Flores do deserto | A Biblioteca de Lis, Eddy e Don Quijote

Foto por: Marcelo Larrea

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

Conto I

Lima. Uma cidade no deserto e ao encontro do mar. O vento alivia o calor úmido. Lima, uma cidade como tantas da América Latina, envolvida por bairros e municípios que explodem em sua periferia. São lugares nos quais você se perde no trânsito caótico, no calor do deserto, nas calçadas que inexistem, no comércio presente na rua, na estrada por toda parte. 

Quem passa de carro na estrada e vai em direção ao centro da cidade, como fizemos, olha para as casas que moram nas dunas do deserto e sente um profundo desconcerto. De longe, parece uma mancha meio cor de areia, meio pintada de azul. Logo se pensa: “Como será que vivem pessoas ali? De onde vem a água? Como sobem, descem, comem e dormem no meio da areia escaldante?”.

Enquanto o carro corre pela estrada, o olhar se perde nesse mistério e nesse desconforto por não reconhecer o outro. Tudo isto é uma imagem que vai ficando na memória. Uma imagem que se cristaliza em meios a outras memórias e que junta todos os conceitos prévios de como se deve bem viver. Tudo isto se transforma quando encontramos com Lis e Eddy, fundadores da biblioteca Don Quijote y sus Manchitas.

Foto por: Marcelo Larrea

Quando fomos nos aproximando do Peru, Celio Turino, amigo e grande conhecedor de pessoas e iniciativas interessantes por toda a América Latina, me passou o contato de Eddy: “Vai lá. É uma biblioteca no meio do deserto, em uma região popular em torno de Lima. Você vai gostar.” 

Conversei via WhatsApp com Eddy, que organizou de imediato um encontro online com uma rede de libros cartoneros, presente em muitos países do mundo e, sobretudo, na América Latina. São ativistas que desenvolvem oficinas para construção de livros artesanais com diversos públicos. São amigos que nunca se encontraram, mas que desde a pandemia se reúnem semanalmente para conversar e trocar ideias. São pessoas que amam os livros e que buscam o lúdico em locais diversos como universidades, cadeias e pequenas cidades como Igatú, na Bahia. 

Depois deste encontro, marcamos com Eddy de ir conhecer sua biblioteca logo que voltássemos de Cusco: “Dia 02 de março. Marcado.” Era um sábado. Estávamos eu, Marcelo e Miguel, meu filho que tinha vindo nos encontrar do Brasil. Dois dias antes tínhamos passado o dia com Carmem e Rosauro, coletando favas e batatas em meio a uma paisagem marcada pelos incas. 

Lima. Sábado de manhã. Calor. Entramos no carro e duas horas depois estávamos em Santa Rosa, uma região ao norte de Lima. Caótica, quente. O mapa no celular nos leva a ruas pequenas, que entram por regiões cada vez mais quentes e perto das dunas do deserto. Chegamos a um beco. Onde estaria a biblioteca? Uma senhora indica: “Desçam. Virem à direita. Na outra esquina”.

Adiante, nos encontramos com Eddy e Lis em uma quadra esportiva com um grupo de jovens que jogavam futebol. Um treinador coordenava o treino. Mães e pais estavam tranquilamente sentados em volta do jogo. “Este é o treino de sábado. Estamos nas férias. Mas o treino continua”, nos conta Eddy. O tempo vai correndo. Miguel joga bola e todos perguntam qual o jogador famoso que ele conhece do Brasil: “Neymar? Ronaldinho?” e outros que, confesso, não me lembro o nome.

Daí passamos para a casa de Eddy e Lis. Casados há mais de 20 anos. Sentamos em uma sala, em volta de uma mesa, tomando suco. Jovens entram e saem da casa que mistura o interior com a rua. A porta sempre aberta. Contam da biblioteca que fundaram, da rádio gerida pelos jovens, do projeto de criação de uma agência de viagem para levantar recursos para a biblioteca, da van que estão financiando para levar os turistas, dos projetos e sonhos. 

Foto por: Marcelo Larrea

“Vamos conhecer a biblioteca?”. Saímos, tiramos uma foto com D. Quijote, sentado em tamanho natural no banco em frente a casa. Atravessamos a rua estreita e entramos em um pequeno prédio de 3 andares grafitado por fora. Eddy nos pergunta se vamos dormir essa noite por ali. Nos mostra o terceiro andar, um apartamento para voluntários (ocupado naquele momento por jovens italianos). 

Convida Miguel para ficar com eles quando quiser. Percebo que as portas – da casa, da biblioteca e de suas vidas – estão sempre abertas. No segundo andar, nos mostram uma rádio totalmente equipada: “Aqui fazemos programas. Os jovens entrevistam, organizam tudo”. Do lado de fora, estantes misturam livros infanto juvenis e livros cartoneiros, pintados e escritos pelos próprios jovens. Os dois dizem que querem nos mostrar a “nova biblioteca”, fundada por jovens que cresceram dentro deste projeto. Subimos com o carro pelas ruas estreitas e entramos duna adentro.

No alto das dunas, caminhamos entre pequenas casas de madeira, terra, areia e calor. “Esta parte foi ocupada nos últimos anos. Não tem água, não tem esgoto. Não tem nenhum serviço”. Pergunto: “Como vivem sem água?”, “Compramos de caminhões. Os que vêm da prefeitura duram apenas 15 dias. Depois nos juntamos e compramos de outros.” 

Entramos na nova biblioteca: uma pequena casa de madeira, onde mais de 15 jovens, de 8 a 16 anos, nos esperam e nos explicam, em jogral, o que fazem, os projetos que possuem e nos mostram, cada um, os livros que criaram. São falantes. Respondem tudo. O que falta de água, sobra em energia. Eddy nos convida a conhecer o comedor. 

Saímos todos caminhando. Depois de algumas casas adiante, entramos em outra pequena casa, janelas e portas abertas, paredes de madeira, chão plantado nas areias do deserto. Dois cômodos. O primeiro é um espaço com mesas e cadeiras, o segundo, uma cozinha. Lá conversamos com 2 mulheres. Uma delas é a presidente da associação de moradores. A outra, Rose, responsável pelo comedor. 

Durante a pandemia, Rose organizou o comedor para atender as famílias daqui. Os alimentos foram doados em solidariedade. Hoje é um restaurante solidário. Produzem muitas refeições por dia. Cada prato custa alguns poucos centavos: “Mas os que não podem pagar também comem”, diz Rose. Pela janela, olho o deserto pipocado de casas. A paisagem, tão árdua, vai se transformando.

De volta a biblioteca. Somos entrevistados na rádio, cada um por vez (eu, Marcelo e Miguel), pela filha de Eddy e Lis. Do lado de fora, Lis se dedica a treinar cada um dos jovens de uma equipe de futebol juvenil. Uma seleção escolhida entre muitos jovens que se mudam para um lugar para estudar e treinar. Uma fundação criada pela irmã de um jogador profissional daquele mesmo bairro. 

Foto por: Marcelo Larrea

Lis vai pacientemente repassando as perguntas e discutindo com cada jovem suas respostas. Repassa. Conversa. A paciência e a dedicação são absolutas. Tarde de sábado. O calor é estonteante. Mas a intensidade do tempo cobre qualquer desconforto.

Por fim, convidamos Lis para uma entrevista. Ela nos conta que nasceu em Junin, outra parte menos desértica do Peru. Seu pai era professor de escola e já gostava de livros. Logo após se formar, em Lima, Lis foi a uma entrevista de trabalho a pedido de uma amiga. Foi convidada a ficar. Está na mesma escola há mais de 20 anos. Casou-se com Eddy, que cresceu em Santa Rosa, onde fica a escola. 

Os dois se conheceram sonhando. Queriam criar um projeto de leitura: “Achávamos que era importante que as crianças e jovens gostassem de ler. Fizessem da literatura parte de suas vidas”. Desde então, o casamento deu à luz a projetos, filhos e sonhos. De Lis, Eddy, de seus filhos. “Uma família com projetos juntos. Este é o segredo do amor”, diz Lis.

O dia vai terminando. O ar se torna menos quente. As entrevistas com os jovens futebolistas vão sendo realizadas na rádio, ao lado. As portas continuam abertas. Do lado de fora, Don Quijote, sentado em seu banco pensa: “Eu tinha razão em sonhar!”.

Conheça um trecho da entrevista de Lis: