As Américas e suas histórias – uma despedida

Foto por: Marcelo Larrea

Texto escrito por Karen Worcman, fundadora do Museu da Pessoa.

Do lado de fora, o dia começa seu fim. O sol, acima das nuvens, deixa uma cor alaranjada no céu. Engraçado como o tempo e o espaço se transformam segundo o ponto de vista do observador. Hoje, de alguma maneira, encerra-se a jornada de “As Américas e suas Histórias”. Estamos no avião, cruzando os sem fim de quilômetros que não conseguimos cruzar de carro. Um desconcerto nos desconcerta. O carro começa nova vida no Chile. Mas as memórias seguem conosco. 

Como parte de nossos últimos momentos, fomos convidados por Fernando, nosso amigo e anfitrião, para conhecer Pisagua (que quer dizer, em quechua, “lugar de pouca água”). Uma cidade de não mais que 80 habitantes, incrustada entre o mar e o longo deserto. Pisagua teve muitas vidas. Foi um porto dominado pelos ingleses de embarque de salitre. Restam, desta época, casas em madeira (quase desmoronando), uma estação de trem desabitada e até um Teatro Municipal (também fechado). 

Para chegar a Pisagua, cruzamos, mais uma vez, o deserto. Árido, imponente. O deserto é um vazio que impõe sua imensidão. Como o mar, não é lugar para seres humanos. Por isto Pisagua é um lugar não-lugar. Pisagua nasceu para o exílio. No centro do que resta da cidade, há um único prédio quase histórico. Foi uma cadeia. No início do século XX, lá foram exilados e presos homossexuais, comunistas e anarquistas. 

Foto por: Marcelo Larrea

Mais recentemente, Pisagua foi um dos muitos campos de concentração de presos e desaparecidos da ditadura de Pinochet. Em frente à estação de trem, à beira do Pacífico, jaz um resto da construção feita pelos militares para encerrar os chilenos que, de alguma maneira, se opunham à ditadura. Não há tempo em Pisagua. Apenas o silêncio e o ruído do mar. Em seu pequeno cais, alguns pescadores limpam peixes, corvinas imensas. Os pássaros esperam pacientemente por seu quinhão.

Ainda assim, Pisagua tem dois cemitérios. O antigo, que servia à velha cidade engolida por um tsunami, fica à margem da cidade. No meio da areia. De frente para o mar. O deserto engole o cemitério. Os túmulos são marcados por estacas de madeira, restos de flores de plástico e algumas fotos apagadas. Neste mesmo deserto, descobriu-se uma fossa comum. Vinte e dois desparecidos políticos foram enterrados, ou melhor, desovados ali. Em volta, um memorial com o nome de cada um e uma série de placas homenageando os mortos. Alguns dizeres nos muros: “Nuestros muertos estan cada día más vivos!”, ou ainda: “Perdón…”.

Os pouco habitantes de Pisagua convivem com essas memórias. Ao caminhar pela cidade, uma moradora nos pergunta: “De onde são?”, “Brasil”, respondemos. “Vieram conhecer?”, “Sim.” Ela olha para Fernando, chileno, e pergunta: “Você é um dos que foram torturados?”, “Não”, ele responde. “Mas tenho amigos aí”. O diálogo parece se dar dentro de uma normalidade. Continuamos caminhando pelas ruas desertas. Um senhor e um rapaz nos cumprimentam: “De onde são?, ”Brasil“. “O que vieram fazer em Pisagua? Parece incrível alguém vir a Pisagua, este lugar do exílio”. “Conhecer. E vocês?”, perguntamos. “Somos mórmons. Viemos pregar”.

No cemitério, visitamos cada dizer. Os túmulos mais recentes possuem mais flores (de plástico). Os mais antigos, apenas estacas. As memórias se misturam com a areia. De longe, o mar bate nas pedras. Quase poético. Pela minha cabeça passa que o mar presenciou todas as tragédias humanas de Pisagua. E continuou batendo nas pedras. O deserto continuou deserto e o tempo de Pisagua parou.

Foto por: Marcelo Larrea

Este dia é um dos possíveis resumos das Américas, este continente cheio de histórias, de tragédias e de belezas. Um continente cujos tempos pré-históricos insistem em se misturar com os tempos presentes. As linhas feitas por seres humanos, no meio do deserto, marcam as ocupações ancestrais. 

Múmias se mantêm inteiras embaixo de antigas cidades. As memórias pré-colombianas são ocupadas pelas cidades hispânicas que, por sua vez, se transformam nas periferias das cidades que explodiram em periferias. As memórias e seus traços são disputados por estes tempos de grande violência. Há muito sangue neste continente. Muita magnitude também. Muito mistério, dor e resiliência. 

Uma jornada não é uma travessia. Tampouco uma viagem. Uma jornada é o que se vive durante. Dela restam memórias, ideias, percepções da vida e da morte. Nossa jornada terminou, mas nossas histórias não. Espero poder narrar algumas das possíveis Américas que vimos. As que foram, as que são e as que poderiam ter sido. Só não narro o que será, pois aí é profecia (ou desejo). Percebo que uma jornada é, sobretudo, um virar do avesso de si. Descobrir-se ao descobrir. Deixar-se levar pelo que não buscou. Não há conclusões, nem moral da história. Apenas uma nova jornada que se inicia. Novas Américas virão.