Entrevista de Ana Maria Felisbino
Entrevistada por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 06/10/2021
Realizada por Museu da Pessoa
Projeto: Comunidade Zaki Narchi - Instituto Center Norte
Entrevista n.º: PCSH_HV1052
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Ana, primeiro eu quero te agradecer imensamente e gostaria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Ana Maria Felisbino, nasci no interior de São Paulo, em Pompeia, 09 de fevereiro de 1957.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Glória Duarte Felisbino e Francisco Felisbino.
P/1 – E onde eles nasceram?
R – Meu pai foi em Tatuí, que eu me lembro. E minha mãe foi Pompeia.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – No interior, foi na roça, é o que eu sei. É que minha mãe falava pouco. Era daquelas pessoas bem sérias, não era muito de ficar… e a gente não perguntava também. Como que ela ia falar? (risos)
P/1 – E com que eles trabalhavam? O que eles faziam?
R – Na roça era café, laranja. Meu avô tinha um sítio, aí meu pai vinha aqui para São Paulo, não tem aquela área cerealista, ali? Então, meu pai vinha trazer as mercadorias para vender, meu avô tinha um box lá. É o que me falavam, porque eu não cheguei a participar, não, porque eu vim com oito meses do interior, para cá.
P/1 – E seu pai já te contou de alguma viagem para cá?
R – É, contava. Quem ia com meu pai no caminho, tudo, era meu irmão mais velho. A gente estava mais em casa, com a mãe. Meu pai era daquelas pessoas bem sérias. Não era muito de ficar falando muita história.
P/1 – E você conheceu os seus avós?
R – Só da parte da minha mãe. Do meu pai, só por foto, a minha vó. Não cheguei a conhecer, não.
P/1 – E quais eram os nomes dos seus avós?
R – Minha avó era, da parte da minha mãe, Maria Moreira e meu avô Abílio Duarte, por parte de mãe. Do meu pai, era...
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Entrevistada por Luiza Gallo e Bruna Oliveira
São Paulo, 06/10/2021
Realizada por Museu da Pessoa
Projeto: Comunidade Zaki Narchi - Instituto Center Norte
Entrevista n.º: PCSH_HV1052
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Ana, primeiro eu quero te agradecer imensamente e gostaria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Ana Maria Felisbino, nasci no interior de São Paulo, em Pompeia, 09 de fevereiro de 1957.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Glória Duarte Felisbino e Francisco Felisbino.
P/1 – E onde eles nasceram?
R – Meu pai foi em Tatuí, que eu me lembro. E minha mãe foi Pompeia.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – No interior, foi na roça, é o que eu sei. É que minha mãe falava pouco. Era daquelas pessoas bem sérias, não era muito de ficar… e a gente não perguntava também. Como que ela ia falar? (risos)
P/1 – E com que eles trabalhavam? O que eles faziam?
R – Na roça era café, laranja. Meu avô tinha um sítio, aí meu pai vinha aqui para São Paulo, não tem aquela área cerealista, ali? Então, meu pai vinha trazer as mercadorias para vender, meu avô tinha um box lá. É o que me falavam, porque eu não cheguei a participar, não, porque eu vim com oito meses do interior, para cá.
P/1 – E seu pai já te contou de alguma viagem para cá?
R – É, contava. Quem ia com meu pai no caminho, tudo, era meu irmão mais velho. A gente estava mais em casa, com a mãe. Meu pai era daquelas pessoas bem sérias. Não era muito de ficar falando muita história.
P/1 – E você conheceu os seus avós?
R – Só da parte da minha mãe. Do meu pai, só por foto, a minha vó. Não cheguei a conhecer, não.
P/1 – E quais eram os nomes dos seus avós?
R – Minha avó era, da parte da minha mãe, Maria Moreira e meu avô Abílio Duarte, por parte de mãe. Do meu pai, era Angelina, que eu lembro é Angelina Moreato, uma coisa assim e aí meu avô, eu não sei.
P/1 – E com os seus avós maternos, tinha alguma atividade que vocês faziam juntos, você se lembra de alguma?
R – Não, eu não, porque eu vim bebê para São Paulo. Naquele tempo era mais na roça. Minhas irmãs iam levar comida na roça, pra quem estava trabalhando, essas coisas.
P/1 – Ana, os seus irmãos viveram na roça, um tempo?
R – Viveram. Em casa éramos nove irmãos, comigo nove. Tem dois falecidos. E sete vivos.
P/1 – E você está mais para mais velha ou para mais nova?
R – A caçula das mulheres, porque são quatro mulheres e cinco homens. A caçula.
P/1 – E seus irmãos contavam um pouco como era essa vida na roça?
R – Só minhas irmãs.
P/1 – O que elas falavam?
R – Então, que trabalhavam bastante, a mais velha era a mãe da gente. Aquela que já tomava conta da casa, fazia comida, fazia tudo. É o que a minha irmã conta, a mais velha.
P/1 – E como era a sua relação com elas?
R – Ah, eu amo minhas irmãs, meus irmãos, minha família toda! Tudo gente simples, mas tudo um dado com outro.
P/1 – E como você descreveria seus pais?
R – Meus pais?
P/1 – O jeitinho deles.
R – Até dá saudade. Eles eram sérios, mas ensinavam a gente a andar corretamente. Aquelas coisas de pai e mãe, que cuidam muito. Ah, eu morro de saudade dos meus pais. Minha mãe é tudo para mim, até hoje. Para mim, ela não morreu. Vai morrer quando eu morrer. Ela está aqui. Meus pais, né?!
P/1 – Tinha alguma coisa que vocês gostavam de fazer juntos? Tem alguma lembrança que você tem, fazendo com seus pais?
R – Eu aqui fiquei de mulher, eu limpava a casa, trabalhava, comecei a trabalhar com sete anos. Depois da escola, eu vinha, meio-dia trabalhava numa vizinha, ali foi onde fiquei uns cinco anos, até trabalhar em fábrica. Na primeira fábrica, lembro do meu pai me levando para assinar carteira, aquelas coisas. E eu gostava muito. A senhora que eu trabalhava, falava pra minha mãe: “Nossa, Dona Glória, a Ana tem sete anos, mas ela limpa uma casa que nem uma adulta”. E eu lembro de quando eu limpava a casa, hoje eu penso: “Vê as meninas agora: não sei se não sabe ou não quer fazer.” Mas eu tenho maior orgulho, aquela mulher me elogiava, me tratava que nem a filha dela. Tenho saudade de tudo isso. Minha infância foi boa!
P/1 – E essa lembrança de você trabalhando já era aqui em São Paulo?
R – Era aqui em São Paulo.
P/1 – E sua mãe, seus pais, seus irmãos te contaram como foi essa vinda para cá? Porque você era bem pequenininha, né?
R – Contaram o quê?
P/1 – Como foi a viagem para cá, saindo de Pompeia e vindo pra cá.
R – Agora isso aí eu não lembro, não. Não contou, não. Só falavam que eu vim pequena. E aí minha mãe teve meu irmão mais novo aqui em São Paulo. Essas coisas.
P/2 – E onde vocês foram morar, quando chegaram?
R – Aqui, conhece o Mandaqui? Então, ali na Vila Aurora. Lembro da casa direitinho, até hoje.
P/1 – Como que era?
R – Era uma casa simples, mas tinha aquele quintal bem grande e aquele tempo era muito sofrimento. As pessoas tinham que trabalhar mesmo, agora a gente tem tudo na mão. Naquele tempo, não. A minha mãe tinha aquela parreira de chuchu que ia longe, criava galinha, pato. Tinha um galo que sempre, quando eu vinha da escola, não deixava a gente entrar dentro de casa. (risos) “Ai, mãe, segura o galo, para entrar”. E o Silvio Santos, aquela coisa do Silvio Santos... como que era a música? Tinha aquele rádio ligado no Zé Bettio, aquelas coisas bem antigas, era isso. Família simples, mas toda unida.
P/1 – E você lembra de alguma comida dessa época? Algum cheiro que te lembra esse momento?
R – Aquele bolinho de chuva. Quando estava chovendo, minha mãe fazia aqueles bolinhos de chuva, pipoca e sentava com a gente. Minha mãe tinha um bracinho igual ao meu, que é molinho, eu ficava assim na minha mãe e chupava o dedo. (risos) Ali eu viajava. A melhor coisa que tinha na vida era esse tempo. Minha mãe era muito amorosa, falava pouco, mas dava muito carinho para a gente.
P/1 – Como era a atividade de vocês? Vocês ajudavam lá, nessa casa? Cada um tinha uma função, os filhos? Como era o dia a dia?
R – Então, todo mundo fazia alguma coisa. Eu já trabalhava, ia pra escola de manhã, meio-dia já ia nessa senhora e saia às cinco horas da tarde. Era em frente de casa. Cada um fazia uma coisa, meus irmãos trabalhavam em feira, fazendo carreto, essas coisas. Minha mãe era lavadeira. Eram aquelas trouxas de roupa, nossa! Minha irmã chegava do serviço, ia passar tudo aquilo. Essa minha irmã sofreu, a Rosa.
P/1 – E como era o dia a dia no seu trabalho, nessa outra casa, ajudando a limpar?
R – Como?
P/1 – Você trabalhava, não trabalhava? Como que era o seu dia a dia lá?
R – É, então, era cuidando das duas crianças, das duas filhinhas dela e limpava a casa, essas coisas. Mas eu era tratada igual filha, para mim aquilo lá não era nem trabalho.
P/1 – E, Ana, me conta uma coisa: qual é a sua primeira lembrança da escola?
R – Primeira lembrança da escola? Primeiro dia não lembro muito, não, mas aí, no decorrer, foi bom.
P/1 – Tinha algum professor que te marcou?
R – Ah, a Dona Francisca. Primeira professora. Lembro do jeitinho dela, magrinha, alta. É a que eu lembro mesmo, que marcou. Foi no primeiro dia, eu acho.
P/1 – E como era o dia a dia na escola? O que você gostava de fazer lá?
R – Eu gostava de escrever na lousa. A professora sempre me chamava e eu ia. E eu brincava muito, eu era muito brincalhona.
P/1 – Quais brincadeiras você gostava?
R – Ah, gostava de fazer as pessoas sorrirem, inventava uma palhaçada. Essas coisas de criança.
P/1 – E como que você ia para a escola? O caminho.
R – Ah, era pertinho, ia a pé. Não era longe da escola.
P/2 – Ia com seus irmãos?
R – Não, ia sozinha, porque cada um estava em uma série, ia sozinha.
P/1 – E tem alguma história marcante da escola, que você se lembre?
R – É, tem uma que não foi muito boa para mim, não. Tinha onze anos quando teve a formatura, para receber o canudo e aí a gente não tinha condições de comprar um presente para professora, mas essa minha irmã mais velha comprou uma rosa. A rosa vermelha, um botão de rosa, coisa mais linda: “Ana, leva para professora”. Na hora que eu estava entrando assim no portão da escola, no pátio, tinha uma menina que brigava com todo mundo. Ela ia de salto alto, aquele salto “Luiz XV” fino, batia nos moleques, a gente tinha o maior medo dela. Nossa, era um terror. Aí eu ia entrando com a minha rosa, toda feliz, para levar para professora, na hora entregar para ela, essa menina falou: “Me dá essa rosa aqui, que eu que vou dar para minha professora”. Eu falei: “Não, não vou dar, não”. Brava, fiquei brava. Aí, essa menina, na hora de entrar, veio me agredir. Eu nunca tinha brigado, eu tinha até medo dela, porque todo mundo na escola tinha medo, mas na hora veio uma força tão grande, dei uma surra nela, só que a rosa despedaçou tudo. (risos) Eu não deixei barato, mas chorei, chorei, fiquei muito triste. Isso aí eu lembro, até falo para minha netinha, ela fala: “Nossa, vó, a senhora brigava na escola?” Eu falei: “Não, Vitória, eu fui defender a minha rosa, que era da professora”. Ela dá risada, porque eu nunca fui de briga. Minha mãe nunca ensinou a gente ficar agredindo ninguém. Então, foi essa lembrança. Não é muito boa, não. Mas passou.
P/1 – Como foi o resto desse dia?
R – Ah, chorei. Ah e outra: nesse dia, ai, essa foi inesquecível também. Essa minha irmã mais velha, a Rosa, ia trabalhar e, às vezes, eu ia junto com ela, em algum lugar, levar roupa, quando dava para eu ir. E eu via, sabe aqueles bonecos de plástico, que agora ninguém nem quer, as meninas, aquele carequinha? Mas só que ele estava na loja, assim, numa vitrine, lá na Água Fria, com uma roupinha, um chapeuzinho, falei: “Rosa, queria esse boneco para mim”. E minha irmã sempre falava: “Ai, Ana, não tenho dinheiro. Quando eu tiver dinheiro, eu te compro, tá, filha?” Falava assim. Aí tá, no dia que eu vim da graduação da escola, o boneco estava sentadinho no sofá, na sala de casa. Nossa! Chorei, chorei, aquele boneco quebrava, eu punha elástico nele, parecia um filho para mim, foi inesquecível o que a minha irmã fez por mim. Essa minha irmã é viva, graças a Deus. Eu oro sempre por ela. Muito amorosa. É, eu lembro disso aí. Cuidava da gente também, era uma irmã bem cuidadosa. Minha mãe passava o dia no tanque, lavando roupa, o que ela gostava de fazer, aquela barriga molhada o dia inteirinho. Era minha irmã que, para ensinar as coisas era com ela, porque eu era a mais nova. Mais nova, assim, a mais nova das irmãs. Minha mãe ficava o dia inteiro só lavando roupa. Não foi fácil, não.
P/1 – E com a sua irmã? Tinha alguma atividade com sua irmã que você se lembra, algum ensinamento dela?
R – Os ensinamentos eram só os serviços, aprender a lavar louça, varrer a casa, fazer comida, ensinar a fazer um arroz. Meu primeiro arroz podia jogar na parede, era um reboco. (risos) Essas coisas, mas a gente brincava muito. No quintal juntava com os vizinhos, as meninas, fazia comidinha de verdade, vinha aquele tijolo. Ali nós passávamos o dia, às vezes, brincando, quando dava para brincar. Aí, maior assim a gente já mudou, pulava corda, esconde-esconde, aquele negócio de beijo, abraço, aperto de mão. Aí quando era um menino mais bonitinho, que a gente olhava assim, não era coisa de agora, namorar, era só aquela... a gente mandava dar um toquinho assim, pra gente: “É beijo, abraço ou aperto de mão?” Aí: “É beijo” Aí: “Na boca ou no rosto?” A gente tinha medo dos pais: “É no rosto”. Aquilo ali ia, muito bom!
P/2 – Quantos anos você tinha, nessa época?
R – Nessa idade aí acho que era uns doze, treze anos, até uns dezessete a gente morou nesse lugar, dezoito anos. Não, eu morei. Depois fui morar com a minha irmã, que ela casou, mas minha mãe continuou no mesmo lugar. Aí já tinha a casa própria, que a minha irmã comprou um terreno, minha mãe construiu, por exemplo, quatro cômodos, pequenininho. Até hoje tem o terreno, tem minha irmã que mora lá, meu irmão. Ah e lembro também que tinha uma olaria, que tinha aqueles tijolos usados, então, comprava mais barato e a gente pegava aqueles carrinhos e ajudava meu pai a trazer também, para poder construir, tudo a pé. Tudo, Água Fria, lá para os Bancários, que agora é os Bancários. E aquilo era uma alegria, ia levantando, levantava quase tudo acho que no barro, misturado, assim, não tinha dinheiro para cimento, essas coisas. Mas a casa ele desmanchou porque quis, mas durou muitos anos. Foi assim, essa luta.
P/2 – E você ajudou a construir, todos os seus irmãos ajudaram?
R – Os menores, todo mundo ajudava.
P/1 – Ana, o que você mais gostava de fazer, quando era criança?
R – Ah, brincar. Brincar de escolinha, essas coisas. Ah, tudo eu gostava. Minha vida sempre foi boa. Mesmo humilde, mas não tem do que reclamar, não. Então, a família da minha mãe tem uma tia minha que está com 98 anos. Ela é viva ainda. Ai, eu gostava de ir na minha tia, sabe, minha tia amorosa. Porque as duas irmãs casaram com os dois irmãos, então, é o mesmo sangue. Então, minha tia até hoje eu falo: “Nossa, tia, a senhora é tudo na nossa vida”. Você vai lá e ela não sabe o que fazer para a gente. Porque, depois de avó o que é, mesmo?
P/1 – Bisavó?
R – Não, depois de bisa.
P/1 – Tataravó.
R – Tatara, ela já é. Família grande. Tia está lá, firme e forte!
P/2 – Ela mora perto?
R – Mora ali no Mandaqui, a família toda ali. Parece que já foi tudo combinado. Tem uma rua que só tem família aqui. Aí só pôr um portão na rua. (risos) Minha família é tudo pertinho. Só minhas primas do interior que não estão lá. Menos convivência. Lugar que nasceu está até hoje, também.
P/1 – E quando você era pequenininha, você pensava no que você queria ser quando crescesse, no que você queria trabalhar?
R – Ah, eu queria ser professora, só que aquele tempo, para estudar, não era que os pais não punham para estudar, tinha mais que trabalhar. Para poder, ó... era isso. Então, eu lembro quando ia pra escola, no tempo que eu estudei à noite, eu ia para dormir, só. Trabalhava o dia inteiro. O professor batia na carteira: “Acorda, Ana”. Nossa, eu ficava babando na carteira. (risos) Mas eu gostava de estudar, não continuei porque não quis também. Já estava mocinha, podia ter continuado, mas gostava mais de trabalhar. Foi isso.
P/2 – E depois que você saiu da casa dessa moça que você trabalhava, você foi trabalhar com o quê?
R – Primeiro lugar, fábrica de chocolate. Era aqui em Santana. Aí trabalhei lá muito tempo. Primeiro emprego.
P/1 – Foi nesta época, foi nesse emprego que você foi fazer sua carteira de trabalho?
R – Que eu fiz? Foi meu primeiro emprego, meu pai que me levou.
P/1 – Como que foi esse dia, fazer a carteira com seu pai?
R – Foi tudo diferente. Meu pai falava: “Vai tirar a carteira, a primeira carteira”. Eu fiquei toda emocionada. Aquela emoção de trabalhar. Aí, quando eu fui trabalhar, entrei nessa fábrica, via aqueles chocolates naquelas esteiras. Nossa, eu ficava… para mim foi muito legal.
P/2 – E você ficava com vontade de comer chocolate?
R – É, podia comer. Tinha a quantidade de comer, não podia ficar também o dia inteiro comendo chocolate. Podia. Mas depois que você vai vendo aquele monte de chocolate, você não quer nem mais. Você enjoa. Aí depois, eu já queria casar, aquela coisa pra casar. Conheci o pai do meu filho, só que eu não cheguei a casar. Convivi com ele por 26 anos. Porque eu sou viúva, agora que eu tenho um novo companheiro, 26 anos, aí tive um filho só, mas por opção. Minha mãe falava: “Ai, Ana, tem um filho só, tem muito filho para quê?” Aí eu fui na da minha mãe. Falei: “Vou acatar esse conselho”, só quis um filho, mas nesse decorrer da vida Deus me trouxe outra criança daqui mesmo da comunidade pra eu cuidar dele, com seis meses. Ele está com 22 anos. Felipe. Tem o Fábio e o Felipe, até o nome combinou. Tenho dois agora. Dois filhos e minha netinha de nove anos. Isso aí. E outra: depois que eu fiquei adulta, tudo, não queria trabalhar para ninguém, mas trabalhei de costureira overloquista, muitos trabalhos eu fazia. Eu fazia salgados. Trabalhei muito tempo aqui no Deic, nos salgados, nossa, maior alegria! Fazia meus salgados, levava aquele salgado que todo mundo [perguntava]: “Nossa, Dona Ana, o que a senhora põe nesse salgado?” Eu falava: “Sazón!” É amor! Eu gostava do que eu fazia, parei porque depois, trabalhando sozinha, a gente vai cansando. Faz pouco tempo que eu parei de vender salgados.
P/2 – E que salgado?
R – Eu fazia empada de frango, de palmito, fazia enroladinho. Fazia gelatina colorida, suco, bolo, tudo eu fazia. Não sei onde eu arrumava tanta disposição. Nossa, eu tinha uma disposição! Ainda tenho, mas só que para trabalhar assim não tenho mais força. Aí levava tudo arrumadinho, num carrinho daqueles de Yakult que eu comprei, levava tudo arrumadinho, tudo embaladinho, era só chegar lá entregando.
P/2 – Vendia lá na frente?
P/1 – Eu entrava lá já, vendia na rua, comecei a vender na rua. Aí um delegado, o nome dele era Toyama, um japonês: “Oh, Ana, por que você não trabalha lá dentro, no Deic?” Eu falei: “Ah, não sei se pode”. Ele falou: “É agora, vou arrumar para você trabalhar lá dentro, pra você sair do sol”. Nossa, esse dia foi uma alegria. Aí me apresentou lá, melhor lugar que eu trabalhei. Fui muito bem recebida lá, até hoje pedem para eu voltar, falo: “Agora não...”, porque é difícil, as coisas estão todas muito caras, você não pode trabalhar com coisa de segunda, tudo coisa de primeira. Você não vai fazer um lanche com apresuntado, era presunto mesmo, aquele magro, tudo bem… nossa, ô tempo bom! Queria ser mais nova, que eu ia voltar a fazer tudo a mesma coisa. Nossa! Para mim, não era o ganhar. Na minha mente, era servir o que eu fazia. Às vezes, até me emociono, muito bom!
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Não, agora eu já era adulta, já tinha meu filho, tudo, quando eu trabalhava fazendo salgados. Pequena era aquela, só aquela pessoa, trabalhando na fábrica, que eu trabalhei. Eu era overloquista, costureira. Fui aprendendo. Tenho uma irmã que é costureira, me ensinou a costurar. Não que eu faça roupas modelo, minha irmã faz, mas eu dava conta da produção, tudo.
P/2 – Mas era costureira, assim... você fazia na sua casa ou trabalhava em fábrica?
R – Não, em fábrica. Ia aprendendo, overloquista, trabalhar na reta, mas não era aquela que fazia a roupa inteira. Cada parte da roupa tinha as costureiras que iam, aí eu fui aprendendo. Eu trabalhei em muita coisa, mas o que eu mais gostei é ser camelô. Trabalhava na rua. Eu gostava de ir atrás das coisas, não gostava de ficar ali, trancada em fábrica, eu nunca gostei. Me sentia sufocada. Aquilo lá não era para mim, não. Depois que eu descobri, do nada, no programa da Ana Maria, que ensinava aquelas receitas, falei: “Ah, eu vou ver o que eu vou fazer. Acho que eu vou pegar...”. Pegava tanta receita. Aí ia aprendendo, a pessoa ia gostando, ali eu mudava um pouco, aí deu certo para mim. Eu falei: “Era isso que eu tinha que fazer, há muito tempo”. Muito legal.
P/2 – Qual salgado você gostava mais de fazer?
R – As minhas empadas, nossa! Era a coisa mais linda. Aquelas empadas que derretem. Não era massa podre. Uma senhora de idade no mercado que eu, conversando, me passou essa receita, nossa! Receita ótima! Você comia o salgado, assim, você não ficava aquela coisa estufada. Um salgado leve, o enroladinho da massa bem fininha, aquela coisa bem linda, mesmo.
P/1 – Ana, quem te ensinou a cozinhar?
R – Ana Maria Braga. É, porque eu comecei a pegar as receitas dela. Umas não davam certo. Não, da Ana Maria da Braga sempre davam certo. Tinha umas receitas que eu inventava de pegar, quando não dava, eu só perdia os ingredientes, mas foram poucas vezes. Muito bom!
P/2 – Quando deu o clique que podia vender?
R – Quando deu o clique? Então, eu ficava em casa assistindo Ana Maria Braga, mas antes de ir para rua, eu fazia artesanato também. Aprendi muita coisa, tudo no trabalho com jornais. Aqueles cestos, eu fazia baú, para pôr brinquedos de criança. Nossa, tinha coisa que eu já estava fazendo que não parecia que era eu. Fazia, aparecia alguns trabalhos que ensinavam nas revistas, até hoje tenho revistas, parecia crochê. Fazia aquele acabamento. Trabalhei no projeto da prefeitura no Minhocão, vendendo os trabalhos. Aí o Felipe era pequenininho, eu levava junto. Às vezes, ficava com o pai dele. Foi, minha vida foi assim. Eu não gosto de ficar parada. Mesmo agora que eu fico cuidando da casa, eu gosto de andar. Correr atrás das coisas, também. Já montei bazar, só que o bazar aqui é muito devagar. Aí as roupas eu comprava, não tinha como. As pessoas queriam, por exemplo: se eu pagasse numa peça cinco reais, a pessoa queria por cinquenta centavos. Mas ao mesmo tempo, assim, eu fiquei muito tempo vendendo. Mas, depois eu acabei, aí vi que não virava mesmo, aí doei tudo. Para comprar ninguém queria, aí quando eu doei, levaram em um minuto. (risos) Mas foi bom, fiz uma boa ação. Mas eu gosto de bazar, se eu tivesse uma condição, um espaço, assim, eu ia montar um bazar para mim. O meu sonho é ter um bazar ainda e eu vou ter um espaço, vou ter, eu vou! Não sei como, mas eu vou. Pedindo a Deus para abrir um espaço para mim, para eu trabalhar. Que vender a roupa assim é trabalho leve, não precisa ficar pegando peso. A gente ficar parada não é bom, não. Às vezes, fico em casa e quero ficar triste, mas aí eu já saio pra rua, para conversar. É assim.
P/1 – Esse bazar foi aqui?
R – É, eu tenho um espaço, eu tenho, tipo, não é trailer. Eu fiz um espaço ali perto, embaixo de onde eu moro. Não atrapalha ninguém. Peguei um espaço ali, ainda tenho lá. Só que aqui não consegue vender muito, não. Pouquinho, mas é escondido, ninguém vê o bazar. Aí também é difícil.
P/2 – E a senhora, quando veio para cá, já estava casada?
R – Já estava com o pai do meu filho. Pagava aluguel, aí o pai dele que morava aqui. Então, ele falou para o filho dele: “Porque você não compra, independente de ser um barraco?” Eu não tenho vergonha de falar, não. A gente tem que andar honestamente. Ele trabalhava só para pagar aluguel, para comer a comida, o necessário, só. Aí foi: “Ah, vou comprar um barraco, tem um barraco lá para vender”. Nossa! O barraco não tinha nada, mas ali eu fiz meu barraco virar uma mansão. Era bem ali naquele espaço, primeiro prédio, ali. Mas também, só cheguei a ficar um ano, um ano e uns meses, aí já veio a assistente social para pôr os números nos barracos, pra gente ir para o alojamento que aqui tem o morro, era aqui em cima, onde tem esses barracos aí, ali nós ficamos seis anos. Foi difícil, só que eu me dou bem em qualquer lugar, nunca tive o que falar de nenhum vizinho. Me dava bem com todo mundo. Até vir para os prédios, quando eu vim para o prédio, nossa, gente do céu, foi uma alegria, quando entregou a chave. Eu já entrei sozinha dentro de casa, porque o pai do meu filho estava trabalhando. Entrei, na hora que eu entrei, já dei um grito na sala: “Aêêê, ai, consegui”. Nossa, aquilo foi uma alegria. Na hora que entregou a chave foi demais, mas era tudo bonito, o jardim era todo verdinho, grama parecia um… é, mas se a pessoa não cuidar… Aqui foi muito bonito, mas eu espero que um dia vai ficar bonito ainda. Até que as pessoas estão se conscientizando, estão arrumando mais, estão cuidando mais. Precisa de uma pintura para ficar bonito isso aqui. Pelo menos o básico, né? Está muito feio! Passa, às vezes vai no ônibus, a pessoa: “Esse pessoal aí, mora tudo de graça e não cuida”. Mas aí eu falei pra ela, não fiquei quieta não, falei: “Ô, mocinha, com licença, bom dia!” “Bom dia!” Eu falei: “Não, aqui ninguém mora de graça não, eu moro aqui. Eu pago água, pago luz, pago a prestação”. Ela falou: “Me desculpe, me desculpe!” Ficou tão sem graça, não deixei passar, não. Aí essa mulher falava: “Me desculpe”. Eu falei, é um desaforo também a pessoa estar falando do lado da gente, a gente ficar quieta. Mas eu falei com educação, ela ficou tão sem graça! Falei, mesmo. É isso aí, eu gosto daqui. Mas, se eu tivesse condições, eu ia morar numa casa térrea, para eu fazer uma horta, pegar meus temperos, tudo ali, para eu fazer minha comida. E outra: meu sonho é um forno a lenha. Aí, a primeira coisa: forno a lenha, faria aquela comida bem gostosa, aquela galinha, aquela coisa do interior mesmo. Não morei, mas eu valorizo.
P/2 – E como que a senhora conheceu o seu marido?
R – A minha cunhada me apresentou. Eu tinha 24 anos, aí foi se conhecendo. Não casei, porque eu não sei, não era para eu casar, não. “Vamos casar?” Falei: “Ah, não, agora não, vamos ver se dá certo, primeiro”. Não deu muito certo, mas fiquei viúva com 26 anos. (risos) É, porque a mãe da gente cria para ser uma dona de casa. Então, aquilo ali, para mim, ali eu ia. Aí, naquele tempo, a gente era não qualquer coisinha que estava brigando, ia se separar, a gente fazia tudo para dar certo. Até hoje também eu faço tudo para caminhar.
P/2 – E um pouco antes, assim, quando a senhora era solteira, como é que era a juventude?
R – Ah, a juventude? Tá! Lá pelos dezoito anos, dezessete, eu gostava de dançar. Até hoje eu gosto. Gostava de dançar, então era aquela coisa: “Oh, mãe... - na semana eu trabalhava em firma, de sábado eu limpava a casa para mãe - “Posso ir no baile hoje?” Era com duas colegas minhas que eram vizinhas, íamos nós três, sempre. “Se limpar a casa, vai”. Mas eu sempre limpava, aí quando chegava a hora para ir para o baile: “Mãe, posso ir no baile?” “Vai pedir pro seu pai” E aquilo ali ia, pede para mãe, pede para o pai, quando ia ver, já eram onze da noite. “Só que meia-noite você está em casa” Eu falava: “Ai, mas mesmo assim eu vou!” Mas nós não éramos brincadeira. Brincadeira, assim, coisa simples, né? “Tá bom, mãe! Quando for meia-noite, a gente vem” A gente esperava acabar o baile e vinha. Vinha nós três e apanhava. “Você chegou essa hora?” A gente chegava quando acabava o baile. Era tudo pertinho: “Você chegou essa hora?” Aí já dava uma ‘cintada’ na gente, mas a gente nem ligava. Já fui mesmo! Todo sábado era isso e a minha mãe já sabia, mas acho que ela fazia, para não dar aquela ousadia, de não ter hora para chegar. Mas, ô tempo bom! Muito bom, era trabalhar e ir para o baile. Era isso. Estudar era pouco, porque não estudei porque não quis. Eu não vou falar: “a mãe mandou não estudar”, nem nada. Parei e pronto.
P/2 – E que música dançava?
R – Nossa, gostava de samba. Era samba, era rock, era o tempo do John Travolta. John Travolta que fala? Mas aquilo lá eu não gostava muito, jogavam as meninas no ombro, aí eu não dançava. Tinha medo, dançava mais samba, eu era do samba. Mas barzinho, eu não curtia, era só ali no baile mesmo e vinha embora. Ganhei até concurso de samba. Vamos falar assim: já olhava, ficava olhando quem dançava melhor, aí eu ficava assim, eu mesma chamava, quando não me chamava: “Vamos dançar, para gente...”. Tinha concurso para ganhar uma entrada. Aí, nossa! Ganhei o primeiro lugar! Primeira vez que eu entrei no concurso. Mas coisa muito boa!
P/2 – Dançava bem, então?
R – Até hoje eu danço. Parei um pouco por causa da pandemia. Quando parar isso aí eu vou, sertanejo, na terceira idade, é muito bom, um exercício. O que eu gosto é dançar e exercício também. Eu vou nessa tese. Gosto. Eu amo!
P/2 – E nessa época, tinha namoradinho, ou não?
R – Não, naquele tempo era mais... não tinha namorado, era mais pra dançar mesmo, quando era mocinha. Namorado, foi com namorado sério mesmo, que nem o pai do meu filho, foi o primeiro. Os outros era coisinha de criança, aquelas coisas. Foi assim, nem cheguei a namorar muito. Agora, fui namorar bastante depois, né, de certo tempo. Aí sabia que era bom. (risos) Aí namorei bastante. Aproveitei a vida. E aproveito ainda. Agora eu tenho um companheiro, que eu já tô onze anos já, que eu conheço. A gente se deu bem. Só que ele não gosta muito de dançar, não. Mas eu também não ligo, também não gosta, eu não vou ficar. Eu falei para ele: “Quando acabar a pandemia, a gente vai dançar, né?” Aí ele falou: “Vamos ver”. Mas ele vai, só para gente distrair também, vai ficar só em casa? É isso aí.
P/1 – E depois que você começou a namorar, você continuava indo no baile?
R – Como assim?
P/1 – Com seu primeiro namorado.
R – Não, com o pai do meu filho eu nunca fui no baile, depois que o conheci. Aí, depois que eu fiquei viúva, tudo, aí comecei a ir no baile. Depois de muitos anos. Não, com ele nunca fui, nunca dançou. Não gostava. Mas também não me importava, não. Já tinha meu filhinho, tudo, era bem caseira. Sou ainda.
P/1 – E, Ana, você teve seu filho no Mandaqui, ou aqui na Zaki?
R – Não, foi no Belenzinho. Eu morava, nesse tempo, em Itaquera, quando eu tive meu filho, nasceu de sete meses. Eu sou de sete meses.
P/1 – Como você nasceu de sete meses, você sabe a história?
R – Ah, eu, minha irmã mais velha e deixa eu ver se meu pai… meu pai, não. Eu, minha irmã mais velha, nós somos... como que eu nasci de sete meses? Então, foi no interior, minha mãe me contando. Falou que eu era do tamanhinho de um gatinho, pensavam que eu não ia sobreviver. Me enrolavam no algodão e punha eu para dormir na caixinha de sapato, porque não tinha incubadora. Mas tinha, que nem falava aquele tempo, um senhor, falava que era o Preto Velho, que os outros falavam, aquelas pessoas que benziam, era sempre ele lá, fazendo oração para mim. “Não, Dona Glória”. Aí minha mãe falou que eu chorava igual gatinho, miando. Agora, nossa, falo mais do que a boca. Então, aí né, fui indo. Minha saúde é boa, graças a Deus, nunca tive nenhum problema. Do tamanho de um gatinho, minha mãe falou: “Você não deu trabalho nenhum para nascer”. Também, minha mãe sofreu muito, muito filho. Minha mãe teve dezesseis, ficaram nove. Essas coisas do interior.
P/2 – E como foi se tornar mãe pela primeira vez?
R – A gente fica meio com medo, né? Porque é uma coisa nova. Quando eu tive meu menino, olhei assim e falei: “Nossa, será que é meu, mesmo?” A gente fica meio... até cair a ficha da gente são uns meses, viu? Para mim, na hora que eu fui ter meu filho, eu estava com muita cólica. Nossa, medo! Mas na hora do parto foi a coisa mais suave. Era uma japonesa que fez meu parto. Ela falou: “Ai, Ana, você está com tanto medo, olha que parto fácil!” Eu tinha uma barriguinha que não parecia nem que eu estava grávida. Eu era bem magrinha. E foi uma alegria, meu menino nasceu bem pequenininho também, eu nem dormia de noite, com medo dele… falava: “Ai, será que se acontecer alguma coisa, eu estou dormindo?” Demorou pra eu dormir, cuidando dele. Bem pequenininho, o pezinho dele era metade do meu dedinho. Eu lembro. Cabecinha parecia uma… (risos) bem pequenininho. Eu fumava também. Porque o fumo atrapalha muito, nasce prematuro. Eu fumava.
P/1 – E como que ele foi se desenvolvendo, ganhando peso? Você lembra?
R – É, ele ficou doze dias na incubadora, aí ele foi ganhando peso, mas ele sempre foi magrinho. Hoje, que ele está com 38 anos, 39 vai fazer, que ele está... ele é magro, mas um pouquinho forte, mas a saúde dele é boa. Nunca teve problema. Meus meninos não deram trabalho nenhum.
P/1 – E depois que você teve filho, mudou o seu dia a dia, como foi?
R – Ah, muda! É cuidar de filho, cuidar da casa. Essas coisas. Trabalhar, também trabalhei. Criei na creche, o mais velho foi pouco na creche. Mas esse outro que foi mais, para eu trabalhar.
P/2 – E como foi que aconteceu o segundo filho?
R – O Felipe?
P/2 – É.
R – Então, onde mora minha nora, ali, morava meu sogro. E ele conhecia uma pessoa. Não vou falar muitos detalhes, porque tem coisas que não tem necessidade. Conhecia essa pessoa, então, um dia, num sábado, eu trabalhava ainda vendendo meu salgado e o pai do meu filho falou: “Oh, Ana, vou lá no meu pai, porque tem um bebezinho lá, que a mãe deixa lá, meu pai não sabe nem dar mamadeira para ele”. Aquelas coisas. Eu falei: “Ah, tô lavando roupa, daqui a pouco eu vou”. Quando eu fui lá, nossa! Olhei o Felipe lá no berço, só com uma fraldinha. Olhei assim, falei: “Ai, meu Deus do céu!” Pensando, na minha mente. Quando eu olhei, o Felipe deu um sorriso de orelha a orelha. Essa história é incrível. No meu coração, ele olhando para mim, assim, parecia que alguém, acho que o Espírito Santo. Tem uma lógica, né, quando a gente crê em alguma coisa: “Me leva para sua casa?” Eu olhei assim e falei: “Ué, será que eu tô meio…?” “Me leva para sua casa?” Falei: “Oh, seu Fernando, cadê a mãe desse menino?” Conhecia ela de vista. “Ah, eu não sei pra onde está, não! Ela deixa o menino aqui”. Eu falei: “Eu posso levar em casa, para dar um banho nele?” Mas ele falou: “Não tem nem roupinha o menino, eu o embrulho num pano aí”. Porque ele era de idade. Aí, eu falei: “Não, vou levá-lo lá para casa, eu vou dar um banho nele, vou ligar para minha sobrinha Daniela”, porque ela tinha gêmeos. Aí eu liguei para ela, falei: “Daniela, você não tem alguma roupinha para me doar para um bebezinho aqui? Não tem uma roupinha, Daniela?” Ela falou: “Ah, não, tia, só se a senhora vir aqui e trazê-lo”. Aí o pai do meu filho tinha um carro, na hora a gente foi para lá. Chegou lá, ela tinha dois sacos de roupa, que ela já tinha separado. Parecia um rei, o Felipe, era roupa toda hora, eu trocava de roupinha nele, ela começou a tirar foto. Falou: “Nossa, cadê a mãe desse menino?” Eu falei: “Ah, eu a conheço”. Aí, nisso, eu já estava naquela coisa, era pra ser mesmo. Falei para mãe: “Você não quer dar esse menino para eu cuidar?” Nem podia também, porque eu não tinha nem tempo. Aí cheguei na minha sobrinha e ela me deu as roupinhas de bebê, aí o trouxe pra casa, dei banho nele, porque meu sogro era de idade e tinha medo de dar banho. Aí dei banho no Felipe, já dei comidinha para ele, mas ele nunca tinha comido, com seis meses nunca tinha comido uma sopinha, nada. Ali ele comeu, comeu e dormiu. Aí chega meu filho, já tinha uns dezoito para dezenove anos: “Oh, mãe, o que é isso?” Falei: “Isso o quê, Fábio?” “Quem é esse menino?” Eu falei: “Ah, trouxe pra dar banhinho nele”. E aí contei o que aconteceu. Ele falou: “Ai, mãe, só a senhora mesmo!” Falei: “Não, Fábio, o teu avô não sabe dar banho nele, eu trouxe para dar um banhinho, aí quando eu fui conversar com a mãe: “Você não quer dar para eu cuidar?” Ela falou: “Ah, pode levar!” Falei assim: “Só que não é o pode levar só de boca, então a gente vai no fórum, fazer tudo direitinho”. Aí, nisso, pra ela ir no fórum foi um sacrifício, o menino já estava com sete anos. Mas só que já fui na assistência social, já foi tudo pela lei, só faltava ela assinar. Mas ali o menino já estava na escola e tudo. Estava perto de entrar na escola, quando ela assinou. Até hoje eu estou com ele, a mãe nunca deu trabalho e nem a família, só me agradece e o Felipe, eu tenho um amor por ele, meu filho fica até com ciúme. Ele está com 22 anos, mas ele tipo: não é aquele moleque, é um homem já. “Mas, mãe, você cuida do Felipe igual criança?” “Mas o filho é criança sempre para mãe, Fábio”. Mas é ciúme e quando ele vai lá em casa: “Oh, mãe, cadê aquele bolo de cenoura?” Aí eu faço. Aquelas coisas, aí é ciúmes só, mas o amor é a mesma coisa, acho que até mais. Então, eu falo para o Felipe: “Felipe, às vezes, você fica até com ciúme do Fábio” “Ah, mãe, tudo é o Fábio, pede um bolo, a senhora faz”. Eu falo: “Não, você está aqui, não vai comer o bolo também? Não precisa ter ciúme”, `''Ai, mãe”. Falei: “Tira isso da cabeça, Felipe, você quer saber, se for medir assim, não tem medição para mãe, mas eu amo mais você pelo jeito que eu te cuido, Felipe” “Ah, mãe, a senhora me desculpa, tá, mãe? Não sei o quê”. Ixi, é um ciúme que só. Para mim o amor é o mesmo, desse que eu peguei para criar é mais ainda. E é um menino bom também, meus filhos nunca me deram trabalho, graças a Deus. Fábio trabalha na rádio da Igreja Paz e Vida, estuda bastante. Felipe que é mais preguiçoso para estudar, mas está estudando. E outra: o sonho dele é trabalhar no SBT. E ele vai conseguir, vai, com fé em Deus! “Oh, mãe, vai demorar, mas eu vou conseguir”. Eu falei: “Vai, sim, então vai atrás do seu sonho, que a melhor coisa é você fazer o que você gosta”. Ele gosta de filmagem, também, que ele trabalhou como voluntário na Paz e Vida. Eu falo: “Então, vai, vai em frente, porque eu não posso fazer por você.” Então, ele está correndo atrás. Pedi pra Deus que dê tudo certo para ele, que ele falou: “Meu sonho é esse, mãe, não tem outro”. Eu falei: “Então, pronto, corre atrás, que você consegue”.
P/2 – E como foi criar seus filhos, aqui na Zaki Narchi?
R – Meus filhos eu nunca criei na rua. Sempre ali, estudando, dentro de casa. E depois que cresce, se vai para um lugar ou para outro, a gente não sabe. Para mim, nunca tive problema. Só falava coisas que acontecem em qualquer lugar. Sempre fiquei em cima: “Se for fazer isso, você vai saber a consequência que vai ter.” Assim que criei meus filhos.
P/1 – O que você falava pra eles?
R – É que tem coisa que você sabe. Para andar sempre correto, estudar. Porque o Felipe, a mentalidade dele parece criança. Tem coisa que a gente não pode falar também, então não tem aquele desenvolvimento, não se esforça para estudar. Já é meio devagar, aí não se esforça: “Então, você vai estudar depois, a hora que você ver a tua necessidade, você vai estudar”. Fazer o quê? Então, sempre criei assim, você está vendo uma coisa ali, você pode fazer, se você fizer escondido, não vou ver, mas você vai ver a consequência depois. Então, sempre, desde criança, sempre pondo medo. Sempre pondo medo, não é só falar, tem que pôr um medo também. Que se falar com a criança e não por medo nela, você falou, entrou aqui e saiu aqui. Você tem que pôr um medo na criança, sabia? Isso aí funciona. Mesmo se for fazer a coisa, já sabe: “Eu estou fazendo, minha mãe me avisou”, então não chora, que eu não passo a mão na cabeça, não. Eu sou brava. Brava no falar, só. Falei: “E não vou passar a mão na cabeça, não. Nem me chama. Chama pra coisa boa”. Eu sou assim, fui criada assim e é assim que funciona mesmo porque, se der toda a liberdade, depois não tem como você ajudar um filho. Se cair numa coisa que não é boa, a mãe não vai salvá-lo. Tem coisas que nem o dinheiro salva, uma decepção, né? Então, é isso que eu vou sempre falando, para estar que nem está com 22 anos, eu sempre estou falando. Sempre fala: “Tá bom, mãe, tá bom”. Mas se faz ou não faz na rua, eu não sei. Mas dentro de casa, para mim, não tem o que falar dele.
P/1 – Ana, eu queria voltar um pouquinho. Eu queria saber como foi chegar aqui, essa mudança de bairro, de Itaquera para cá, como foi? Qual foi sua primeira impressão, chegando aqui?
R – Nunca tinha morado em barraco, já me assustei, deu aquele impacto. Morei em casinhas simples, mas quando chega em barraco, numa comunidade assim, você fica com medo. Tem coisas que as pessoas falam, que não é nada disso também. Se é também, é para quem se envolve, não sei. Mas cheguei meio com medo, mas depois eu fui vendo, nunca tive problema. Ali fui lutando. Sabia que um dia podia ter projetos, sair os predinhos. Falei: “Se eu não morar aqui, como que eu vou conseguir? Vou pagar aluguel a vida inteira, né?” Nunca fui de chorar para mãe, para as irmãs. Porque a gente sempre foi humilde. O que ganhava era só para pagar as contas, para se alimentar. Aí fui levando minha vida.
P/1 – Vocês que construíram o barraco, ou vocês já compraram?
R – Não, já estava pronto. Não é aquela coisa. Foi pronto quase caindo, aí eu ia ajeitando. Aí logo eu fui pra alojamento.
P/1 – Como foi essa época no alojamento? Você ficou seis anos lá, né?
R – É, seis anos. Não foi fácil, não. Era tipo... alojamento é tudo de madeira também. Você via o rato passando nos fios. Você está dormindo e os ratos passando nos fios. Eu morria de medo de rato, nossa, aquilo ali: “Olha o rato, o rato”. Não foi fácil, foi tudo difícil. Só que a gente conseguiu, lutando. Naquele corredor moravam várias famílias, mas eu sempre me dei bem com todo mundo. Procurava levar tudo… sempre fui brincalhona, então foi fácil pra mim, não foi… o que eu podia ajudar, ajudava.
P/1 – Tem alguma história marcante que você se lembra da época do alojamento?
R – O alojamento tem essa feira até hoje, mas só que era diferente. Essa feira, no final dela, os feirantes não levavam as mercadorias embora, porque acho que já é no domingo, que eles iam comprar mercadoria nova, para vender na semana. Ali eles doavam todos os legumes, era tudo coisa boa, agora não tem mais isso. Ali eu pegava o carrinho de feira, eu trazia cheio, mas aí eu distribuía para minhas vizinhas, aquilo era um prazer eu fazer aquilo. Todo domingo eu ia na feira. E minhas colegas tudo, a gente se dava muito bem. Vizinhas que faleceram, que a gente lembra. Sofrimento de muitas pessoas também. Ali a gente ia. É difícil.
P/1 – Você fez grandes amigas nessa época?
R – Eu ainda tenho. Tem uns vizinhos lá que moraram no alojamento, que é minha vizinha, é uma irmã para mim. Poucos amigos, mas aqueles que são da família, porque eu nunca fui assim, de ir em vizinho, ficar na casa de vizinho, vizinho ir na minha casa também, eu já não... não é que... se ela quiser ir, essa que eu conheço, dou toda liberdade, mas ela é igual eu, ela não gosta também, então é assim que a gente vive. Se precisar de mim eu estou ali, para qualquer hora e ela comigo também. Vizinhos bons, mesmo. No nosso prédio lá tem uns quatro ou cinco que são da época do alojamento. Os outros são moradores novos. Ou de outro, tinha outro alojamento mais para frente ali, tinha gente que a gente nem conhecia, porque era muito grande ali, o alojamento. A gente conhecia de vista, a gente conhece quase todos. Os que foram embora, a gente fica triste. É assim, vai levando.
P/1 – Quem que morava com você? Você, seu marido e seu filho?
R – É, nós três.
P/1 – E o dia que o predinho chegou, deu a chave, o dia que você saiu do alojamento, como que foi?
R – Nossa, maior alegria! Que a gente já estava, quando estava construindo, que foram os prédios ali de trás primeiro, a gente ficava sonhando ali, ficava ali no morro, olhando para os prédios: “O nosso vai demorar”, mas foi rapidinho. Foi o tempo de chuva que fez esses prédios, também. Esperava secar um pouquinho. Então, esses apartamentos foram com muita água que fizeram, sabe, aquela história bem… a gente sempre sonhando, olhando: “Aquele lá é o meu, aquele é meu, o nosso já está fazendo”. Aquela coisa, todo mundo alegre. Pior que tem espaço para fazer moradia para todos. Porque nada é dividido, o ser humano está muito egoísta. Quer tudo para si, porque que nem esses moradores de rua. Quem quer estar na rua, né? Ninguém! Então, não teve oportunidade, né? Eu tive ainda, porque eu encarei de ficar ali. Tem pessoas que tem vergonha de encarar. A gente tem que ter vergonha de fazer coisas erradas. Então, lutei, venci, estou feliz. Eu valorizo minha casa. Às vezes, falam: “Ah, você quer mudar daqui?” Eu gostaria de trocar por uma casa, se eu pudesse, mas é difícil, porque apartamento quase ninguém gosta. Falar: “Vamos trocar por essa casinha simples?” Não é impossível, mas preferia uma casinha. Fosse casinha era melhor, porque é tudo separado. Se um cano estoura ali, você mesma arruma, entendeu? Prédio não. Você já tem que esperar o síndico, se é um síndico que não faz também, você fica ali, você não vai ficar brigando com ele. Nosso prédio tem muito problema. Fazer o quê? Tem que aguardar o que vai ser. O nosso está com vazamento feio lá. Já faz mais de dois anos esse vazamento. Então, tem que esperar, eu não posso ficar brigando com o síndico.
P/1 – Ana, você falou da importância de dividir, você cresceu dividindo? Aqui vocês dividem muito, na comunidade? Existe trabalho em equipe?
R – Aqui tem. Que nem essa Casinha Amarela, sempre teve, desde o começo. Para médico, para arrecadação de cestas básicas. A minha netinha estudou balé aqui. Por causa da epidemia parou, aqui é a sala de balé. Minha netinha fez a apresentação lá no CEU do Jaçanã, nossa, foi muito bonito! E ela gostava. Aqui tem projetos. O Ed aqui está... antes era o Bento. Agora, é o Ed que está desenvolvendo bem aqui. Eles pedem ajuda, correm atrás, né? Estou gostando.
P/1 – E na época que você chegou era assim também, ou mudou bastante?
R – Ah, agora está melhor, tipo assim: melhor na convivência com os moradores. As meninas aí, o Ed, tudo aí voluntários, muita gente voluntária aqui. Repartem as coisas. Aí, quando chega: “Olha, para você não deu!” Tudo bem, dá para quem precisa mais. Porque, às vezes, eu tenho arroz e feijão, hoje, independente. Aquele outro não tem, então pode dar para ele. Espero a minha vez. Porque não vai ter para todos, aqui é grande, essa comunidade. Tem mais de cinco mil pessoas ou mais, eu nunca contei, não, se for contar, são 35 prédios, cada prédio são vinte moradores, vinte famílias. Moradores, não. Vinte famílias. Tem uma família que tem dez filhos, sete. É difícil.
P/1 – E que outras diferenças você percebe da época que você chegou, em 1996, até agora?
R – Aqui está muito abandonado pela prefeitura. Podia ter mais. A gente podia ter mais ajuda, pintarem o prédio aí, mesmo se fosse para descontar da gente um pouquinho da tinta. Mas ninguém chega com projeto de nada. Fala que tem, não sei também, se tem. Fala que tem, mas o tempo que eu estou aqui, sempre está pintando, esse prédio. Então, porque não custava nada, cada morador, falar tipo assim: “Você vai dar vinte, vinte reais para comprar as tintas. Para ficarem bonitos esses prédios”. Ah, sei lá, mas eu espero que melhore. Só que agora a pessoa está cuidando mais na limpeza, em tudo aí. Morador mesmo que limpa. No nosso prédio tem a limpeza, tudo já incluído.
P/1 – E você falou que no comecinho do prédio você foi síndica.
R – É, fui. Ninguém queria. Que a gente tem que pegar a conta de luz, para ir de porta em porta, pedir o dinheiro da luz. “Ai, eu não quero, eu não quero”. Aí eu falei: “Ué, eu vim para morar aqui, quem que vai? Ninguém quer?” “Não vai receber nada”. Mas esperar receber, eu falei: “Ué, quem que vai deixar a conta de luz jogada?” Aí eu cuidei, cinco anos. Aí são muitos problemas, também. Aí juntava dinheiro, cerquei o prédio, pus grades na área do gás, pus portão, aí depois de um tempo eu saí, passei para outro. Porque chega uma hora que você cansa. Aí, vai acontecendo umas coisas assim que você fica chateada, né? Aí, pra não brigar: “Você não quer tomar conta, um pouco?” Cada um foi tomando conta, um pouco. Só esse último síndico aí, que está lá, mas ninguém está, tipo assim: gostando, não. Mas fazer o quê? Ninguém quer assumir nada, eu não vou pegar de novo. Já sei como funciona, não vou pegar de novo para ficar... pelo menos respeito. A pessoa tem que respeitar. Dinheiro, pega o dinheiro, é pouco o fundo... como fala? Que tem que ter no prédio. É pouquinho que pega, é para pagar a luz, é para limpeza, não tem como. Aí é difícil. E aí as pessoas querem exigir interfone, querem isso, querem aquilo, mas o dinheiro, na hora de dar o dinheiro não dá, não funciona. É difícil. Mesmo assim eu tô agradecendo pelo vizinho lá estar cuidando, do jeito dele. Mas só que a água está individual agora, o problema era para receber o dinheiro da água, não era nem luz, era água, entendeu? Aí tinha gente que falava: “Ah, não pedi pra vir pro prédio, não vou pagar água”. Não pagava e pronto, uns três, quatro não pagavam. Você ia ficar brigando? Aí dividia-se entre nós, para não ficar sem água, mas só que agora é individual, como que agora paga? Tem que falar a realidade. Se conscientizar, se um ajudasse o outro, era tudo mais fácil. Só que depois que individualizou a água, está melhor, porque dá muita briga. Tem prédio aí que dá muito. Dava, não sei também, que eu não… muita briga na hora de receber o dinheiro da água. Tem muitos que não pôs individual. E agora você viu que os prédios de agora, atualizados agora, não tem o térreo, mais? Ali vai ser estacionamento. Agora eu entendi, porque o térreo dá muito problema de encanação. Então, você pode reparar os predinhos que estão fazendo agora, não tem o térreo no chão mesmo, ele é tipo o subsolo, o mais simples. Aí já eliminou isso, está vendo? Você já vê que não tem como a pessoa passar a vida brigando, vai conviver ali vinte moradores só. Eu estava reparando nisso, já melhorou, são pessoas inteligentes, já estão vendo que não funciona, podia ser melhor ainda. Aí, eu fico pensando: podia eliminar os térreos daqui, fazer garagem, para as pessoas que reclamam que não têm onde pôr o carro. Agora já era, tinha que ser no começo.
P/2 – E essa prestação que vocês pagam, quanto que é?
R – Nossa, isso é uma mãe. Cinquenta e sete reais. Foi fixa. A minha já terminei, já. Agora na epidemia eu acho que vai cobrar ainda, mas não tem problema. Porque eles não estão cobrando, por causa da epidemia está todo esse tempo sem vir a prestação.
P/2 – Era para arrendar o apartamento?
R – Como assim?
P/2 – Era para pagar o apartamento?
R – Não, desde que entrou a gente paga. A prestação é 57 reais, fora o condomínio, fora água, a luz. É, paga. O meu já quitou, mas essa epidemia aí eu tenho que pagar, depois que voltar ao normal, vai vir um boleto, um pouquinho. Até pegando latinha você paga. (risos)
P/2 – E como foi ser voluntária, aqui?
R – Então, que nem eu te falei, eu venho poucas vezes. Quem é voluntário fixo mesmo é meu filho. Já sai dali, já vem para cá.
P/2 – Ajuda com o quê?
R – Ele filma, se precisar fazer qualquer coisa, ele faz. Vem alguém fazer exercício, ele dá uma orientação, não que ele é um... como fala?
P/2 – Personal?
R – É, ele não é personal, mas ele já entra na internet, vê o que pode fazer, o que não pode, que não pode puxar muito. Tem outros também que fazem exercício na academia e já ensinam, um vai ensinando o outro. E tem projetos, às vezes, tem bazar aqui também, todo mundo se junta e vai ajudar, abrir para chamar os moradores, vai distribuir. É legal. Dia das Crianças tem festinha para as crianças, sempre teve, tem o futebol dos meninos. Muito legal, o Ed faz um trabalho legal aqui, eu gosto dele.
P/1 – Como você enxerga essas atividades do futebol, sua neta que faz balé?
R – Não entendi.
P/1 – Qual a importância, pra você, de ver essas crianças tendo atividades aqui: futebol, como a sua neta faz balé, aqui?
R – Ah, muito bom, porque não ficam na rua. Estão aprendendo uma coisa boa. Muito bom. Se tivesse mais atividades aqui, para os jovens também, seria interessante. Computadores estão esperando, essas coisas mais pros jovens. Aqui tem muitos jovens que não têm oportunidade. Aí a gente fica olhando, assim e a gente fica chateada, não tem oportunidade. Aí, se não tiver cabeça…
P/1 – Ana, quais são as coisas que você mais gosta, aqui na comunidade?
R – A simplicidade das pessoas. Pessoas simples que, se um precisar de ajuda, já estão ali, falam: “Não, vamos lá, vou te ajudar”. As pessoas têm muita amizade. Passam e dão “Bom dia, boa tarde. Como que você está?”. Uma fala da planta, outra fala do filho. Você dá uma palavra, porque você pode ajudar na palavra: “Tenha fé, não desanima não, que tudo vai dar certo”. É assim que vai levando. Porque se for ver os problemas também, a gente não vive. Todo lugar tem problema, às vezes, a gente fala daqui, mas tem lugares que têm até mais. Então, a gente tem que ir vivendo e fazer o melhor. Eu acho.
P/1 – E o que você menos gosta daqui?
R – Ah, os prédios todos largados, aí, feio. Queria ver tudo bonitinho, pintadinho. Queria que a prefeitura viesse aqui: “Hoje vai começar a pintar, vai começar a ver o vazamento”. Tem pessoa que sofre aí, minha vizinha mesmo, nessa semana que chegou, a cozinha dela estava toda cheia de água. Teve que chegar, no apartamento de cima, vazando água. Aquela coisa. Os encanamentos daqui, não sei como foram feitos. Está difícil aqui, os vazamentos aqui. “Ana, minha cozinha está cheia de água”. Chegou às dez da noite, pra ficar tirando água da cozinha! “Ao invés de fazer minha janta, estou tirando água”. Água de esgoto. É, não é fácil. Aí você está no ônibus, em algum lugar e a pessoa fala: “Ninguém paga nada aí, está tudo de boa, ninguém gosta de trabalhar”. Não é assim, a pessoa não sabe nem o que o outro passa. Independente de qualquer coisa, você tem que ver a sua vida, não a do outro. É difícil.
P/2 – Você já enfrentou outros tipos de olhares, por morar aqui?
R – Tem coisa que eu vou dar uma puladinha mas, às vezes, a pessoa não vem na sua casa, porque fica com medo. Não fala ‘comunidade’, fala: “Mora na favela”. Ainda passo, só que eu não ligo, não. Tem coisa que pula. Coisa pessoal, mas já passei muito. Isso entristece a gente. Ainda mais uma pessoa que é muito íntima, falar umas coisas assim, aí dói na gente. Não está preocupado com seu bem-estar, com o que você passa, com o que não. Em como que você está, como que não está. Mas para criticar… para mim está ótimo, eu moro tranquila na minha casa, sossegada. O que eu pude fazer no meu apartamento eu fiz, tudo com luta. E tudo com luta é bom, viu? Se eu tivesse muito dinheiro, eu não valorizaria o tanto que eu valorizo. E, mesmo se eu tiver muito dinheiro, tudo que eu fizer será simples. Simples, porque se a gente vive na simplicidade, a gente sofre menos, sabia? Quando você tem muito, você não vai ter tempo nem para um passeio. Assim, mesmo você tendo muito dinheiro, deixa ele lá, ajuda quem você quiser ajudar. Você sofre menos, porque a ganância é que atrapalha o ser humano. Quanto mais tem, mais quer; mais tem, mais quer; mais tem, mais quer. E, no fim, a gente vai embora pro descanso eterno e não leva nada. Daí você vive mais feliz pensando dessa maneira. Não que você não vai querer o melhor. Para sua família você vai querer o melhor. Quando tem condições, tem que batalhar mesmo, nunca parar. É o que eu penso.
P/1 – E, Ana, desde o momento que você chegou aqui, quais foram os momentos mais marcantes, para você?
R – Então, o dia que eu recebi a chave do meu apartamento. Ah, tem várias coisas.
P/1 – Teve algum outro?
R – Ah, marcante, assim, depois quando eu vim para cá? Então, quando recebi a chave. Arrumando meu apartamento devagarzinho, cada conquista ali eu valorizava, porque era tudo do dinheiro do dia a dia. Sacrifício. E outra, uma coisa também que eu fiz na minha casa agora: meus dois quartos não tinham... eram só pintados de branco. Aí não tem aquelas placas de gesso? Aí meu filho comprou três placas daquelas, para ele fazer um trabalho na casa dele com gesso. Aí eu falei: “Oh, Fábio, enquanto você não vai usar, você me dá a placa, que eu vou comprar e fazer as placas”. Aí só as primeiras que eu perdi algumas placas. Eu fiz meus dois quartos com as placas de gesso. Está a coisa mais linda, as paredes. Não tinha dinheiro para gastar assim, porque os pedreiros cobram muito caro pra fazer uma coisa e não faz nem do seu agrado. Fiz tudo, tudo nos detalhes. Está lá feito tudo, eu gosto de fazer, pôr a mão nas coisas, fazer tudo. Que nem o meu bazar, foi uma conquista. Bom? Funcionou ou não, mas aquilo ali eu valorizava, tudo. Tudo foi uma conquista para mim, tudo foi uma alegria.
P/2 – E voltando assim, um pouco, quando seu marido, o primeiro marido faleceu, como é que foi, pra você? Você já estava aqui?
R – Estava aqui. Tristeza, né? Meu marido, eu vou pular também essa parte, quando faleceu foi um baque. Só que tem coisas que a gente já está ali, já está sabendo que funciona, o que não, então, a gente segurou a onda. Então, eu fiquei triste com o falecimento dele, mas no que eu pude ajudá-lo, eu ajudei. Na luta com ele.
P/2 – E como foi encontrar um novo amor?
R – Ah, para mim, não é questão de… eu me amo, primeiramente, para amar o próximo. Eu fui vendo o jeito da pessoa, se dava para eu encarar ou não. Porque o meu marido, eu vou pular a parte, ele tinha uns defeitos, defeitinho não, uns vícios que eu não gostava. Não era grave, mas eu não gostava, mas só que eu não vou nem falar que ele já está lá com Deus, deixa pra lá. Então, procurei saber desse outro quais vícios que ele tinha. Aí eu fui vendo o jeito dele, ele também era separado, tipo assim: fui ver qual era o problema que separou, fui vendo. Fui conhecendo, eu conheci lá no salão, mas só que ele não é de salão, ele foi aquele dia. Aí, nisso aí, a gente pegou o contato, foi indo, foi indo e deu certo. Ele está comigo até hoje. Aí, vício, para mim tem vício que eu não aceito. Meu marido não era grave, mas ele morreu por esse vício. Não adianta também ficar, deixa o coitado quieto. (risos) Porque meu marido sempre foi bom para mim, o que estragava era o vício dele. Aí morreu por causa disso. Eu vou falar, porque isso aí não tem problema, não. O vício da bebida. Porque a médica falou: “Se você não parar, ‘seu’ Edson, o senhor não vai durar muito, não”. E dito e feito, não durou mesmo. Morreu de cirrose. Mas ele era trabalhador, não faltava um dia de serviço, mas a bebida o levou, com 56 anos, foi triste. É isso aí. Ô, coitada! (risos)
P/1 – E, Ana, me conta uma coisa: como a pandemia impactou a sua vida e aqui, a comunidade?
R – Pela minha vivência, a gente fica sem chão. Parou tudo. Só agora que está mais normalizado, você tem que entender que tem que usar máscara, gel, não sair muito, então, estou tudo normal fazendo isso aí, mas só que ficou estranho, não poder sair, não poder ir num salão, dançar. Suar ali, dançando. Então, atrapalhou bastante você não poder sair, tem lugares que também não dá para ir. Até na família, porque tem idoso, você não vai ficar lá. Está sendo difícil ainda, mas já está perto de acabar, vamos aguardar. Para trabalho, meu filho está desempregado. Então, a gente tem que ir, entendeu, levando.
P/1 – E como é seu dia a dia, hoje?
R – “Comer, dormir e não pagar”. (risos) Nada, cuidar das minhas coisas em casa, às vezes, eu saio pra rua, pra andar um pouquinho. Só ficar dentro de casa também não dá. Cuidando de marido, de filho. Cuidando, assim: fazer comida, lavar roupa, essas coisas de dona de casa.
P/1 – E como é morar aqui?
R – Morar aqui? Agora eu me acostumei, eu gosto. Tem coisas que eu pulo também.
P/2 – O que você gosta de fazer, na hora de lazer?
R – Na hora de lazer? Então, é dançar, exercício, essas coisas, porque dinheiro é pouco. Eu gosto de gastar dinheiro, quando eu tenho, um pouquinho. Vai à loja, compra um sapato, uma roupa que eu gosto, mas tem que gostar mesmo. Primeiro experimento a roupa, se eu falar assim: “Gostei!”, aí eu levo. Se eu só olhei: “Ah, deixa essa roupa aí. Eu preciso disso? Não! Então deixa”. Eu não gasto dinheiro, porque antes eu gastava muito, principalmente com roupa. Não tem necessidade. Tem que falar, olhar para a calça: “Gostei, mas gostei mesmo? Mais ou menos. Então, deixa aí”. É isso aí, saber economizar. Porque, mesmo você ganhando pouco, se você economiza, se torna muito. Eu sou bem econômica. Faço sabão, pra não ficar comprando no mercado; faço Cândida, tudo para dentro de casa, pras minhas vizinhas. Tem umas que compram, outras eu dou. Eu gosto, sou muito econômica. Aprendi a ser, porque se ganha muito pouco. Reclamar da vida não vai resolver nada. Vivo na tranquilidade, graças a Deus, sossegada. Levanto, faço meu café, tomo meu café, faço hora, fico na novela, nos programas. Às vezes, quando dá sono, eu vou dormir. Isso aí. Faço uma limpeza, quando eu vejo ali tem minhas plantinhas, lá embaixo, eu vou lá, podo minhas plantas, eu gosto de plantar chás, se precisar de um chá, tem ali. Plantas que são pra saúde. Porque flores, também, aqui tem muita criança, não vou ficar brigando com criança: “Minha flor, sai daí”. Então, planto mais aqueles vasinhos que dá para pôr num lugar que ninguém mexe. Assim vou levando.
P/1 – E quais são os teus sonhos?
R – Ai, meu sonho é ter minha casa, meu fogão de lenha. Um espaço para eu trabalhar, ter meu bazar. Meu sonho é esse e um dia eu vou chegar lá. Pode ser com cem anos, meu sonho vai ser esse. E sabia que a gente tem que falar pro universo? “Meu sonho é ter minha casa térrea, um fogão a lenha, meu espaço para eu ter meu negócio”. Dependendo de onde eu morar, eu vou ver o que eu vou fazer. Enquanto eu tiver força, eu tenho um sonho, se acabar o sonho, você morreu. Meu sonho é esse. Meu sonho é ver meu filho empregado no que ele gosta, ver a felicidade dele no trabalho, principalmente. Antes do sonho da casa, é ver meu filho feliz também, antes dos bens materiais. Ver meu filho filmando, que nem vocês, porque ele gosta. Meu filho, nossa, nunca vi, não pode ver uma câmera. (risos) Ele gosta muito e está perto de realizar, já. Eu creio. Está correndo atrás.
P/1 – Ana, a gente está caminhando para o fim, mas antes queria te perguntar se você tem alguma passagem, alguma história que você queira contar, que a gente não tenha te perguntado, algum momento da vida?
R – Não, minha história foi essa, uma história simples. Tenho muito amor pelo lugar que eu moro, pelas pessoas. Eu gosto daqui.
P/1 – Você gostaria de deixar alguma mensagem?
R – Eu gostaria! Que as pessoas nunca desistam dos seus sonhos. Porque, se a gente desistir, a gente morre. É isso, coisa simples.
P/1 – E como foi, para você, ter contado um pouquinho dessa história para a gente? Ter lembrado desde a infância, dos salgados, como foi isso?
R – É, então, revivi a minha história. Alegria sempre, porque até hoje sempre tive. E tenho ainda. Porque, para mim, está tudo bem, estou com saúde, estou lutando pela vida. No que eu puder ajudar meus filhos, eu ajudo, na medida do possível. É isso aí.
P/1 – Obrigada demais!
R – Obrigado eu! Eu sou bem simples, não sei se eu me saí bem.
P/1 – Foi perfeito, foi muito gostoso.
R – E relembrei minha infância, tudo, que foi muito bom! Eu sempre estou deitada, às vezes eu fico lembrando, lembrança de tudo, a minha mãe, minha mãe coçando minha cabecinha e eu: “Mãe, como eu te amo, mãe!” E a mãe: “Ai, meu Deus!” Minha mãe, quando a gente ia chegando na casa dela, tinha um cachorro branco. Esse cachorro, no ponto, estava num ponto como daqui até ali no Novotel, ali, o ponto para casa da minha mãe, o cachorro já vinha avisar minha mãe que eu estava chegando. Minha mãe falava: “Ana, é incrível, toda vez que você vem aqui, o cachorro me avisa antes”. Porque o cachorro, o cheiro, pega bem, a muitos metros. Então, minha mãe: “A Ana já está vindo”. Ah, era uma felicidade para mim, todo fim de semana eu ia visitar minha mãe, fazer alguma coisa para ela, aquela coisa de amor, mesmo. Por mim estaria o dia inteiro lá, mas só que a gente não podia também. O que eu pude fazer pros meus pais, eu fiz. E não é dinheiro, é amor. Abraçando, tirava a sobrancelha dela, ela nunca gostou de tirar sobrancelha, fazer unha. “Ah, mãe, tira a sobrancelha”. Aí quando eu sempre ia lá: “Não vai tirar minha sobrancelha?” Ali nós passávamos o dia. Minha mãe tinha horta e ela ia pegar as verduras dela, eu cortava tudo fininho, almeirão, alface, tirava do pé, lavava: “Oh, filha, leva pra você também” “Vou levar, mãe”. Era a coisa mais gostosa que tinha. Mãe é tudo. Quem tem sua mãe, valorize. Mãe não quer bens materiais, ela quer o carinho: “Lembrou da mamãe”. Às vezes, as pessoas pensam: “Ah, já dou tudo pra minha mãe”, mas o que falta é o carinho, né? Não tem tempo? Pelo menos, um dia na semana vou visitar a minha mãe. E que seja aquela visita que vale para a semana inteira, para falar: “Nossa, um dia vale para a semana, para o mês, para o ano. É isso aí.
P/1 – Foi bom.
R – Ah, que bonitinha que você é! (risos) Vocês, Parecem bebê!
[Fim da Entrevista]
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