Carmem e Rosauro – a cultura Quechua

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

“Muy tarde te conocí”, disse Carmem enquanto me dava flores que disse serem boas para os pulmões. Carmem é quechua.

Encontramos Carmem e Rosauro andando a pé, quando estávamos perdidos em busca de ruínas Inca, perto de Ollantaytambo, uma das cidades do Vale Sagrado do Peru. Estávamos eu, Marcelo e Miguel subindo a ladeira, seguindo um GPS que parecia se contradizer. As montanhas do entorno, imensas, majestosas, com plataformas do altiplano para agricultura, já eram, em si, parte da paisagem inca. Então passa um carro velho subindo a ladeira. Miguel pergunta: 

– As ruínas estão para cima?
– Sim. De onde é você?
– Brasil.
– Neymar! – diz Rita Rosauro. E segue.

Quinze minutos depois, encontramos Carmem sentada, separando sementes, e Rosauro parado em frente a seu carro. Perguntamos de novo: 

– As ruínas são para cima?
– Não. Desce, depois da curva, vira à esquerda. Sobe um pequeno caminho. É para baixo.
– O que são essas sementes?
– Estou separando para plantar. Aqui plantamos tudo sem químico. É tudo natural. Querem conhecer minha chácara?
– Sim!

Ela fala em quechua com Rosauro. Ele nos convida a segui-lo em uma pequena trilha na montanha. Carmem nos alcança em alguns minutos. Ela toma a liderança. Conhece cada planta:

– Essa é boa para dormir, essa para os rins. Essa aqui para cozinhar. Dá um gosto incrível. Essa é para os pulmões. Aqui os pinhos que plantamos, porque sabem onde está a água.

Olhamos em volta. Pequenos pinhos, plantados em fileiras. Muitos. Um trabalho árduo, paciente. Ela se vira para cima e diz: 

– Desde que eu era criança, essas árvores, belas e retorcidas, estavam desse mesmo tamanho. As árvores que trazem a água demoram a crescer. Os eucaliptos crescem rápido, mas roubam a água. Tiramos todos para trocar.

Andamos atrás dela. O caminho é estreito: abaixo, a montanha; acima, a montanha. Estamos no meio das montanhas. Ela anda rápido, com facilidade. Nós, pulando, tropeçando. Fascinados. Ela pára e mostra uma pequena caverna:

– Esse era meu caminho para a escola. Uma vez, eu e minha irmã, passando por aqui, vimos uma fileira de crânios. Todos com ouro. Dentes e marcas na cabeça. Mas não paramos. Tínhamos que chegar na aula. Na volta, os crânios tinham ido embora.
– Para onde foram?
Ela sorri. Dá de ombros.
– Eles vão e vêm. Sobe! 

Subimos, eu, Marcelo e Miguel. Embaixo da pequena caverna, alguns ossos, dois ou três crânios. Nenhum com ouro. Ela reafirma: 

– Eles mudam de lugar. Aparecem e desaparecem. Depende da lua. 

Chegamos, 40 minutos depois, em uma pequena barraca. Um quadrado, com praticamente nada dentro. 

– Aqui chegamos! Vamos para a plantação. 

Carmem e Rosauro sobem uma pedra, vamos atrás. Chegamos em uma plataforma de pedras. Da época inca, ou anterior. 

– Aqui estão as favas.

Ela colhe duas ou três. Abre: 

– Estão maduras. 

Marcelo pergunta se querem ajuda para colher. Rosauro busca uma sacola e saímos, cada um para um lado, buscando as favas. Ele indica:

– Precisam estar com a casca dura. Se estiverem macias, continuam verdes. 

Seguimos cada um para um lado. Colhendo. Carmem desaparece. Vamos enchendo a sacola. Meia hora depois, Rosauro enrola a sacola em um pano e coloca nas costas (uma forma de carregar crianças, comidas e tudo o mais). Ela está pesada. Saímos os cinco. Seguimos. Passamos pela plantação de milho. 

– Esses são amarelos. Muito macios – diz Carmem. 

Vamos comendo. Favas cruas, milho cru. 

– Esses são roxos. 

Ela abre cada um. Amarelo, roxo e branco. Depois passamos pelas abóboras e pelas batatas. Roxas, amarelas e brancas. Não dava mais para colher. Não tinha quem carregasse. Rosauro segue com o peso nas costas. Vamos atrás dos dois, subindo cada vez mais a montanha. Passamos pela plantação de um vizinho. Carmem e Rosauro os cumprimentam. Falam em quechua. Seguimos. Eles comentam que o vizinho não colheu seu milho. Está seco. Passamos por um pequeno riacho que desce a montanha entre pedras. A água é gelada. Pura. Vem direto da montanha. Ela nos diz para beber:

– A água está desaparecendo. Este rio agora seca. Por isso, plantamos as árvores. Para trazer a água de volta.

Andamos mais. Atrás dos dois. Já mais alto, deixamos nossas coisas em um lugar nas pedras. Seguimos Carmem e chegamos em uma caverna. Embaixo, barro, alguns restos de panela e plástico. Ela nos olha e sorri: 

– Bem-vindos a minha casa. 

Demoramos a entender. 

– Aqui vivi com minha família. Dos 5 aos 19 anos. Ali dormíamos. Ali comíamos. Não cozinhávamos aqui. Meu pai era muito cuidadoso. A cozinha ficava ali fora. E aponta para um lugar com um pequeno buraco, onde faziam o fogo. 

– Não tinham frio? E a chuva?

Ela ri e dá de ombros. Mostra o teto da caverna. Ela senta em uma pedra. Cada um de nós em outra. Rosauro chega um pouco mais tarde. E lá ela nos concede sua entrevista.

Carmem foi professora. Formou-se em Cusco. Rosauro foi policial: 

– “Nunca se case com um policial”, disse o pai de Carmem! Não aprovou o casamento.
– Por quê? – pergunto na entrevista.
– Porque eles abandonam as mulheres.

Ela sorri com a explicação. E me diz: 

– Casamos mesmo assim. Eu estava grávida. Mas avisei: “uma sola hija. Solo quiero tener uma sola hija. Si quieres me abandonar, cada uno por su lado. Si quiero te abandonar, cada uno por su lado. Asi estamos hace 35 anos”.

Pergunto qual a ciência do casamento. Os dois respondem ao mesmo tempo: 

– Paciência, ela diz.
– Calma, diz ele. 

A entrevista termina. Seguimos em frente. A tarde está caindo. Chegamos de volta ao carro. Rosauro convida Miguel para voltar e trabalhar com eles na plantação, se quiser: 

– Vuelve con tu novia. Quédate con nosotros!

Entramos no carro. No caminho de volta, param. Falam no celular. Param. Carmem discute com alguém. “Porque não foi na plantação?”. Ela dá bronca em um rapaz com trator. Todos se conhecem. Não sabemos o que falam. Conversam, discutem, tudo em quechua. 

Chegamos em Ollantaytambo. Nos convidam a conhecer sua casa. Pequena, em construção. Estão fazendo um banheiro novo. Não consigo distinguir a casa no final. Rosauro é taxista. Combinamos que nos levasse para Cusco no dia seguinte. Pagamos o retorno. Uma mistura de amor e negócio. O dia termina. Perdemos a ruína inca. Mas vivemos o presente quechua. Amém.

Conheça um pouco mais da maneira de trabalhar dos incas: