Fernando e o ponto de inflexão em Arica

Foto por: Marcelo Larrea

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

“Este é um ponto de inflexão”, assim nos disse Fernando, nosso anfitrião em Arica. 

Chegamos a Arica, norte do Chile, por meio de um deserto, com o carro soltando fumaça. Encontramos, às pressas, Gabriel, um mecânico obstinado, que fala, pensa e age nervosamente. Sempre pesando todas os possíveis defeitos que podem ter originado o problema. Gabriel pensa sempre nas piores possibilidades: “E se o carro para no deserto? E se o defeito estiver dentro do motor?”. E segue destrinchando tudo que deveria ter sido feito, as fotos que deveriam ter sido tiradas, o relatório que deveríamos ter em mãos… Respiramos fundo, nos despedimos do carro e fomos em busca de um lugar para ficar sem saber se por um, dois ou mil dias. 

De início, terminamos em um quarto de uma casa quase em frente ao mar. Lembrava Cabo Frio. As grades oxidadas, os vidros embaçados e nada em volta, além de uma praia. O dono nos explica como é bom estar nesse lugar, nos mostra um lugar para trabalhar e descansar: um pequeno pátio com tapete de grama artificial, alguns ventiladores enferrujados, cadeiras quebradas e um monte de objetos empilhados cuja serventia é de difícil definição. Prefiro trabalhar na pequena varanda do quarto. 

Dois dias depois nos mudamos para um lugar bem cuidado, bem pensado e com uma vista maravilhosa para o morro, uma imensa pedra geológica, imponente, a digital de Arica. No topo, tremula uma grande bandeira chilena. Este morro foi tomado do Peru pelos chilenos em exatos 55 minutos durante a guerra do Pacífico, e o porto de Arica, uma cidade que já foi peruana – defendida por bolivianos – se tornou chilena na Guerra do Pacífico. Fica difícil imaginar por que tanta luta em torno de um lugar que transpira deserto. Hoje o porto de Arica serve basicamente à Bolívia. O porto tem barracas de peixes e leões marinhos que se amontoam para comer os restos de peixe do mercado. No final da tarde, urubus voam alto no céu.

Foto por: Marcelo Larrea

Fernando Vergara

Fernando nasceu em Santiago, em 1945. Estudou arquitetura na Universidade Católica de Valparaíso, um lugar que buscava juntar arquitetura e poesia. Há 20 anos chegou em Arica com sua segunda mulher para construírem um hotel. Compraram uma casa e descobriram as múmias mais antigas da cultura chinchorro. A casa ficou impedida. Fizeram um restaurante, um clube de jazz, uma escola de música. Hoje, este restaurante se transformou em um pequeno hotel de departamento turístico. Um lugar especial. 

Chegamos alvoroçados, segundos após termos feito reserva. “Não me deram tempo de respirar”, disse. Sentamos em seu pequeno escritório, cheio de livros interessantes. Estudos de desenho na parede. Alguns minutos depois, nos contou do manifesto que haviam feito nesta universidade, em 1967. Um manifesto que, segundo ele, inspirou o manifesto de 68 na França e que depois inspirou todos os movimentos estudantis que mudaram o mundo naquele momento. Ele imprimiu o manifesto: “Sei que vai interessar.” Nos tornamos amigos. 

Enquanto o carro insistia em estar desconsertado, Fernando nos apresentou Arica: seus vales e suas bordas. Bordas do mar, bordas do deserto, bordas do lixão, um imenso lugar ao ar livre no deserto, circundado por casas de madeira, ocupadas pelos muitos migrantes que chegaram nos últimos 5 anos. Venezuelanos, haitianos, bolivianos e tantos outros que buscam sobreviver pelas Américas e seus dissabores.

Entrevistamos Fernando. Sua história passa por quase 80 anos de Chile. Passa por momentos de sonhos e realizações, como a criação da cidade aberta, ao norte de Valparaíso, passa por momentos de pesadelo como o golpe militar em 1973, por momentos de reflexão e por momentos de inflexão, como este em que nos encontramos agora. 

Foto por: Marcelo Larrea

O carro continua desconsertado. O tempo nos impõe uma decisão. Talvez a viagem termine. Talvez tenhamos que desapegar, desistir e entender que até aqui chegamos. Talvez…

Enquanto isso se revela, ofereço aqui um trecho da história de Fernando. Um trecho em que narra este momento em que se sonhou uma América, uma “Amereida”, que levou artistas e intelectuais sul-americanos a caminharem do extremo sul do Chile até Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, realizando atos poéticos, intervenções artísticas, conferências, entrevistas e jogos poéticos. 

De alguma forma, acho simbólico estar em Arica, neste ponto de inflexão de nossa jornada. Talvez nossas Américas e suas histórias nos tenha levado a conhecer este outro sonho americano. Esta outra caminhada. Talvez seja o acaso. Talvez… Mas, como diz o próprio Fernando: “Seja o que for, não deixa de ser um ponto de inflexão”.