Enquanto isso… Flores no deserto

Foto por: Marcelo Larrea

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

Conto II

Outro país, que não fosse o Chile, não poderia ser lugar mais apropriado para a situação em que nos encontramos. Depois de quase um mês aportados em Arica, norte do Chile, com um carro que comia óleo, continuamos em uma encruzilhada. O Chile é um país emparedado entre o deserto e o mar. Um país bidimensional.

O mal encontro que tivemos com Gabriel, um mecânico mais interessado em refazer um motor do que em consertá-lo, nos colocou em uma situação que é, no mínimo, ilógica. Nosso carro anda, mas não sobe ladeira. Não conseguimos importá-lo, não conseguimos vendê-lo, não conseguimos deixá-lo, não conseguimos partir. Em nossa volta, existem quilômetros e quilômetros de deserto e de mar. Como já disse, o Chile é um país bidimensional. 

Já fomos duas vezes ao deserto do Atacama, quase na fronteira entre Argentina e Bolívia. Um lugar que mistura lagoas pré-históricas, flamingos, rios de águas quentes e vales coloridos. Uma paisagem lunar ocupada pelos seres humanos desde tempos pré-históricos. Hoje, San Pedro do Atacama é uma pequena cidade, porém muito turística. Brasileiros e brasileiras circulam por suas ruas, assim como franceses, alemães, espanhóis e chilenos. Como combinar tanta aridez com tanta beleza? 

Foto por: Marcelo Larrea
Foto por: Marcelo Larrea

Após caminhar por uma floresta de cactos, andar por caminhos em meios a pedras e nos banharmos em um rio de temperaturas amenas e águas minerais, fomos até Machuca, uma pequena cidade de 20 habitantes. Machuca, um povoado de apenas 20 casas nos altiplanos andinos. 

Seguimos caminhando até uma pequena igreja, construída no século XVI, pelos espanhóis. Feita de barro, a igreja é pequena e muito simples.  Na entrada, um senhor de traços indígenas, nos diz: “Podem entrar. Daqui a pouco vou fechá-la”. Na igreja impera o silêncio. O senhor nos conta que os habitantes de Machuca possuem casas em San Pedro e se revezam para cuidar de Machuca. “Refiz o teto. O resto é original. Este lugar é muito antigo. Já aqui estiveram os quéchuas, os aymara, depois chegaram os incas e depois os espanhóis”, diz. 

Foto por: Marcelo Larrea

Do lado de fora, um frio de montanha cruza os ossos. O sol brilha. Alguns homens constroem algo. Em torno, vicunhas, lhamas, ovelhas e jumentos dividem o terreno pantanoso com pássaros que passam o tempo investigando o solo em busca de comida. Há uma harmonia quase perfeita entre todos.

Naquela mesma noite fomos ver o famoso céu do deserto. Carlos, nosso explicador de céu, construiu um universo de pequenas pedras no chão: “As estrelas que vemos são nosso passado. As luzes que chegam até nós viajam milhões de anos”. Por um telescópio, vemos mais de perto, uma estrela que provavelmente já explodiu (seu brilho é mais avermelhado). Olho em volta e sinto o tamanho pequeno de nossa existência. O universo, o deserto, o mar, coexistem há tantos milhares de anos. 

Na estrada de volta ao nosso ponto de espera, Arica, viajamos centenas de quilômetros por paisagens áridas, desérticas. Estradas retas e longilíneas cruzam o mar de areia. Algumas marcas humanas. Hieróglifos com imagens nas pedras nos lembram que os seres humanos já andam por aqui há milhares de anos. 

Ainda as bordas da estrada, pequenas casas-altares destacam as mortes nas estradas. São muitas. Os altares possuem bandeiras, fotografias, por vezes até o carro ou a moto que causou o acidente. Conseguimos deduzir, pelo tipo de altar e enfeite, se quem morreu foi homem, mulher, ou até mesmo uma família inteira.

Foto por: Marcelo Larrea

Com o passar dos quilômetros, vamos nos acostumando com esse tipo de paisagem e as marcas das mortes se tornam parte da vida. Quase todos são cobertos por flores, às vezes secas, às vezes muito coloridas. As flores de plástico se destacam no horizonte cor de areia. Suas cores vibrantes (provavelmente foram importadas da China) celebram a memória de quem partiu.

Penso no quanto é importante e fundamental marcar, na vida, a memória. No esforço de cada família em ir construir um altar em pleno nada. Preenchê-lo de memórias, fotos e símbolos. As flores do deserto desabrocham em memórias doloridas.

Sim. O Chile é um país bidimensional. Parece que aqui as narrativas de memória se misturam e se tornam atemporais. O céu brilha o passado, a morte inscrita no deserto e a longa estrada que permanece sempre a mesma. Aqui o tempo se embaralha. Aqui o tempo se perde. Aqui o tempo nos revela a narrativa que é. 

Leia o conto I de Flores no deserto aqui.