Programa Conte Sua História –20 Anos do Museu da Pessoa no Brasil
Depoimento de Sidney Bernardo
Entrevistado por Olívia Paradas
São Paulo, 12 de julho de 2012
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV353
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/...Continuar leitura
Programa Conte Sua História –20 Anos do Museu da Pessoa no Brasil
Depoimento de Sidney Bernardo
Entrevistado por Olívia Paradas
São Paulo, 12 de julho de 2012
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PCSH_HV353
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – Vamos começar com você dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R– Sidney Bernardo, eu nasci na cidade de Garça, estado de São Paulo, no dia nove de abril de 1951. Lembro que eu só nasci lá, mudei logo em seguida.
P/1 – Sidney, qual é o nome dos seus pais?
R – Nome dos meus pais é Juvenal da Silva Bernardo e minha mãe, Dorothea Sassi Bernardo.
P/1 – Conta um pouquinho deles, o que eles faziam, como é que era a relação com eles na sua casa?
R – Bom, vamos lá. Perdi ambos muito cedo, mas a história da família é mais ou menos assim. O Bernardo é um erro de registro, porque originalmente meu pai é Bernardes. Meu pai, até 1945, 1946 era uma pessoa de muita posse, tinha até avião, dono de todos os carros da cidade de Garça, carro de aluguel, sabe? E ali casou-se com a minha mãe bem antes. Nós somos em cinco irmãos, dois mais velhos, eu sou o meio, e dois mais novos. Quando nasceu o meu segundo irmão meu pai já passava por uma situação financeira muito difícil na cidade de Garça. Aí eu nasci, persistia essa situação financeira, então a família resolveu mudar-se para um novo lugar, buscar sobreviver em outra cidade. Aí surgiu um convite para ir à Maringá, a cidade do estado do Paraná que estava, praticamente, começando a existir. Meu pai, como era muito habilidoso, embora vivia de todo patrimônio que tinha, ele achou que lá era a oportunidade de montar algo, então nós migramos para lá, por isso que eu conto que eu só nasci em Garça. Na verdade eu vim conhecer Garça eu já tinha quase cinquenta anos de idade, que foi uma curiosidade de ir à cidade onde você nasceu, né? (risos). Bom, fomos à Maringá, tinha nascido também uma outra irmã, que aí nós éramos em quatro, e em Maringá nasceu também um outro irmão, que é o caçula hoje, e lá ficamos de 1952, 1953, até mais ou menos o ano de 1958. Mas nós passávamos muita dificuldade na situação financeira também lá porque meu pai montou uma oficina que seria tipo uma mecânica dos dias de hoje, mas ele era especialista na autoelétrica. Como ele bebia muito, uma coisa interessante isso, eu trabalhava com ele, embora pequeno, eu tinha cinco, seis anos, eu ficava com ele o dia inteiro na oficina, eu era o único filho que ficava muito próximo dele o dia inteiro. Então ele bebia tanto que ele entrava dentro de um balcão e dormia. E me aconselhava a dizer que se alguém o procurasse que ele estava socorrendo algum carro na estrada porque lá era tudo descampado, era estrada de terra, muitos carros que quebravam, encalhavam. E assim era a nossa vida. Mas para sobreviver não tinha como, precisava ter uma fonte de renda. Então minha mãe, com cinco filhos todos pequenos, foi trabalhar no hospital de faxineira, era o único dinheiro que nós tínhamos para sobreviver realmente. Aí, fomos morar numa casa, essas casas de madeira que eram típicas do Paraná, uma casa muito grande, ela acabou alugando para duas pessoas também morarem na casa, que também vamos dizer, aumentava a receita familiar. E assim nós vivemos até mais ou menos próximo do ano de 1958, mas aquela miséria mesmo.
P/1 – Você sabe a história de como seu pai e sua mãe vieram a se conhecer, casaram?
R – Nessa época, minha mãe que conta um pouco, não era uma coisa de você casar por amor, era praticamente prometido. Ela era uma moça muito bonita por sinal que o pai tinha prometido para casar com o meu pai, então se casaram, aquela coisa que era bem típica daquela época, 1930, 1940, 1950. Foi assim. E o fato de não conviver muito também, a gente perdeu um pouco dessa história familiar. Hoje eu tenho até uma filha caçula que reclama muito: “Cadê meus parentes, cadê meus sobrinhos, cadê meus primos?” (risos). Mas não é, a própria vida fez com que cada um de nós irmãos, inclusive, tomássemos um rumo diferente.
P/1 – Os seus avós, você teve algum contato? Tem algum tipo de lembrança?
R – Foi muito pouco tempo. Hoje eu venho pesquisando a minha história, a minha ascendência, então eu tenho isso em documentos, foi muito legal que já cheguei até na Itália, de onde chegaram os primeiros parentes. Mas não tivemos oportunidade de conviver. Até mesmo porque de Garça, que era distante de toda a família, nós fomos à Maringá, ficamos muito mais distante ainda. Só em 1958 que um irmão da minha mãe, o Francisco, preocupado com aquela nossa miséria, foi lá trazer a gente para a cidade de São Paulo imaginando que aqui seria melhor a vida. Claro que tomou outros rumos, mas a situação financeira de imediato não mudou, pelo contrário, piorou. Porque lá pelo menos a gente tinha casa e comida e aqui na cidade de São Paulo a gente ficou sem casa e sem comida praticamente.
P/1 – E essa casa em Maringá, onde você passou a sua infância, você lembra como ela era, os cômodos?
R – Ah sim, era uma casa imensa, um terreno imenso, com farto pomar. Nós tínhamos frutas, verduras que nós plantávamos, era uma casa de madeira, uma casa imensa. Eu não tenho a informação se essa casa era de propriedade nossa ou se essa casa era tipo alugada, entendeu? Eu não consegui ter essa informação até hoje. Mas era uma delícia morar lá. Uma coisa que não era muito legal, que no fundo tinha uma plantação daquela Espada de São Jorge, não sei se você sabe como que é. E quando nós aprontávamos alguma, nós tínhamos que ir lá apanhar uma daquelas espadas para apanhar com ela. E apanhar com aquilo não era tão prazeroso assim (risos). Então, era interessante. Quando mandava ir buscar a espada de São Jorge a gente já vinha da rota naquele momento (risos). Mas era um terreno muito grande. Para nós, crianças, era maravilhoso você viver naquele momento. Nós tínhamos fruta, nós tínhamos quintal, nós brincávamos. A minha mãe trabalhava o dia inteiro, eu ia para oficina do meu pai. Quando eu voltava eu tinha os irmãos para brincar, os vizinhos, era muito prazeroso.
P/1 – Conta um pouco das brincadeiras que vocês faziam.
R – As brincadeiras de pega, subir em árvore, jogar bolinha. Nós tínhamos uma brincadeira que você pegava peças automóvel e fazia um tipo de carrinho. Jogava bola, brincava de queimada, brincava de peteca, tudo isso que nós produzíamos, nessa época não tinha os brinquedos que comprava ainda, tudo o que nós tínhamos era produzido por nós mesmos. Empinar papagaio, a pipa, isso tudo foi muito legal porque você aprendeu a fazer, vamos dizer assim.
P/1 – E a relação com a vizinhança lá de Maringá? Pessoal que frequentava a oficina do seu pai? Conta um pouquinho como era.
R – Aí não tenho uma grande recordação, porque eu ficava com ele na oficina, e como eu disse, não era uma oficina de clientela fixa, ela ficava bem à margem, no fim da Avenida Brasil, próximo já das rodovias, todas de terra, e as pessoas que procuravam eram pessoas que estavam viajando e tinham seu veículo danificado pela própria poeira, que era muita poeira lá. E uma coisa que me lembra também, eu fui batizado lá por uma pessoa riquíssima, que era um representante dos veículos Ford na época. Os veículos lá eram todos jipes e ele era uma das pessoas mais ricas que tinha na cidade e me batizou, então ficou um dos padrinhos que eu tive até com a proposta de voltar um dia, nunca foi oportuno voltar à cidade de Maringá para saber. E não lembro também o nome, perdi esse referencial. Só lembro que ele era uma pessoa muito rica na cidade, que talvez era um dos clientes do meu pai, né?
P/1 – E vocês tiveram algum tipo de formação religiosa? Você comentou do batizado...
R – Olha, a formação é assim, a gente é de origem católica, acho que só a origem. Nunca fomos de frequentar muito a igreja católica. Entre doze, treze e catorze anos, que eu fui estudar em colégio de padre, aí ficou um pouco mais acentuado esse vínculo com a igreja católica. Mas aí, a própria vida fez com que a gente se distanciasse um pouco da religião. Uma vez casado, minha esposa que era bem católica, de frequentar a igreja mesmo, fez com que tivéssemos uma aproximação, sempre fazendo algum trabalho voluntário, tal, mas não tão religioso assim. E hoje a vida tomou um rumo completamente diferente, eu acho que todas as religiões são mega interessantes, entendeu? Mas particularmente não tenho nenhuma religião definida, vamos dizer assim.
P/1 – Nessa época ainda da primeira infância lá em Maringá, você frequentava escola?
R – Não, não. A escola realmente era bem elitizada, nós não tínhamos condições financeiras de comprar nem material escolar, nem eu nem meus irmãos. Nesse momento da vida em Maringá, que foram oito anos, nenhum de nós foi à escola, nós ficávamos mesmo na intempérie de cuidar de casa, minha irmã mais velha que cuidava da gente, que fazia comida para a gente. A minha mãe trabalhava quase que dobrando as madrugadas para ter o mínimo de provento para sustentar a gente, que realmente o meu pai não conseguia produzir muita coisa no sentido financeiro, entendeu? Por conta de estar totalmente envolvido com a bebida, o pouco que ganhava ele consumia com bebidas.
P/1 – E tem alguma história dessa época que te marcou bastante, que você gostaria de contar para gente?
R – Ah, eu tenho uma coisa que eu chamo hoje de traumas da infância. Tinha um senhor que tinha uma loja comercial que chamava Bata. Na verdade era Batá, né? E para fazer propaganda da loja dele, ele colocou essas pessoas que trabalham na rua fazendo propaganda, mas que tinham uma cabeça imensa, como a gente vê hoje nas propagandas de políticos, a cabeça era perfeita, parecia um monstro grande mesmo. E quando a gente aprontava muito, não só a minha irmã mais velha, mas a minha mãe, meu próprio pai, dizia que a Bata ia me pegar, então, a Bata seria aquele senhor que fazia propaganda da loja. Depois de muito tempo que eu vim a descobrir que Bata era loja, e não aquela pessoa. Mas a gente morria de medo porque era como se um monstro tivesse vindo te pegar. E quando a gente andava nas ruas, sabe como é criança, anda por tudo quanto é canto, a gente via aquele homem com aquele cabeção, a gente corria muito, de medo daquela coisa ‘ele vai te pegar’. Nós achávamos que ela ia pegar mesmo, isso é muito curioso (risos). Mas que eu vejo nas crianças hoje esse trauma, e trauma que a própria família põe, ‘fica quieto senão te pega’. Isso é a única coisa que eu vou lembrar.
P/1 – E na sua casa quem exercia essa posição de autoridade era mais a sua mãe?
R – Sempre minha mãe, mas como ela também ficava ausente por conta do trabalho, quem na verdade cuidava da gente era minha irmã mais velha, um pouquinho o outro irmão. Nós temos uma diferença de dois anos cada um, ele também cuidava um pouco, que eram os maiorzinhos, mas éramos todos crianças praticamente. Nós ficamos a intempérie de se cuidar, se ajudar.
P/1 – Isso até os oito anos, né, que você ficou em Maringá?
R – Até mais ou menos oito anos de idade.
P/1 – E como é que foi essa vinda do seu tio?
R – Bom, essa vinda foi assim, não sei se foi um lamentável engano, o que foi. Mas a história é mais ou menos assim: o meu tio, preocupado, foi lá, nos trouxe para São Paulo. Simplesmente trouxe e nos deixou em São Paulo. Então nós chegamos de trem onde é a estação Júlio Prestes hoje, viemos de trem de Maringá. As roupas, quando eu vejo os migrantes eu tenho quase que voltar à minha origem, porque as nossas malas eram aqueles sacos brancos que a gente carrega, bem migrante, né? Descemos lá, nós viemos até a Bela Vista tentar achar um lugar para ficar, mas nós não tínhamos casa, nós não tínhamos referencial, nós não tínhamos nada, entendeu? Meu tio simplesmente deixou a gente ali, e a gente ficou a toda sorte, pai, mãe e os cinco filhos.
P/1 – Mas ele era daqui de São Paulo?
R – Ele era daqui de São Paulo esse tio, ele já morava aqui. Mas ele já morava retirado. Então, ali ficou uma coisa difícil para gente, porque como que você vai existir numa cidade sem nenhum referencial, sem nenhum trabalho, e com cinco filhos? Então a minha mãe bateu numa casa aqui na Bela Vista, que era na Rua Artur Prado, e pediu para pessoa se tinha trabalho para ela, que ela sabia trabalhar de faxineira, cozinheira, essas coisa todas, e nós fomos morar em um período curto numa garagem da casa. Que as casas aqui na Bela Vista eram interessantes, aquelas casas estilo americano que tinham garagem pro carro no fundo. E foi legal porque essa garagem serviu de casa. Então, a situação era um pouco difícil, minha mãe trabalhando com essa família, meu pai também foi procurar algum trabalho, encontrou trabalho de motorista de caminhão, então começou ali a tomar algum rumo. Mas a renda familiar ainda não era suficiente para que a gente pudesse existir com até um pouco de dignidade, né? Melhorou um pouquinho a situação financeira, nós fomos morar na Vila Gustavo, atrás da Casa Verde, perto do Jaçanã lá. Moramos num espaço curto de tempo numa casa, mas como São Paulo era muito difícil a condução, não tinha as marginais, era tudo muito mato, a gente resolveu voltar de novo para a Bela Vista. Aí nós já voltamos com um pouquinho mais de condição financeira. Era comum morar em porões, então, eu brinco que nessa época eu morei em quase todos os porões que tinha para alugar. Eu não compreendo até hoje se nós mudávamos porque era o sangue cigano ou se porque não pagávamos o aluguel, alguma coisa. Eu sei que nós estávamos constantemente mudando para os porões das casas. Aí melhorou um pouquinho, é o que chamamos hoje, quem sabe, de cortiço. Nós fomos morar no cortiço. Cortiço são aquelas casas grandes, com muitos quartos, ali na Bela Vista, que moravam umas trinta famílias. Então era comum que cada família morasse em um único quarto.
P/1 – Entendi. Você já vai falando de várias mudanças de residência.
R – É, foi mais ou menos nessa época aí.
P/1 – Tudo na mesma época dessa chegada.
R – Isso.
P/1 – Você lembra como foi a primeira impressão que você teve da cidade de São Paulo?
R – Bom, a primeira impressão foi quando eu fui à Praça da Sé, que é bem diferente do que é hoje, a Praça Clóvis Beviláqua, né, e olhava assim aqueles prédios que eu não tinha ainda contato com esse tipo de cidade. Em Maringá todas as casas eram térreas e de madeira, e uma longe da outra. Eu via aqueles prédios, e uma coisa que até hoje não sai da minha memória, é o neon de uma publicidade. Eu ficava sentado horas vendo aquele neon piscar, que era uma propaganda de uma farinha láctea da época, eu ficava encantado. Eu ficava encantado de ver tantos carros parados, eram todos carros importados, não tinha nenhum carro nacional nessa época, né? E todos parados assim, e os ônibus também que eram super engraçados. Ônibus com modelos bem diferentes do que a gente tem hoje. Então ali eu ficava encantado, aquilo era uma magia. Eu gostava muito de ficar ali na Praça da Sé, na Praça Clóvis, vendo aquele movimento.
P/1 – Você falou que era bem diferente do que é hoje. Conta um pouquinho como era essa praça?
R – A Praça da Sé não era descampada como é hoje, não tinha aquele jardim. Tinham vários prédios, nós tínhamos dois cinemas, uma construção, um estilo muito bacana, prédios maravilhosos. Ao lado desse cinema nós tínhamos um edifício que foi implodido, que era um dos maiores edifícios da cidade de São Paulo, que era conhecido como Mendes Caldeira, que é bem ali onde hoje fica a Caixa Econômica Federal, bem defronte à Caixa Econômica Federal. E os prédios, a praça era ladeada por prédios, e no fundo nós tínhamos a Catedral da Sé em construção ainda. Ela não estava terminada, não tinha aquelas torres ainda. Foi muito legal isso daí. E a Praça Clóvis, o que eu lembro que até hoje tem o bombeiro ainda, tinha o bombeiro, o resto eram todos sobrados de um estilo de construção bem diferenciado. Mas ali, Praça da Sé e Praça Clóvis, era como se fosse terminais de lotação, de táxi, de alguns ônibus, do bonde, que São Paulo nessa época era muito legal a gente andar de bonde, né? O bonde fechado, o bonde aberto, era ali que eram os terminais. Eu lembro também que outros terminais que nós tínhamos era na Praça do Correio e no Largo do Paissandu. Eram os únicos lugares que você tinha concentração de veículos que migravam pros bairros todos.
P/1 – E vocês chegaram nessa primeira casa ali na Bela Vista, que vocês moravam na garagem.
R – Isso.
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram lá, mais ou menos?
R – Ali nessa família a gente ficou morando na garagem tipo uns quatro meses, fomos ao Jaçanã e ficamos uns quatro, cinco meses, aí nós voltamos de novo para lá, mas já morando nos porões. Aí ficou muito tempo, acho que uns cinco, seis anos, nós moramos na Bela Vista ali. Até que nós começamos a crescer, trabalhar, minha irmã já trabalhava, meu irmão trabalhava, criou um pouquinho mais de condição financeira para ajudar a família, nós mudamos no Jardim Vila Mariana, que aí é onde começa uma outra história. Ladeado com a favela do Vergueiro, eu penso que nessa época São Paulo só tinha duas favelas, e a Vergueiro era a maior favela que tinha. E nós morávamos numa vizinhança com a favela, praticamente dentro da favela, que é onde foi a minha vida, que eu comecei a me conhecer, acho que ali que eu passo a me conhecer melhor.
P/1 – A partir de lá que tem mais lembranças?
R – Mais lembranças. Mas quando morava no Bixiga tinha coisas legais também. Eu acho que coisas marcantes na minha vida assim, eu e meu irmão engraxávamos sapato na Avenida Brigadeira Luís Antônio de esquina com a Rua Pedroso, que era tudo mato, tudo descampado ali, era muito interessante. Não tinha a Avenida 23 de maio, todas aquelas avenidas que nós temos hoje não existiam. Mas a Avenida Brigadeiro Luís Antônio era uma avenida de ligação do centro aos bairros. E essa esquina me lembra duas coisas interessantes. A primeira que nós tínhamos um tipo de um prédio de dois andares onde todo o time do São Paulo morava, os jogadores do São Paulo Futebol Clube moravam ali, e era comum eles ficarem na esquina, ficarem na nossa esquina, nós tínhamos a esquina de um bar onde também tinha um cinema. Eles ficavam parados ali quando não estavam no campo, eles ainda não iam muito a, não tinha esse negócio de concentração, eu acho que passavam a maior parte do dia ali, conversando com a gente, contando história. E a gente engraxava o sapato de todos eles, nós éramos acho que em cinco, seis engraxates, e toda hora nós estávamos engraxando sapato de jogadores famosos, vamos dizer assim. E uma coisa legal também que tinha ali na Brigadeiro, que ao lado desse prédio onde moravam os jogadores do São Paulo, o Jânio da Silva Quadros, ele tinha um comitê político, que ele tava fazendo sua campanha em 1960, 1961, para presidente da república. E ele também vinha engraxar o sapato ali, sabe? Então foi muito legal isso, porque ele sentava na nossa caixa, eu era aprendiz ainda, vamos dizer assim, mas ele sempre preferenciava primeiro engraxar comigo. Porque eu já sabia escrever alguma coisa e eu escrevia nas calçadas versinhos com a minha tinta. Eu lembro até hoje, a tinta chamava Emi. Eu pegava aquela lata de tinta com pincel de passar no sapato e eu fazia versinhos pro Jânio, para votar nele, que ele ia ser um bom presidente, tal. Ele achava aquilo muito legal. E ali ele fez uma promessa que eu seria cabo eleitoral dele, acabei sendo mesmo por um bom tempo, eu ia na Praça da Sé, Praça Clóvis Beviláqua, na Praça do Correio, Largo do Paissandu, entregar os bilhetinhos, os santinhos como chamam hoje os políticos, pras pessoas votarem nele. E depois, ele inventou uma vassourinha, que era uma vassourinha super bacana, prateada, pras pessoas colocarem na lapela. E foi legal, porque ele me confiou a caixa das vassourinhas e eu que distribuía as vassourinhas nesses terminais. E todo mundo fazia questão de pegar uma vassourinha porque ele era uma pessoa do povo, ele era muito querido na época. Essas lembranças são muito fortes. Uma outra lembrança também que acho que é uma coisa que tem a ver com os dias de hoje é a feira. A ideia da feira livre. Como a gente não tinha muita posse para comprar as coisas na feira, no final de feira, nós todos, eu, meus irmãos, íamos à feira pegar as coisas que eles jogavam. E ali, incrível, como a gente pegava coisa boa, coisa gostosa de comer ainda, e levava para casa. A nossa feira, nós que abastecíamos com o ‘resto da feira’. Então foi super legal porque era uma oportunidade de você comer todas as frutas, todas as verduras, você tá entendendo? E nos dias de hoje eu ainda tenho um fascínio pela feira, talvez eu acho que a feira ainda é um lugar onde você encontra boa comida, né? Só que naquela época a gente não pagava porque a gente esperava acabar a feira, os feirantes acho que têm essa mania até os dias de hoje, para não levar aquelas que já estão num processo de deterioração, eles jogavam tudo na rua, e a prefeitura depois de um bom tempo passava lá para fazer a limpeza dessa rua. Acho que isso é muito marcante ali no Bexiga.
