Tempos de memória: das cidades aos dentes de Pat

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

Passear de carro pelas montanhas e lagos do Canadá é uma das experiências mais bonitas que se pode ter. O poder da natureza é tão presente que, por um instante, você pode até esquecer os desafios climáticos que enfrentamos agora. Mas tanto a presença humana quanto a história do Canadá estão lá. Por vezes, de formas impactantes. Em outras, de forma sutil. 

Estávamos dirigindo por vales belíssimos quando, de repente, entramos em uma região totalmente diferente. No meio da estrada, uma grande indústria e alguns caminhões. Depois, a paisagem mudou completamente. Era um local muito mais árido e podíamos ver pequenas casas cercadas por caminhões e carros velhos. Muitos deles pareciam estar lá há séculos, sendo lentamente arruinados pelo tempo. Era o início de uma reserva indígena. O vale era muito mais pobre que os outros. Sem verde, sem lagos: apenas casas, carros e algumas pequenas lojas que vendiam salgadinhos, cerveja e todo tipo de junk food

Ao sair da região, chegamos a Clinton, uma cidade atravessada pela rodovia que antecede a rota da corrida do ouro em direção ao Alasca. No início, parecia apenas um lugar comum que você atravessa quando viaja, com grandes caminhões e carros passando muito rápidos e alguma construção em ambos os lados da estrada. Mas tinha algo de especial: uma loja expunha, na estrada, todo tipo de coisas antigas: cadeiras, candeeiros, pratos, botões, camisas velhas… Todos eles demarcavam o ponto da história que este lugar representava: a primeira parada para todos os que estavam em busca de ouro. 

Também à beira da estrada, o primeiro hotel da cidade (cujo dono, Jack, é um chinês que vive em Vancouver) parecia sair de um filme americano. Nas paredes, havia fotos antigas do estabelecimento, que já tinha mais de 100 anos. Nas fotos, um grupo de homens brancos, todos de terno, chapéu e gravata, sorriam orgulhosamente. O hotel, o restaurante, o bar, as escadas foram conservados como se estivéssemos em um museu. Do lado de fora, além das lojas vintage, havia um restaurante dizendo: “Coma como antigamente!”.

Dias depois, circulávamos por outras estradas quando tivemos de mudar nossa rota. Fumaças e grandes incêndios florestais davam um tom alaranjado ao ar e nos lembravam que o belo Canadá também vive os impactos do aquecimento global.  Buscando alternativas, entramos em uma pequena estrada que nos levou a Nakusp, uma pequena cidade à beira de um imenso rio – que depois descobrimos se tratar de uma grande represa. Aquele rio não se movia. Ao seu redor, era possível ver muitos troncos de árvores, retorcidos como esculturas. Sem pássaros, sem som. Parecia um cemitério de árvores que esculpiam seus próprios túmulos.

Nakusp também era uma cidade de memória. Restaurantes, pequenos hotéis e lojas, todos tinham fotografias e objetos dos “velhos tempos”. A orla era toda cercada por um lindo jardim e, ao longo do caminho, havia uma exposição aberta com placas contando a história da cidade. Pudemos ler sobre como, em algum momento, os indígenas que viviam lá e que circulavam pelo então rio foram “desparecendo”, e que os que restaram foram para os Estados Unidos. Depois lemos sobre a construção da barragem e sobre como os barcos navegavam trazendo passageiros e mercadorias. Sentamos em um banco e uma sensação de paz nos invadiu.

Foi então que apareceu Pat. Ela veio andando pela orla, olhou para nós e disse “olá”. No momento seguinte, ela nos contou por que esse rio se tornou uma represa para levar água para os EUA. Pat pertence à etnia Cree. A primeira coisa que nos disse foi: “não desaparecemos. Queremos voltar e ser reconhecidos”.

Entre 1883 e 1997, Pat, como as mais de 150 mil crianças indígenas, foi levada para um internato forçado, cujo objetivo era o apagamento da cultura indígena e a total assimilação. Relatórios investigativos apontaram para um genocídio cultural e identificaram mais de 5 mil túmulos anônimos de vítimas. 

Pat nos contou a história de sua irmã, que também foi levada para uma escola residencial no norte do país onde, quando era criança, se perdeu no inverno por mais de 12 dias. Ela contou que a irmã vagou pela neve e conseguiu encontrar o caminho, mas perdeu os dedos dos pés e quase as duas pernas. 

Pat é um artista autodidata. Ela se dedicou a aprender uma arte chamada Birch Bark, que são figuras geométricas construídas com os dentes. Para ela, a arte e a memória são os únicos caminhos para o trauma de seu povo. 

Durante nossa conversa, fui atravessada pelos diferentes tempos históricos daquela Nakusp e percebi as narrativas que se sobrepunham. Das paredes e fotografias do pequeno hotel de 1826, que apresentavam os velhos tempos dos colonizadores, da exposição aberta no passeio público e, finalmente, de Pat, que, com seus dentes, nos apresentava seus ancestrais. Permeando todos esses tempos, estavam os troncos das árvores que, inertes, nos invadiam com suas histórias inundadas pela represa.