meu pai era um homem muito inteligente, maníaco, fechadão. Porque eu podia saber muito mais coisas de Paracatu da época, mas ele não gostava de falar. Pra ele contar alguma coisa, minha mãe tinha quase que implorar pra ele. Ele não gostava de falar. Eu lembro que teve um trabalho lá de pesquisa que fizeram em Paracatu nos 200 anos, vocês devem ter visto isso lá, e tem uma entrevista com ele, ele respondeu, ele usou o termo de comerciante que ele era, que ele era uma duplicata vencida, então não tinha nada a falar. Ele nunca contava nem o segredo de família, nem os problemas. E era uma pessoa também sem ambição. Meu pai morreu numa pobreza, que se não fossem os filhos, eu costumo dizer que não teria cama pra ele morrer. Mas acontece que ele nunca se importou com dinheiro, com essas coisas e tal. Vendeu o pouco que ele teve, mas graças a Deus ele fez o principal, que nos deu escolaridade necessária.
P/1 – E onde era esse secos e molhados dele?
R – Ah, eu tenho aí. Depois se vocês quiserem fotografar a casa, eu tenho aí. Bom, que eu me lembre, foi na Rua do Peres, esquina com a Manoel Caetano. Ali ele tinha a venda dele, que eram duas portas, ou três? Acho que eram três portas na Rua do Peres, com a casa de residência anexa e, do outro lado, duas portas, uma janela, já virando a rua. Ali que era o armazenzinho dele, que a gente chamava de venda. Era o termo que usava na época. E ele vendia de tudo. E o povo gostava muito de comprar as coisas dele, porque ele sempre foi um homem muito sistemático, muito correto, excessivamente correto, ele não vendia nada que não tivesse garantia de primeira qualidade. Inclusive, muita coisa era feita por minha própria mãe em casa. Eu me lembro de que lá, chegavam uns capados, sabe o que é capado? O porco morto. E ele nos botava, nós meninos, pra tirar a gordura, limpar tudo, e minha mãe depois ia picar pra fazer linguiça, pra gente sair vendendo na rua no outro dia. Saíamos meu irmão e eu, nós dois pra rua vender linguiça. E quando vinha da roça, naquela época, o surubim... Com chama o outro peixe? Dourado, matrinxã. Esses peixes pescados no Rio Paracatu, eles salgavam tudo e vendiam. Meu pai era um exímio comprador deles. Comprava e botava a gente na rua pra poder vender. Era uma espécie de bacalhau, principalmente o surubim, que era um peixe de cor, era não, é, que o surubim tá aí. E eles faziam aquelas, sabe, tudo salgado, pra não perder, que não tinha luz, não tinha geladeira, não tinha nada. E peixe, já viu como é. Então a gente saía pra vender aquilo, eu lembro muito bem disso, nós na rua vendendo. Eu lembro até de uma disputa, isso é coisa curiosa, uma disputa do meu irmão e eu pra ver que saía primeiro pra poder vender onde era bom pra vender. E eu costumava correr na frente dele pra ir lá ao Puxa Faca de Jorge. Puxa Faca era zona boêmia, na casa das prostitutas, e Jorge com a Arminda, a mulher dele, eram os cafetões, os que tomavam conta lá das mulheres. E a gente vendia aquilo lá, sabia que era venda certa. A gente corria pra vender lá no Puxa Faca de Jorge, na Rua do Piolho. A Rua do Piolho lá em Paracatu, pra vocês terem uma noção, é onde hoje está a sede da Telefônica de lá, acho que se chama hoje Rua Benjamim Carneiro, parece, eu não tenho muita certeza. Mas só vocês perguntarem onde era... É capaz de esse povo novo não saberem onde era a Rua do Piolho. Vocês pegando a Avenida Quintino Vargas, quando chega ali naquela pracinha que tem ali, antes de a avenida acabar, lá na Rua Goiás, vocês entrando naquela pracinha, na primeira que vocês entrarem ali é a Rua do Piolho. O Puxa Faca de Jorge ficava ali pertinho, bem central. Ali hoje chama Benjamim Carneiro, que Benjamim Carneiro foi antigo morador. Hoje esse menino aqui, você se lembra daquela fotografia colorida que eu falei do Geraldo, que tá cego, Geraldo Costa? Ele mora lá no final dessa rua, o Geraldo Costa. Que ele tem a fotografia dele dançando com a Maria Caldas, fotografia muito bonita, pintada à mão, que era colorida, colorida à mão. Quer dizer, a fotografia era preta e branca e lá tinha um fotógrafo que fazia o trabalho de colori-la. Olhe lá pra você ver, é muito bonita essa fotografia, não é?
P/2 – Sim.
R – Você viu que eu mostrei lá na hora, ainda falei: “Uai, tá aqui?”. Eu nem sabia.
P/1 – Professor, o senhor tava contando um pouquinho da sua infância, eu queria que o senhor contasse um pouco da sua infância, como era a sua casa.
R – Mas o que você quer mais do meu pai? Não quer saber mais nada, não?
P/1 – Calma, eu já vou... Eu quero que o senhor conte um pouquinho dessa sua infância, como era o cotidiano na sua casa com o seu pai, com a sua mãe.
R – Xiii, não é bom nem falar. Minha mãe era muito rigorosa. Numa cidadezinha daquele tamanho que era, na época devia ter uns três mil, quatro mil habitantes, se tivesse. E na venda, e lá Paracatu, não é como hoje com aquele asfalto, com nada, era tudo pedra. Não sei se vocês viram as fotografias lá. O único trecho que vocês têm lá de Paracatu com calçamento primitivo é no Beco do Seu Candinho, que um bisneto dele, por bem indevidamente, botar Beco do...
P/1 – Ranulfo.
R – Ranulfo. Não é Beco do Ranulfo. Não é. É o Beco do Seu Candinho. Até, inclusive, Arminda está fazendo uma coisa muito interessante no quintal da casa dela lá, não sei se vocês tiveram a oportunidade de ver, é aquela casa que fica de quem vai descer o beco, à direita. Tá muito bonita, compensa ir lá ver. Ela tá fazendo uma coisa muito gostosa lá. E ali, ele achou por bem botar uma placa lá. Falta de prefeito pra olhar umas coisas dessas e de alguém pra dar um grito. Paracatu tem um defeito com esse negócio de nomenclatura de ruas, porque quando a energia elétrica foi lá através da hidrelétrica, quem ficou comandando foi... Como ele chamava, gente? Celso Menhur, que ficou à frente de tudo tomando conta. E ele houve por bem trocar nomes de ruas lá aleatoriamente, sem a prefeitura, sem a Câmara aprovar, sem nada. Então muitas ruas lá tiveram seus nomes trocados. Por exemplo, Rua das Flores passou a chamar Rua Doutor Sérgio Ulhoa, porque foi um dos moradores antigos e célebres lá dentro. A Rua da Praça, por exemplo, que eu falo da praça até hoje, que é Rua Temístocles Rocha, já teve quatro nomes: primeiro, foi Rua do Calvário, depois puseram o nome de Afrânio de Melo Franco, Rua Ministro Melo Franco, nem Afrânio não foi, foi Ministro Melo Franco, porque ele era ministro... Teve outro nome, que eu não me esqueci. Rua do Calvário, Rua Ministro Melo Franco e hoje se chama Temístocles Rocha. A Rua Direita lá, me disseram, passaram o nome dela pra Rua Doutor Bitencourt... Não, Rua Direita, parece que Doutor Bitencourt hoje já tem o nome de Joaquim do Correio, eu não sei nem o nome completo, mudaram o nome lá atualmente. Lá tem dessas coisas. Por exemplo, a Rua Manoel Caetano conserva ainda o mesmo nome, a Américo Macedo foi a rua do Peres, foi onde eu nasci. A Manoel Caetano fica esquina, essa conservou o nome. Depois vem os outros nomes... Ah, Doutor Seabra, viu? A Rua Direita, o nome é Doutor Seabra, que eu não sei quem é. Botaram. Agora mudaram para o nome Joaquim do Correio. Vocês chegam lá, vejam quem é, perguntam o nome. Então Paracatu tem essas estruturas. A Rua Rio Grande do Sul era a Rua do Córrego, puseram Rio Grande do Sul. O Largo de Santana continuou com o mesmo nome. A Rua Direita, mudaram o nome, a Rua Rio Grande do Sul, mudaram o nome, era a Rua do Córrego. Tinha a Rua de Trás, a Rua da Frente, a Rua de Baixo, a Rua de Cima. Eu tenho no meu livro tudo isso, mostrando as modificações. Esse livro meu, acho que em As Minas Reveladas tem. Não tem? A nomenclatura, nele tem. Eu escrevo tanto que nem sei onde tá. Eu tenho tudo pra quanto é lado.
P/1 – Mas vamos voltar um pouquinho pra sua infância então. Conta um pouquinho como era a casa onde o senhor nasceu, como era o cotidiano. O senhor falou que a sua mãe era muito rígida, conta um pouquinho pra gente.
R – Olha, o negócio é o seguinte, a casa que tanto o meu irmão... Todos os quatro lá de casa nasceram no mesmo quarto, no mesmo lugar. Hoje, a casa não existe mais. E não existe por quê? Porque o Lafaiete Neiva comprou a casa e a prefeitura exigia nas casas que fossem ser reconstruídas, quando fossem demolidas, exigia então fazer um suposto alinhamento, que nunca teve. Então, ele pra não perder, que o terreno era pequeno, pra não perder o alinhamento, começou do fundo e fez pra lá. Vocês podem chegar lá, vocês vão ver que ela vem assim, depois faz assim a casa. Nós nascemos ali. Eu tenho um discurso que eu fiz aqui no dia do meu aniversário, os 80 anos, eu conto direito como é essa casa. Você não quer ouvir isso, não? É melhor do que eu contar.
P/1 – Depois...
R – Essa casa era o seguinte, ela tinha duas janelas pra Rua do Peres com a porta no meio, depois eram as portas da venda do meu pai. Nessa porta do meio, você entrando, você tinha a sala de visita, à esquerda, tinha um quarto que minha fez no nosso tempo de menino, quando pequenos, foi o quarto da frente que dava pra rua, o quarto deles era do meio, com uma porta só dando para o que a gente chamava de varanda, que a varanda seria a sala de jantar naquela época, vinha pra isso. Era um quarto tudo simples, muito simples, e tinha um puxado com a porta saindo do quarto, minha mãe pra lá, que meu pai construiu, que nos colocou, nós meninos, os dois, Jordão, meu irmão, no quarto do fundo, e as minhas irmãs no quarto da frente, e o quarto deles ficou sendo o do meio. Era forro de taquara, assoalho, aqueles assoalhos de tábuas largas e tudo, que minha mãe era muito caprichosa, excessivamente caprichosa, trazia aquilo brilhando. Não tinha cera ainda nessa época, ela punha o assoalho brilhando e a gente tinha que passar o escovão, passar tudo, na base do pano úmido. Então passava o pano úmido, depois vinha, ninguém podia deixar cair um pingo d’água, senão manchava e era aquele zelo fabuloso. Esse quarto foi o que nós nascemos. Nós quatro nascemos nesse mesmo quarto.
P/1 – E naquela época era parteira? Como era? Quem fazia o parto?
R – No meu parto era a dona... Eu escrevi o nome dela. Por isso que eu to falando, tem que ver.
P/1 – Dona Lia Lino?
R – Espere aí. Ei, Diabo. Escrevi esses dias atrás, não sei mais. Não, deixe-me pegar o papel ali.
P/1 – Depois o senhor fala. Não faz mal. Pode deixar.
R – A parteira. Dona Raimunda. Era uma gorduchona mulata, ela que foi a minha parteira. E meu parto foi um parto muito difícil. No meu nascimento, meu pai percebeu que podíamos morrer minha mãe e eu. Na falta de conhecimento dele de medicina, qualquer coisa, ele percebeu, que ele devia estar assistindo. E ela gostava de uma pinga de Paracatu, nesse momento do parto, eu não sei qual era o estado etílico dela. Meu pai falou: “Eu vou chamar um médico”. E ela relutou, não queria aceitar. Papai: “Eu vou”. E o médico era primo dele, doutor Maneco, pessoa muito conhecida, morreu muito novo. E papai foi atrás do doutor Maneco, ele veio na hora. Naquela época, sabe como não tinha esses protocolos de médico de hoje. Chegou lá, foi onde eu escapei, minha mãe escapou. Se ele não tivesse relutado e não ouvido a parteira. Foi um parto difícil. Principalmente naquela época, não tinha acompanhamento como hoje, não tinha nada. E propriamente eu nasci na mão de uma parteira e de um médico, por causa desse cuidado que meu pai teve.
P/1 – E conta um pouquinho pra gente essa coisa do cotidiano. Seu pai levantava muito cedo, vocês almoçavam juntos? Como era isso?
R – Olha, meu pai foi um homem muito inteligente, que eu te falo, até nesse sentido pra nos criar. Nós todos almoçávamos juntos na mesa posta, tinha o horário na venda. Minha mãe brigava muito com ele, porque qualquer roceiro que estivesse lá no balcão, ele chamava pra comer na hora. Tivesse comida ou não tivesse, ele convidava. Eu lembro que tinha um Serafim, ele vendia muita banana, naquelas bruacas, umas bruacas assim do lado, colocadas num cargueiro, ele vendia muita banana, e mamãe tinha ódio mortal desse Serafim por isso, ele só chegava lá em casa na hora do almoço de propósito, pra papai chamá-lo para o almoço. E mamãe brigava muito. Papai foi um tipo muito interessante, ele gostava muito de doido manso. A venda dele era cheia de doido manso. Então foi onde eu aprecio, que eu fiz aquelas histórias daquele povo todo, por causa disso. Você vê lá que sempre tá “Venda de Itamar”, como ele era conhecido e os doidos mansos todos estavam lá... Tinha a Bernardina Doida, era a principal delas, que eu acho que aquele menino, aliás ele foi meu aluno aqui, o Zé Paracatu, que ele chama, o Zé Mota, que a mulher dele é dona do restaurante, ali era venda de Zotti, Zotti André. Pra você ter uma noção de quem é esse Zotti André, ele era tio do atual bispo, que foi o primeiro filho de Paracatu que se tornou bispo, atual bispo de Presidente Prudente em São Paulo, o Benedito, a gente o chama de Bené. O Bené então, o Zotti... Você deve ter lido isso se você leu o livro todo, ela saía lá da beira do açude onde morava, do ranchinho dela, da casinhola dela, com uma xícara de café pra levar para o seu Zotti. E ela saía de lá, que é longe, a pé, com a trouxa na coisa e o pau enfiado no meio da trouxa, ela saía pra levar o café para o seu Zotti. Durante o percurso do caminho, ela não conversava com ninguém. Quando ela entregava o café para o Zotti, que tomava o café dela, aí ela desandava a falar. E falava aqueles versos, aquelas coisas todas, contando sempre sobre os piscilineiros, as histórias que ela gostava de narrar. E dali, ela ia pra venda do meu pai, que era a venda do seu Itamar, como ela falava. Ia pra lá, lá meu pai tinha uma caixa de querosene que era caixote de lixo, e ela trespassava o porrete que ela carregava, pra ela ter ponto de apoio pra sentar, e punha a trouxa no colo. Aí ela ficava naquela coisa apoiando na trouxa, aí ela contava as histórias que ela queria o tempo todo, a mesma repetição, a mesma história, sempre a mesma coisa. Era a Bernardina Doida, que todo mundo gostava, e ela ficava só naquele trecho de rua, quando dava de tarde, ela ia embora pra casa dela. Essas pessoas me marcaram muito. A figura de Bernardina Doida, Chico Doido, Chico Paneleiro, tá cheio. Lá naquele livro meu tem o nome deles todos. Eu fiz acho que uns 40. Deve ter uns 40 ou mais. Eu coloco toda a história com a característica de cada uma delas. Tinha as doidas e os doidos. E eu quando menino, você quer saber quando menino, papai me botava muito pra vigiar a venda, porque ele ia lá pra dentro, não tinha movimento nenhum, o movimento que tinha era cavalo amarrado na porta, alguém saía... Meu pai botava a gente pra vigiar a venda enquanto ele ia lá pra dentro, minha mãe, pra ninguém furtar, como se tivesse ladrão naquela época. Não tinha ladrão nenhum, a gente dormia de porta aberta, ninguém tinha preocupação em fechar a porta, fechar a janela, tinha nada. E naquela época, Paracatu era um isolamento, todo mundo conhecia todo mundo, e sabia até os hábitos de cada um. Aquela vida ali bem circunscrita. Eu não sei mais o que eu tava falando.
P/1 – O senhor tava contando de quando o senhor era pequeno, que seu pai ia pra dentro e deixava vocês tomando conta...
R – A gente tomava conta da venda. E eu ficava tomando conta da venda, quando chegava alguém... Sábado era o dia de dar esmola para os pobres. Os pobres saíam de porta em porta pedido esmola. E o meu pai me vigiava muito, porque eu dava tudo que o pobre pedia. Eles, por exemplo, toucinho, meu pai tinha a banca de toucinho lá, e a cabeça, não sei se você sabe o que é a cabeça do toucinho, porque no cortar o toucinho, aquela parte larga que ficava de gordura, o pobre me pedia, eu tirava aquilo e dava pra ele aquilo. Eu dava o melhor pra ele. E me pai brigava demais. Não é que fosse miséria, porque não era possível, podia dar a gordura, podia dar tudo. E todos eles eram doidos comigo por isso, porque eu sempre atendia os desejos deles. Não era por caridade, não, era questão de...
P/1 – E me fale uma coisa, professor, quais eram suas brincadeiras? Que horário o senhor brincava? Quais eram as brincadeiras preferidas?
R – Olha, lá em casa era tão rigoroso que eu me lembro de um fato muito curioso que eu vou contar pra vocês aqui. Lá onde morávamos, nós não podíamos brincar com os outros meninos, nós tínhamos que ficar sentados. Nós sentávamos na porta. Tem até um livro, tá lá no arquivo, vocês podem olhar lá, de Osvaldo Costa, não sei o nome do livro mais, é um grossão assim. Eu sei que ele termina o livro lá contando ao meu respeito, porque ele pediu, queria saber a história de Paracatu, que a irmã dele mandou um punhado de livro meu. Quando ele ficou sabendo quem era, que ele se lembrou de mim na porta da venda do meu pai olhando os meninos brincar. Minha mãe era tão rigorosa que não deixava. E meu irmão, que não aceitava muito as determinações dela e que tinha coragem de fugir, porque lá em casa, tudo de mal feito que os outros faziam, os três outros faziam, eram tudo copiando de mim, eu era vítima de tudo, e apanhava mesmo. Porque o que aconteceu? Nós ficávamos naquele rigor, aquele rigorismo, eu meu irmão pegou um dia um papelão, e no jogar o papelão, quebrou a vidraça da casa de Zé Machado, cuja mulher se chamava Aurora Macedo. No jogar, quebrou o vidro. E papai, na mesma hora, com aquele rigor, com excesso de honestidade dele, foi atrás com meu irmão já apanhando, que não podia ter feito... Coisa de criança, não era culpado de nada, mas era o rigor deles com a gente. E a Aurora: “Itamar, não faz isso com o menino. Ele não foi culpado de nada, isso é coisa de menino” “Não, ele tem que aprender”. E comigo teve um fato muito curioso, que me marcou demais, ali onde tem aquela cruz da Igreja do Rosário, que não é original, quando eu ia pra escola, ali era meu caminho, pegava a Rua Américo Macedo hoje, que é a Rua do Peres, passava no Largo do Lar, entrava no Beco de Seu Candinho, saía lá na Rua São Domingos, que hoje chama Samuel Rocha, da São Domingos eu ia pra Casa da Cultura hoje, que era escola normal, eu ia pra aula, era esse o caminho que eu fazia. E numa das voltas da aula, eu passando perto da cruz lá do Rosário, eu achei um canivete, e meu sonho era ter um canivete. Achei o canivete, apanhei o canivete todo alegre, feliz da vida. Cheguei lá à casa, falei: “Olha, achei um canivete no pé da cruz”. Papai falou: “O quê? No pé da cruz ali?”. Meteu o coro em mim: “Volta lá e põe o canivete onde você achou. A gente não apanha nada dos outros.” “Mas pai, tava na rua, perdido” “Não me interessa. Vai lá e põe lá”. Tive que voltar chorando, apanhando, e botar o canivete lá. E com isso, eles criaram a gente num mundo muito de timidez. Eu não pareço tímido, mas sou excessivamente tímido, por causa disso, o rigor. E lá quando eles prometiam bater em todos, começava em mim, quando chegava na minha irmã caçula que tá lá, que é a única viva, somos nós dois só hoje, morreu tudo, chegava lá, ela não apanhava, porque ela desmaiava, porque começava comigo. Meu irmão queria ser sabido, botou um travesseiro na bunda na hora de apanhar, aí, coitado, eles tiraram o travesseiro, aí que ele apanhou mais. Essa vida de rigor que nós tivemos. Por outro lado, eles eram muito amorosos e nos levavam pra passear. Eu aprendi a gostar de Paracatu, as praias, aquele mundo simples. Que eu não gosto de rico, eu gosto de gente simples. Não é pobre também miserável, desses ignorantes que vêm querer explorar, também não gosto, não. Mas aqueles ricaços metidos a ser mais gente que os outros, ficam pra lá e eu pra cá. Então eles levavam a gente todo domingo, nós tínhamos um passeio muito gostoso, que era na praia. O que era a praia lá? A praia era o Córrego Rico. O Córrego Rico era dividido em várias fases de praia, então tinha em frente à gruta, nós íamos muito à Gruta de Vênus, cujas fotografias tem lá bastante. Da praia, nós descíamos, tinha a Praia do Macaco, que é onde passa a rodovia hoje dividindo. A Praia de São Gonçalo, que nós íamos, depois descíamos ali, você vê onde tem uma ponte, descíamos, ali nós íamos pra praia predileta nossa, que era a Praia do Vigário, que era o entroncamento do Córrego da Espalha com a praia, com o Córrego Rico. E a praia, ali nós todos banhávamos, tomávamos banho ali... Os mineradores, vocês podem ver nas fotografias, vocês notam o lugar, os mineradores faziam umas cacimbas, por assim dizer, pra tirar o ouro, porque o ouro de Paracatu é todo superficial, é todo de aluvião. É todo de aluvião. Eu costumo dizer que a cidade de Paracatu está em cima do ouro. Pra mim, se eles pudessem, eles compravam a cidade inteirinha pra garimpar, porque Paracatu é a cidade de ouro de aluvião. E tem essa curiosidade do Córrego Pobre e do Córrego Rico. E o Córrego Pobre cai no Córrego Rico e que nasce lá pelas beiras do açude, por aquela região ali onde tá o açude. E papai nos levava, eram dias deliciosos... Eu conto isso no livro, não conto? Ele gostava da cervejinha dele no sábado, no domingo, levava as cervejas, a gente fazia as cacimbas pra ele, ele colocava pra água pra cerveja perder aquele calor forte, de quente ficar mais fria. E botava, enquanto isso, a gente ia fazer cacimba, brincava, era uma vida gostosa. Não precisava de praça de esporte, era bom. Era bom. Nós gostávamos demais. Quando falava que ia pra praia, já tava todo mundo saindo. E minha mãe já levava o almoço pronto. Fazia o almoço mais cedo, levava o almoço pronto, chegava lá, pegava as pedras, fazia a fogueira pra esquentar a comida. E comia, ficava quase que o dia inteiro lá. Saía cedo, voltava já à tardinha.
P/1 – (breve interrupção) E da praia que o senhor contou aos domingos, que vocês iam à praia, quem ia com vocês? Eram só seus irmãos, seus pais?
R – Essa praia era muito utilizada, até pelos professores. Era o trio que nós mais gostávamos, chamava excursão. Os professores, os pais ajudavam, cada um dava um trem, um arroz, outro o feijão, tudo cozido e ia numa carroça. E nós descíamos o Pasto de Manoel Cordeiro. O Pasto de Manoel Cordeiro, a cancela dele, a porteira dele, ficava perto do cemitério. Então tá o cemitério lá, vocês devem saber onde tá o cemitério, e logo ali, aquelas ruas que tem ali tudo era o Pasto de Manoel Cordeiro. Aquilo tudo era Pasto de Manoel Cordeiro. Então nós íamos pra lá com a carroça, levávamos, íamos para a Praia do Vigário. Há uma fotografia, que vocês devem ter ali, de as meninas trabalhando, eu até legendei colocando que era aula que elas estavam tendo de Geografia. E os professores nos levavam para dar aula. Nós nos divertíamos e dar aula pra nós como de Geografia, por exemplo. Mandavam a gente fazer uma ilha, então nós íamos à praia, fazíamos a água só com a mão mesmo, a gente tirava, fazia um monte de cascalho, tava a ilha pronta, cercada por água por todos os cantos. Mandava a gente fazer uma cacimba pra tirar a água limpa, porque a água vinha infiltrada lá no cascalho, ela já vinha, por assim dizer, filtrada, não tinha essa poluição de hoje. Era a cacimba pra gente ter a água pra beber a hora que quisesse, fresquinha. E lá nós tínhamos também a aula de Ciências. Além da aula de Geografia, eu citei o caso da ilha e tem uma porção de coisas que mandavam a gente fazer relacionada à Geografia. Por exemplo, eu aprendi o que era esse negócio de Itália, como chama a Itália hoje, a gente fala? Península. Eu aprendi saber o que era península foi na praia lá, ensinando coisa e fazia aquilo tudo, e nós a aprendíamos. E depois tinha a aula de Ciências. Como era a aula de Ciências? A gente ia para o campo brincando ali no pasto caçar passarinho, caçar osso lá de animais mortos, levar tudo para a professora e a professora explicar pra gente. Era uma aula maravilhosa que nós tínhamos, que hoje com esse monte de didática não tinha como a gente aprendia. A gente brincava e tinha aquela confraternização. Eu tenho fotografias aqui. Quando eu fui para o seminário, minha turma lá da segunda série, que eu tava na segunda série do ginásio, minha turma toda fez uma excursão lá, uma coisa com os meus colegas, cujos nomes eu nem sei mais de todos. A gente ficou lá na praia o dia inteiro passeando, divertindo ali na praia. Quer dizer, tinha o lado humanístico e tinha o lado de cordialidade, de amizade, de tudo. Era um ambiente muito gostoso. Muito.
P/1 – E essa história...
R – Ah, me esqueci de contar uma coisa curiosa. Nós estávamos naquela casa de adolescente, querendo ver perna de mulher e as moças lá na hora de tomar banho, as moças pra nadar, os meninos todos, a professora fazia chamada, botava tudo do lado de lá, não podiam nem ver as meninas nadarem, não podiam nem ver as pernas das meninas, ficavam tudo de lá. E os meninos na hora de nadar, as meninas podiam olhar, nós falávamos: “Mas por que as meninas podem vir na hora que a gente vai nadar e a gente não pode ir?”. Elas não falavam o porquê, mas a verdade era essa, havia essa distinção de coisa de época. Porque era o trem mais gostoso que a gente achava na praia, era nadar, o encontro, o almoço. Era bom demais, que saudade. Uma pena que não existe mais. Eu não gosto de ir a Paracatu mais. Eles falam lá, que pouco eu vou lá. Pertinho do jeito que é e eu quase não vou lá.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. Quando o senhor ia à praia, o senhor chegava a ver as lavadeiras? Tinha gente bateando ouro? Como era?
R – A gente via de tudo. Tinha lavadeiras, até aquelas fotografias que você vê lá das coisas, tudo a gente participava. Então eu passei a gostar de tudo isso. As lavadeiras eram cuidadosas. Tinha, por exemplo, as Maurícias, tinha a Praia das Maurícias que a gente ia, lá eram, essas coisas todas, aquelas lavadeiras das famílias tradicionais, esse trem todo. Depois, os mineradores, a gente conhecia todos, ia a todos, inclusive aí tem o ouro que eu comprei na mão de um garimpeiro lá, um negócio de cinco merréis, na época, eu tenho um vidrinho de ouro em pó. Que foi o maior sucesso no dia que eu fui lá à Kinross, que aquele povo viu. Eles nunca tinham visto, que o ouro de lá da Kinross é só em barra, que aquilo tudo deve ser... Como fala? Deve ser tudo superorganizado. Como fala? Modernoso.
P/1 – Tudo processado.
R – É. Processo que não era daquele jeito e tal. E eu tenho fotografias de todo esse ambiente. A gente participava de tudo, as lavadeiras. As roupas, era interessante que elas punham nos arames e dividiam. Elas lavavam tudo junto: a roupa lá de casa, a roupa da casa de seu Leopoldo, a casa de tal. Cada uma, elas punham, faziam as trouxas, e levavam aquilo à tarde. E tudo era corado, deve tá lá elas até esparramando a roupa na praia. Porque o rio, o córrego, era todo cascalhoso e com aquela água fininha correndo por cima.
P/1 – Como o senhor via os garimpeiros bateando o ouro? Como era? O senhor lembra?
R – Lembro-me demais. Tá doido. É o caixote. Lá no Museu tem um caixote, que foi meu, eu que dei pra lá, pode chegar lá numa sala que eu vi lá sexta-feira, quinta-feira. O caixote, aquele caixote, eles botavam, naquele tempo era saco de estopa, hoje eles usam... Como chama o trem? Eles usam lá um processo pra roubar isso lá na Kinross, eu sei que dá morte lá pra danar. Punham o saco, já tinha aquela área de reserva deles, lavavam o cascalho em cima... Espera aí. Para com esse trem aí um tiquim. Pode? Deixe-me lá pegar pra mostrar pra vocês, pra eu poder explicar desligado. Ei vocês, eu vou cobrar o meu tempo, viu?
P/1 – (risos).
R – Ah, vocês são muito engraçados.
P/1 – É lerdinho ele, né?
R – Lerdinho. Ruim de serviço, tá doido. Mandar uma carta pra lá pra te dispensar ontem. Aqui então, tá vendo a caixa? A caixa deles, geralmente eles pegavam uma caixa de querosene, que naquela época era tudo querosene em latas, e tinha aquelas caixas de duas latas de querosene, essas latas grandes, vocês sabem o que é, dão uns 20 litros, sei lá quantos litros, eles faziam dessas caixas. Aqui então eles punham isso aqui, furavam, aqui eles colocavam um monte de cascalho, se eu tivesse a fotografia, eu mostrava pra vocês melhor ainda. Um monte de cascalho ali. Aqui, olha, eles botaram até os aparelhos que eles usavam, olha, tá aqui o caso da pá. Com a pá, ele jogava aqui e ia passando aquela mão ali em cima. O que acontecia? O cascalho, ele jogava aquele cascalho, jogava pra lá, vinha aquela areia fina com esmeril pretinho e o ouro no meio. Eles punham aqui com muita água, eles punham um pano num saco de estopa e esse saco de estopa segurava o esmeril, essas coisas todas. Terminado esse saco de estopa, eles iam fazer o quê? Essa enxada era pra eles fazerem a cavação onde tirar. Eles faziam um monte de cosia, depois de terminada aquela fase que eles achavam que devia ser, eles iam pra bateia. Eles levavam à bateia e lavavam o saco dentro da bateia. Depois de lavado o saco dentro da bateia, eles tinham um poço mais fundo, com água, levavam a bateia lá... A bateia, vocês viram o que é, eu tenho ali. Eles iam... Aí ficava só o ouro. Eu tenho o ouro aqui fininho no esmeril, eu posso mostrar pra vocês, que eu consegui guardar isso. E eles lavavam. Depois eles tinham uma espécie de ímã, era ímã. Eles usavam esse ímã pra separar o esmeril do ouro, não era o cascalho. O cascalho, eles conseguiam tirar, ficava aquela areia fina. Eles tiravam o coiso, lavavam, e aí eles punham no vidro e iam vender para o ourives lá na cidade, que era o Tidas na época, eu me lembro dele, era um dos que comprava o ouro. Essa aliança minha mesmo foi feita lá. Eles compravam o ouro deles e lá eles limpavam. Dizem que eles usavam muito aquele negócio que não pode usar.
P/1 – Mercúrio.
R – Dizem que usavam muito mercúrio. Olha, depois que ele faz, como ficava o ouro, olha. Tá vendo? Ele reproduz isso aqui. Isso aqui dá uma imagem muito boa pra explicar o processo primitivo da mineração em Paracatu. Isso é de um artesão lá, como ele chama?
P/1 – Elizeu?
R – Não. O outro. Aqui deve ter o nome dele, deixe-me ver.
P/1 – Anísio.
R – Anísio. Aqui, olha, quando eu comprei isso. Você já viu os trabalhos dele?
P/1 – Vi.
R – Ele tem muita coisa interessante, viu? Isso é dele, isso aí é dele, é coisa da cana, eu peguei lá mais foi por conta do ouro. Tá vendo? Aí era o processo que se usava. A bateia, vocês têm aí, vocês viram como é, se quiser filmar depois. Que lá em Paracatu, vocês não acham bateia mais, não, a não ser no museu. No museu deve ter, porque eu dei umas lá.
P/1 – Depois a gente pode filmar. O senhor contou um pouquinho como era essa coisa do final de semana, de ir pra praia.
R – Ah, domingo principalmente. Agora, na escola era durante a semana. As professoras, aquilo tudo era chamado com todo rigor, a gente ia durante a semana, era aula, a gente passava o dia na praia. Ia de manhã cedo. Eu lembro as aulas de dona Dolores, dona Dorzinha, nos levavam. Porque na minha época, nós tivemos duas professoras só no primário: Dolores, do primeiro e segundo ano. Agora, eu não estudei no primeiro ano com dona Dolores, eu estudei com dona Maroca, que era uma leiga, cuja casa tem até ali uma coisa dela. Estudei lá, eu fiz o primeiro ano na escola dela, uma mulher inteligentíssima, cultura muito elementar, mas tinha aquela cultura da vida. E todo mundo levava os meninos com a aula de reforço, qualquer coisa, e eu não fui pra reforço, eu fui para aprender, então foi lá. Eu lembro até quando eu terminei, acho que ela ficou tão entusiasmada com o meu interesse, com tudo, e ela era tão inteligente, nesse ponto ela cativava, ela levou pra mim à noite lá em casa, um livro de Machado de Assis, Saci, e me deu esse livro presente, por ter sido um aluno que satisfez a vontade dela. Não tô falando isso pra vangloriar, não, é simplesmente contando os fatos que aconteceram, já que vocês estão fuxicando. (risos). De dona Maroca, já fui pra escola normal. Nas classes anexas. As classes anexas, a escola normal, oficial de Paracatu. Essa escola lá em Paracatu, no século XIX, teve uma escola famosa, uma escola normal de lá, que foi fundada em 1880, e como nesse Brasil tudo é desse jeito, foi fechada em 1906 por economia. Escola famosa, escola normal, que tinha escola de Agrimensura... Vocês precisam ver. Vejam lá no arquivo, você que andou lá pelo arquivo, pede ao Carlos os documentos que eu mandei pra lá, que eu vendi, eu tenho os documentos lá, você tem todos os trabalhos da escola normal em 1880. Agora, a escola normal que eu entrei já foi criada em 1929, no governo de Antônio Carlos, por isso que lá se chama Escola Normal Antônio Carlos, hoje é escola estadual, parece que tiraram esse nome. Então lá com o nome de Antônio Carlos, porque ele era o governador de Minas [Gerais], com Chico Campos como secretário, sei lá o quê, criaram várias escolas normais, em Dores do Indaiá (MG), Paracatu, nessas cidades que eram tidas maiores expoentes. Eu estudei então, já fiz a quarta série, fiz a segunda, a terceira. A segunda com dona Dolores e a quarta com dona Dorzinha. Ela ficava, de manhã dava um turno, à tarde, outro. E fiz a quinta série, que naquela época criaram a quinta série, em 1949, uma coisa assim, 48 ou 49, não sei, criaram a quinta série, que foi minha professora, uma minha prima, que hoje é mãe de deputado e tudo, Irene de Tataia, como era conhecida, ela era neta de Juca do Barreirinho. Então eu tive a quinta série lá, porque naquela época, pra entrar pra primeira série, a gente fazia o quinto ano. Chamava ano, não era série. Série começava na primeira série, quando a gente ia para o ginásio. Ginásio é da escola normal. Então foi desse jeito que foi a minha vida escolar.
P/1 – O senhor fez então aquilo que a gente chamava de primário, que era da um até a,.. Nessa escola normal?
R – Normal. Fiz o primeiro ano não. O primeiro ano, eu fiz lá na escola de dona Maroca. Agora, do segundo, terceiro, quarto e quinto ano foram na escola normal, nas classes anexas. Chamavam-se classes anexas a escola normal.
P/1 – E como era a escola? Que outras escolas tinham na cidade? Conta um pouquinho pra gente.
R – Olha, a escola que tinha lá era o Grupo Escola Afonso Arinos e a escola normal. Só havia os dois. O Afonso Arinos funcionou primeiro nesse prédio que hoje é a Casa da Cultura, de 1908, quando ele foi criado, até a mudança dele, foi em 1930, por aí, que mudou pra aquele prédio que está lá, foi feito, construído, foi pra lá. E a escola normal ficou funcionando em 1929 ali e funcionou até sair de lá, em 1965, e ir para o prédio que tá atual, que é a Escola Estadual Antônio Carlos, que até foi uma coisa curiosa, fui eu que mudei a escola pra lá. Eu tava como diretor no colégio nessa época, eu fiquei um ano, que eu lecionei lá, e eu fui eleito, problemas políticos deles lá e tal, e eu fiquei um período lá, não sei quantos meses, como diretor, e nesse período que a gente mudou a escola normal da Rua do Ávila para a praça que a gente chamava Praça do Mirante, Largo do Mirante, foi onde foi construída a escola normal.
P/1 – E como era a cidade nessa época que o senhor tava fazendo o primário? Como era a cidade? Qual era o lugar que o senhor mais gostava na cidade?
R – A cidade era gostosa. E não gosto mais de ir a Paracatu. Eu sinto saudade lá na presença, isso que é duro, chegar lá e não ter aquilo que você queria ver. Quando a gente era menino, até ouro, os meninos não eram engraxates, não, eles tiravam era ouro na rua, depois da chuva, pra batear e vender para os ourives, era o dinheirinho que a gente recolhia. Tem fotografia num dos meus livros lá da turma tirando ouro lá na esquina. A gente cercava a enxurrada que descia. Lá era assim, a enxurrada grossa, que as ruas eram dessa forma o calçamento, então o calçamento vinha, trazia aquela água forte, descia da Rua Manoel Caetano, entrava na Rua Goiás, aquele aguão, ali onde tá o Walsa Hotel, entrava ali e ia até o Beco do Seu Prisco, que acho que hoje lá chama Rua ou Travessa Prisco Silveira. Entrava no Beco do Seu Prisco, enxurradão, do Beco do Seu Prisco pegava a Rua do Ávila, que é onde tá a Casa da Cultura. Virava pra lá, a enxurrada descia toda e ia cair no Largo da Jaqueira, você sabe onde é isso lá, bem conhecido. No Largo da Jaqueira então a água ia. Ou então Colégio das Freiras, entrava ali no rego, ia cair no Córrego Pobre. Era esse o trajeto das enxurradas. Mas eram enxurradas tremendas, que viravam rios. E o curioso é que quando acabava a chuva também, a cidade tava sequinha, não tinha mais nada. E a gente catava aquele esmeril que descia lá, o que a gente fazia? Coisa de menino. A gente cercava na Rua da Abadia com a Rua Américo Macedo, a gente fazia uma espécie de barragem à maneira nossa, e muitos dos meninos se exibiam daquilo, que empossava lá em grande quantidade, faziam barcos pequenos, barcos de papel, ou de buriti mesmo, faziam os barcos e punham lá aqueles barcos navegando pra gente brincar também. E ali se colhia o cascalho, aquela coisa, e bateava, cada um tirava... Não valia nada, não, mas em todos os casos tinha aquele serviço de bateia que faziam.
P/1 – E como era a escola? Eu queria que o senhor contasse o cotidiano na escola. O senhor contou um pouco de as professoras irem até as praias pra ensinar. Mas como era? Tinha uniforme?
R – Tinha. Tinha. Tinha. Tudo era uniforme. Tá tudo no meu livro lá, pra que vocês estão me perguntando? Vão ler lá, que tá lá. Uai. Eu não lembro assim, mas no livro tá melhor. Cadê o Diabo do livro.
P/1 – Conta. O senhor contando é mais gostoso.
R – (risos) Olha, o problema da escola lá, eu comecei, se nota perfeitamente a diferença da minha professora, eu fui com a professora leiga, então meu primeiro ano foi de professora leiga. Quando eu entro no segundo ano, já é professora formada, normalista, já o processo de ensino era outro. Aí nós já tínhamos uniforme. No primeiro ano, não tinha uniforme nenhum... E tinha uma lousa, me lembro dessa lousa perfeitamente, uma pena que não guardei. Tinha uma lousa com lápis de grafite, a gente escrevia na lousa, era o rascunho, tudo que a gente fazia era por ali. E lá nós tínhamos... Na Escola da Maroca era assim. E eram umas mesas compridas, cheias de meninos e ela com uma régua enorme e ficava apontando, se o menino teimasse qualquer coisa, ela descia a régua na cabeça do menino, qualquer coisa e tal. Que não era feito hoje com essa frescura que tem, que não pode falar nada para o menino que o pai vai preso. A gente era rigorosamente, obedecia à professora e tal. E nós éramos moleques como toda criança. Lembro um fato muito curioso lá na Escola de dona Maroca, porque não havia instalação sanitária, a gente chamava de casinha, a privada lá no fundo do quintal, e a menina muito tímida, eu sei até quem é, a bicha odiava, e tá um bolostrofô de mulher, a menina lá muito tímida, ela fez as necessidades principais dela na calcinha dela lá, e aquilo começou... E eu sempre sem papas na língua: “Dona Maroca, tá fedendo aqui. Fulana parece que fez cocô na calça. Tá um cheiro de cocô aqui danado” “O que é isso, menino? Não sei o quê”. Tirou-me de lá, e a menina, coitada, chorando. Fez a necessidade com vergonha de pedir pra ir lá à privada, na casinha. Dona Maroca muito... Era aquela psicologia natural das pessoas, ela nos tirou todos nós para o outro lado lá do quintal etc., apanhou a menina, levou pra fazer a limpeza lá no banco, essas coisas todas. Então havia esses lados também pitorescos, por assim dizer, dentro das escolas, que onde tava a psicologia da professora, apesar de nunca ter estudado psicologia e nem lido nada. Ela sabia lidar com as pessoas. E todo mundo que foi aluno dela tem uma lembrança muito boa e uma gratidão muito grande a ela.
P/1 – E depois que o senhor estudou a escola normal, o senhor foi pra que escola?
R – Não, lá então eu fiquei... Eu nunca fui aluno do Afonso Arinos. A Afonso Arinos é a escola mais antiga hoje de Paracatu, que ela é de 1908, parece. Ela foi criada em 1908. A primeira chamou Escola Estadual não sei o quê, depois puseram o nome de Afonso Arinos. Eu nunca estudei lá. Toda vida foi na escola normal, nas classes anexas. Quando eu fiz o quinto ano, nossa turma era uma turma de uns 30 meninos, eu sei que só seis foram aprovados. E a nossa professora, a Irene, ficou tão uma coisa que ela não quis ser professora mais, de tão decepcionada que ela ficou com o resultado. Nós fomos só seis. Eu lembro que entre nós tava a Maria Angélica e o doutor Cândido, que hoje é médica, é da minha idade. Tinha o Cláudio Neiva, filho do doutor Zé Neiva, eu e mais três outros que eu não me recordo quais. Nós só que passamos e fomos para a primeira série. A primeira série foi na própria escola, então nós não tivemos nenhuma... Agora, no curso primário, você me perguntou negócio de roupa, na escola normal nós tínhamos uniforme, nas classes anexas era a calça amarela caqui, curta, e a camisa creme. Era esse o uniforme dos meninos das classes anexas. Já do ginásio, as meninas das classes anexas era a mesma coisa das meninas do coiso, era uma saia azul e uma blusa branca. E no ginásio, os meninos iam vestido tipo farda de soldado, eu posso mostrar o retrato aí pra vocês, tipo soldado, e as meninas tinham um sinal, um bordado, sei lá, pregado um pano, era sinal que tava no primeiro ano, se tivesse dois, era do segundo ano. E nós meninos era na platibanda. Então dizendo quem tava fazendo o ginásio. E nós tínhamos a gravata, todo mundo de gravata e tudo, com paletó. A gente comprava, eu lembro que gente comprava botão para as nossas mães arrumarem lá na cadeia, a gente ia lá comprar dos soldados os botões, os botões próprios de militar, com as estrelinhas, lembro até disso. As estrelinhas símbolo do Brasil, da arma do Brasil, nos botões pretos. Aí nós já estávamos de calça comprida. Passava, deixava a calça curta depois do ginásio.
P/1 – E dessa época, o senhor já sabia o que o senhor queria ser quando crescesse?
R – Queria nada. Não sabia o que queria, não. Meu pai que embarcava. Meu pai disse que era pra eu ser médico e meu irmão ser advogado. Acabou que meu irmão ficou médico e eu não fiquei nada. Fui para o seminário, não virei nada, fiquei sem diploma nenhum, o único diploma que eu tinha era de primeira comunhão, não tinha nada. E lembro bem que o bispo daqui, quando eu saí do seminário, já saí velho, me protegeu demais, ele me dava documento como se eu fosse seminarista pra eu conseguir trabalhar, dar aula, qualquer coisa assim, pra eu conseguir trabalhar, que eu não tinha documento nenhum. Eu saí do seminário, nem carteira de identidade eu tinha. Não tinha nada.
P/1 – E eu queria então que o senhor contasse um pouquinho pra gente como o senhor foi fazer o seminário. Como isso aconteceu?
R – Esse negócio de seminário aconteceu o seguinte. Frei Norberto era um holandês muito falante, muito comunicativo, e ele frequentava tudo e começou a arrebanhar menino pra mandar para o seminário, mas seminário dos carmelitas, porque o bispo lá podia formar o seu clero, mas ele não queria. Ou ele não queria, ou os carmelitas não queriam. Então, tinha que ir para o seminário dos carmelitas. E eu não queira ser padre, eu era coroinha, mas eu era doido pra sair de Paracatu pra estudar fora. Primeiro, eu queria conhecer outras cidades, que eu não tinha oportunidade de conhecer, que Paracatu era uma ilha, era o Rio São Marcos da divisa de Goiás e o Rio Paracatu onde vocês passam nele, é aquele lugar mesmo lá, que fica um fica um pouco abaixo o Porto do Portal com a balsa, com tudo, a gente atravessava. Eu tenho fotografia disso tudo, vocês devem ter visto isso lá. Passando a balsa, aquela história. Nós meninos ficávamos dentro da canoa tirando a água, das canoas furadas e os outros descarregando caminhão, descarregando tudo; jardineira, pra passar na balsa. Era dessa forma que a gente podia sair de lá. Ou outro caminho que havia, além... Esse era vindo pra Patos de Minas. Pra ir através de Patos de Minas nesse caminho mais ou menos que vocês passaram. O outro caminho que nós tínhamos era indo pra Patrocínio (MG), que passava lá pelo Paracatuzinho, não sei se vocês viram lá, sabem onde é, o bairro proletário de lá, que hoje é o bairro mais importante da cidade, maior e tudo. A gente passava pelo Paracatuzinho, vinha até as Traíras (MG), passando pelas Traíras, Guarda-Mor (MG), Guarda-Mor vinha chegar a Patrocínio, Coromandel (MG), por esse caminho, esse trajeto. Era estrada que não havia rio, mas o resto tudo era cercado pelos rios.
P/1 – E dessa época dos rios, o abastecimento da cidade era feito muito pelos rios?
R – O abastecimento da cidade, o grande abastecimento, quando eu era menino mesmo, era através do Rio Paracatu. Havia navegação. Essa navegação, era o dono dela o Quintino Vargas, aquela avenida que tem o nome de Quintino Vargas, ele apareceu lá como tropeiro e tudo, e ficou importante na cidade, um sujeito muito inteligente, morreu como deputado estadual. Tinha três vapores que vinha do São Francisco, Pirapora, Paracatu, era o Paracatuzinho, o Afonso Arinos, Saldanha Marinha, parece, que era o nome do outro. Você se lembra disso. Acho que eu ponho isso lá. Eu não lembro tanto assim. Eu não tô mais pra ajudar tanto, não. E vinha toda a mercadoria, sal principalmente, essas coisas, vinham todas através dos vapores, e também passageiros. Eu tenho num livro meu, que eu não sei se... Se você leu, tá lá. Dudu Rocha descrevendo nas notas lá, não tem isso? Dudu Rocha descrevendo uma viagem em que o vapor tomba, tem qualquer coisa assim, não tem? É aquilo. Então tem a importância do vapor, ia chegar ao Porto Buriti. E nós lá dentro da cidade sabíamos o dia que o vapor... Que o Porto Buriti fica uns... Hoje eu não sei, que hoje com esse negócio de modificação de estrada, naquela época devia ser uns 60 quilômetros, mais ou menos, distante da cidade. Se vocês vindo de Paracatu, indo daqui pra lá, ou vindo de lá pra cá, de lá pra cá à direita, daqui pra lá à esquerda. Não. Daqui par lá, à direita, de lá pra cá, à esquerda, você vê assim a entrada da fazenda sei lá o quê. Tem uma entrada lá, ali ia para o Porto Buriti. Porto Buriti era onde ancorava os vapores. Eu tenho fotografia no meu livro disso aí. Tem lá. O vapor. Esses vapores tiveram muita influência no comércio. E como nós sabíamos que tinha vapor lá? Afonso Baiano, ele tinha seu caminhão... Tem um filho só dele vivo lá, tá com 92 anos, parece, o Ildeu. Vocês foram nele? O Ildeu... E tinha o Neném. O Neném morreu há pouco tempo, o irmão dele. Por lá o chamam pelo nome, acho que é Valfrido. Eu sei pelo Neném, Neném de Afonso. Eles moravam em frente lá de casa. Na época foi bom, porque eles nos levaram lá. Mas antes eu quero contar como a gente sabia que eles estavam lá. Chegavam a Paracatu os marinheiros, eles com aqueles uniformes, um azul descorado, não sei como, não sei como eu vou dizer esse azul, colocou o marinheiro com a túnica e tudo. Eles chegavam, então a gente falava: “Olha, tem vapor em Paracatu, o marinheiro tá na rua”. Afonso Baiano era o pai dele, Juca Baiano, acho que era o pai dele, que começou do pai, acho que era o explorador do porto. Ele tinha uma casona lá, que depositava mercadoria, e ele tinha um caminhão amarelo, eu lembro direitinho desse caminhão, a gente ia lá ajudar a lavar lá na praia, que a praia era tudo: praia tirava ouro, praia lavava roupa, praia lavava caminhão, praia a gente passeava, tudo era a praia. A praia eram as coisas todas. Nós fomos lá. O vaporzinho lá, vocês veem que teteia que era com as cabines, com as coisas todas, tudo a vapor mesmo, lenha, cheio de lenha atrás. E nós fomos almoçar, um almoço muito característico deles, com muito peixe, muita coisa. Eu lembro que eu ainda levei um beliscão, porque eu chorei porque eles puseram um pedacinho só de queijo e de goiabada no meu prato, e eu queria mais, e papai: “Quieto, menino”. Eu não podia falar nada. Era desse jeito. Eu lembro direitinho dessa ida lá ao Porto Buriti. Lembrança... Tudo passa.
P/1 – E o senhor tava contando, o abastecimento nessa época era feita através...
R – Ah, tinha os Rabelos, os Rabelos era uma turma forte lá, que hoje a turma continua sendo forte, que são os donos daquela Athenas. Manoel Rabelo, a dona era família pobre, mas eles todos eram dedicados a caminhão, caminhoneiros. E os Rabelos traziam também muito, transportava muito, aí eles vinham através do Rio Paracatu, passando aí no Pontal, ou então por Patrocínio. Por que Patrocínio? Porque Patrocínio tinha uma estrada contínua, tem até hoje, a estrada de ferro. Vinha através desse trem até Patrocínio e o caminhão pegava e trazia pra cá. Eu lembro que o correio lá em Paracatu, era o trem mais difícil chegar correio, gastava... Quando vinha um caminhão quase cheio. O dia que chegavam as malas, chegavam as malas do correio, o Correio era na Rua do Ávila, hoje não existe a casa mais, ali onde é a casa do Doutor José Neiva, ali era o Correio, Renato que era chefe do Correio. Renato, família tradicional, Roquete. E o Renato tinha que fechar o Correio no dia que chegavam as malas. Por quê? Pra distribuir a correspondência. Então tinha uma prateleira enorme lá no Correio e eles tinham o nome de cada pessoa que assinava jornal, o nome, eles iam botando a correspondência. E eles não tinham carteiro pra entregar, não, a gente ia buscar. Menino, meu pai mandava buscar: “Ei, a correspondência aí, o que veio pra Itamar? Apanhava as coisas, levava lá pra casa. O jornal, meu pai sempre assinou o jornal, foi uma coisa muito boa que nós tivemos lá em casa, foi isso. Aprendemos a gostar de ler desde pequeno, jornal e tudo. E eu lembro que ele me punha, quando eu comecei a aprender, ele me punha pra ler pra ele o jornal. Meu pai também era meio didático nesse ponto. E eu acho que adquiri esse gosto pela história através dele. Ele sempre foi um homem curioso, gostava dessas coisas, guardava. O mal dele foi ser muito fechado, não contar pra gente muita coisa que ele devia ter contado, tanto de família, como de vida na comunidade.
P/1 – O senhor contou um pouco hoje como se dá o abastecimento da cidade. E como era a vida religiosa nessa época na cidade? Que igrejas tinham? Como estava a condição das igrejas?
R – Olha, lá nessa época minha tinha ainda a Igreja do Amparo, já tava caindo, eu e lembro dela, que é no lugar que tá na Praça Cristo Rei ali, quando vocês vêm da avenida. Aquilo ali era um estreito assim, tinha uma padaria, que deu uma briga política danada ultimamente aquilo ali. Tem a imagem de um Cristo Rei lá, vocês viram a imagem lá? Aquela imagem tem até uma história engraçada sobre ela, eu tenho até a fotografia disso aí, eu posso mostrar pra vocês mais curiosos. Tem lá também no museu. A imagem tem a mão assim de Cristo Rei e eles iam colocá-la virada com a frente para a Rua das Flores. E a Igreja Presbiteriana, você sabe onde ela fica, né? Aquela com aquela torre. A Igreja Presbiteriana lá, a imagem então ficava com a mão direita assim, e o povo falava: “Eis a nossa igreja”. Então o bispo mandou que virasse a igreja pra frente da padaria do Carijó. Que na frente ficava a padaria Carijó por causa disso. A igreja lá, quanto ao protestantismo de Paracatu, no meu tempo de menino era só a Igreja Presbiteriana, não tinha outra. Eu lembro ainda da casa velha deles, que é no local que tá aquela igreja, que eles faziam o culto deles ali, professava o culto deles ali. Depois eles demoliram e construíram aquela igreja. Não sei onde eles arrumaram dinheiro, não sei como foi, isso eu não posso informar nada. Tenho aqui, porque eu devo ter aqui no meu arquivo, as fotografias, mas tá lá em Paracatu, vocês podem procurar a fotografia lá no arquivo que tem, da igreja primitiva com a igreja atual. São mais antigos em Paracatu. E naquele livro meu que você leu, fala tudo quanto foi. Depois, só muito tempo depois que vêm surgir as outras igrejas. Agora, quanto à igreja católica, lá havia cinco igrejas: Santana, a Matriz que é de Santo Antônio, a Igreja do Amparo, que é onde tá esse Cristo Rei, tá aí três? Santana, Matriz, Cristo Rei, Abadia, tem outra. Eram cinco. Abadia é lá onde está a prefeitura, mais ou menos ali. O Amparo é onde tá Cristo Rei. Ah, Rosário. Esqueci-me do Rosário. Eram cinco igrejas. Dessas, a mais rica era a de Santana, mas como nós tínhamos... Não é falar mal, não, é falar a verdade. Era uma pessoa boníssima, eu gostava muito dele, tinha muito relacionamento com ele, ele e os padres, todos carmelitas holandeses, sem nenhuma afinidade à terra, sem nenhum amor a nada, simplesmente não tinha capricho de conservar, de preservar. A Igreja da Santana era muito rica, e só existe dela, graças a Deus sobrou aquela lembrança, que eles trocaram, o patrimônio histórico mandou trocar. Tem a fotografia mostrando como era o altar da matriz primitiva de Santo Antônio e tem a Igreja de Santana. A Igreja de Santana, a única coisa que tá lá na catedral hoje, o altar mor da catedral, sem as colunatas, que Dom Elizeu vendeu, tem até o preço foi vendida cada imagem, cada coisa, aquelas colunas. Vocês têm as fotografias dele perfeito, que é de 1935, quando foi demolida. A Abadia era propriamente dos Neivas, uma igreja propriamente familiar. Teve muita briga por conta disso. Tá tudo lá no livro. Se você ler, se quiser mais aprofundamento, na história da igreja mesmo de Paracatu, aí você vai ver a briga de famílias religiosas, essas coisas todas. Mas lá teve muita briga com o padre, muita mesmo. Inclusive a prelazia foi criada, que é uma diocese em formação, e levaram os carmelitas. Porque os carmelitas tiveram duas opções: ou eles iriam para o Acre, ou para Minas Gerais. Eles preferiam Minas Gerais, foram pra Paracatu. Senão seria no Acre. E eles foram pra lá, infelizmente dom Elizeu deixou demolir a igreja, autorizou. Deixou não, autorizou a demolição. A Igreja da Abadia era briga de família e tal, também tá tudo lá escrito, eu não lembro assim, não posso dizer pormenores. Porque lá era domínio... Lá, inclusive, tem no meu livro, nesse livro que você leu, você deve ter lido lá: Banco dos caceteiros. Acho que é o primeiro texto que eu tenho nesse livro Memórias de um Tempo, era onde eles se reuniam... Lá em Paracatu tinha o banco dos caceteiros e o toco do pecado. O toco do pecado era em frente à igreja catedral hoje. Tem também a fotografia, dá pra ver o toco perfeito... Era um apranchão de aroeira lá no chão, ali se você quiser saber tudo que acontecia na cidade, era ele lá. Lá era o lugar das fofocas, de falar mal dos outros, saber toda a vida de quem fez, quem não fez, então era ali no toco do pecado. E tinha o chefe do toco. E frei Norberto, pra acabar com o toco do pecado, qual a política dele? A política dele foi frequentar o toco do pecado. Ele passou a frequentar o toco do pecado, e a turma fugiu do toco do pecado, e eles puseram um banco lá em frente o cemitério, passaram para o banco do cemitério. Lá transportaram o toco do pecado para o lado do cemitério. Acho que tá tudo isso. Você não leu lá? Você lembra? Acho que tem tudo isso lá naquele livro meu.
P/1 – E me fale uma coisa, professor, o senhor estudou na escola normal. Eu queria que o senhor falasse um pouquinho da decisão de ir para o seminário.
R – Ah, bom. É essa que nós ficamos no meio do caminho. A decisão do seminário era o seguinte, meu pai não tinha condição de me manter num colégio interno, que naquela época o gostosão era colégio interno. Lá em Paracatu deve ter um, não sei se vocês tiveram a oportunidade de falar com ele, o Joaquim Campos, ele chegava todo metido lá naquele uniforme de gala do colégio com capacete, com tudo, e tal, e a gente ficava numa inveja olhando aquilo: “Oh, Diabo, se eu pudesse ir pra fora, estudar fora”. Era se julgava importante de estar naquele colégio, então a gente queria sair. E frei Norberto influenciava a gente e foi lá no meu pai pra deixar a gente ir para o seminário. E a gente tava influenciado. Por quê? O que eu queria? Eu queria conhecer outra conhecer outra cidade, outra serra, outra coisa, eu tinha vontade de sair de Paracatu e sair também daquele rigor da minha mãe e do meu pai, que a gente tinha uma vida muito limitada, tudo primitiva, a gente não podia fazer nada, tudo não podia. O que aconteceu? Ele influenciou a mim, no caso, e outros mais. Mas no eu caso, meu pai não queria que eu fosse, não. Uma, que meu pai não tinha condição. Ele falou: “Não, eu dou um jeito, você vai gastar quase nada com ele, tal”. Meu pai aceitou de eu ir. E eu lembro direitinho que foi por dois contos de réis. Dois contos. Meu pai: “Bom, dois contos por ano, eu dou conta”. Mas eu fui com um castigo atrás, fiquei proibido de voltar a Paracatu durante dois anos porque não podia gastar, fiquei internado lá no seminário em Itu. Fui pra Itu, São Paulo, cidade bem antiga, muito mais antiga que Paracatu, aí fui pra lá. E Itu me valeu em muita coisa. Fui pra Itu, cheguei lá, eles me botaram logo apelido de Urucuia, por quê? Porque eu vinha da região do Urucuia. Menino, sabe como é, vai botando apelido em todo mundo, e eu com aquele botinão, que seu sempre gostei de uma botina. E fui pra Itu. E lá em Itu eu me dediquei a muita coisa. E teve um padre lá, que eu devo muito a esse padre, já deve ter morrido há muitos anos, frei Mário Bastos, ele notou que eu tinha esses interesses e me ajudava, me influenciava. Eu lembro que ele percebeu que eu gostava de história e ele mandou que eu lesse os livros de Paulo Setúbal. Eu li toda a coleção de Paulo Setúbal. Aquela coisa toda, eu fui muito influenciado por ele nesse sentido. Nós tínhamos o grêmio no seminário chamado Beato Batista Mantuano, e lá a gente escrevia, lia, fazia discurso, era uma coisa muito boa, muito positiva na aprendizagem da gente. E lá no seminário, uma das coisas de impacto que eu sofri foi de me perguntarem sobre Paracatu, que eu não sabia nada. Nada, nada, nada, nada. Inclusive, eu não tinha nem noção do que era asfalto. Porque eu falava: “O calçamento de Paracatu é asfalto, igual o seu”. E Itu naquela época era calçada toda de paralelepípedo, você conhece aquele calçamento. E eu falando que aquilo era asfalto, de tão burro que eu era. Hoje ainda sou, só fiquei menos burro um pouco. Aí o tal do asfalto. E ele me chamava de caipira, não sei o quê, tal. Eu falei: “Gente, eu preciso estudar sobre Paracatu”. Eu escrevi pra minha mãe pra ver se ela arrumava pra mim A Memória Histórica de Olímpio Gonzaga. Que Memória Histórica de Olímpio Gonzaga era uma coisa mais interessante, era igualzinho Deus, todo mundo sabia que existia, mas ninguém conhecia, só ouvia falar. Deus não é assim? Fala Deus, Deus, mas ninguém vê. Com aquela história... Minha mãe conseguiu um emprestado, porque lá em Paracatu não achava. Alguém emprestou pra minha mãe. Que pena que eu não guardei isso. Ela pagou Augusta de Tataia pra copiar pra mim toda mão, todo o livro do Olímpio Gonzaga. Vocês devem conhecer Memória Histórica de Paracatu. Copiou e mandou pra mim. Aí eu fui ler aquilo, e eu vi: “Olha, gente falta isso, falta aquilo”. Eu já tava estudando, tinha uma noção melhor das coisas e tal. Eu passei a me interessar pelas coisas de Paracatu. E nesse interesse, eu fui pra Afonso Arinos e descobri que Afonso Arinos era uma pessoa importantíssima na história do Brasil, como membro da Academia Brasileira de Letras, autor de Pelo Sertão. Aí fui conseguir no seminário, eu só lia através de antologias de livros escolares algum texto dele. Um dos primeiros textos dele que eu conheci foi O Buriti Perdido, que até hoje é muito divulgado, quase toda antologia que fala sobre ele tem. Ele começa: “Aquela velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista” – e que termina com um texto muito interessante, que o Afonso Arinos sobrinho dele, filho do Afrânio, nascido em Belo Horizonte (BH), sugeriu ao Israel Pinheiro, que era o prefeito de Brasília na época, Brasília já estava inaugurada, na Praça do Buriti, onde tem aquele Buriti sozinho, você chega lá, tem uma plaquinha lá muito mixuruca daquele mármore branco, ilegível quase, lá vocês vão encontrar o final do texto do Afonso Arinos: “Então, talvez uma alma amante das lendas das primevas, não permitindo a tua destruição, fará com que figures no meio de uma praça como um monumento vivo que não foi escrito, mas que referve na mente de cada um dos filhos desta terra”. Então, o Afonso Arinos sugeriu e foi colocado isso lá. E daí veio que o Israel plantou aquele buriti. Transportou aquele buriti da vereda pra lá. E o buriti até aconteceu uma coisa, eu sei disso porque eu trabalhei com o Israel Pinheiro e ele me contou, passado algum tempo, o buriti começou a querer morrer. E, todo mundo preocupado que o buriti tava morrendo, ele foi olhar, falou: “Ah, também vocês são burros. Tem que ver que o buriti não dá no seco, não, tá faltando é água nisso aqui”. Aí puseram o merejo de água lá, porque todo buriti dá numa vereda, e a água excessiva mata o buriti, a falta de água também mata o buriti. Você pode ver que ele só dá nas veredas. E o buriti tá lá, eles sabem disso, hoje ele tá alimentado com a água, os técnicos foram estudar, foram ver, tá alimentado com aquela quantidade necessária de água. E com isso, o final de Afonso Arinos ali na Praça do Buriti. Mas o que você tá querendo saber?
P/1 – Então, o senhor tava contando pra gente como o senhor começou o interesse por estudar... Como surgiu esse interesse de entender a história de Paracatu?
R – Uai, por causa do pessoal lá Itu me perguntar e não sabia nada. E depois, outra coisa que também me ajudou muito mais tarde, eu já como seminarista, eu tava no largo da Matriz, nas escadarias antigas, eu acho que era filho do doutor Moacir, um dos filhos do doutor Moacir Santos, eu não tenho muita certeza, eu tava lá e alguém perguntou sobre a igreja. O sujeito falou: “Não sei. Eu não sou daqui”. Pra não falar que não sabia porque... “Não. Não sei. Não sou daqui.” Aí eu me preocupei, foi quando eu comecei a me preocupar em escrever os livros que eu tenho: Paracatu Minha Terra, e Paracatu Meu Bem Querer para os estudantes de acordo com as exigências governamentais, didáticas e tudo. E tá já em terceira edição esse Paracatu Meu Bem Querer, que depois eu posso te mostrar, é um livro que tem muita influência no meio da criançada, todo mundo. E eu tenho um também sobre Patos de Minas que se chama Patos de Minas Meu Querer. Tem um de Vazante também que é Vazante Meu Bem Querer. Então eu comecei a adaptar pra isso, porque a família toda integra no conhecimento, que é obrigado, que o filho vai pra perguntar para o pai, o pai tem que saber e tal. Essa parte toda didática que a gente utilizou.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. Como era o ambiente do seminário? Como era o cotidiano?
R – Ih, aquilo era duro pra danar. Seminário era fechado, ninguém saía. Aquilo ali era um rigor fora de série. Se bem que os carmelitas, até certo ponto, eram mais liberais. Uma liberalidade até que eu acho que foi perniciosa. Eu aprendi a fumar no seminário. Deixavam a gente fumar. Holandês. Holandês, dizem que já nascem montado numa bicicleta com um cigarro no canto da boca, então todo mundo lá podia fumar. Tinha um acesso, as liberalidades haviam, mas era que nem o orismo da época e sempre aqueles problemas dos padres na igreja, nas pregações, botar a figura feminina como uma coisa horrorosa. Era aquele rigor. Por exemplo, toda correspondência era censurada. Eu podia escrever para os meus pais, claro, mas era obrigado a entregar para o reitor em envelope aberto, ele lia pra ver se podia mandar, se não tava falando mal do seminário, falando mal de padre, falando mal de qualquer coisa. A que chegava também, a gente já recebia lida. A gente via lá na porta do quarto do reitor, o cara doido pra apanhar, mas não podia. Esperava, ele entregava pra gente a hora que ele queria, do jeito que ele queria. Era muito rigor. Mas foi bom, foi um período que eu aprendi muito. Eu virei barbeiro. O frei Mário, além de me alertar pelo interesse pela escola, pelo estudo, pra leitura, pra essas obras históricas, ele me ensinou a ser barbeiro. Fui barbeiro muitos anos, me sustentei num seminário maior, inclusive, no Rio [de Janeiro], tenho fotografia, posso mostrar. E desse seminário menor, eu fiquei barbeiro. E outra coisa que eu aprendi também foi encadernação. Ele também me ensinou a encadernar. Eu tenho livros aqui encadernados por mim. A gente encadernava, fazia tudo. Aprendia a fazer tudo isso no seminário. Agora, por que ele fez isso comigo? Porque eu sempre fui avesso à ginástica. Sempre. Hoje eu faço um tal de pilates, que a mulher me obriga, pra eu ter firmeza. Porque hoje eu ando de bengala porque eu não tenho firmeza nenhuma. Faço esse tal de pilates duas vezes por semana. E o padre percebeu que eu não gostava de futebol, lá tinha aquele negócio de raquete, como chama?
P/1 – Tênis?
R – Não.
P/1 – Pingue Pongue?
R – Tênis de mesa, que eles falam hoje, na época a gente chamava de outro nome.
P/1 – Pingue Pongue.
R – Pingue Pongue. Havia o pingue pongue, eu não ia pra isso. Havia tudo que era ginástica, que era coisa. Não aprendi a nadar, não sei nadar, não sei fazer nada. Se me jogar dentro d’água aí, eu vou para o fundo na hora, que nem uma pedra que tá jogando. Então ele percebeu isso, o quê? Pra eu não ficar... Aquele negócio, preocupado com a vida sexual da gente, eles botavam a gente pra trabalhar naquilo que a gente podia se interessar. E ele me botou no barbeiro e para encadernar, eu dei certo com isso, eu sei que foi ótimo pra mim. Eu não continuei a vida de encadernador porque tinha um problema de corte. Só pra você ver, eu raspava o livro, pra ficar igual, com grosa, Sabe o que é a grosa? Passava a grosa cortando aqui. Segurava o livro numa... A palavra me fugindo. O troço lá, a gente apertava assim, ficava bem seguro e passava a grosa pra arrumar o livro, essas coisas todas. Eu aprendi essas duas coisas de profissão, ficava lá no seminário. E seminário tinha aquele absurdo, a gente não vinha quase em casa, podia vir só uma vez por ano, ficava poucos dias e voltava logo. E era aquele sermão antes de ir: “Cuidado com as priminhas. Cuidado com as priminhas”. Porque eles tinham muito medo, o sujeito ia, arrumava uma namorava, qualquer coisa, e o sujeito ficar, não voltar mais. Então voltava aquilo. E pregava de tal forma a ponto de chegar de madrugada, o sonho com aqueles grilhões que os carvoeiros usam pra pegar carvão no coiso com os grilhões do inferno na gente porque pensou em mulher pelada, pensou em qualquer coisa e não podia. Então aquele rigor excessivo, que acho que igreja não mudou até hoje, mas pelo menos já contemporizou mais, esse negócio de casamento de padre, essas coisas todas.
P/1 – E o senhor ficou em Itu quantos anos lá?
R – Eu fui pra lá em 51, saí de lá em 56, cinco anos. E Itu me falavam muito também, já que você falou em Itu, porque Itu é uma cidade muito antiga e muito tradicional na história do Brasil, então eu tive muito interesse, aprendi, lá é cheio de igreja. Itu também tem uma porção de igrejas antigas, por exemplo, a Candelária, o Carmo, Igreja de São Francisco, o Colégio do Patrocínio, a Santa Casa, não sei se ainda existe, muito bonita, um prédio antigo. Então, Itu me marcou muito... Ah, tinha um museu famoso lá, que acho que ainda deve ter até hoje, que eu tenho um livro aqui sobre ele, o Museu da Convenção, não sei se você conhece Itu. Conhece? Tá a igreja matriz principal de lá, que na minha época só tinha aquela igreja, como matriz a Igreja de Candelária e do lado tá o museu, uma casa muito bonita, que foi onde eles realizaram a convenção em 1870, a Convenção Republicana. Então Itu me ajudou muito, aquele ambiente. E Itu teve uma coisa muito curiosa, por que Itu hoje é famoso que tudo lá é do exagero? Você sabe por quê? Pois eu te conto. Simino era natural de lá, era radialista, muito cômico, e começou nas rádios, naquela época o povo só escutava rádio, não tinha televisão, porque lá em Itu tudo é grande, tudo é grande, e o povo de lá aproveitou isso e começou, fez o bife, tem o bife de itu, eu tenho aqui hoje uma borracha de Itu, o lápis de Itu, tudo exagerado. E quando veio o telefone, eles fizeram um baita de orelhão lá na praça principal, lá em frente à Igreja da Candelária. Agora, esse bife de Itu, ninguém dava conta de comer. Picolé, eu levei meus meninos lá em 1976, 76, é, meu menino caçula é de 70, eu os levei até lá pra eles conhecerem onde eu estudei, onde eu vivi lá na Irene do Cabo. Irene do Cabo tem uma pintura célebre lá do padre Jesuíno, Monte Carmelo, não sei se você teve oportunidade de entrar lá e ver, lugar que a gente cineminha e tudo. E meu menino, eu lembro que nós chegamos a Salto (SP), não precisou nem chegar a Itu, porque Salto e Itu virou uma cidade só, pelo que eu pude ver lá naquela época que eu fui lá, depois disso nunca mais voltei lá. E Salto, eu lembro que eu comprei um picolé para o meu menino, ficou doidinho, um picolé desse tamanho. Tem a fotografia dele, não aguentou nem um terço do picolé, de tão grande que era, teve que jogar fora. E o Itu aproveitou disso, Salto aproveitou e ficou com essa fama. E com essa fama, eles fizeram um turismo fora de série lá com isso. Depois disso, eu nunca mais voltei lá, não sei o que pode ter acontecido.
P/1 – E quando o senhor tava no seminário, que lembranças que vinham de Paracatu que o senhor carregou nessa época com o seminário.
R – Olha, eu costumo dizer, eu saí de Paracatu, mas Paracatu nunca saiu de mim. Tá dito. Desde lá, sempre eu tive Paracatu comigo em tudo, principalmente aquele Córrego Rico, as ruas, aquilo me marcou a vida inteira. Então eu tenho essa frase comigo: eu saí de Paracatu, mas Paracatu não saiu de mim.
P/2 – E como o senhor exercitava essas lembranças de Paracatu lá no seminário? Já existia a questão da escrita?
R – Ah, escrita, olha, eu era doido pra escrever em jornal. Em Paracatu surgiu a Tribuna de Paracatu, e nesse meio tempo morreu o doutor Maneco lá Paracatu, novo ainda, médico muito querido, muito idolatrado lá, e eu escrevi um artigo, Saudades, com o título Saudades. E eu lembro que eu pus um trecho de Horácio... Como é o negócio? Ah, eu tenho esse artigo fácil de achar aí. Eu sei que a frase de Horácio é mais ou menos assim: “Até quando eu posso não chorar a saudade de uma pessoa tão querida?”. É mais ou menos nesse sentido. Ah, não, esqueci. Escrevi esse artigo sobre a morte de Maneco, em homenagem a Maneco. E o negócio deu uma repercussão muito boa em Paracatu e mexeu na minha vaidade, aí eu passei a escrever, registrar tudo. O que me atrapalhou mais foi quando eu fui para o noviciado dos carmelitos, em Mogi das Cruzes (SP), fiquei um ano lá em Mogi das Cruzes, aí eu era obrigado a ler o que o padre mestre queria, eu não podia ler o que eu queria, não podia nada, era tudo sob ordem deles. Então eu fui tolhido um pouco. Depois que eu saí dos carmelitas e passei para o clero diocesano, quando eu vim morar aqui em Patos de Minas como seminarista, que o dom Elizeu não me quis como seminarista lá, não porque ele não queria saber de padre diocesano, porque os carmelitas não deixavam. Eu passei pra aqui, fui recebido aqui muito bem pelo bispo daqui, dom José André Coimbra, meu menino caçula até tem o nome dele por causa dele... E aqui ele tinha um jornal começando, tinha saído acho que três ou quatro números, chamado Folha Diocesana. Eu vim pra cá em setembro e esse jornal saiu em outubro, mais ou menos. E eu comecei... Eu gostava daquela vida, daquele trem, eu virei propagandista do jornal, o jornal tinha 500 números, dentro de poucos dias, até eles arrumaram o seminário pra onde eu deveria ir, eu fiquei viajando vendendo assinatura da Folha Diocesana. O jornal teve uma influência muito grande aqui na comunidade, ele circulou muitos anos. Eu comecei a escrever, fazer, por exemplo, eu ia a Araxá (MG) vender assinatura do jornal, e eu fazia uma reportagem sobre Araxá, eu ia a Campuzal (SC), a mesma coisa eu fazia. Depois eu falei: “Gente, eu vou levar esse jornal pra além disso tudo” – levei o jornal pra Cristalina, lá em Goiás. O padre lá me apoiou, consegui um mundo de assinatura, fiz um artigo sobre... E o povo gostava, porque ninguém falava sobre Araxá, ninguém falava sobre coisa, apesar de Araxá ter o monumental Barreiro, a ponto que eu fiz a reportagem sobre Araxá, teve uma dona lá, Bitar, não sei o nome dela, sei que o sobrenome era Bitar, ela falou: “Primeira vez que eu leio sobre Araxá sem botar acima de tudo o Barreiro, falou sobre a cidade de Araxá”. Então apresentei aquela figura. Eu sempre tive essa tendência de conhecer, de buscar. Em Itu, foi uma das primeiras coisas que eu fiz, foi conhecer a história de lá. Inclusive, eu tenho livro sobre Itu. Itu tem uma história muito marcante nos leprosos. Não sei se vocês já ouviram falar nisso, lá tem o famoso leprosário, hoje eu não sei o que é, porque acabou isso, um Leprosário de Pirapitingui. O cemitério dos leprosos era separado do outro cemitério. A capela tinha a figura do padre Bento, que até saiu um selinho, não sei se vocês se lembram disso, a semana do leprólogo, um selinho pequeno com a figura do padre Bento. Padre Bento era de Itu, ele arrebanhava, juntava todos os leprosos. E Itu era cheio de capelinhas na beira das estradas, onde os leprosos morriam, eles construíam uma capelinha ali naquele lugar. Essas coisas me marcaram muito. E eu fiquei sempre interessado por tudo isso, sempre fui curioso por esse lado. E com isso, eu sempre associava Paracatu. Que Itu era de 1603. A origem de Itu é 1603. A origem de Paracatu, pra mim é antes de 1700, mas oficialmente é 1744, de 24 de junho de 1944, quando o José Rodrigues Soares resolve levar ao conhecimento do governo a descoberta das minas de Paracatu justamente no período em que Portugal tava mais do que tudo necessitando de ouro, porque as outras minas, de Ouro Preto (MG), Sabará (MG), tinham tudo caído em decadência, as de Paracatu subiram, foi daí que veio a fama do ouro de Paracatu.
P/1 – O senhor tava falando de seminário, o senhor saiu de Itu, foi pra Mogi. Por que o senhor foi pra Mogi?
R – Mogi, eu fui pra fazer noviciado. Porque religioso quando termina o seminário menor, eles fazem um teste na gente, eles achavam que eu dava conta de continuar na vida de religioso, então lá vai para os carmelitas. Ali a vida da gente é anulada. A vida civil da gente é anulada. Aí a gente troca de nome, no aniversário não é mais data de aniversário, é na data do nome que você recebe, os padres é que dão o nome. Eu, por exemplo, fui chamado lá de frei Alberto. Então meu aniversário, que era 22 de abril, passou a ser no dia sete de agosto, chamava-se a festa onomástica. Então faz essas coisinhas, que nem da idade média, a verdade é essa. Essas estruturações todas, sabe? E lá eu fiquei até o final, ele não queria me deixar sair, foi uma guerra pra sair, mas eu saí vindo pra cá para o clero diocesano. Dom Elizeu não me quis, mas ele falou: “Você não precisa se preocupar, não. Já conversei com o seu pai, vou arrumar pra você uma diocese”. Queria primeiro que eu fosse pra Diamantina (MG), mas o dom José Nilton, foi o primeiro arcebispo de Brasília: “Não. Não quero, não”. E aí veio dom José, me aceitou e eu vim pra cá.
P/1 – E como o senhor deixa a vida religiosa? Como isso acontece?
R – Ih, é horrível. Naquela época, todo mundo achava que você largava o seminário por conta de mulher, e não era. Largava porque não queria ficar e pronto. Mas todo mundo, a interpretação na comunidade: você largou por conta de fulana, por conta de bel... Todo mundo fala que eu larguei o seminário por conta da minha mulher, eu vim conhecer a danada, já tinha... Não sei quanto tempo que eu não tava no seminário mais, tinha largado do seminário há muito tempo, e a conheci... Eu lecionava no colégio municipal aqui, ela foi convidada pra dar aula de Francês, que ela sabia o francês, estudou em colégio de francesas, ela foi ser professora lá, entrou aquela mocinha lá toda coisa, sem olhar pra ninguém, falei: “Quem é essa dona?” “É fulana”. E começou esse rolo. Eu nunca tinha tido namorada, ainda tava santo feio um diabo, de uma hora pra outra to eu namorando-a sem saber como. Eu não sei até hoje como namora. Não sei como conquista uma mulher. Não sei, não. Foi tão estranho. Acabava a aula, o horário dela acabava com o meu, tal, bicicleta no meio, que ela andava só de bicicleta, passava em frente a casa do pai dela, ela entrava: “Até logo” “Até logo”. Eu montava na bicicleta e já ia montado. E tinha uma professora, coitada, ela era muito amiga minha, saudade dela, morreu o ano passado, ela falava comigo, ela gozava: “A lá, lá vão os dois. Aquilo ali já tem namoro”. Então isso fazia um inferninho na minha vida, e eu não sabia se tinha ou se não tinha. E fiquei sabendo que ela tava interessada por mim porque ela mandou a irmã dela me telefonar perguntando se eu tinha algum programa naquele domingo, aí que eu percebi que o trem tava ficando desse jeito e complicou minha vida.
P/1 – O senhor tava falando dessa coisa, o senhor largou a vida religiosa porque o senhor percebeu que não tinha...
R – Eu nunca quis ser padre. É aquela história inicial, queria sair de Paracatu, queria conhecer outro mundo. Foi isso. E o único meio que eu achei foi esse. Eu não podia ir pra um colégio interno, meu pai não podia pagar, no seminário podia, lá fui. E cheguei lá, acostumei. Fiz todo o seminário menor, fiz esse noviciado carmelita, saí, entrei pra cá, fiz todo o seminário maior e não quis ser padre. Na hora de receber as primeiras rodas, eu já podia ser até ordenado padre, falei: “Não. Não quero, não”. Não aceitei. E saí com a briga que eu tive com o reitor do seminário maior em Belo Horizonte. Eu já tava no seminário em Belo Horizonte. Ângelo Raso, eu lembro que meu avô morreu, ele não deixou meu irmão me comunicar, não deixou nada, e que não sei o quê, eu já tava marcado pra eles me mandarem embora. Aí quando ele veio, eu falei: “Olha, padre, o senhor é raso até no nome. Eu vou embora hoje, eu tenho dinheiro pra ir, eu tenho dinheiro pra pagar passagem, eu vou embora”. Pronto. Minha mala é fácil, é só carregar umas roupinhas aqui, não tenho mais nada, vamos embora. E briguei com ele e saí. Cheguei aqui a Paracatu, junta dom Raimundo, bispo de Paracatu, dom Elizeu, ex-bispo de Paracatu, e dom José aqui, os três pra eu não sair, pra eu continuar. Falei: “Não. Já vi que não me interessa, não tenho interesse, tal”. O bispo, muito bom comigo, muito amigo da gente, me ajudou demais. E eu, infelizmente, o único azar que eu tive foi de virar professor. Oh, profissão... Em termos financeiros, Deus me livre.
P/1 – E como foi? Onde o senhor deu a primeira aula? Onde o senhor começou a dar aula, virou professor?
R – Eu comecei a dar aula como seminarista mesmo. Eu tive um problema de saúde no seminário e eu comecei a dar aula para os seminaristas aqui, no seminário menor daqui de Patos de Minas, que tinha o seminário Pio XII e eu morava lá. E depois, a Filomena, a diretora aqui da escola normal, em 1959, que eu seminarista e tudo, me chamou pra dar aula lá. Tinha um padre lá de Latim, professor de Latim, que era terrível, padre Inácio, ele perseguia os meninos sem os meninos fazerem nada, essas coisas. E ela me chamava lá pra corrigir as provas em Latim, que eu sabia bem o Latim, essas coisas todas. E comecei a dar aula e fiquei. Chamaram-me de bom professor, fiquei com esse apelido. E quando larguei tudo mesmo, eu ainda era seminarista em 1959, eu larguei em 1962. Quando eu deixei o seminário mesmo, aí eu fui dar aula no municipal, caçar jeito de ganhar dinheiro. E fui para o municipal, o municipal virou estadual. Quando ainda municipal, eu fui para Paracatu, me chamaram pra lecionar lá, lecionei um ano na escola normal, fui diretor de lá, depois voltei, casei e fiquei. Nesse ficar aqui, eu andei algum tempo fora, porque nesse meio tempo eu trabalhei com o Israel Pinheiro antes de me casar, pra ajudá-lo a fazer a história de Brasília, que ele queria fazer. Depois veio a revolução, tudo atrapalhou, ele ficou com um medo danado... Eu vim embora, voltei aqui pra Patos de Minas, continuei minha vidinha de professor, sempre escrevendo. Nunca deixei de escrever. A Folha Diocesana foi... Aí eles me entregaram a Folha Diocesana, que eu passei a ser diretor dela e fiquei 25 anos fazendo jornal aqui, fazendo de tudo.
P/1 – Eu queria que o senhor voltasse um pouquinho e contasse um pouco lá de Brasília, quando o senhor foi trabalhar com o Pinheiro.
R – Olha, Brasília, a primeira vez que eu vi Brasília na minha vida foi numa reunião dos bispos do Brasil. Brasília tava sendo começada. Havia o Hotel Brasília, e o lugar melhor que tinha lá era a Cidade Livre, que hoje é o Núcleo Bandeirante. E eu lembro quando eu fui pra lá com o bispo, com o bispo como secretário do dom José, aliás, fomos pra Goiânia, reunião dos bispos em Goiânia. E de Goiânia teve uma reunião, o Juscelino ofereceu um almoço lá no hotel... Naquela época... Eu tenho até fotografia disso aí. Tava em construção o Palácio da Alvorada. E nós tivemos um almoço, almoço para os bispos, pra todo mundo, pra toda comitiva, lá no Hotel Brasília, que hoje não sei se ainda existe. Acho que queimou, né? Não sei, teve qualquer coisa assim nesse hotel que era o chique de lá. Nós fomos, eu virei para o eu bispo, falei: “Dom Zé, essa comida aqui, o senhor vê, só passa em mesa de presidente, desse trem. Apesar de o senhor ser bispo e eu não ser nada, isso aqui não vai dar comida fácil pra gente, não. Eu vou embora, eu vou lá pra cidade ali, vou comer lá no Novo Bandeirante, depois eu volto”. Ah, não deu outra. Fui, almocei no Bandeirante, cheguei, dom Zé não tinha almoçado ainda, que tava lá puxando o saco do presidente da república, de ministro tal, de coisa e tal, e eu já tava satisfeito, com a minha barriguinha tranquila lá, e fiquei lá com o bispo o esperando acabar de almoçar pra ir embora. Mas Brasília naquele tempo tava em fase de construção. Eu tenho foto, tudo, tudo era em construção, só tinha esse hotel.
P/1 – O senhor comentou quando chegou a revolução, o senhor chegou a viver a Revolução de 1964?
R – Nesse meio tempo que eu fui pra Brasília, eu sou o homem dos vestibulares, e nunca continuei, eu fiz vestibular pra Direito na Universidade de Brasília, que tava começando, e lá na hora que nós estávamos, eu passei. Eu tava lá na hora, tava fazendo uma prova... Como chamava a matéria? Ciência do Direito, uma coisa assim. Tava fazendo a prova, chegou um filho do Arrais, não sei o nome dele, eu me lembro dele, baixinho, tal, apavorado de tudo: “Olha, a polícia cercou. A universidade tá tomada pela polícia”. A polícia tinha tomado toda a universidade, ninguém podia entrar, nem sair. E cada um, um soldado, um cachorro, um fuzil, e assim foi. A área da universidade não era tão grande quanto hoje, tava iniciando. Eu sei que nós passamos fome lá o dia inteiro, não tinha nada pra comer. A turma que eles queriam prender, eles prenderam, encheram ônibus e ônibus de prisioneiros. Eu quase fui preso quando eu saí de lá e fui embora conversando com uma pessoa que eles estavam atrás dela. E quando foi descer na rodoviária, por acabar, eles quiseram me prender porque eu tava junto com a pessoa. Eu falei: “Espera aí, eu tô conversando com a pessoa, eu vou preso? Eu não tenho culpa de nada, não. Eu não conheço, ele veio do meu lado e tal”. Ele era colega lá, mas ele tava marcado pelo subversivo, pela famosa palavra subversivo. Hoje o que é? Hoje o que eles usam? Não, tem, ora, toda hora tá na televisão, eu que não vejo essa porcaria mais. Como chama?
P/2 – Terrorista?
R – Não. Hoje eles falam negócio de propina, essas coisas aí. Sei lá, essa porcaria que tá o dia inteiro na televisão aí.
(troca de bateria)
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. O senhor tava contando pra gente que o senhor quase foi preso e tal, isso em 1964. O que acontece em 1964, o senhor voltou pra Paracatu?
R – Em 1964 eu cheguei a Paracatu, vim aqui pra Patos de Minas. Voltei pra Patos. Eu trabalhei com Israel Pinheiro uns tempos, fiquei conhecido dele, eu volto pra Patos de Minas em 1964. E acabo vindo pra cá, consigo aula no colégio que eu estava e fiquei. Quando chegou 1968, eu não era efetivo ainda, eu era simplesmente contratado, não tinha segurança nenhuma. Em 1968, o Israel me convida pra ir, eu já era casado, pra ir selecionar lá em... Pra eu ir para o Palácio trabalhar com ele. Eu chegava lá, falava que era eu, entrava na hora. Falei: “Governador, mas eu não posso sem garantia do meu lugar, porque se eu sair de lá, eu perco e tal”. Ele fez uma tramoia lá, conseguiu que eu ficasse com direito do meu lugar garantido aqui, pra eu voltar, ter meu lugar pra dar aula. Porque em 1968 ele ficou governador, me chamou pra eu fazer o trabalho pra ele, que ele queria que eu fizesse em Brasília. E me deu o cargo de oficial de gabinete. Então eu tinha acesso às coisas particulares dele.
P/1 – Vamos voltar. Eu queria que o senhor falasse um pouquinho da época que você morou em Brasília. Qual foi o impacto? Você contou pra gente um pouco essa coisa de Brasília, que você foi lá, que tava começando a construção e tal. Qual foi o impacto de Brasília pra Paracatu?
R – Olha, pra falar a verdade, eu conheci a área de Brasília ainda antes de Brasília, antes do Juscelino ir pra lá. Porque a gente saía de Paracatu pra ir a Planaltina, a estrada é a avenida principal hoje da Cidade Livre, que hoje é chamada de...
P/2 – Rio Grande do Bandeirante.
R – É. Rio Bandeirante. Eu passei por ali, conheci aquele serrado todo. Depois eu voltei só em 1958, já estava na fase de construção, até fiz muitas fotografias interessantes, fiz umas reportagens para o jornalzinho daqui sobre lá. Meu pai é um homem medroso por natureza e não dos deixava fazer nada também, porque aquele medo de tudo. Meu pai não teve visão, porque se ele tivesse tido visão, ele teria mudado pra Brasília, como vários de Paracatu que não tinham nada, se aventuraram e foram, são hoje ricos. Porque teria comprado por preço de banana e era a capital do país. Com aquela onda do Carlos Lacerda contra a construção de Brasília, essas coisas todas, ele ficou com medo, e nós permanecemos em Paracatu. Eu lembro bem, Márcia, quando da inauguração de Brasília, de gente na rua lá, eles foram atrás de mim, eu catava lá, inclusive eu lembro bastante do chefe do gabinete do Ministério da Educação com a secretária dele, nós levamos lá pra casa. Eu fui cicerone...
P/1 – Ciceroneando.
R – Ciceroneava lá o Pedro... Aquele grande historiador brasileiro, como ele chama? Ai meus nomes, tá tudo desse jeito. Então nós pudemos ter aquela satisfação de tudo. Agora, Brasília, eu sempre fui encantado com Brasília, não pelo fato de ser capital, mas eu sempre gostei de amplidão. O que me atraía em Brasília e me atrai até hoje é a amplidão. Aquela amplidão da superquadra, aquele ambiente todo. E Brasília ficou. Em 1964, eu fui contratado pelo Ministério da Educação pra trabalhar junto com o Israel Pinheiro, ele já não era prefeito mais, era ex. E fui. Eu ficava lá na casa dele lá no Lago Sul. Ia pra lá ajudando e tal, daí vem a tal da revolução. E eu cheguei lá, ele falou: “Menino, o que eu faço?” – ele me chamava de menino – “O que eu faço? Veio a revolução e agora?”. Eu virei pra ele, falei: “Doutor, eu não tenho nada com isso, porque eu não sou nada. O senhor que tem a perder. O senhor foi vice-prefeito aqui, foi o que construiu Brasília, e essa revolução é contra Juscelino, contra esse trem, tal”. Eu parei com o trabalho todo dele e o Ministério me mandou embora. Eu vou fazer o quê? Eu tava fazendo o primeiro ano de Direito, foi quando nós fomos, ficamos detidos. Logo após a revolução, nós ficamos detidos lá na universidade. E eles fizeram prisão lá a mãos cheias. Carregaram ônibus e ônibus de gente presa. Inclusive, tinha uns padres, uns dominicanos, que eu não lembro o nome deles. E eu fiquei lá naquela: “O que eu vou fazer? Eu aqui não tenho nada pra fazer. Eu não tenho curso, não tenho isso, não tenho aquilo”. Eu fui, voltei aqui pra Patos de Minas. No voltar, como eu sempre tive muito bom relacionamento aqui, eles me deram mais aula aqui. E nesse meio tempo me chamaram pra ir viver em Paracatu, lecionando lá o ano na escola normal de lá. Eu fui. Fui pra lá, foi um tempo bom. Fui, fiquei lá um ano, quase um ano, dei aula lá muito tempo, foi ótimo pra mim, tal, voltei. Não quis ficar, porque aí já tava no meu casamento, tinha marcado. Eu voltei. Por que eu me casei sem essa segurança total? Por loucura. Porque o Magalhães Pinto foi o melhor governador que nós tivemos em termos financeiros. E eu ganhava 60 mil por mês, naquela época só a mulher e eu, nós daríamos conta de sobreviver. E ele passou o nosso salário pra 400 mil da noite para o dia. Eu fiquei doido e casei. Nós nos casamos e vivemos aquela vida de indecisões, mas sempre dando aula, tendo aquele salariozinho de fome, tal, mas conseguimos. Aí eu vim pra cá e me estabeleci aqui. Estabeleci e falei: “Agora daqui eu não saio”. Mas acontece que Israel Pinheiro não se esqueceu de mim. Ele foi eleito governador de Minas e mandou um recado pra mim pra eu ir lá, que ele queria se encontrar comigo. Cheguei lá ao Palácio: “O que o senhor quer?”. Eu falei: “Eu não quero nada. O governador que mandou me chamar” “Mas o que o governador...”. Eu falei: “Vai á e pergunta pra ele, fala que é fulano de tal que tá aqui, ele sabe o que ele quer comigo, eu não quero nada. Eu vim aqui...”. Falei assim mesmo. Ele abriu a porta já todo diferente: “Entre. Entre”. E abriu as portas todas, cheguei e sentei em frente a Israel Pinheiro. Israel falou: “Olha, eu queria que você viesse pra cá pra trabalhar comigo pra acabar aquele trabalho que você iniciou comigo lá em Brasília comigo”. Eu falei: “Olha, governador, meu problema é o seguinte, eu sou contratado no Estado. O senhor fechou o concurso pra professor e eu não fiz concurso, eu não tenho direito nenhum, quer dizer, eu vou pra rua se o senhor me mandar embora. Eu não posso, que eu já tô casado, eu já tô com um filho pra nascer, uma filha, já tenho um filho já grandinho, tô com a outra menina pra nascer, como eu faço?”. Chamou um secretário lá, Zé Maurílio Alkimim: “Arruma a vida desse rapaz hoje. O que ele precisar, você faz”. Fui lá ao Alkimim, já me levaram, tudo quanto é porta tava aberta. O Alkimim virou pra mim, falou assim... Deu umas cartas lá para as coisas. Eu vou lá ao Instituto da Educação, brecado porque eu não tinha curso. Vou ao outro, brecado. Falei: “Oh, governador, tá tudo brecado, que eu não tenho curso de nada”. Teve um diretor do Instituto de Educação, ele falou assim: “Já sei. Você vai pra Ibirité (MG), pra Fazenda do Rosário, lá você pode ser contratado”. O Israel autorizou o meu contrato para a Fazenda do Ibirité como professor, mas eu continuando lá dentro do Palácio com ele. Eu fui pra Ibirité e nesse meio tempo ele mandou abrir o concurso por minha causa, pra eu fazer o concurso pra eu ficar efetivo. Mas eu acabei o trabalho dele no prazo de um ano, que aquilo com secretárias, com tudo isso, eu nunca fui ruim de serviço, fiz o trabalho pra ele, ele falou: “Agora você vai ficar aqui”. Eu falei: “Não vou, não. Quero ir embora. Não quero política, não mexo com política, não gosto de política” “Mas você vai embora, e daí?”. Eu falei: “Não, o senhor vai abrir o concurso, eu vou prestar o concurso, depois você... E ele nomeou a Nilce. Nilce tinha passado no concurso que ele fechou anterior e ele nomeou a Nilce como professora de Francês. Eu já tava mais sossegado por causa disso. E fui, nesse meio tempo, eu comecei, o bispo me entregou o jornal daqui da cidade, eu comecei a trabalhar feito louco e o magistério virou quase que um bico pra mim. Mas eu sempre visando a nomeação do magistério. E nesse meio tempo eu fiz o concurso, passei, fui nomeado, ela nomeada, nós permanecemos aqui, eu não voltei mais pra Brasília. Tinha relacionamento muito bom com o governo, com tudo, mas não voltei mais. E o Israel não publicou o livro, ele teve medo. Ele falou: “O que eu faço agora?”. Eu falei: “O senhor que tem a perder. Eu não tenho nada a perder, eu não sou nada, o senhor que é”. Ele falou: “É, vamos deixar isso pra um lado”. Eu tenho até a cópia aí do livro. E ficou por isso.
P/1 – Esse livro era sobre o quê?
R – A história de Brasília contada por ele. Sabe, ele me contava... Igualzinho esse livro que o Zé Ribeiro te deu, ele me falava e ele que ia assinar como autor. E ele teve receio e não quis publicar. Não quis fazer revisão, não fez revisão, não fez nada, ele simplesmente saiba, tava com tudo em mãos, mas não teve coragem, porque os militares deram em cima e ele podia ir pra cadeia. E naquela época era pior, a Ditadura era uma coisa terrível. Ficou nisso e o livro não saiu. Eu vim embora e eu comecei a escrever sobre Patos, aprofundar meus estudos sobre Patos de minas, sobre Paracatu, principalmente sobre o noroeste de Minas e sobre Patos. Que depois você vai ver o resto do meu livro lá pra você ver, ter uma noção. Nós fizemos esse trabalho, eu vim embora, ele mandou trazer, ele mesmo autorizou tudo, trouxe minha mudança, trouxe tudo, e graças a Deus fui feliz. Porque eu trabalhei muito. Trabalhei de tudo, fazia de tudo. Escrevia livro o dia inteiro, escrevia jornal, dava aula de manhã, de tarde e à noite, e consegui. E sempre com Paracatu a minha frente e sempre trabalhando sobre Paracatu. Quer dizer, nunca me desliguei de Paracatu como tal.
P/2 – Professor, eu lembrei que vi uma foto, um ônibus cheio de gente, e a descrição era: ônibus indo pra inauguração de Brasília. Parece que é uma foto que o senhor...
R – Bati.
P/2 – Queria que o senhor contasse um pouquinho da história dessa foto e como foi a repercussão da inauguração de Brasília em Paracatu, pra quem tava trabalhando na imprensa.
R – A repercussão foi muito grande. Paracatu virou um monstro de cidade. O povo começou a receber os que iam participar da inauguração, a receberem em casa, que nos hotéis não cabiam, havia poucos hotéis. O povo começou a vir. Aí já era uma realidade. Passa aquela turma dos fuzileiros navais, que foram a pé do Rio até Brasília pra inauguração, tem até fotografia, vocês devem ter visto lá, não viram? Fotografias batidas por mim, muito ruins, mas são fotografias. Eles entrando na Avenida Quintino Vargas lá do coiso. A repercussão em Paracatu foi excelente. O que aconteceu? Aconteceu que houve um bem pra Paracatu e um mal. Qual foi o mal? Os prefeitos acharam que tinham que desmanchar tudo, por causa da modernidade de Brasília, ninguém ia... A burrice, a falta de orientação intelectual, e artista, sentimental, sei lá que diabo de palavra nós vamos usar, mas eu sei que os prefeitos acharam por bem desmanchar. E Vladimir Neiva foi o primeiro, o grande destruidor, que foi na época dele como prefeito. Eu tenho até fotografia, você deve ter visto, da Rua da Abadia sendo desmanchada o calçamento. Foi a primeira rua que ele tirou. E as casas, começou todo mundo a tirar aquele aspecto colonial. Não mexiam dentro das casas em nada, só faziam a fachada com o trem de ferro, com os vitrôs, com essas coisas todas, e modificavam. E se você quiser ver, você olha naquele livro meu Paracatu de Tempo em Tempo, que você nota a diferença. Eu mostro pra você. Numa fotografia eu mostro a atual e a antiga, você vê perfeitamente que só foi feita a fachada. Porque eles tinham vergonha de ter, o que hoje não acontece. O povo de Paracatu hoje tem orgulho, vocês podem ver que estão construindo prédios novos lá com fisionomia de prédios antigos. Inclusive... Não sei se é hotel ainda, Hotel da Pousada, lá na Rua do Ávila, era uma casa antiga, a dona pegou, a herdeira lá, fez um de dois pavimentos e fez lá de hotel. Não sei se ainda é hotel lá. Pousada Hotel. Pousada. Pousada Hotel.
P/1 – Pousada da Vila, né?
R – É. Pousada da Vila. E hoje vocês podem observar que muitas pessoas lá tem... Como chama? Ferrer. Não sei o quê Ferrer. Ele vive lá construindo para o povo aqueles processos de casas, ele faz muito bem feito isso. Aquele chafariz, por exemplo, de Paracatu, aquilo ali nunca teve um chafariz bonito igual aquele. Nunca. O que tinha ali mais ou menos naquele local era um pau com um cano, a água coisa, e canalizado ali, e a água vinha logo ali da rua do chafariz, canalizada ali, que o povo buscava água ali. Era ali. E o Ferrer fez isso. Foi o Almir Paraca quem fez. Foi muito combatido por muitos historiadores, porque achavam que não podia construir uma coisa falsa. Era tido como falsa, você sabe disso. E eu já sou o contrário. Dá pra fazer perfeito? Faça. E foi o que aconteceu. Você vê, tá um pedaço bonito lá. Era horroroso aquele pedaço e ficou bonito aquilo ali. E vocês podem ver... Eu não conheço Paracatu mais como eu conhecia. Não conheço. Tirando aquele miolinho ali, eu não sei de nada. Mas vocês podem ver lá, existe ali naquele centro histórico, muitas casas que estão sendo reconstruídas. Agora mesmo eu tive a oportunidade de ver, quinta-feira, hoje tá com uma semana, amanhã faz uma semana, quinta-feira eu vi lá a casa de doutor Joaquim. Eu perguntando lá, falei: “A casa de doutor Joaquim. E essa casa velha redondona, o que vão fazer dela?”. Falou: “Não”. Porque lá tem uma história triste dessa casa, um rapaz todo entusiasmado tava reconstruindo a casa pra ficar do jeitinho que era, Acontece que ele foi visitar o sogro em Divinópolis, e nessa visita, ele saindo, vinha perto do Rio Paracatu, não sei como, acontece um acidente com ele, morre ele e o filho, o filho de 13 anos. Morrem os dois. O que aconteceu? A mulher, depois de ele morto, descobriu que tava grávida. Nasceu a menina acho que em novembro agora. Acho que uma menina. Nasceu e ela ficou bem abonada, ela tá continuando em memória do marido, sei lá de quem, tá reconstruindo a casa outra vez. Aquele pedaço do Largo da Jaqueira ali vai ficar muito bonito. Vai ficar muito bonito aquilo ali, apesar de ter a casa do doutor Alaor, que é modernosa, tem a casa de Petrônio Costa também que é modernosa, tem a casa de Cláudio Buchato que é modernosa, mas vai ficar uma praça bonita, como já é. A Lana, que pegou a casa dela e mandou fazer a modificação lá na fachada, então ficou um âmbito colonial, a ponto que o trem ficou tanto, que o IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] mandou e decretou a cidade como o quê? Patrimônio Cultural do Brasil, um trem assim.
P/1 – Foi tombada.
R – É. Foi tombada a cidade. Foi tombada. Agora, a catedral, por exemplo, ficou dois anos fechada, porque o telhado tava muito ruim, mas tá tudo já restaurado, só falta a pintura. Eu entrei lá, vi, tive a oportunidade de ver.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. Eu queria que o senhor falasse... O senhor disse que voltou aqui pra Patos e que voltou a dar aula. O senhor já tava escrevendo nessa época?
R – Eu estava e continuei. Eu comecei a escrever em 1960 e não parei mais. Agora que eu to mais parado.
P/1 – E a ideia era escrever sempre sobre a história das cidades...
R – Inclusive, teve um ministro chamado Ademar Maciel, muito amigo meu, ele é daqui de Patos de Minas, e quando eu morei em Brasília como chefe de gabinete lá, ele falava comigo, me chamava de Oliveira: “Oliveira, larga essa bobagem de escrever sobre Patos de Minas, sobre Paracatu. Você tem gabarito pra fazer sobre um âmbito de projeção nacional”. Eu falei: “Ah, Ademar, eu gosto de fazer isso. Eu quero fazer isso”. Aí eu passei a aprofundar mais nos estudos sobre Paracatu, pela proximidade, pela facilidade. E fui arquivando e arrumando material, que se você quiser ver bem, você vai lá a Paracatu, no arquivo público, você vê que material fabuloso que tem lá. Inclusive, eu consegui jornais do século XVIII, XIX. Você viu os jornais do século XIX lá, né? E o Carlos... Tá numa mão muito boa, que o Carlos tá refazendo o que estava acabando. Os jornais, Márcia, eu consegui fazer o levantamento de quase todos os jornais de Paracatu. Foi ou não foi? Quase todos. A bibliografia sobre Paracatu e de Paracatu é imensa, que eu juntei nesse meio tempo. E tem mais aqueles que você viu aí, que o dia que eles resolverem lançar esse meu livro, eu quero entregar solenemente na frente do público para o arquivo, não para a biblioteca, tudo ali que tem referência sobre Paracatu. Porque eu consegui achar muito livro aqui. Só não vou levar que o Carlos fica em cima de mim, eu falo: “Não posso, Carlos, que meu filho tá acima de tudo”. Que meu menino que fez essa tese falou: Olha, pai, o negócio dos viajantes estrangeiros, pelo amor de Deus, você não passa pra mão de ninguém, são meus. E então eu fiquei... E fui começando a influenciar nessas cidadezinhas. Primeiro, veio Presidente Olegário me chamando pra escrever sobre a cidade, eu escrevi. Depois veio Unaí, eu fiz de Unaí, Vazante, eu fiz de vazante. Então a ponto daquele paulista, não sei se é do seu conhecimento Homero Silveira, em chamara de historiador das cidades meeiras. Porque eu escrevi cinco livros sobre a região. E não são porcarias, não, são bem válidos.
P/1 – E me diz uma coisa, Oliveira, como você fazia essas pesquisas? Como você buscava esse material? Conta um pouquinho do processo de escrever essas histórias...
P/1 – Olha o meu processo de buscar era muito interessante, eu me servia muito dos meus alunos, os influenciava e eles tinham a vaidade de trazer pra mim. Muitos me doavam coisas que eu nem pensava de haver. E eles me ajudaram muito nesse sentido. Agora, eu saí no período de férias, eu saí atrás. Eu ia pra tudo quanto é lado. Lá em Unaí, por exemplo, eu ia pra lá, ficava lá uma semana, duas semanas, e fuxicando pra tudo quanto é canto. E sempre procurei muito a valorizar a terra e ligar o homem à terra. E sempre eu tive a preocupação que eu devia, sobretudo, jogar a criança a ter conhecimento da terra, desde criança, e ele não desprezar a terra por isso, por aquilo, por aquilo outro, e valorizar as coisas que viram do ontem. Sempre foi com essa preocupação. Eu posso te mostrar em meu arquivo pessoal, sobre os comentaristas sobre meu livro, eles admiram isso, todos eles comentam. Inclusive, teve uma repórter em Belo Horizonte que falou que eu fazia os trem pensando no povo. Inclusive, você que leu, não sei se você leu, esse livro que eu tava com ele aqui na mão, como chama? Memórias de um Tempo. O prefaciador dele foi meu aluno. É um sujeito inteligentíssimo, bom poeta, ele fez e ele escreve lá que eu sou engraçado, que eu falando sobre a minha infância, em vez de eu falar a meu respeito. Eu fiz tudo de uma maneira que eu não aparecia, mas contava aqueles acontecimentos da minha época de criança. Eu escrevia por devaneio. Não sabia se publicava ou não, mas nunca ficou um na gaveta, publiquei tudo. Então foi sempre assim, sempre... E outra, eu tive uma mão direita que eu não posso nunca esquecer, que é minha mulher. Minha mulher é muito boa de português, escreve bem, não gosta de coisa, não gosta de aparecer, nem nada. E ela me ajudou muito. E me ajuda até hoje. Tudo que eu escrevo vai pra mão dela, ela dá uma olhada. Porque ela é crítica. É como eu falo, é minha primeira leitura e minha crítica sincera. Porque ela falava: “Não tô gostando disso”. Cortava. Riscava. Esse livro do Zé Ribeiro mesmo, ela cortou muita coisa. Sabe, nós fazíamos sempre desse jeito. Então acho que eu vivi num mundo muito intelectualizado, minha mulher nesse ponto é fabulosa. Nesse e outros mais, mas eu tô falando nesse que nós estamos falando nesse ponto aqui. Ela me ajudou demais nesse aí. Agora, eu nunca tive sábado, nem domingo, nem segunda-feira, nem feriado, nada, eu escrevia. E eu sempre tive muita facilidade de escrever, uma verdade seja dita, minha dificuldade é começar. Uma vez começado, eu vou embora.
P/1 – E como era conciliar essa coisa da aula, escrever?
R – Oh, Márcia, Deus dá tudo pra gente na hora certa. Só falo isso. Eu confiei sempre em Deus, nunca pensei em dinheiro. O único livro que eu ganhei dinheiro foi esse Zé Ribeiro e aquele que eu te mostrei, o caso, que eu fiz pra ganhar dinheiro. Nunca, nunca tive essa preocupação. Eu escrevia pelo prazer e pela vaidade, isso eu falo sempre, eu fui sempre vaidoso. Eu sempre quis publicar, nunca quis minhas coisas na gaveta. Bom ou ruim, me xingam, falam mal, podem falar, não tem importância, mas tá aí. Porque o que adianta eu escrever e ficar na gaveta?
P/2 – O senhor falou da ligação do homem com a terra, que é um tema recorrente nos seus livros, uma busca.
R – Você viu, né, que é.
P/2 – E é mesmo. E eu tô lembrando aqui, da primeira parte da entrevista, você falou que tinha que ler, isso lembrando lá da sua formação, lá no seminário, às vezes tinha que ler uns livros que o padre, que o professor mandava. Mas eu fiquei curioso de saber que tipo de literatura, que te pegava mesmo, que você se sentia bem e que veio a ajudar a criar esse escritor que tenta olhar para o homem em ligação com a terra?
R – Olha, eu li tudo. Depois que eu larguei o seminário, eu lia tudo. Lia de putaria à coisa. Eu lia tudo e procurava a enfronhar nas coisas. E fui sempre um leitor muito assíduo de marcar as coisas que me interessavam. Então aquilo tudo eu tinha um roteiro, sempre eu tinha pra fazer. Por exemplo, esse livro meu da... Eu acho que eu vou ter um exemplar, se vocês quiserem achar que vai ser útil, é capaz de eu ter um pra dar, o da igreja de Paracatu. Por exemplo, aquele do folclore, o do folclore eu fiz com a ajuda dos alunos. Eu botava aluno pra pesquisar. Inclusive, lá em Paracatu tem uma dona, esqueci o nome dela, foi minha aluna lá, ela falou comigo: “Se eu passei a gostar de Paracatu e das histórias de Paracatu foi por sua causa”. Porque no ano que eu lecionei lá, eu pegava os alunos, com o diretor achando ruim, eu tirava de dentro da sala de aula, eu ia dar sobre o Barroco, Barroco literatura, não era Barroco artístico, coisa, não. Levava pra igreja e começava a mostrar tudo o que era o Barroco e a explicar. Por exemplo, levava à catedral de Paracatu, falava: “Olha o portal aqui. Esse portal é de uma simplicidade sem par...” (breve interrupção).
P/2 – Você tava falando da literatura, de como...
P/1 – Como você ensinava literatura barroca.
R – Ah, isso é interessante. Eu levava os alunos para a igreja e mostrava aquela característica... Dê-me a palavra, meu Deus. Da arquitetura barroca. Por exemplo, um confessionário foi construído daqui, tem que ter outro de lá. Uma porta aqui, outra porta à frente e assim por diante. As conversadeiras, não sei se vocês tiveram a oportunidade de entrar lá na catedral e ver as conversadeiras. Sabe o que é conversadeira? Na janela tem uma espécie de um banco de coisa, na outra, um de um lado, outro do outro, sentando com o povo passando, são as conversadeiras. E fui explicando as características do Barroco... Falei a palavra agora, já me fugiu. Da arquitetura. E eu aliava à literatura Barroca, às características do Barroco. E fui mostrando a importância do Barroco mineiro sobre todo o país. E o Barroco, a influência que veio dos arquitetos e dos poetas do período barroco, dos grandes poetas ali do período de Tiradentes, daquele povo todo. E com isso, eu dava mais uma aula de história do que de literatura. E a turma passou a gostar daquilo e a amar as coisas de Paracatu e a ver com outros olhos. Que lá é aquela história: “É coisa velha, vamos acabar com isso, vamos por trem moderno, trem novo”. Não sabia valorizar o que tinha seu real valor. Porque às vezes você não pensa na importância daquilo, depois que vê, já passou. Hoje, quanta coisa eu tenho arrependimento de não ter conservado da casa de meu pai. É porque eu não tinha noção. E eu morava em Itu e minha mãe ia vendendo tudo que ela achava que devia vender e que não devia vender. Depois que a gente pelejou pra comprar e que não conseguia mais é que ela via as besteiras que ela tinha feito.
P/1 – E me fale uma coisa, Oliveira, você quando veio pra cá, você veio dar aula, você dava aula do quê?
R – Português.
P/1 – E onde você dava aula?
R – Eu vim como professor... O primeiro lugar que eu dei aula de Português aqui foi na escola normal, em 1959. Aí fiquei aquele vai para o seminário, volta do seminário, fica aqui, tal. Quando eu deixei o seminário definitivamente, eu fui convidado pra ser professor no colégio estadual de Português. Municipal. Naquela época, o colégio era municipal. Eu aceitei, fui nomeado sem concurso, naquela época não havia isso, quantos anos atrás? Quase 60 anos relutando. Eu fiquei professor de Português e Literatura. E eu me enfronhava nisso. Foi de onde nasceu meu grande interesse pelo folclore, porque eu dando aula no curso normal tinha uma parte sobre folclore, aí eu comecei a pesquisar o folclore. Inclusive, aqui em Patos de Minas, eles estão fazendo um curta metragem, não sei se vai ser prestando ou não, não interessa, sobre uma lenda que eu coloquei num dos meus livros, a mulher de sete metros. Só que eles não contam que fui eu que publiquei, isso eu faço questão de não conhecer. Mas até fiquei admirado que o rapaz que tá à frente deles falou: “Que eu li num dos livros de Oliveira Mello” – da mulher de sete metros. Como eu tenho outro de folclore, essas coisas todas. Aí eu passei a me interessar por folclore, logo aqueles folcloristas em Belo Horizonte conheceram meus trabalhos, vieram até aqui, me botaram dento da Comissão Mineira de Folclore, e o relacionamento foi estendendo.
P/1 – E você falou que deu aula também na universidade.
R – Não, na faculdade. Eu dei aula aqui na faculdade, na de Filosofia logo que abriu, eu dei aula de Latim, Literatura Latina, História de Minas, mais o quê?
P/1 – Francês?
R – EPB, Estudo de Problemas Brasileiros, por causa do governo revolucionário criou essa cadeira. Mas o quê? Tem outra matéria que eu dei. Bom, que seja só isso. Eu dava todas essas matérias aqui também. E botava os alunos, que eu posso te mostrar, eu tenho alguns trabalhos que eu guardei, que eu achei mais interessante, os alunos para pesquisar. Que a escola aqui era a única na região, então todo mundo vinha pra cá. Então mandava fazer sobre o Cabo Paranaíba, sobre o Rio Paranaíba, sobre Tiros, sobre todos os lugares. Porque eu sempre mostrava para os alunos: “Vocês não falem que lugar nenhum não tem história. Tudo tem uma história. Se nós olharmos a nossa vida, nós temos história, o dia que eu nasci, como foi meu parto, como foi isso, meu crescimento, é uma história que vai sendo construída no tempo, todo mundo tem. A cidade, por menor que seja, tem uma história”. E sou ainda de outra opinião, que se cada um fizesse o seu livro de memórias, que maravilha de histórias municipais que nós teríamos nesse Brasil. Pensou cada um escrever seu livro de memória sobre a sua vida naquele local? Contando seus fatos. Daí ampliava o leque de pesquisa. Nasceu meu interesse. Vazante, eu vou ver se eu tenho um livro de Vazante, é um livro que ficou bonito e bom. Eu o considero bom. Foi dentro do padrão que eu já segui para os outros. Mas lá eu tive umas condições que eu não tive em outro lugar. Eu tive o chefe da Votorantim lá, o engenheiro de... Como chama esse engenheiro que cuida de terra?
P/2 – De minas?
P/1 – De minas. Engenheiro de minas.
R – De minas. Ele era o chefe e ele abriu pra mim o arquivo de lá. Então se você virem a riqueza do coiso, eu aproveitei disso e pude fazer. E fui me afronhando. E com esse negócio também eu passei a ser conhecido em toda a região. Eu não fiquei preso apenas a Paracatu, nem a Patos de Minas. Se vocês chegarem por essa região toda aí, falarem meu nome, é capaz de todo mundo saber que eu existo porque eu acho que a primeira coisa que nós temos que mostrar, o lugar mais importante do mundo, é a casa em que você nasceu, a rua em que você viveu, o bairro que você foi criado, aí você vai construindo o mundo. Você vai construindo seu mundo até chegar ao que você é hoje. Acho isso muito importante, pegar isso. Por exemplo, Paracatu, não sei se vocês tiveram a oportunidades de verem, tem um livro lá que eles fizeram através desse processo moderno da internet, Paracatu.com. Não viram, não? Ouviu falar nesse? É através da internet. E eles lá falam. Porque eles vieram atrás de mim, falei: “Não. Não mexo com essa porcaria. Se vocês quiserem escrito, eu faço, mas falar nesse trem, não vou falar, não vou mexer com isso, não”. E lá eles me botam as coisas e todos eles falam que Paracatu de 1950 pra cá se tudo de memória bem feita... Não tô falando isso em autoelogio, nem procurando elogio pra mim, não. Tô falando a realidade. Aquele negócio de falar a verdade, a verdade nada se oculta, senão de ficar oculta, dizia Lopes da Veja. Então eu to falando é verdade. E foi mesmo, eu reconheço. Eu que despertei nessa geração o amor às coisas da terra, mesmo aqui em Patos de Minas, aconteceu al mesma coisa. O primeiro trabalho sobre a história de Patos de Minas fui eu que fiz.
P/2 – Eu também vi umas fotos de umas normalistas de Patos de Minas que foram fazer visitas lá em Paracatu.
R – Não foram fazer visitas. Elas não foram fazer visita. Eu era professor deles e eu convidava pra ir a Paracatu pra conhecer, e eu as levei. Hoje, inclusive, muita fotografia interessantíssima do Morro do Ouro, foi o que eu bati com ela lá, você deve ter visto isso. E eu os levava pra conhecer. Eles achavam que o meu bairrismo enorme com Paracatu, que eu desprezava Patos de Minas. Não. Não desprezava nem uma, nem outra, eu queria mostrar a todo mundo que não teve a oportunidade de viver aquilo que eu vivi e que eu achava importante, e que é importante, então levava. Foi onde a gente criou esse vínculo, sabe, da vida.
P/2 – E o que era possível ver no Morro do Ouro naquela época?
R – As antigas escavações que os escravos deixaram. Pega o livro ali. Oh, Paracatu, vai lá, pega aquele livro ali, jogaram ali. Vai lá, sô, anda, levanta. O que vocês estão rindo?
P/2 – Mas a gente vai querer que o senhor descreva, porque o livro...
R – Pois é. Pelo livro eu posso mostrar. Aqui, eu vou te mostrar aqui. Você quer ver? Cadê? Uai, eu tenho aqui. Uai, não é nesse? Será que não é? Eu queria te mostrar do Morro do Ouro. Olha aqui, eu vou mostrar pra vocês uma coisa, aqui a evocação, essa aqui é a Rua São Domingos, a Rua, hoje, Samuel Rocha, da Casa de Cultura lá pra cima.
P/2 – Seu lldeu mora aqui do lado.
R – É. lldeu mora aqui, na esquina do beco. Então você vai aqui. Eu sempre fui de conservar isso. De onde eu tenho essa fotografia desse livro? Ah, já sei, vai lá dentro pra mim, não furta outras coisas, não, pega lá pra mim na estante que você olhar de lá, que você veja assim A Igreja de Paracatu nos Caminhos da História, um livro grosso. Não, acha. Se você não achar é porque você é bobo.
P/1 – É perto lá do banheiro.
R – É perto do banheiro.
P/1 – Tem uma estante.
R – É. Estante perto do banheiro. Tá vendo? Ela sabe até te orientar. Lá que tá. Eu pensei que fosse nesse, mas não. Olha até onde você me fez ler, eu já li até aqui, reli. E to achando bom, sô. Eu não me lembrava de mais nada disso. E eu falo: “Gente, como eu...”. Tem até umas frases bonitas, eu falei: “Gente, como eu tive capacidade de fazer isso?”.
P/1 – Mas como era o Morro? Descreve pra gente. Depois você mostra a foto. O Morro do Ouro, que você falou que tinha as escavações dos escravos.
R – Tinha as escavações todas... Achou? Oh, você é ruim de serviço, hein, sô? As escavações todas que você vê, ele viu bem isso lá na fotografia lá em Paracatu. Ei, meu Deus, eu falo A Igreja no Caminho... Dê-me aí. O Caminho... Na frente assim, um livrão grosso no meio de uma porção do azul. É Igreja nos Caminhos da História. Você leu esse aqui?
P/1 – Não. Esse eu não li.
R – Esse aqui é interessantíssimo. Olha a minha mania, toda vez que eu to sentado, olha o que eu faço. Já sei, vou direto aqui. Isso aqui é uma gostosura, viu, Márcia. É uma gostosura. E eles reconhecem e falam do meu trabalho. Inclusive, eles fecham o livro deles com a minha crônica Éramos a Paracatu, que o pessoal mais gosta de lá.
P/1 – E qual o nome desse livro?
R – Paracatu.com, um Encontro Virtual. Ah, agora eu não te chamo de burro mais, não. Tá aqui. Ah, eu falei errado, não é esse, não. Mas não faz mal, tá esse aqui na minha mãe. Pega lá pra mim, tá perto desse. Aquele que você falou que você leu, que você gostou, As Minas Reveladas.
P/1 – As Minas Reveladas.
R – Esse é uma gostosura, viu, Márcia. Gente, eu escrevi demais, porque tanto trem. Como eu arrumei tempo pra isso, hein?
P/1 – Eu te perguntei, você falou que foi Deus que te ajudou.
R – Foi. Olha aqui até o que eu tinha. Olha que fotografia interessante.
P/1 – Vira pra câmera.
R – Dom Elizeu no campo pousado pra refeição... Na tropa dele, olha, o bispo. Tá vendo? Esse livro, Márcia, tem cada coisa muito intere... Achou? Mas pegou o que não era pra trazer. É o outro. É o grossão. Tá lá. Tá lá perto, do lado desse. O que vocês estão rindo de mim, gente? Vocês riem de tudo que eu falo, uai, eu sou um panaca, não sou?
P/1 – Não, é que o senhor é muito incisivo.
R – Ei que saudade de meu tempo de menino. Aqui os buritizais. Achou? Será que eu vou ter que ir lá? Anda mais depressa, não é?
P/1 – Não, eles acham.
P/2 – Acho que acharam.
R – Mas pegaram o encadernado, ei. Mas tá bom. Tá bom.
P/1 – O senhor escrevia 300 livros por dia, ele falou (risos).
R – Aqui. Esse aqui é primeira edição, sabe? E esse aqui... Olha aqui. O que eu queria mostrar pra vocês... Você quer saber sobre o Morro do Ouro? Onde eu pus isso aqui? Aqui tem. Aqui, olha. Essa fotografia fui eu que bati. Acho que a fotografia fala mais que eu. Os altos e baixos onde as picaretas dos escravos entravam. E ficou isso, que a RPM [Rio Paracatu Mineração] meteu o trator tudo, carregando. Tá vendo?