P/1 – Nessa época também, acho que você tava me contando quando a gente tava conversando das fotos, que você brincava lá na Avenida 23 de maio.
R – Ah, legal. Criança, você sabe que moleque, principalmente, não tem limite. O mundo é o limite. Então a Rua Pedroso tinha uma viaduto simples que estava sobre o riacho do Itororó, que onde hoje é a atual Avenida 23 de maio. Mas ali nós chamávamos de buracão porque era um buracão mesmo, mas um buracão imenso. E a gente andava no meio daquelas matas, todos os cantos, até chegar para nós, que era um pouco distante, até onde é a Beneficência Portuguesa hoje, que era uma subida de um morro. Interessante que a água, quando vinha da Beneficiência para o Vale do Anhangabaú, ali tinha uma cachoeira imensa, como se fosse um grande rio. E nós íamos lá tomar banho na cachoeira. E essa cachoeira, o fato dela esparramar água para todos os lados, nas margens dela tinha morango nativo, nascia milho verde, não era uma coisa de ser horta de alguém, sabe? Era nativo ali. Então era muito legal, porque a gente não ia só lá nadar, tomar banho de cachoeira, comer morango, e nas vinda, nas margens desse riacho, a gente apanhava milho verde que levava para casa. Era muito legal isso daí. E hoje eu passo na Avenida 23 de maio, nossa, aquilo é muito mágico, né? E nós seguíamos essa 23 de maio, o riacho do Itororó, até onde hoje é o Vale do Anhangabaú, que também era um outro riacho na época. Aí depois ele começou a ser canalizado, a avenida começou a ser construída.
P/1 – E nessa época você ainda não ia na escola.
R – Nessa época foi assim, eu comecei a ir à escola. Porque a primeira escola que eu fui era ali no Bexiga, que era o Grupo Escolar Maria José. O Maria José existe até hoje, então existe um certo saudosismo dessa escola. E é onde eu aprendi o primeiro ano, segundo ano, e fiquei no Maria José até parte do terceiro ano. Depois disso nós mudamos pro Jardim Vila Mariana, aí fiquei um período sem estudar. Depois aconteceu um fato muito interessante que eu conto, eu vim estudar na Avenida Paulista onde é o Rodrigues Alves, aí eu completei o terceiro ano, vamos dizer assim.
P/1 – E desse período escolar? Você tem lembrança das suas professoras, sobre as principais coisas que você fazia?
R – Não, não, não. Eu tinha assim, a escola era como uma coisa como se fosse uma obrigatoriedade, não era uma coisa prazerosa. Era bacana, porque eu começava a ter contato com os números, com as letras, aquilo despertava um interesse. Mas a escola não era gostoso ir. Por quê? Eu tinha toda a liberdade do mundo, ou nós estávamos trabalhando, engraxando sapato ali, ou então nós estávamos andando e explorar a Bela Vista, explorar ali o Paraíso, aquilo era mágico. Tinham mansões imensas, grandes palácios, né, eu andava muito na Avenida Paulista, que também não tinha muitos prédios, eram todos casarões. Aquilo para a gente era muito forte, você vê aquelas casas imensas, eu ficava imaginando como é que pode uma única família morar numa palacete desses, né? A gente explorava tudo isso. Eu acho que a Bela Vista, Paraíso, essa região, até mesmo a região central, eu acho que eu explorei metro quadrado, entende? Sabia tudo sobre. Foi muito bacana, muito oportuno, e ficar dentro da escola não fazia sentido. E os professores eram muito diferentes do que são hoje, eram muito bravos. Era uma época que tinha total liberdade de pôr de castigo, bater. Eu apanhei muito. Eu brinco que minha orelha é um pouco maior de tanto que puxaram porque eu não era tão dedicado aos estudos (risos), apanhava quase todo dia. Então, criança que apanha quase todo dia tem interesse de ir à escola? De jeito nenhum. Pelo contrário, não fazia a menor questão de ir (risos).
P/1 – E nessa época de engraxar sapatos. Você lembra das histórias que os jogadores contavam, que você comentou, você lembra de algum caso?
R – Era muito legal porque eles falavam dos times, da própria construção do São Paulo. Aprendi que o São Paulo nunca foi no Morumbi, quer dizer, veio estar no Morumbi, mas que ele já esteve aqui perto de onde é hoje a estação rodoviária, que o time passou por várias fases. Os jogadores contavam também das viagens, tinha contato com alguns jogadores que ficaram famosos. Eu lembro do Roberto Dias, do Djalma Santos, que vieram a ser campeões do mundo. Então eles contavam essas viagens para gente, e a gente ficava sentadinho, como se fosse uma contação de histórias. Aquilo para gente era uma magia muito forte, né? E ali acho que plantou uma sementinha no meu coração pelo São Paulo Futebol Clube que lá na Vila Mariana eu pude realizar um forte desejo pensando no São Paulo.
P/1 – Entendi. E nessa época que você ia nos terminais de ônibus fazer campanha para o Jânio, como que era? Você se locomovia pela cidade como? Como era o seu dia?
R – Eu saía ali da Bela Vista onde morava, ia a pé, porque condução, táxi, era muito escasso. Aliás, passava um ou outro na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, tinha um único táxi que a gente conhecia, até o nome do taxista, ele era tão próximo que engraxava sapato com a gente, chamava Maranhão. Era o único carro que tinha de praça, como chamavam na época. E eu lembro também que tinha uma única ambulância que passava toda hora. Então nós andávamos a pé. Eu vinha com a mochilinha cheia de papeizinhos para distribuir, mas eu tinha uma caixinha, que era como se fosse uma caixinha de jóias, que era onde tinha aquelas vassourinhas do Jânio. E os papeizinhos a gente distribuía para qualquer um, mas as vassourinhas eu escolhia as pessoas que eu queria dar, não era para qualquer pessoa que dava. E às vezes as pessoas imploravam que queriam uma vassourinha e eu não dava, era muito legal. Eu já tinha essa liberação, vou dar uma vassourinha ou não, entendeu? Eu me sentia muito autoridade até, eu me sentia um representante do Jânio mesmo, que ele dizia para mim: “Só dê a vassourinha para quem vai votar em mim”. E eu ficava achando quem é que ia votar nele, quem eu achava que não ia votar nele eu não dava a vassourinha (risos). Foi bacana você poder discernir essas coisas assim, sabe? Eu acho que foi um grande aprendizado, ser o cabo eleitoral dele.
P/1 – Nessa fase você tinha mais ou menos quantos anos?
R – Ah, eu tava entre dez e onze anos, chegando aos doze anos.
P/1 – E foi nessa fase dos doze anos que chegou aquela figura que chamou você para estudar, foi isso?
R – Isso mesmo. Então, aí foi uma pessoa que me procurou também, que morava ali num casarão imenso, ele chamava-se Efísio Ernesto Riga. E o seu Riga era um executivo aposentado do Citibank, um italiano de origem, ele achava que era um desperdício eu ficar solto pela rua. Ele gostava muito de engraxar o sapato comigo, mas a mesma situação, acabava de sair da minha caixinha e ia numa outra caixinha. Mas ele falava: “Olha, eu quero que você vá trabalhar comigo, você vai ser meu secretário”. E aí eu topei largar aquilo tudo para ser secretário dele. Foi interessante essa iniciação, foi como se fosse uma iniciação mesmo, um novo mundo. Como eu não tinha sapato, uma das ironias da vida que eu comento até na história de vida que eu postei na internet, que eu engraxava sapato mas não tinha sapato, né? Sapato é aquele que fosse dado e não importa o tamanho do pé. Às vezes você tava com um sapato trinta e nove, como você tava com um sapato trinta e dois. Era o que tinha. Ele comprou um guarda-roupa com terno, eu guardo com muito carinho essas fotos hoje porque aos doze, treze anos eu já usava terno, gravata, que ele exigia que eu estivesse sempre em traje social. Ele me colocou num colégio ali na Rua Martiniano de Carvalho, que era o Colégio dos Padres Carmelitas, onde tem a Igreja Nossa Senhora do Carmo para fazer o quarto ano, ele queria que realmente eu desse continuidade aos meus estudos, me colocou num curso de inglês, me levava no edifício Martinelli, o tão famoso Martineli, me colocou na aula de piano, na aula de canto, então ele tinha uma preocupação muito grande comigo no sentido de que eu realmente tivesse um direcionamento na vida. Ele dizia que era muito relevante que eu saísse da rua. Eu trabalhei com ele uns dois anos, mais ou menos, onde conheci inclusive, vendo aqui no Museu a foto do Adhemar Ferreira da Silva, o Adhemar Ferreira da Silva era uma pessoa que trabalhava conosco ali, que já era campeão, conhecido mundialmente, então eu saía na rua e todo mundo mandava eu entregar as cartinhas pro Adhemar, era muito legal isso. E eu vim a descobrir que o Efísio fez isso com outros rapazes também, e eu vim conhecer esses outros rapazes. Tinha o Alexandre, que se tornou um grande comerciante na Avenida Rio Branco, depois tinha um outro, Vanderlei, que trabalhava conosco também, que ele estava direcionando a vida desse Vanderlei. E eu não entendia na época porque ele fazia isso, mas assim, um executivo, uma vida imensa dedicada ao banco, já bem de idade, ele queria fazer alguma coisa por alguém. E foi super interessante. Ele também me levou várias vezes no banco para que eu seguisse carreira, mas eu não tinha idade, na época não podia trabalhar com menos de catorze anos. Então, o presidente do banco disse para mim: “Tão logo você faça catorze anos venha ser aprendiz, a gente vai te direcionar”. Mas eu não queria ir no banco porque eu não queria aprender inglês, e o banco exigia que você fosse fluente na língua inglesa. Eu achava que isso não era uma necessidade, eu já me considerava auto suficiente, eu sabia me virar, já sabia ganhar meu dinheiro, eu não tinha essa visão que eu poderia ter feito uma carreira no banco. Aí, ele preocupado que eu não gostava do Citibank, ele tinha um outro colega dele, um outro executivo, que já tinha o próprio banco, o próprio banqueiro, ele me levou lá para falar com este banqueiro, dizendo que queria que o banqueiro cuidasse na ausência dele. E o banqueiro totalmente se prontificou: “Claro, a hora que você desejar”. E também não fez sentido, eu não queria esse negócio de banco. E aí, eu topei trabalhar com outros engenheiros, que eram pessoas que estavam começando uma grande empresa de petróleo, de química, não lembro direito, era na Rua Maria Antônia. Eram três engenheiros que moravam juntos. E não sei, fui simpático a esses engenheiros e resolvi trabalhar com eles, trabalhei quase um ano só. Então foi interessante isso. Mas a partir dessa minha ida com o Riga no escritório é onde eu aprendi um pouco de boas maneiras, onde eu me vesti bem, onde eu comia bem, o que eu queria ele comprava, era muito interessante. Às vezes eu queria comer em algum restaurante, ele me levava. E algumas coisas que nessa época o Vale do Anhangabaú já era terminal de ônibus também, eu só andava com ele, porque ele tava bem velhinho, então eu ia levá-lo até o ponto do ônibus para ele pegar o ônibus para a casa dele, muitas vezes ele não tava passando bem e eu ia até a casa dele com ele, entregava lá para esposa, foi uma época muito legal na minha vida, eu acho. Eu acho que ele fez um sentido, me deu um novo direcionamento na vida, me tirou praticamente disso tudo, né?
P/1 – Mas nessa época você ainda morava com seus pais?
R – Morava com os pais.
P/1 – Onde?
R – Meu pai, sempre um pouco nulo, porque realmente acho que o alcoolismo anulou muito a figura pai, né? A mãe sempre esteve presente, minha mãe trabalhou muito, muito, muito, porque nós éramos em cinco, não era tão fácil assim. A partir do momento que a gente começou a trabalhar e produzir alguma coisa, ajudava em casa, mas foi muito difícil essa fase. Depois cada um acabou se profissionalizando, e aí a vida tomou outro rumo, né? Mas essa fase mesmo, que eu chamo de primeira infância, que é quando eu me conheço, quando cheguei em São Paulo, até meus treze, catorze anos, foi muito difícil mesmo, a situação financeira era muito difícil, entende? Essas coisas que a gente vê as famílias hoje passando aí, a gente não compreende o que leva a vivenciar aquela situação. Eu tenho certeza que não é porque a gente gostaria, é que não tinha mesmo condição.
P/1 – E nessa época seus irmãos também trabalhavam...
R – Os dois maiores. Eu tinha uma irmã mais velha que foi a primeira que começou a trabalhar, logo em seguida o meu irmão que é o maior, eu, então nós três já produzíamos alguma coisa. Foi super interessante porque essa produção financeira começou a ajudar a família em si. A gente podia comprar alguma coisa pessoal, mas nós entregávamos todo o dinheiro em casa, e esse dinheiro era suficiente para que nós pudéssemos manter a nossa subsistência ali, familiar. Até mesmo custeando as coisas do meu pai, porque o pouco que ele ganhava muitas vezes a gente nem conseguia ver a cor do dinheiro considerando que ele perdia, ou bebia. Quantas vezes a gente não viu ele na rua, como você vê hoje as pessoas totalmente alcoolizadas, dormindo em calçada. Às vezes, ele dormindo com o dinheiro do pagamento na mão, sabe essas coisas assim? A gente pegava, levava para casa, tal. Foram momentos sofridos dessa fase de infância, mas que eu penso que hoje com a própria família a gente superou tudo isso daí.
TROCA DE FITA
P/1 – Então Sidney, você contou para gente que você foi morar lá no entorno da favela do Vergueiro. Como é que foi morar lá, como era a relação com a comunidade?
R – A favela foi assim: nós já estávamos com alguma condição financeira, eu, meu irmão e minha irmã já ganhávamos algum dinheiro, ajudávamos em casa. Então, minha mãe alugou uma casa às margens da favela, bem na interface. Mas a gente não teve como não viver na favela, porque os amigos eram da favela. E a favela do Vergueiro é uma coisa muito forte na minha vida, porque ali eu aprendi muitas coisas legais. Primeiro que eu ensino até hoje, essa questão do pobre. Pobre gosta de coisa bonita, gosta de cultura, gosta de cinema, gosta de esporte. E eu fico impressionado que naquela época a favela já tinha tudo isso. Ela já tinha cinema, que era o Cine São Luiz na favela do Vergueiro, bem no centro da favela mesmo tinha uma praça onde tinha um campo de futebol, onde tinha um lugar onde se praticava todos os esportes, todas as brincadeiras de rua, e a comunidade era super solícita, super cooperativa. Não era uma comunidade como a gente vê favela e tem a ideia de que é lugar de marginal. Não, lá era lugar de pessoas que não tinham sua casa e que moravam em barracos, barracos de madeira ou quem sabe barracos até de papelão. Mas era interessante que a vizinha fazia um bolo, ela dava um pedaço para gente. Ganhava um saco de arroz, dividia. Então ali, acho que a gente aprendeu algumas lições que são parte da nossa formação, é dividir as coisas, ajudar as pessoas. Quando acontecia alguma coisa os vizinhos sempre ajudavam. Então, acho que a solidariedade era muito forte ali. E eu tinha assim, ele não era um marginal, mas era uma pessoa muita violenta que tinha dentro da favela, e eu tinha um carisma muito grande por ele, e ele uma identificação muito grande conosco também. E ele trabalhava numa açougue, era muito engraçado, um açougue na favela. E quando eu chegava chorando que alguém me batia, ou mesmo no centro que alguém me provocava, ele largava tudo e ia lá tomar minhas dores, você tá entendendo? Era super interessante essa relação, que ele era bem mais velho, mas ele me defendia assim porque gostava muito, ele tinha um carisma muito grande. Eu tinha um amigo na época, o Pedro Luís, e pelo fato de já ter um dinheirinho nós montamos um time que chamava Sãopaulino da Vila Mariana. E esse Sãopaulino nós tínhamos camisa, calção e a bolsa. Então, acho que as primeiras lições que eu aprendi de ética foi ali também. Por quê? Nós escolhíamos os jogadores, éramos os cartolas, os donos do time (risos). E quando cansava a gente recolhia a camisa e a bola e acabava o jogo, entende? Mas isso era tudo nos morros, nós tínhamos o Morro das Vacas, onde hoje é o atual Bairro do Klabin, onde tem a estação do metrô Klabin, que só tem prédios de alto padrão, ali era um morro de areia, uma terra mais branca. E do outro lado, que era o outro morro era onde estava a favela. A favela, eu acho que tinha milhares de barracos, era muito grande a favela para você atravessar de ponta a ponta. Mas era uma comunidade muito pacífica, a gente não lembra de crimes, a gente não lembra de nada disso. Essa questão de polícia, não tinha nada disso. Eu acho que a favela tinha suas próprias regras, e uma coisa que hoje, refletindo sobre, o cinema era de um empresário, um senhor português assim. Ele explorava o cinema, dentro da favela ele tinha mercado, como é conhecido hoje o supermercado, e ele também cobrava das pessoas um aluguel pelo espaço, como se fosse o terreno dele. Hoje eu compreendo que era um subsistema dentro do próprio sistema. Incrível, porque nos dias de hoje a gente ainda encontra isso nas favelas, alguém que manda, alguém que cobra um ágil, um pedágio, uma passagem, sei lá. Desde aquela época isso já era praticado. E ali na favela foi muito legal porque você não só tinha liberdade, só que o nosso vínculo passou a ser de fim de semana, porque de segunda à sexta-feira nós trabalhávamos no centro, então pegávamos o ônibus que era o ônibus que vinha ao centro e todos nós trabalhávamos. Aí eu já tinha os meus treze, catorze anos, deixei de trabalhar com o Riga porque ele se aposentou definitivo e fui trabalhar com os engenheiros, aí a vida foi tomando novos rumos. Quando eu fiz catorze, que podia trabalhar com carteira assinada, aliás minha carteira é assinada desde catorze, é muito legal isso, né? Eu trabalho há quase cinquenta anos. Eu ainda abandonei as ideias de trabalhar nos bancos porque achava que aquele negócio de ficar estudando muito não era meu forte. E surgiu uma oportunidade de trabalhar no cartório, ser auxiliar de um cartório. E ali foi interessante, porque eu tomei um novo rumo na vida, eu fui trabalhar neste cartório desde os meus catorze e trabalhei até os meus vinte e um, vinte e dois anos. E o cartório também fez um outro sentido na minha vida, porque ali me amadureceu muito, fez com que eu me tornasse inclusive o oficial mais jovem. Para você ser um escrevente responsável você teria que ser maior de idade, eu era menor ainda, mas já exercia a função, aí me emancipei para fazer o concurso público para me tornar um oficial, sabe? Super bacana. E ali me ensinou também valores, trabalho. Eu também me casei nessa época, quando estava quase saindo do cartório estava casado, me casei muito jovem também. Então, foi uma coisa muito interessante isso daí. E eu acho que hoje eu não tenho como contar minha história de vida se não contar o que eu aprendi no cartório. Que tem a ver com lei, com justiça, com valores, tudo isso eu acho que é parte integrante da minha vida. Depois disso eu fiz muitas outras coisas, mas esse berço, vamos dizer assim, profissional, de ser engraxate, de vender salgadinhos na rua, de vender pipoca ali na Rua 13 de maio na porta da Igreja Nossa Senhora da Achiropita, essa liberdade que eu tinha, eu penso que eu construí algumas possibilidades que veio alicerçar a minha vida hoje, entende?
P/1 – Sidney, você tá falando que você começou a trabalhar muito jovem. Essa passagem da infância para juventude foi um processo que durou muito tempo, né?
R – É, porque não tivemos infância nem juventude, vamos dizer assim, como são os adolescentes do dia de hoje, ou como foram meus filhos adolescentes. Porque eu me vejo desde seis anos trabalhando com meu pai, aos oito em São Paulo, nove já começando a engraxar sapatos. E sempre estive fazendo alguma coisa para tentar o sustento e ajudar em casa, né? Então, acho que o trabalho foi muito forte, né? Essa coisa que eu tenho até hoje, não é que eu amo trabalhar, eu trabalho, faço questão de continuar trabalhando. Embora esteja aposentado, mas eu posso que eu posso deixar alguma contribuição pros mais jovens, então eu continuo trabalhando. Mas eu acho que a minha cultura foi trabalhada desde cedo, foi muito significativo isso na minha vida.
P/1 – Você tinha comentado um pouco comigo, mais cedo, que você aprendeu a ser homem no futebol de várzea.
R – Então, mas por que? Porque o futebol de várzea funcionava assim: nós tínhamos os jogos dos adultos dentro da própria favela, um campo maravilhoso, e depois tinha os nossos times, que eram os times dessa juventude aí, que a gente vinha numa sequência. E formava-se campeonatos, tal qual são os campeonatos oficiais hoje. Mas ali tinha uma coisa que me marcou muito que era assim, se o nosso time, o Sãopaulino da Vila Mariana desejasse jogar contra um outro time, nós mandávamos uma cartinha pelo correio, que chamava ofício, eu cheguei até a imprimir na gráfica esse ofício, era uma coisa legal. Era assim: “Nós, proprietários do time tal, convidamos vocês a jogar no dia tal, tal hora, no campo tal”. E esse era o convite formal, já existia aí atrás do envio deste ofício uma formalidade de convite. O time tinha obrigação de aceitar, se aceitasse ele tinha que mandar um ofício dizendo que aceitava, e se não aceitava, dizer os motivos, porque ele podia ser excluído de jogar com outros times se ele não cumprisse as regras, que eram regras que não estavam escritas, mas era o senso comum dos times de várzea. Então, responder o ofício, tinha que ser ético. Ali eu aprendi que quando você convida você ia ter uma resposta. E quando nós éramos convidados, nós tínhamos que responder também. E também da justificativa porque não ia aceitar o convite. Eu penso que a ética hoje, que eu ensino tanto nas universidades, acho que ali foi uma grande lição, porque éramos íntegros, responsáveis, nós não dávamos as mancadas que hoje as pessoas dão por aí. Assumir um compromisso e não dar a mínima satisfação. E ali não, ali eu aprendi que se você assumir um compromisso você tem que dar uma satisfação caso, por algum motivo, você não for cumprir. Então eu penso que essa fase, embora fosse um investimento comprar as camisas e a bola, embora eu nunca tenha jogado muito, nunca fui bom de bola, também nunca joguei bola no meu time, eu só tinha o prazer de entregar as camisas e recolher quando eu achava que tinha que recolher. Mandava lavar, como se fosse um time profissional. E nós ganhávamos muitos campeonatos. Há muitos anos eu encontrei o Pedro Luís que era o meu sócio, meu cartola mirim (risos). E ele lembrou, ele tem muitas fotos dessa época, que nós mantínhamos o time. E o time era mantido com o nosso dinheirinho, primeiro ganhava um salário, entregava parte em casa, outra parte comprava coisas pessoais, outra parte a gente mantinha o futebol que era uma forma de agregar os jovens, vamos dizer assim. Nós estávamos na rua, mas não tão na rua, nesse significado de rua hoje, nós estávamos praticando esporte, acho que isso é bacana.
P/1 – Nessa época, um pouco mais velho, você comentou do futebol, comentou do cinema. O que mais vocês faziam nos momentos de lazer?
R – Olha, tinha o lance de namorar que é muito interessante, muito diferente dos dias de hoje. Eu lembro que eu namorei uma menina por um ano, sequer eu peguei na mão dela, mas nós namorávamos. Nós escrevíamos cartinhas, mandava cartinha, cartinha de amor, eu acho isso muito lindo. A minha esposa foi muito legal, porque eu deixava bilhetinhos para ela também, é coisa muito legal isso. Era muito romântico, era muito apaixonado, então o namoro era muito diferente como é o namoro hoje. Não tinha essa história como a gente aprendeu com os jovens, tô ficando, tô saindo, não tinha nada disso, era muito diferente. E nós fomos crescendo. E como o trabalho tomava um tempo muito grande, nós também perdemos algumas oportunidades de estar curtindo a adolescência, vamos dizer assim, ou até mesmo fazendo coisas erradas da adolescência, que tinha também, claro que tinha. Mas o fato de você já ter sido ético, de você ter resgatado a ideia de ser compromissado, de ter necessidade de trabalhar, eu acho que isso tudo me tirou da marginalidade. Então, nós tínhamos assim a questão de drogas também nessa época, existia tudo importado. Era muito interessante que não tinha em qualquer esquina. Quando eram comprimidos vinham todos de fora, de outros países. Até mesmo maconha, era uma coisa muito diferente. Eu brinco que acho que naquela época devia ser maconha da boa (risos) como eu brinco, porque o cheiro era diferente também. Mas nós nunca tivemos acesso às drogas porque era fazer uma opção, ou fazer uso da droga, ou trabalhar. E como nós tínhamos que trabalhar, nós nunca tivemos acesso à isso. E na minha história de vida eu conto que um dia eu cheguei bem próximo, eu convivia com mais quatro Sidney's, todos fumavam maconha, só eu que não, e era uma opção não fumar. E eu brinco que entre fumar maconha e casar eu casei, né? (risos). Mas foi muito legal porque eu não tive acesso, não aprendi até hoje a fumar e não sei se lamento ou não. Eu brinco muito com a minha esposa, falo: “Pô, nem maconha a gente aprendeu a fumar”. Eu acho que é coisa da vida, a vida vai te empurrando a determinados rumos, vai te direcionando. E aí, a vida vai acontecendo. Acho que isso que dá a magia, né?
P/1 – Você falou daquele teatro na Rua Augusto, também era nessa época que você ia lá na porta?
R – O teatro um pouquinho mais tarde, já começou a ter o lance da cultura. Nós gostávamos de ir em cinema, principalmente todos os domingos era dia de ir ao cinema, dia de levar a namorada em cinema. E eu lembro que o Teatro Record, da TV Record, ficava na Rua Augusta. E aí, é uma peça que o destino lhe proporciona. Então eu ia ao teatro, era o momento que o Roberto Carlos tava chegando, Erasmo, a Elis Regina, Jair Rodrigues, sabe? Ali veio o Caetano, veio Gal, então eles vinham nesse teatro, era o tempo da Jovem Guarda, os grandes festivais de MPB, mas nós não tínhamos dinheiro para entrar no teatro, que era pago já, a tv cobrava o ingresso. Então nós ficávamos na porta, parados no meio da Rua Augusta, aquele mutirão de jovens, tal qual é hoje nos shows da juventude aí, né? E nós não tínhamos acesso a esse tipo de cultura. E uma coisa muito legal que eu acho que é até interessante, é que hoje eu trabalho nesse mesmo prédio, esse prédio é de uma família que manteve a sua estrutura, e hoje é a Faculdade das Américas, onde eu trabalho. Eu não só ministro aula, como coordeno dois cursos na mesma faculdade. E quando eu entro dentro do teatro, que um dia, lá em 1962, 1963, eu não podia entrar, hoje ele é um espaço do nosso trabalho. As nossas palestras, os nossos seminários, os nossos congressos são feitos no mesmo teatro. Então eu penso que a energia dele é muito forte, ele tem um sentido muito grande para gente que vivenciou esse período da Jovem Guarda, entende? Então são valores que eu não consigo explicar com palavras, quem sabe um dia a gente vai escrever até sobre isso, mas eu posso garantir para você que quando eu entro no teatro, tem uma energia muito forte. Um dia eu não pude entrar e agora eu entro a hora que eu quero. É interessante refletir sobre isso, né?
P/1 – E nessa época ainda da juventude que você conheceu a sua esposa. Como é que foi que você conheceu ela?
R – Minha esposa é assim. Aí, a vida melhorou bastante, a gente voltou a morar na Liberdade, foi onde eu a conheci. Eu morei na Rua dos Estudantes, ali.
P/1 – Vocês saíram da Vergueiro...
R – Isso, saímos da Vergueiro, trabalhando, a vida tomou novos rumos e nós mudamos para a Liberdade, foi onde eu a conheci. Ela era bem jovenzinha, uma menina de doze, treze anos, eu já tinha meus dezesseis, dezessete anos. A gente tinha, sabe aquele lance do olhar? Do namoro, mas como eu disse, o namoro era bem diferente, né? E a gente ficava se flertando o tempo todo, aquela coisa da paixão mesmo. Eu acho que ela fazia muito sentido e eu devo ter feito sentido para ela. Eu namorei outras meninas paralelas, aquelas coisas todas, mas sempre voltava a ficar com ela um pouquinho, namorar um pouquinho. Até que um determinado momento do próprio cartório, eu namorava a filha de uma funcionária do próprio cartório, quase ficando noivo, nos meus dezoito, dezenove anos de idade. Foi quando eu percebi que a Elisabete fazia muito mais sentido. Desmanchei aquilo tudo e comecei a namorar a Elisabete mais firme, aí já num espaço muito curto de tempo a gente já quis ficar noivo, até mesmo pela própria condição de família, ela tinha uma família numerosa, eu também tinha a nossa, então a gente resolveu casar. Foi muito interessante. Ela casou logo que fez dezoito, eu casei logo que eu fiz vinte e um, foi uma coisa muito prematura, vamos dizer, mas não é. A nossa vida tomou um novo rumo, uma nova história, a partir daí também. Eu penso que amadureceu muito, nós éramos responsáveis a ponto de constituir a família mesmo. Logo depois de dois anos nasceu a minha primeira filha e aí com os filhos, nossa, nem te conto, muda tudo, né? A vida toma rumos completamente diferentes daqueles que você desejava. Aí pela própria condição financeira, casado, o cartório já não era, vamos dizer, o salário não era compatível com as necessidades que a gente tinha de pagar aluguel, pensar em ter filhos, essas coisas, eu fui tomando atitudes. Saí do cartório e fui buscar novos trabalhos, sempre procurando ganhar mais, e a vida não parou. Agora, uma coisa legal que tem para contar do casamento. Nós morávamos na Liberdade, e para casar, a Igreja Católica tem aquela obrigatoriedade de você casar no bairro onde você reside. Como nós dois morávamos ali, então nós tínhamos que casar na Catedral da Sé. E a Catedral da Sé era uma coisa assim que só casava a sociedade de São Paulo, mas por obrigatoriedade regional eu teria que casar na Catedral da Sé. Foi muito legal. O dia do casamento é uma história interessante, porque nós não tínhamos carro, não tínhamos nada. Eu comprei um terninho, tal, que era o terninho do casamento, e fui ao meu casamento andando, para encontrar a noiva no altar. E quase chegando ali na Praça João Mendes eu vi o engraxate, me veio aquela forte lembrança do engraxate. Olhei no meu sapato, por que não prestigiar esse engraxate? Eu sentei na caixinha do engraxate lá, ele engraxando meu sapato, e eu tenho uma cena muito forte, que as pessoas passavam para ir no meu casamento, e eu ali engraxando o sapato, você tá entendendo? É muito legal essa passagem da minha vida. E uma outra coisa também que é interessante, que nós íamos casar tipo assim, às 18 horas. Às 17, ia casar uma pessoa da alta sociedade. Então, ela mandou enfeitar a igreja com tapete, com flores, ia ter coral, ia ter órgão, aquela coisa toda. E tudo isso paga. Eu não sabia que pagava, tinha que pagar, mas eu não tinha condição de pagar isso tudo. Então, quando fui agendar o meu casamento, fazer o curso para casar, aquela coisa, eu fui informado pelo pároco que tudo isso seria tirado porque ou eu pagava e era mantido, ou tirava. E eu: “Mas como, se quem vai casar já pagou você tem que deixar” “Não, vou tirar”. Aí eu fiz um braço de ferro com ele que você não imagina, foi uma briga tremenda que foi parar na Cúria. E eu já era todo cartorário, achava que eu era da justiça, que eu era da lei, tinha minha carteira funcional que era Corregedoria Regional da Justiça, aquela coisa toda. Eu fui na Cúria que queria falar com o Dom Paulo Evaristo Arns lá na Cúria. Eu falava: “Não, isso é um absurdo, eu quero casar na igreja, minha esposa faz questão de casar na igreja, como que vocês vão tirar?”. E acho que ganhei, pela insistência, ou de tão chato que eu fui, eu acabei ganhando algumas coisas interessantes. Ganhei que não só fosse mantido todos os adornos que a igreja tava preparada, como ganhei um coral à parte, e um monsenhor que comovido com a minha insistência e a minha história, ele falou: “Olha, você vai ganhar de presente, nós vamos celebrar o seu casamento”. Eles eram assim (risos), tipo o comando da igreja, né? Foi super legal, porque o nosso casamento foi com toda aquela pompa, ao mesmo tempo quem celebrou o casamento foi o monsenhor. Então eu acho que ganhamos e valeu insistir, brigar pelos nossos direitos de fazer uso daquilo que já estava lá, sabe? Então são duas fases do casamento assim que eu acho que foram muito marcantes na minha vida. O dia do casamento que as pessoas passavam, e a própria Catedral da Sé, o casamento sendo celebrado pelo monsenhor, que era Monsenhor Sílvio. Ficou muito forte isso na minha vida. Ali eu aprendi que vale a pena reivindicar. Agora, reivindicar com educação, sem ofender as pessoas, essa nossa indignação eu acho que tem que ser colocada para fora e ser levada para as pessoas que decidem, eu penso que a gente consegue coisas assim, até hoje pelo menos eu mantenho isso como um referencial.
P/1 – Bom, vocês casaram, foram morar lá na Liberdade, como é a casa de vocês?
R – Aí fomos morar num apartamento, ali na Liberdade mesmo, um apartamento que pagávamos aluguel. Conseguimos morar um ano só, aí começamos a pensar em ter o primeiro filho, o filho era planejado até mesmo por conta da situação financeira mesmo, e decidimos mudar. Aí mudei para a Aclimação, bem defronte ao Parque da Aclimação, num sobrado bacana, já podia pagar um aluguel melhor, aquelas coisas todas. Foi quando então nasceu a minha primeira filha, que é a Daniela, a mais velha. E ali começou a família em si. E isso fez com que o fato de trabalhar muito, o fato de casar cedo, fez com que também a gente se distanciasse dos irmãos. Aliás, eu conto também essa passagem aí, que cada um foi tomando seu rumo e a gente perdeu esse referencial de família unida, cada um foi cuidar da sua família, das suas necessidades pontuais. Então fez com que eu ficasse mais preso com a minha família, a minha esposa, a minha filha. Depois de dois anos veio o meu filho, tudo isso fez com que a gente lutasse para sobreviver e fazer a manutenção dessa família. Porque a questão da formação profissional não foi feita nos momentos oportunos, na minha adolescência eu não estudei o tanto que deveria estudar. Depois de muito tempo que eu vim fazer o Normal, que eu vim a pensar se devia continuar estudando, fiz alguns cursos mais profissionalizantes, mas sempre atendendo o meu imediato profissional. Foi depois de algum tempo já que eu vim me formar, estudar Pedagogia para me formar, trabalhar na Educação propriamente dita. Porque eu já atuava na Educação, mas aí tinha a obrigatoriedade de você ter formação, a graduação mesmo.
P/1 – Mas no momento que você saiu do cartório para procurar um serviço onde ganhasse mais, que serviço que você encontrou?
R – Aí eu fui trabalhar de cobrador de uma empresa, trabalhei quase um ano, mais ou menos, também com um banqueiro. Dessa vez eu fui trabalhar com um banqueiro, olha que coisa engraçada, mas ele era um banqueiro que tinha falido na cidade de São Paulo e montou uma empresa grande de empréstimo, tipo uma agiotagem. Ele emprestava dinheiro, as pessoas não pagavam e eu acabava indo cobrar. Eu trabalhei com ele mais ou menos um ano. Depois eu fui trabalhar em uma empresa de publicidade, fui ser gerente administrativo, aí eu fui praticando já aquelas coisas que eu praticamente aprendi no próprio cartório. Então montamos uma assessoria, aí eu trabalhei uns dois, três anos, saí dessa assessoria, montei minha própria assessoria, minha própria empresa, aí eu fiz uma sociedade com o cunhado e trabalhei mais uns tempos prestando assessoria junto a cartórios, fóruns, justiças, essas coisas todas. Apareceu uma cooperativa que é super interessante, é a cooperativa que foi responsável pela colonização japonesa no Brasil. E eu recebi um convite do presidente desta cooperativa para ir trabalhar lá. Nós tínhamos que resolver a questão do sistema cooperativista, sabe? E ali, surgindo esse convite eu topei. Então nós fomos trabalhar nessa cooperativa. A cooperativa no Brasil não é uma coisa que deu muito certo, embora nós tenhamos aí infinitas cooperativas. Mas você vai ver que as grandes cooperativas acabaram fechando suas portas. Então ali, eu já insistia que você tinha que formar um cooperado, e não contratar um cooperado, aceitar um cooperado. E contratar um cooperado seria criar na cabeça das crianças, desde a educação infantil, a ideia cooperativista. E juntando algumas senhoras que eram líderes no sistema de cooperativas no Brasil, uma do Incra, que é quem organizava as cooperativas pelo governo federal, a secretaria de agricultura do próprio estado de São Paulo, nós começamos montar, nas cooperativas, a educação cooperativista. E foi super interessante, que o objetivo era formar uma criança que um dia se tornasse um líder de uma cooperativa. E foi um trabalho que eu fiz por quase dezesseis anos na minha vida, e com isso eu tive que andar o Brasil porque eu tive uma área de ação, essa cooperativa central, ela tinha cooperativas no Brasil inteiro. E foi onde eu tive um contato com a colonização japonesa, porque eu visitava todas as cooperativas de todas as cidades pregando a ideia de que nós tínhamos que criar a educação cooperativista formando a educação propriamente dita. E também surgiu um convite para que nós organizássemos uma cidade para o governo do estado que, com a barragem do rio Paraná, que é onde nós temos a grande usina hoje, até de parceria com o Paraguai, eles fizeram um reassentamento daqueles proprietários à margem desse rio. E nós fomos montar uma cidade lá perto do Pontal, onde vocês ouvem tanto as notícias de invasão de sem terra, aquelas coisas todas. Ali nós fomos montar uma cidade, foi super interessante que era uma cidade com toda a infraestrutura, como foi montada Brasília um dia. E o governo do estado, através da Cesp, através da Secretaria de Agricultura, através do Incra, que encampou essa ideia. Eu trabalhei muito tempo organizando com os técnicos, eu acho que era um trabalho multiprofissional, cada um fazendo uma parte. Eu defendia a organização, a gestão, a educação cooperativista, o engenheiro construía a casa, o agrônomo ensinava a plantar, e nós reassentamos cinco mil famílias. E ali, não sei se eu estou equivocado, mas eu aprendi que o assentamento, ou o reassentamento, não é uma coisa, vamos dizer assim, que surte o seu efeito. Por quê? Essa cidade uma vez montada, todos os proprietários assentados com seus sítios, cada um com sua lavoura, enquanto o governo não tinha emitido o título de posse eles estavam lá, depois de tanta pressão, acho que passado cinco anos, o governo resolveu dar o título, ou seja, a escritura de cada lote. Quando o governo deu a escritura de cada lote dos assentados, em seguida eles venderam todos os lotes e vieram com a ideia de que ser sem-terra vale a pena, você entende? Então eu tenho hoje uma grande dúvida ainda se é só dando, dando a estrutura e dando a escritura resolve, que é esse movimento que a gente vê aí todos os dias pela nossa imprensa. Então, sei lá, o que eu aprendi não foi bem isso, sabe? Achei que o assentado, uma vez de posse, ele acaba negociando aquela terra. Mas como me desliguei, perdi o vínculo. Mas foi uma coisa interessante, acho que o governo do estado de São Paulo foi muito bem intencionado em querer reassentar essas pessoas, foi um trabalho que me consumiu acho que uns quinze, dezesseis anos da minha vida. Eu viajava muito, então, eu tinha uma área que eu estava sediado em Birigui, Araçatuba, então eu trabalhava de Bauru, muitas vezes aqui em São Paulo também, porque a cooperativa tinha sede aqui em São Paulo. Eu trabalhava até Sinop, em Mato Grosso, então eu andava muito, muito, muito, por esse Brasil ainda totalmente em construção. Mas foi um trabalho super prazeroso, porque deu oportunidade que eu pudesse desenvolver aquilo que eu achava que era interessante e que era necessário desenvolver. Então penso que foi de grande utilidade pro sistema, entendeu?
P/1 – Entendi. Na verdade você acabou indo bem mais para frente.
R – Fui mais para longe, né?
P/1 – Eu tinha questionado sobre a saída do cartório para entender como é que foi esse período inicial da família na casa da Liberdade, da primeira filha. E ia perguntar para você como é que foi ser pai pela primeira vez.
R – Bom, ser pai a primeira vez foi assim. O namoro era lindo, a Elisabete uma brilhante esposa, como é até hoje, e todo o processo de gravidez, aquela coisa da gente tentar fazer o melhor pelo nosso neném que tá chegando. Mas eu acho que nós não tínhamos ainda nos conscientizado do que era ter o neném. O dia que nos entregaram a Daniela no braço a gente percebeu que a gente tinha uma criança, e que ali a coisa era um pouco mais séria. Então foi assim, e agora? E agora? Então agora nós temos que criar a Daniela. Foi um aprendizado assim, a gente sempre juntos, acho que isso é uma magia até os dias de hoje, sempre próximo, nós tentamos fazer o nosso melhor para Daniela. A minha mãe ainda estava viva e me ajudou um pouquinho, a mãe dela também sempre presente ajudando um pouquinho, e a gente conseguiu existir, vamos dizer, casados com o neném. E a Daniela cresceu rápido, e a gente então, como pai e mãe, não sei se é um engano, mas a gente tenta fazer o melhor para os nossos filhos, né? E nós tentamos fazer tudo o que nós podíamos e não podíamos pela Daniela. Aí logo em seguida veio o Leonardo que é o irmão, também a mesma coisa. E depois de um grande tempo, aliás é interessante as pessoas perguntarem: “É com a mesma que você tem?”. Nós temos a Fernanda que tem dezenove e vai fazer vinte. A Daniela tem trinta e sete, fazendo trinta e oito. Essa distância muito grande de uma para outra, dá sensação que é um casamento novo (risos). Não é. Exatamente pelo fato da própria Daniela e o próprio Leonardo crescidos, saindo para estudar, sobramos eu e a Elisabete lá na cidade de Araçatuba, a gente resolveu ter a Fernanda. Foi super interessante isso daí. E a gente fez por eles tentando fazer o nosso melhor. Eu não sei se fizemos o melhor para eles, né, mas parafraseando a professora Roseli Fisherman, que foi a minha orientadora no Mestrado, eu escrevi na minha própria dissertação, como no meu próprio livro, a ideia de que eu devo ter sido um péssimo pai porque eu sempre fui um grande educador. Mas pelo fato de eu ter sido um grande educador eu acabei sendo um bom pai, né? Mas eu acho que eles que vão responder um dia se fomos ou se estamos sendo bons pais ou não. A gente, acho que tem aquele defeito de pai e mãe de querer sempre fazer o melhor para eles, a gente acaba sufocando um pouco, achando que a vida é também nossa, né? É difícil pai e mãe entender que a vida não é nossa, a vida é deles. Melhorei bastante eu acho, acho que a Fernanda hoje é um teste, tá aí, ela mora sozinha em São Paulo, estuda, trabalha, e eu penso que a gente tá conseguindo, vamos dizer assim, achar que estamos fazendo o melhor. Não sei te dizer se ainda é o melhor. A Daniela eu penso que sim, o próprio Leonardo, a Daniela já tem duas filhas, são os nossos grudinhos, as netinhas. Então nos devolveu, acho que até para vivenciar aquela infância que nós não tivemos, a gente bagunça muito com elas, então eu penso que tudo isso na vida é muito forte, mas a família toma um rumo diferente, porque a nossa família somos nós, entende? Não é a família como é costume na sociedade, os parentes, os tios, as tias, as avós, não é assim. Então, é engraçado, fica mais restrito ao nosso grupo, entende? Os meus irmãos também, cada um teve sua família. A minha irmã mais velha, Marilene, acabou vindo a falecer já há um tempo, mas cada irmão tem a sua família. E é interessante. Não é uma aproximação. Eu escrevi na história de vida uma passagem interessante, porque o fato de eu não tê-los como irmãos muito próximos eu acabei adotando um irmão, que aliás é um dos mais jovens cientistas brasileiros que o mundo conhece. Mundo porque ele é um grande cientista que trabalha não só no Genoma, como trabalha com a ciência mesmo, e é respeitado em todos os países do mundo, que é o João Bosco Pesquero, sabe? Então, o João Bosco, eu acabei tendo uma afinidade com ele, uma convivência com ele que eu mantenho até o dias de hoje. Embora ele seja muito ocupado hoje pelo próprio trabalho dele, a gente também tem uma vida muito corrida, mas ele foi muito mais próximo naqueles meus momentos de chororô, aquelas coisas. Ele também, nos seus momentos, acho que a gente foi mais confidente do que eu pudesse ter sido com o próprio irmão, vamos dizer assim. Hoje eu venho resgatando, recentemente eu reencontrei os irmãos, agora a gente tá aí encontrando uma vez ou outra todos os irmãos. Acho que a gente vai acabando por resgatar isso, mas ainda a família não é totalmente integrada. São fases da vida, eu penso.
P/1 – Você falou que vocês tiveram a terceira filha em Araçatuba. Foi isso?
R – A Fernanda nasceu em Birigui, uma cidadezinha próxima à Araçatuba. Por quê? Do meu trabalho nós tínhamos que morar lá em Birigui, e a situação financeira melhorou bastante, tal, sabe aquela ideia de você ter a casa que você nunca teve? Aliás um exagero, eu tive uma casa de quinhentos metros, um espaço imenso. Meu filho jogava tênis, então tinha quadra de tênis. Tinha piscina. A Fernanda ia nascer eu fiz um parque para Fernanda com todos os brinquedos que você imagina. Eu tinha, na verdade era um mini sítio, retirado um pouco da cidade. Então ali era um paraíso, onde já se viu nos anos 1990 você construir uma casa de quinhentos metros? Imagina. Eu acho que todo dinheiro que eu ganhei com educação ficou naquela bendita casa (risos). A Fernanda nasceu lá e foi super interessante ela ter nascido lá, porque a Daniela já estava terminando os seus estudos vindo para São Paulo buscar sua graduação, o Leonardo também, e ela estudou uma boa parte lá em Araçatuba, vindo para cá. Em 1998 eu vim ser um diretor de uma escola básica aqui em São Paulo, próximo na zona sul, que era uma escola Objetivo. E a Fernanda, pequenina, veio comigo já no pacote, sempre foi minha aluna e minha parceira de ir e vir para escola. Tomou um outro rumo, com certeza. O fato dela ter nascido lá em Birigui. E uma coisa que tem a ver também, um fato curioso que eu descobri recentemente, o mantenedor da Faculdade das Américas que é onde eu trabalho aqui em São Paulo, ele também é nascido em Birigui. Então, eu fico pensando se não é uma trama cósmica encaixar essas peças, sabe? É muito legal isso! Eu não acredito muito nas coincidências, mas você veja que ele também é de Birigui, e também, tal qual, você veja a minha vida, ele nasceu em Birigui e veio para São Paulo ainda criança, ele não sabe como é Birigui. Aliás, encontrando outro dia ele me perguntando se eu sabia como tava Birigui. E ficou estranho, Fernanda, Birigui, mas foi dentro dessa ideia de morar lá os quinze anos. Porque você tinha que ter um referencial e nós escolhemos lá pela facilidade, pela própria casa construída, pelo espaço que tinha, que era como se fosse um grande clube, uma mini-fazendinha vamos dizer. Era muito bacana porque lá a vida era muito forte, os amigos eram muito fortes, eu era muito atuante numa escola filosófica, então os membros apareciam, a gente conversava, aí se socializava bastante, sabe? Foi um momento bem agitado socialmente, ali você tinha o fato de ser interior, você tinha amizade com o juiz, com delegado, com o padre, com todo mundo, com os médicos, todas essas pessoas eram amigos comuns, vamos dizer, que frequentavam as casas. Acho que foi uma fase da vida interessante.
TROCA DE FITA
P/1 – Bom Sidney, você falou que viajou por vários estados do Brasil a trabalho. Queria saber um pouco como foram essas viagens, alguma coisa marcante que você viu, que você vivenciou?