P/1 – Tinha coisas, escadas que desciam?
R – Nada.
P/1 – Não tinha a mina assim?
R – Não, ele viu lá, uai. Aqui a Paracatu em 1948, a primeira fotografia aérea de Paracatu, do centrão. Tá vendo? Uai, gente, eu queria mostrar... Eu tinha que estar com vocês era no museu, não era aqui, não.
P/1 – Não, mas tá ótimo.
R – Lá em Paracatu, que lá tem os trens pra eu pegar e mostrar. Aqui, olha, depois eu faço o contraste. Você quer ver? Você viu o Morro do Ouro ali daquele jeito, depois eu mostro aqui o Morro do Ouro depois, o que virou. Em cima disso. Você não viu Paracatu de Tempo em Tempo?
P/1 – Vimos.
P/2 – De Tempo em Tempo sim.
R – Viu, né? Aquele que é muito interessante. Porque eu te falar, Márcia, descrever isso, eu acho pouco difícil, porque era tudo imorrado, coisa, você via cascalheira juntas, onde os escravos deixavam, mas eu não posso te dar uma noção exata.
P/1 – Mas tudo bem, você já lembrou. Tudo bem, você já lembrou. Eu queria que você falasse um pouquinho agora como foi o processo de você começar a reunir o seu acervo. Como você construiu o seu acervo sobre Paracatu?
R – Foi fuxicando.
P/1 – (risos) Fuxicando.
R – O que eu pedia e me davam, bem, o que não me davam, eu roubava. Apanhava sem escrúpulo nenhum. Se Paracatu hoje tem aqueles livros de ouro, que vocês devem ter visto original lá, aqueles das irmandades, aquilo tava na mão da mulher de Gustavinho, fazendo... Como chama aquele trem que põe pra você fazer desenho por cima? Papel...
P/1 – Vegetal.
R – Não, que vegetal. Carbono. Eles faziam o negócio ali pra copiar, eu falava: “Gente, tá acabando com isso. Que maravilha”. Eu pedi emprestado, onde eu tomei o nome de ladrão, e não devolvi. Que eu fiz? Peguei emprestado, era reitor... Fiquei com ele guardado muitos anos comigo, a turma em cima, sabendo que o livro tava na minha mão, em cima, eu ia atrás de um bispo, que era bispo daqui, tava como administrador apostólico lá, queria porque eu queria pra eu devolver pra mão dela. Falei: “Não devolvo”. Ficou comigo 30 anos, até eu conseguir do Zé Henrique Santos, que era mais ou menos contemporâneo meu de idade, e ele era reitor de UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais]. E através dele eu consegui que o Cecor... Cecor [Centro de Conservação e Restauraçao de Bens Culturais]...
P/1 – De Restauração.
R – De Restauração, essas coisas todas. E ficou, o Zé Henrique terminou o mandato dele e passou para o outro reitor, e o outro reitor mandou fazer a restauração. Quando foi pra fazer a restauração para entregar os livros, tinha um padre Pastore, tão trabalhador, espiritualmente muito bom, mas ele encheu a cabeça do bispo, do dom Eunado, que eles livros deviam ser entregues na prefeitura, mas sem a diocese. Eu falei: “Ele é de poder civil, não é de poder eclesiástico, não vai pra diocese, não”. Aí foi outra guerra. O dia que o reitor ia lá fazer solenemente a entrega, nós não fizemos a entrega do livro, ficamos com o livro preso, até ser liberado isso. Esse padre Pastore morreu, dom Eunado se esqueceu do problema, nós então resolvemos entregar os livros, Manoel Borges era o prefeito, fizemos com que o livro fosse Paracatu. Antes, o que eu fiz, fotografei todos os livros aqui, restaurados, e mandei fazer aquela encadernação, se você não conhece, eu tenho aqui, eu te mostro.
P/1 – Nós vimos os originais.
R – Viu?
P/1 – Vimos.
R – Mas eu vou te mostrar os álbuns depois que eu mandei fazer, como ficaram... Você sabe que é até melhor de mexer do que o original?
P/1 – É.
R – Você viu então lá? Ele deixou você ver? Com as capas todas de veludo, aquelas coisas todas. E a restauradora, foi o melhor trabalho que já apareceu lá na Cecor, foram esses livros de Paracatu. Sabe, dessas três irmandades. Agora, o mais rico deles é de Nossa Senhora do Amparo. Esse aqui, olha, é o mais rico deles. Vocês viram o original, não preciso nem comentar com vocês. Que coisa, gente, eu tô tremendo, parecendo velho. Aqui. Ah, meu Deus, esse é de São Benedito, não é esse que eu quero, não. Eu quero Nossa Senhora do Amparo. Acho que é esse. Olha aqui. Vocês viram lá o original. Mandei fotografar e encadernar de acordo com o original. Olha pra vocês verem a perfeição. Tá vendo? Tudo aqui, olha.
P/1 – Vamos levantá-lo.
P/2 – Nós podemos escanear também.
R – Pode tirar mais coisas aqui. Depois eu vou mostrar. Esse aqui é o mais rico. Pronto? Pode virar?
P/2 e P/1 – Pode.
R – Aqui. Olha que coisa linda. Isso aqui é ouro, você viu lá. Isso aqui é folheado a ouro. Olha aqui. Aqui vai então a senhora... Olha aqui as iluminuras. E o mais interessante é que no final de cada capítulo tem um... Vira além das iluminuras. Todo ele é assim, olha que beleza. E tudo ouro. Tá vendo? Eu sou bobo demais, fico gastando dinheiro sem precisão. Conte-me o que isso me dá. Mas pelo menos eu tenho. Esse é o mais antigo, o mais precioso deles. O segundo é o dos pretos, você já vê, o poderio econômico já é diferente. Olha aqui. Olha o começo desse. Olha a página de rosto desse e olha a página de rosto desse. Olha aí pra você ver. Abre pra você ver. Olha aí. Olha a diferença. Tá vendo? Como é muito mais... Aqui, olha. Olha pra você ver, passa aí. Olha pra você ver a diferença. Tá vendo? Isso até pra gente ver o problema financeiro das irmandades, você pode tirar por aqui. Depois se você quiser fotografar, Zeferino, você pode fazer aqui, fotografar à vontade. Agora olha aqui pra vocês verem como já vem um que é mais pobre de todos aqui. Mas é muito bem feito, é o compromisso da irmandade de São Benedito, que foi mais conservada, que elas não tiveram tanto tempo pra elas copiarem, pra bordar. Aqui, olha. E esse é preto só, não tem nada de... São os três: dois do século XVIII, esse aqui do século XIX.
P/1 – Então você tava contando pra gente como foi que você conseguiu reunir esse acervo. Eu queria que você falasse pra mim um pouquinho de tudo que recolheu, reuniu, qual foi o documento mais importante, e por quê?
R – Oh, Márcia, eu não digo nem o que é mais importante, porque pra mim, todos os documentos são importantes, dependendo do assunto que você vai tratar, você sabe disso. Agora, o problema é que eu consegui coisas quase impossíveis. Por exemplo, Afonso Arinos, eu consegui quase todas as obras de Afonso Arinos em primeira edição sem ser o Medellín. Eu consegui a primeira edição de Pelo Sertão e todos... Tão lá no arquivo público. Porque eu vendi aquilo por um preço de banana, porque foram coisas preciosas. Eu vendi por 50 mil reais. Aquilo ali eu pedi 80, o prefeito falou: “Opa! Por quê?”. Porque eu sabia que se eu morresse, meu povo não ia dar importância pra aquilo, ia ser jogado pra um canto. Pelos menos 50 mil dá pra eu fazer alguma coisa. Como eu fui recolhendo? Sabe aquele serviço de abelhinha? De furo em furo, de casa em casa: “Dê-me pra mim” “O que você quer fazer com essa coisa velha?”. Minhas tias velhas lá que tinham cem anos falavam: “O que você quer com essa ‘velheira’?”. Eu falei: “Igualzinho com a senhora. O dia que a senhora morrer, nós vamos botar a senhora dentro de uma caixa bonita. Isso é pra eu botar dentro de uma caixa bonita”. Então eu fui conseguindo. Ele viu lá jornais, claro que não é a coleção completa, quem dera, mas você viu jornais lá de 1800 e...
P/2 – 60.
R – Os primeiros jornais. Eu fui conseguindo, conseguindo. Agora, fui sempre uma pessoa cuidadosa com as coisas. Por exemplo, se vocês abrirem essa mala aqui, vocês vão ver de Patos de Minas, o número dois, o primeiro jornal de Patos de Minas manuscrito. Como você conseguiu isso? Baixo ali, peço. Tem que ser sem vergonha, pedir mesmo. E pode ser xingado. Uns me xingavam, outros não me xingavam, outros: “Você quer levar essa porcaria? Pode levar. É até bom que limpa a minha gaveta”. Eu achava uma beleza. E foi assim. E consegui, na época, Paracatu acho que deve ter sido mais de 300 exemplares de autores paracatuenses. Tudo no original. Claro, tem uns que não são primeiro edição, mas houve, por exemplo, esse do Afonso Arinos é preciosidade, 1800 e não sei quanto. Eu consegui muita coisa assim. E eu sempre pensava em Paracatu. Mas não é só Paracatu, Patos de Minas aconteceu a mesma coisa. Eu vendi pra faculdade toda a coleção do primeiro jornal de Patos completa. Várias coleções de jornais eu vendi pra faculdade. Como você conseguiu? Do mesmo jeito dos de Paracatu. Se me perguntar como foi, aquela astúcia de quem quer ter a coisa. E nunca gastei dinheiro com isso. Não. Isso eu não gastei. Eu consegui, tal, depois eu procurei valorizar pra eu ter uma recompensa na velhice, porque esse salário de dois mil e 500 por mês eu vou te contar, não passo fome porque minha mulher ajuda. Ela tá lá trabalhando pra ganhar o dinheiro dela.
P/1 – Eu quero voltar um pouquinho lá pra Paracatu quando você era jovem. Eu queria que você contasse um pouco o que tinha de diversão para os jovens. Que você falou muito da praia, mas, por exemplo, o Jóquei Clube, eu queria que você falasse...
R – Ah, boa lembrança a sua. O Jóquei Clube, mamãe deixava a gente ir, eu era menino. Era longe pra danar. Hoje é um dos bairros mais chiques de Paracatu, tá surgindo. Vocês sabem disso. Atrás mesmo do Jóquei Clube ali, aquela área toda que eles lotearam. Mas o Jóquei Clube era paixão. Igualzinho essa paixão do Corinthians com não sei o quê, a gente ia pra lá. Brigava por causa de cavalos, os bons cavalos, os corredores. Lá tinha uns criadores de cavalo, por exemplo, Rodolfo de Oliveira Mello, meu primo, ele tem o apelido lá de Rodolfo Cavalo. Então era aquela ânsia de ter os melhores sangues. E Paracatu atraía tanto isso que em 1949, em novembro, eu tenho até os originais aí, eu acho, o Assis Chateaubriand foi a Paracatu com a comitiva enorme, inclusive o presidente do Jóquei Clube brasileiro, foi uma das maiores festas que já houve em Paracatu, e com participação de toda a população, com teatro, com tudo. E foram grandes poetas como Anna Amélia Carneiro Mendonça, o grande historiador Marcos Carneiro Mendonça, não sei se é do seu conhecimento, e vários outros foram. E o prado lá pra gente no domingo era uma beleza. Uma pena que era temporada, mas nessa temporada a gente ia, eu chegava lá a casa rouquinho de gritar nome de cavalo, pra passar na frente, passar outro. Eu era menino. A gente dependurava, vocês viram as fotografias lá, não viram? No meu arquivo que eu mandei pra lá tem. Agora, muitas daquelas fotografias mais interessantes, muitas foram tiradas por mim mesmo, uma maquininha muito vagabunda, mas salvei muita coisa de lá. O Jóquei Clube lá foi marcante, tanto social, como cultural, e como financeiramente. O povo jogava. Eu mesmo era um que jogava, fazia aposta lá tranquilamente. Porque os meninos não eram proibidos. A gente pegava o programa, marcava qual o cavalo que ia ganhar primeiro, tal, dez merréis, você fazia ali, você ganhava. Se você não ganhasse, paciência.
P/1 – Você chegou a ganhar alguma vez?
R – Ah, ganhei. Já ganhei várias vezes. Eu era bom, porque eu sabia, conhecia bem os cavalos, eu ia à baia pra poder ver os cavalos. O prado lá foi uma história muito rica e é até hoje. Eu acho que ainda funciona. Vocês ficaram sabendo lá? Eu sei que ele construiu uma pista lá no Alto da Boa Vista. Agora, como está, eu não sei.
P/1 – E o Carnaval em Paracatu?
R – Ah, era uma beleza. O Carnaval de lá era jogando a água e aqueles trens, perfume, intrudo, intrudo que eles chamavam. Tá num desses livros meus. Também eu conto. Aquele Carnaval à noite, com aquelas luzinhas, todo mundo, era uma beleza o Carnaval. E atraía muita gente de Goiás, principalmente de Cristalina, Catalão.
P/1 – E como era? Era feito na rua?
R – Na rua e no clube. No Jóquei Clube havia os bailes. Eu ia ao baile lá, tinha o das crianças, matinês, a gente ia e os Carnavais com aquelas marchinhas maravilhosas, que até hoje ninguém esquece: “Oh, jardineira, porque estás tão triste”. Aquela outra: “Chiquita Bacana lá da Martinica”. Não tem um trem assim? “Chiquita Bacana lá da Martinica.” Essas modinhas todas que viraram clássicas do Carnaval, a vida da gente era isso. E vinha muita gente de fora participar do Carnaval lá de Paracatu. Até hoje me parece que ainda vai. Eu não sei bem. Vai, ele tá lá batendo a cabeça. Porque eu não to lá mais, não posso saber.
P/1 – E me fale uma coisa, como era essa coisa da tradição, você que olhou muito pra essa coisa da tradição, da cultura, como era a questão da gastronomia?
R – Olha, o famoso de lá, até tem aquela crônica minha que o Paulo Autran interpreta, eu tenho aí gravado pelo Paulo Autran, Vozes do Tempo. Dá aqui. Vou te mostrar. Esse tá aqui. Esse eu sei que tá aqui. Quer ver? Aqui, olha, Vozes do Tempo. Aqui nossa vida. Lá tá tudo descrito aqui: “Paracatu acabou. Justamente a da minha infância. Hoje, encontro ruas asfaltadas, manhãs barulhentas, acordado pelas vozes das sirenes. As estradas mudaram de fisionomia. O asfalto, com seu lápis cinzento, riscou o sertão verde. As falas são outras. Paracatu acabou. Acabaram as ruas de calçamento que marcaram uma época de sangue e de sofrimento humanos. Os sobrados desceram para baixo como o fausto das glórias da terra famosa. Ficaram as lendas das casas mal assombradas, as lendas dos becos, as histórias dos assassinatos macabros. Foi aqui que aconteceu a morte de um padre” – que um padre foi saqueado lá em frente à Igreja do Amparo – “Era neste local a casa. Seu assassino, quando fugia, foi por outro rasgado à faca. Aqui existiu a Casa da Ópera. Quantas noites de galas, damas (inaudível), homem de cartola e sobrecasacas, foi na Rua do Asla. Ali o Filodramático com painéis de quisto inspirado (inaudível), este no Largo do Rosário. Tudo existiu. Hoje, tudo acabou. Acabaram-se os brinquedos de roda nas noites de lua, nas ruas escuras e quietas, o canto afogou-se nas gargantas dos adultos de hoje, ‘onde está a Margarida, olê, olê, olá’, vocês conhecem, e as rosas continuaram. As rosas que desapareceram deixando de rodar em torno da infância. Biscoitinho queimado, tá atrás da... Não, tá atrás do muro, tá esquentando, debaixo da barriguda, tá queimando, achou, torrou. Quanta correria, quanta algazarra da criançada povoando os primeiros momentos da noite da rua solitária. Guarde o seu anel bem guardadinho, ia passando de mão em mão, ninguém sabia com quem ficara o anel, ele, elo de união entre as diversas gerações. Até os becos estão acabando. O Beco do Seu Prisco já se foi, o Beco do Cisco sem os coloridos e a verdura de São Caetano, trepadeira bonita, cheia de frutos, cor de abóbora madura, também já se foi. Beco do Chafariz sem o murmúrio do chafariz jorrando, a fonte não secou, o que secou foi o sentimento dos homens e, com isto, Paracatu antiga acabou. Olha o bolo de domingo, quentinho, apetitoso. Naquela voz dolente, o menino anunciava o bolo de arroz gorduroso embrulhado em folhas de bananeiras, ainda na manhã mal nascida. Olha o bolo de domingo, quentinho, apetitoso. Apregoando e o moleque com o cesto dependurado ao braço, forrado e coberto de algodão alvejado, isto até parar à porta da matriz, lá aguardava o término da missa das seis. Comprava o bolo para o desjejum domingueiro. Acabaram-se os tropeiros, as cantilenas dos carros de boi tirando fogo nas pedras da rua morreu e foi sepultada na lembrança dos homens. Bernardina Doida com a trouxa morreu. Roque, o Doido, o Preto, morreu. Oh, jardineira, porque estás tão triste, aquela cantiga, era a jardineira com seu interminável carnaval cantando e tocando pandeiro, também morreu. Desapareceram os tipos de rua da cidade velha, os aguadeiros do chafariz dos olhos d’água sumiram, as praias quase secas sem piquenique, um deserto de areia sem paisagem, sem sentimento. As igrejas, quase todas desapareceram, há somente duas, mesmo assim, com as praças destruídas. Os lagos ficaram sem os cruzeiros, sem os pilares, sem as escadas. Ás vezes são sinos, as vozes dos sinos são as mesmas, mas de vez em quando é que cantam na boca da tarde. É o cântico da saudade que se encomprida dentro da alma da própria terra. É o cântico dos zeladores aos pés da imagem da senhora do parto. Ali, na Rua Manoel Caetano, em frente ao Beco dos Mal Casados. O oratório azul escuro encimado no alto do esteio da casa, a imagenzinha com os olhares de ternura, com suas mãos postas, em súplicas constantes ao pai eterno, para ver a ladainha dos devotos. Vim beijar Jesus, oi filho de Maria, oi filho de Maria, filho dos inocentes, salvador do mundo, o Deus onipotente. Paracatu acabou. Paracatu boa da minha infância, de minha saudade”. Paracatu era isso aí. Agora, se vocês quiserem um retrato mais completo de Paracatu, essa crônica minha aqui, Éramos a Paracatu, aqui eu conto todas as malandragens de menina, essas coisas todas. Agora, a gastronomia de Paracatu foi sempre boa e comum, aquela cozinha mineira comum, com destaque pra o bolo de domingo e lá tem uma tal de desmamada, que eu acho muito gostoso. Mas o que tem lá famoso assim?
P/2 – Mané pelado.
R – Mané pelado. E essas coisas todas, que no meu tempo de menino tinha essas comidas todas que têm até hoje, que estão ressurgindo de maneira muito acentuada.
P/1 – E tinha alguma quituteira que fazia na cidade, que era famosa, que vocês iam comprar essas...
R – Ah, tinha. Só o nome que eu não sei lá. Tinha. Jovita Pinheiro, agora lembrei o nome, era uma. A gente ia comprar sempre de Jovita Pinheiro. Jovita Pinheiro morreu, tá em Uberlândia.
P/1 – E me fale uma coisa...
R – Ah, lá tinha as doceiras famosas, como o caso da... Oxe, como ela chama? Morava lá na beira da praia. Jorgina Doceira. Saía pra rua vendendo doce de mamão, doce de... Tudo quanto é doce assim, barras, fazendo às vezes... Jorgina Doceira que era famosa de lá. Você já ouviu falar nela, não já, menino? Pois é morava ali na... Hoje acho que é Rua Dom Serafim, ali naqueles altos ali. Não, pra cá da praia. Pra cá de Paracatuzinho.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho pra gente como foi acompanhar o desenvolvimento da cidade através das imagens? Que a gente vê que você foi tirando fotos de vários tempos, em vários momentos da cidade. Como foi a acompanhar o desenvolvimento da cidade através da fotografia?
R – Como você fala? Uai, eu fui fotografando. Eu peguei as fotografias antigas de Olímpio Gonzaga, me servi delas, fiz aquele livro mostrando as diferenciações, o que acabaram com a cidade, o que era, o que não é. E hoje, eu tinha vontade... Lá, o Lucas... Tem muita fotografia antiga de Paracatu que foi um fotógrafo natural aqui do Cabo de Paranaíba, esqueci o nome dele, foi pra lá e o Lucas aprendeu com ele. E o Lucas aproveitou e ficou com aquelas fotografias de vidro ainda. São as fotos mais representativas de Paracatu na década de 50, do século passado.
P/1 – Você comentou agora do Lucas, ele foi uma pessoa que fotografou muitas pessoas que moravam na rua e que tinha alguns problemas.
R – Eu não sei se foi ele que fotografou, ou se foi o protetor dele, o que o ensinou, e que eu não posso te falar. Porque eu já não morava lá mais, não sei bem, eu saí de Paracatu em 1951, então eu não tinha muita ligação depois de tudo que aconteceu.
P/1 – E eu queria que você falasse um pouquinho agora o que significa pra você todo o conhecimento da história da cidade de Paracatu.
R – Um orgulho. Só isso. Eu tenho vaidade. Eu acho que Paracatu por ter vivido o isolamento que viveu, com o ressurgimento através de Brasília, que eu não sei até onde foi vantagem, até onde não foi, não vou discutir isso, mas Paracatu teve duas épocas muito diferentes. Aliás, várias épocas diferentes. Paracatu teve um século... Quando as minas de Minas Gerais se esgotavam, surgiram as de Paracatu. Foi onde Paracatu cresceu. Depois veio a decadência também das minas de lá, os escravos já muito valorizados, já velhos de coisa, quase não havia mais. Então ficou aquela mão escrava, aquela mão coisa, passou a ser uma cidade modorrenta, uma velha andando nos chinelos rotos. Eu costumo dizer que Paracatu é uma velha que ficou no meio do caminho, não é nova, nem é velha, é aquele trem. Ficou no meio do caminho. Você pode observar que ficou. Mas não deixou de ser uma história no caminho de Brasília, que é a única cidade... Luziânia foi fundada por paracatuense, não sei se você sabe. Em 1946, Antônio Bueno de Azevedo saiu de Paracatu e descobriu as minas do Rio Vermelho lá em Luziânia. Sabe onde é Luziânia, não sabe? E Luziânia teve característica de cidade antiga, teve tudo, mas acabou tudo, pior que Paracatu. Lá em Luziânia conserva acho que uma casa só, ou duas, e mais um sobrado, e mais nada. E acho que a Igreja de São Benedito, ou Santana, tem uma igreja lá assim. Mas Paracatu ainda conservou muito, apesar de tudo. Apesar de muito espírito destruidor, conservou.
P/1 – Agora, você comentou como você conheceu a sua esposa, e falou de como se deu o casamento, que foi uma coisa que você não sabia nem que tava namorando e acabou casando. Eu queria que você falasse um pouco quantos filhos vocês tiveram, qual o nome deles, o que eles fizeram.
R – Olha, o nosso casamento, como eu te falei, foi um namoro que nasceu muito espontâneo. Se fosse pra eu conquistar uma moça hoje, eu não sei, porque eu não sei como foi. Que nasceu tão... Aquele costume, saía depois da aula, ia, depois um belo dia um tava gostando do outro, deu nisso. Eu me casei logo sem poder casar, digo com sinceridade, mas meu sogro tinha um problema muito sério com ele... Ele ficou viúvo muito novo, minha sogra morreu com 36 anos de idade, minha mulher ficou com dez. Essa rua aqui tem o nome dela, Elza Carneiro Franco. Ele ficou com aquela preocupação, porque ele se casou outra vez ele fez uma coisa muito interessante, ele chamou a responsabilidade toda dele para os filhos do primeiro casamento, o segundo, ele deixou por conta da segunda mulher. Eu acho que os filhos com isso ganharam muito. Porque ele era muito rigoroso com elas. Eu, por exemplo, tive que casar. O bispo daqui que ela queria tava em Roma, me avisou: “Vou pra Patos pra fazer seu casamento”. Ele não deixou porque: “Não, você vai casar é logo”. Tive que casar, né? Casei-me... Trouxe até pra... Olha lá, aquele ali é o presente que ele me trouxe lá de Roma da benção papal do nosso casamento. Só que erraram a data, puseram acho que 14 e é quatro. Então eu tive esse problema, tive que casar, não foi forçado, é questão de época, questão de circunstâncias e graças a Deus eu fui muito feliz nesse casamento. Eu não tenho nada a queixar, nada a reclamar, eu acho que se fosse pra eu começar tudo de novo, eu tinha começado do mesmo jeito. Não é coisa feita, não, mas dentro do meu conceito é isso, que eu fui um sujeito muito feliz... Fui não. Sou muito feliz na minha vida de casado. Eu tenho três filhos, o mais velho é daqui, nasceu aqui, é o arquiteto que hoje é doutor em arquitetura com esse livro que eu te mostrei, tem até aí a tese dele. Ele faz essa comparação entre Brasília e Ouro Preto. Tenho a segunda filha que é advogada, trabalha no Tribunal de Justiça de Brasília, muito bem lá como chefe de vara e tal, diz que ganha melhor do que se fosse juiz, nunca quis fazer concurso pra outra coisa por isso. E tem o terceiro que é advogado, mas quis ser bancário, é bancário do Banco do Brasil, vive correndo o mundo aí pra subir de posto. Felizmente trabalha muito bem, graças a Deus tudo bem.
P/1 – Qual é o nome deles? O arquiteto...
R – O mais velho é Antônio. É Júnior, a gente chama. A mais nova é Elza Regina, o nome da vó, e Regina que a mãe pediu pra colocar. E o José André que eu fiz questão de colocar esse nome nele em homenagem ao bispo que eu considero o meu maior protetor, que era o Dom José André Coimbra, o primeiro bispo daqui da diocese. Foi um grande amigo que eu tive.
P/1 – E pra finalizar eu queria que você falasse um pouquinho como foi participar dessa conversa com a gente. Como é que foi contar a sua história pra gente?
R – Muito sem jeito, que começa aqui, vai pra lá, vai pra cá. Agora, não sei qual é a marmelada que vocês vão fazer aí depois, eu tenho um medo de vocês nessa hora.
P/1 – Pode ficar tranquilo.
R – De modo que foi uma conversa descontraída. Tem muita coisa que eu poderia, talvez você não lembrou, eu também não, interessante sobre Paracatu que a gente poderia dizer. Por exemplo, eu tenho uma lembrança muito grande [...] teve casos lá, por exemplo, o suicídio no Beco dos Mal Casados do filho do prefeito, o Muci de Chiquinho Pinheiro na janela do quarto da moça porque eles não queriam o casamento com ela. A família dele não queria o casamento da moça e ele coisa foi lá e se atirou, à noite, os pais na fazenda, eu lembro direitinho, coisa engraçada, né? Eu era menino pequeno, eu não sei o ano, deve ter sido 43, 44, eu lembro direitinho daquele movimento da cidade, aquele corre-corre, cidade escura, não tinha luz, aquela luz moãozinho que você não enxergava nada indo pra buscar seu Chiquinho na fazenda e dona Julieta, a mulher, que o moço tinha se suicidado. E foi uma coisa muito curiosa, três primos suicidaram por causa de moça. Um, filho da Blandina. Blandina era irmã da dona Julieta. Ele se formou em Direito, por causa de uma moça linda, dona Marta, paixão, não sei o que, não quis o casamento, tava namorando, suicidou com um tiro. O Muci foi o segundo, do beco, esse que eu tô te contando com o (inaudível). E o terceiro foi Tutia. Tutia é filho do irmão, não é filho da irmã, foi filho... Os dois outros foram filhos de duas irmãs e esse filho do Romualdinho, Romualdo Ulhôa. Tinha um teatro, ainda existia, ele no dia 28 de dezembro... Aí atira lá num canto também, a moça cai, ele pensou que tinha matado a moça, ele suicida. Todos os três suicidaram. Todos os três. E a moça não teve nada, que ela foi de uma sorte danada, a bala passou entre os dois pulmões e ela só caiu no impacto da bala e trem. Dia 28 de dezembro de 1960... 40... 58... Eu saí de Paracatu... 1948. Eu me lembro do dia desse outro, 28 de dezembro, por causa de meu pai, é dia do aniversário do meu pai. Sabe, que houve isso. Então eu tenho muita lembrança de coisa assim... Ah, outra coisa que eu tenho lembrança também, muito curioso, foi na revolução que o Dom Raimundo vai pra beira do rio com o prefeito na divisa de Minas com Goiás pra evitar da tropa mineira invadir Paracatu, na Revolução de 64. Então esses quadros também bem interessantes de lá, sabe? Mas isso aí a gente precisava de anotar e ter uma sequência...
P/1 – Mas tudo bem, a gente tá gravando.
R – Mas são coisas interessantes, né?
P/1 – E me fala uma coisa, você tava falando agora, eu me lembrei de uma coisa que eu achei interessante até, a coisa das festas, que você falou que dia 29 agora vai ter uma procissão...
R – Ah, a festa de São Benedito. A festa de São Benedito foi sempre a maior festa lá de igreja. Sempre. Vocês estando lá amanhã, eu faço questão que vocês vejam se eu to mentindo. A população que vai acompanhar a procissão é uma coisa fora de série. Santo Antônio ficava de escanteio, mas esses bispos diocesanos, que os outros eram todos carmelitas, eram bispos, mas eram de ordem religiosa, não tinham essa preocupação de reavivar, fazer qualquer coisa. Enquanto que o dom Leonardo que mora lá, vocês fizeram entrevista com ele?
P/1 – Não.
R – Pois é. É uma pessoa que você devia fazer. Ele foi importantíssimo na história da diocese. Ele quem armou e tá a diocese funcionando. Ele não quis sair de Paracatu. Ele é bispo emérito de Paracatu, mora lá no Alto do Córrego, todo mundo que perguntar sabe onde ele mora. É um baixinho, é mineiro de Diamantina, é um sujeito fabuloso. Olha, ele chegou, só pra você ver o trabalho dele, a Paracatu não tinha um padre, era tudo carmelita. A diocese não tinha um padre. A diocese inteira tinha oito paróquias, ele saiu de Paracatu ele deixou 28 paróquias. Dentro da cidade de uma paróquia passou acho que são seis paróquias hoje, acho que só uma que ele não criou, foi esse bispo atual. A diocese inteira tá cheia de paróquias que foi tudo trabalho dele. Os padres que ele tinha zero...
P/1 – Você tava falando do bispo.
R – Um que eu achava que vocês deviam procurar porque ele tem uma força violenta. E um homem... O que eu mais gosto dele é o seguinte, ele não é desses que porque é protestante: “Não conheço protestante, não”. Ele vai na casa, frequenta, tem ligação com os protestantes. Você sabe disso, né? Os protestantes todos lá gostam dele. Ele é um homem aberto e ele pode te contar, ele num tinha um padre, ele deixou 40 padres. A diocese hoje tá com 50 porque se ordenaram outros mais. Então eu acho uma pessoa muito importante pra vocês falarem sobre Paracatu. E ele tem tanto amor a Paracatu que ele não quis sair de lá. Foi o outro bispo, ele continua lá. Leonardo de Miranda Pereira. Eu acho que esse homem vocês deveriam procurar. Já que vocês estão querendo falar é do homem, ele pra mim é uma pessoa muito... Quer dizer, eu não sei se a minha opinião vai valer pra vocês, pro trabalho seu, mas eu acho que o dom Leonardo vale.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho também, já que a gente tá voltando pra coisa de Paracatu, como é que eram as bandas, a música, como é?
R – Lá tinha a Banda da Fraternidade e a Banda Euterpe. Ali havia até política entre elas, onde tocava a Banda Euterpe, a outra não tocava e aquilo ia. Júlio Sapateiro, hoje tinha um bisneto dele aqui que eu tava contando história pra ele do bisavô dele, Júlio Sapateiro, que era músico da Banda Euterpe. Essa Euterpe é de 1880. Deixaram morrer. Eu não sei como é que ficou o arquivo dela. Então eles tocavam... Todas as procissões, acompanhavam as procissões tocando. Tocavam no coreto. Vocês viram o coreto que tem lá? Aquele coreto quem fez aquilo foi Quintino Vargas na década de 1930. Ia pra lá, tocava coisa, a gente ia pra lá assistir. Ah, a fotografia, eu mandei fotografia. Não tem fotografia da banda lá no coreto? As bandas de música lá alegravam muito as noites e a comunidade. Agora, era aquela vida pacata de cidade interiorana que durante a semana... Quando tinha as festas havia as festas, as procissões, os leilões, essas coisas como tá vendo hoje. Hoje tá muito mais bem organizado, mais coisa, mas era dentro... (inaudível)
P/1 – E como é que era um pouco dessa coisa também a questão social dos bailes que havia, porque assim, a gente lendo e ouvindo que onde frequentavam os brancos, os negros não podiam. Como é era isso um pouco?
R – Lá tinha uma separação realmente disso. Inclusive das igrejas, não sei se vocês sabem. A Catedral e a Santana eram igreja dos brancos. A igreja do Rosário era dos pretos. A igreja de Santana... Não. Santana e Catedral eram dos brancos, a do Rosário era dos pretos. Amparo e Abadia eram dos mulatos. Até o padre que celebrava tinha que era da mesma cor, porque lá tinha muito padre naquela época e padre preto, padre moreno. Inclusive um dos grandes poetas até considerado poeta menor na literatura brasileira, o Padre Domingos Simões da Cunha, que é natural lá do São Domingos, nascido em São Domingos no século XVIII e morreu no século XIX, autor da Tapuiada, tapuiada é uma dança fabulosa que tem lá, e tinha lá uma figura fenomenal que se chamava Luiz Dario, que é o pai do Dario Alegria, não sei se vocês tiveram a oportunidade de ter com o Alegria.
P/1 – Nós conversamos com ele.
R – Conversaram com ele? O Luiz Dario era um caboclinho, morreu novo, 40 e poucos anos talvez, ele era animador de política, tocava sanfona muito bem, de comícios políticos. Ele vinha trabalhar aqui na região inteira e lá em Paracatu essa época o Luiz Dario fez uma coisa muito interessante em Paracatu... O coiso deve ter te contato, o tal do Saca Rolha. Falou lá no Saca Rolha? O Saca Rolha depois era só dos pretos pra combater os brancos lá do Santana, e os brancos passaram lá pro Saca Rolha e tinha o negócio da onça, como chamava? Era dele a Boca da Onça, um negócio lá também onde fazia toda essa movimentação. Agora, realmente havia um pouco quem morava em tal lugar, tal... Meu pai mesmo era muito preconceituoso contra o Santana. Santana era mais considerado lugar dos pretos. Paracatuzinho nem se fala. Paracatuzinho no tempo que começou era um bordel. Hoje Paracatuzinho ainda é ainda, não tem lá bastante? Você que mora lá. To perguntando pra ele ali, não tem? Paracatuzinho ainda tem lugar com muito assassinato, muito trem lá, não tem? Lá tem. Lá é o Paracatuzinho. O Paracatuzinho é quase que uma cidade ao lado da cidade de Paracatu. Lá eles elegem os próprios vereadores deles, fazem tudo. É o maior bairro que tem lá, essas coisas todas. Quanto à vida social lá, eu não sei se há um racismo muito grande. Houve alguma separação... Você sabe que sempre há. Isso é bobagem que há. Agora eu não acho que foi tão assim, não sei se é porque eu vivia no meio de nego também lá na boa, que meu pai foi nascido ali na roça e tinha aqueles crioulos lá, Justino Manso, Justino Macaco Bravo. Essa turma toda ia dormir lá em casa e contava história pra nós crianças pra dormir, essa coisa toda, foi uma época que eu convivi muito com preto. Inclusive lá em casa o único que não tinha padrinho preto era só eu. A minha irmã, o meu irmão tinha, o padrinho dela, o Antônio... Antônio o que, meu Deus? Eu esqueci o sobrenome dele, o apelido. O padrinho dele era preto, esse padrinho dele, a minha irmã caçula a madrinha dela Júlia... Não. Júlia era de outra irmã, minha irmã tinha madrinha Júlia, a minha irmã caçula o padrinho dela era um preto, um pedreiro, Ferreira, Vicente Ferreira. Então, lá em casa nunca teve muito esse problema de preto com branco, não, sabe? E meu pai sempre conviveu com todo mundo e nos ensinou a conviver com o pessoal de uma forma muito harmoniosa.
P/2 – Oliveira, eu fiquei curioso, o senhor com uma produção de livros tão grande, com uma produção de narrativa tão forte, eu queria saber de onde que vem esse gosto pelo narrar.
R – Sei lá. É bom contar trem para os outros, não é? Ainda mais eu que sou muito conversador. Eu não sei.
P/2 – O senhor escutava muitas histórias de criança, quando era criança?
R – Escutava. Esses pretos... O Justino Macaco Manso, era o apelido dele, um era Macaco Bravo, o outro era Macaco Manso. O Justino Macaco Manso, eles iam dormir lá na casa do papai, a gente levava eles para o quarto da gente, eles iam dormir lá no fundo onde o meu pai tinha uma venda, um depósito, eles dormiam lá em cima daqueles sacos de feijão, de arroz, sei lá de que Diabo que era, e a gente levava eles, eles iam pro quarto da gente pra contar aquelas histórias mirabolantes, aquelas coisas todas e a gente delirar. Não só eu. Meu irmão, ele é morto já, é aquele ali que era médico, morreu novo, 52 anos num acidente junto com minha mãe, os dois morreram tá com 26 anos isso. A gente juntava os meninos, a caçula que era mais nova que eu cinco anos, nós todos estávamos lá juntos e escutando as histórias deles. A gente dormia, a hora que eles percebiam que a gente tava dormindo eles saiam do quarto e iam pro canto deles. Quer dizer, sempre houve muito esse entrosamento. Porque nós tínhamos um tio que depois se casou, depois de muitos anos, mas se envolveu com uma negra que nós todos lá deliramos. Todo mundo era doido com ela e minha mãe era uma que ficava com ele: “Mário, por que você não casa com negrinha?”. Qual era o apelido dela? Eu esqueci. “Por que você não casa com Fulana?” “Ah, não vou atrapalhar a família, botar preto...” “Mas nós todos temos preto na família, tudo. Deixa de bobagem”. Dizem que quando eles fizeram 50 anos que estavam juntos que houve um casamento, eu não sei se é verdade. Dizem, né? Eu não perguntei, não pergunto e tal. E os filhos todos são de cor negra. Você deve conhecer, o Levi, por exemplo, você não conhece? Levi é dessa cor, não é? Ou ele é mais claro que assim um pouquinho? Levi... Eu tenho primo lá em Paracatu... Esse meu irmão, por exemplo, era bem moreno. Ninguém falava que ele era meu irmão.
P/1 – E pra finalizar, que tá uma delícia esse papo, mas a gente precisa, eu queria que você falasse qual é o seu sonho hoje.
R – Será que eu posso sonhar? Eu sei lá se eu tenho sonho, sabe? Meu sonho é ver minha família toda bem-sucedida, claro, que é de todos os pais. E meu sonho é ver o povo de Paracatu sentir uma coisa que eu sempre preguei, que graças a Deus eu to vendo, é voltar para o passado, procurar conservar o que existiu. E o que não existiu eles estão procurando de alguma forma construir a maneira deles, mas eles estão. E o meu maior sonho agora é publicar essa segunda edição, já que você tá filmando eu poderia mostrar a capa do livro que eu tenho aqui. Essa segunda edição de Memória Cultura que eu considero um trabalho local, além desses outros que eu tenho, de muita pujança e que dá pra pessoa ter uma visão completa do século XVIII até os dias de hoje. E ver o que os de fora viam sobre Paracatu e o que os de dentro produziram, sem ser especificamente sobre Paracatu, porque Paracatu teve muita gente importante nesse país. Por exemplo, Carlos Campos na filosofia e no direito, Afonso Arinos na literatura. O Frei Neiva que foi para o sul, mas escreveu só sobre o sertão, quando menino ele ia pelos sertões, tinha mais... Você vê lá na biblioteca, você acha lá os livros do Frei Neiva, tem um mundo, um mundo lá no arquivo público. Então eu tenho esse conceito, meu sonho... Eu acho que eu vi muita coisa realizada do que eu queria. Agora, o meu sonho mesmo era ver esse país ser o que não é. É uma tristeza dizer que eu moro no Brasil, no Brasil do Temer, no Brasil do Lula, Deus me livre. Deus me livre. Eu acho que esse homem... Todos têm seus defeitos, mas eu acho que esse homem foi o cabeça de tudo que tá acontecendo de ruim. E ele é um santo, né? Ele se coloca... Você não viu que o dia que ele foi preso vão ficar sabendo, não precisa pensar em honestidade mais no Brasil que o homem mais honesto do Brasil tá na cadeira, que eu não acredito. Mas o negócio é esse. O que eu vou sonhar? Eu já to vendo só uma caixa assim e eu lá dentro um dia. Tem mais nada pra sonhar. Graças a Deus tá tudo velhinha. Sei lá. O que eu quis fazer eu fiz, a verdade é essa, e procurei fazer de uma forma abrangente e que todo mundo pudesse apreciar. Nunca fui de sair contando papo, dizendo eu sou isso, eu sou aquilo. Só quando vocês me chateiam muito eu falo: “Você deixa de ser besta, vai conversar fiado”. Por exemplo, uma vez vieram aqui me pedir pra falar sobre a história do Brasil, eu falei: “Eu não vou falar, não. Eu não sei nada” “Não é possível, você é historiador” “Você me pergunta sobre Patos, sobre Paracatu, sobre o presidente Olegário, sobre o Unaí, eu conto, mas sobre isso aí eu não sei de nada, não”. Não sei mesmo.
P/1 – Eu queria agradecer em nome do Museu da Pessoa e em nome da Kinross.
R – Esse Museu da Pessoa, vamos ver o que ele vai mandar pra mim, né?
P/1 – Vou mandar o CD, o seu depoimento você vai receber.
FINAL DA ENTREVISTA
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