R – Olha, conheci povos de diversos estados, é muito interessante como esse Brasil é Brasis mesmo, é muito diferente um estado do outro. O fato de eu ter trabalhado nessa cooperativa, que acabei até terminando como um dos diretores dela, foi muito interessante pela interface com a colonização japonesa. Pena que a própria colonização enalteceu tanto a cultura japonesa, sabe, mas nós temos aqui na cidade de Mirandópolis comunidades que ainda vivem como se fosse o Japão, sabe? E isso é muito interessante que a própria sociedade viesse a acontecer. E uma coisa que me chamava a atenção, que quando eu andando nas cooperativas, nos sítios, essa colonização, eu achava peças que estavam jogadas e eu pegava e trazia para cooperativa. E acabamos criando um acervo, você não vai acreditar, com mais de duas mil peças, mais ou menos, que eu punha no carro ou na caminhonete e trazia. Até um dia a cooperativa transferiu para cidade de São Paulo que é onde nós temos hoje na Galvão Bueno um Museu da Colonização Japonesa que parte dessas peças se encontram lá, super interessante isso. Que essa cooperativa que nós trabalhamos foi a responsável pelos primeiros imigrantes, mas ao mesmo tempo por todo assentamento e colonização dos japoneses no estado de São Paulo, e no Brasil. Foi muito interessante, e dela surgiram outras grandes cooperativas. Um exemplo, a cidade de São Paulo tinha uma cooperativa imensa que chamava Cooperativa de Cotia, oriunda da cidade de Cotia mesmo. Mas é assim, coisas monstruosas, coisas empresariais muito grandes, né? E o fato de nós estarmos em uma cooperativa que era central, como uma matriz, nós tínhamos o comando de gestão de todas essas outras cooperativas. Então era muito interessante, aprendemos muito, muito, muito, que veio acabar assim, hoje é parte integrante da minha estrutura de gestor, vamos dizer assim. Agora, coisas interessantes, os povos, você chegar é estranho, a comunidade não te aceita, as suas ideias não são bem-vindas. Praticamente, uma coisa que é interessante, antes de eu ir a uma cidade, conversar com um povo, tentar levar uma ideia, ou até mesmo mostrar que aquilo era necessário, eu precisava estudar um pouco sobre o costume deles, qual era a necessidade deles, aí eu já vinha falando aquilo que eles queriam ouvir, então facilitava o meu caminho, a minha fala, o meu trabalho. Mas isso exigia um planejamento, que é o que eu ensino hoje nas minhas aulas, você tem que planejar as suas ações até que você consiga levá-la para o concreto. Porque se você chegar com nada, nossa… Eu cheguei numa cidade uma vez, que era a cidade de Cafelândia, os caras queriam me linchar porque achava que eu era o culpado do mundo das coisas não darem certo. Mas eu só era um representante, não era quem tinha ocasionado todas as questões que a cidade estava encontrando. A mesma coisa aconteceu na cidade de Marília. A cidade de Marília também eram muitos colonos, era muito forte a colonização, e você sabe o mundo vai mudando, as coisas vão mudando, a cooperativa também foi mudando as suas produções, até que ela ficou praticamente restrita à produção de ovos, esses ovos que vocês consomem no mercado de feira. Que aí tem uma história também muito interessante das galinhas matrizes que são todas importadas, que a mãe da galinha que vai botar o ovo. É interessante isso, você tem que ter esse ovo que você cria a galinha poedeira que é diferente do frango que você come, é uma outra linhagem, que é o frango de corte. Então, eu aprendi isso daí, você saber o que é de comer e o que é de botar ovo. E pro nosso segmento, nós não trabalhávamos com esses frangos congelados e sim com os ovos. Então, a galinha era uma matriz, ela não era uma galinha que botava ovos, ela custava muitos dólares. Nós tínhamos galinhas que custavam cinco, dez, quinze mil dólares. E tem uma passagem que é muito interessante que aconteceu em Marília é que nós tínhamos uma granja matrizeira, que só tem as galinhas caras, e apareceram uns ciganos que ficaram numa interface da cerca da granja. E aí, acho que deu fome, sei lá, eles foram lá e roubaram umas galinhas para comer. Mas eles não comeram uma galinha, eles comeram uma matriz (risos) porque ela bota um ovo e esse ovo vai gerar uma linhagem, você tá entendendo? E eu surtei. Quando eu fui chamado para ir lá ver com o cigano o que tava acontecendo, eu falei: “Meu, vocês falam que vocês querem galinha eu compro sacos e sacos de frango, mas vocês não podem comer essa galinha porque é a brincadeira de você comer a galinha que bota o ovo de ouro, você tá entendendo?”. Então para ele deu fome, com tanta criança passando fome, a gente que um dia passou fome sabe o que é aquilo, não era só comer uma galinha, eles estavam comendo uma galinha matrizeira, é uma coisa quase hilária (risos). Eles consumiram várias matrizes, então tinha que inibir isso, porque cada matriz era muito cara. Elas tinham uma linhagem importada dos Estados Unidos e é caríssima a importação até os dias de hoje. Uma outra coisa que aprendi de interessante nessas cooperativas, que quando nasce o pintinho você tem que separar o macho da fêmea. Na linhagem de postura é super interessante que o pintinho macho não tem valor comercial, e ele também não serve muito para a engorda, porque ele come muito e leva muito tempo para vir até o momento de abate, o que importa é a galinha fêmea. E aí o que vai acontecer? Existe uma minoria de profissionais no Brasil que chamam sexadores, que eles trabalham com uma agilidade manual para separar o macho da fêmea sob um índice de erro mínimo, é quase zero, sendo que as máquinas que o mundo já produziu leva um tempo muito maior e ainda tem um índice de erro grande que mistura. Porque na linha de produção, se você mantém um desses pintinhos machos junto com a fêmea ele come, come, come, mas ele nunca vai botar, entendeu? Então seria um desperdício financeiro, vamos dizer. É interessante isso, e isso nós também aprendemos nesse segmento. Agora, Mato Grosso do Sul, você conhecer o povo, conhecer inclusive tribos, foi muito interessante você conviver com essas culturas, com os costumes. O Mato Grosso, que parece que é tudo Mato Grosso, não é, já é bem diferente também. Agora, uma coisa que me chamou a atenção, que o fato de eu morar em Araçatuba, 580 quilômetros da cidade de São Paulo, eu vinha trabalhar em São Paulo mas eu sentia uma necessidade muito grande de voltar para minha casa, eu sempre tive esse negócio de querer dormir na minha cama. Então eu vinha a São Paulo, trabalhava e voltava para minha casa. Eles ficavam bravos comigo porque acabava me expondo a uma agressividade de estrada, mas eu andava mil, mil e tantos quilômetros, só para poder voltar para minha cama. E a mesma coisa eu estava fazendo quando viajava, às vezes um, dois, três dias, porque você anda dois, três mil quilômetros, se você tem estrada é super rápido, mas você andar em estrada de terra, para você andar cem quilômetros você leva cinco, seis horas. E eu era meio, acho que um tanto maluco, sei lá, porque eu terminava o meu trabalho e queria voltar para casa, eu vinha voltando. Era uma época que eu trabalhava muito com o fusca, e nós tivemos um momento de racionamento de petróleo forte, então eu andava com um Fusca tanque eu acho. E ali aprendi também como que é corrupção, porque eu trabalhava com uns galões de gasolina dentro do carro, às vezes o policial rodoviário me parava e queria um galão de gasolina para ele também (risos). Então eu tinha o galão que eu tinha necessidade para fazer meus percursos, mais um galão que ele ia pegar (risos). Porque não podia carregar tanta gasolina dentro do carro, né? Então eu já sabia, já pegava o galão. Eu ficava aborrecido, mas era parte da necessidade de viajar. Poderia ficar em hotel, sei lá, ficar dois, três dias, mas não, eu tinha uma necessidade, como tenho até hoje, de voltar para minha casa. Um exemplo hoje, que é interessante, e eu moro na Praia Grande, mas eu vou e volto. Por que eu vou e volto? Não poderia ficar aqui, arrumar um lugar ou dormir num hotel, sei lá. Acho que é forte essa questão de você voltar pro seu cantinho. Tanto eu como minha esposa, nós sentimos uma necessidade de estar um momento na nossa casa. E como você trabalha de segunda a sábado os momentos são muito raros de você estar em casa. Porque à noite só dormir não satisfaz tanto. Então é isso. Agora, foi muito interessante porque aprendi muito com os povos, aprendi muito com o diferente. Aprendi que era necessário ter estratégias para chegar. Aprendi também valores, tive que aprender um pouco sobre a política de assentamento. E tudo isso, sei lá, eu tenho uma opinião muito diversa do que se propaga aí, entende? Eu me limito, porque como diz o outro, ‘se você não tá ajudando também não crítica’. Mas eu discordo de muitas coisas hoje, eu sou bem político nas minhas aulas, mas não político partidário, eu me recuso a falar de política. Mas eu tenho que conscientizar as pessoas que têm que tomar um rumo. O rumo cada um toma a partir do momento que tem a necessidade de tomar, como eu. Acho que a vida foi me direcionando, empurrando, me levando, e eu fui tomando atitudes. Não sei se certas ou erradas, mas para mim foi interessante. Eu não vejo assim, como alguém pergunta ‘o que você errou?’. Eu não consigo conceber que houve erros, você tá entendendo? E sim, coisas que eram necessárias fazer para você chegar e atingir o objetivo. O que mais eu tenho para te contar?
P/1 – Você falou de Cafelândia, que você quase foi linchado. Conta essa história para gente.
R – Cafelândia foi o seguinte: os cooperados estavam totalmente insatisfeitos com a política da cooperativa, e a cooperativa também passava por uma dificuldade financeira no sentido de enxugar os seus subsídios. Porque o cooperado tinha aquela situação de só usufruir da cooperativa na hora dele dar o troco, que é obrigação de um cooperado, ele usava o mercado até entregar seus produtos num preço melhor. Já bem a ideia do capitalismo selvagem (risos). A cooperativa queria dar todo o apoio, mas na hora de dar o retorno para a cooperativa ele colocava no mercado. E a cooperativa foi cortando determinados subsídios, e aí, acho que quinhentos cooperados reunidos, tinha que ir um diretor resolver essa situação porque eles estavam assim, não é uma greve, mas eles estavam boicotando realmente todo o trabalho da cooperativa na cidade de Cafelândia. Bom, quem vai lá? Vai você. E eu fui (risos). Tive a coragem de ir. Desci na estação rodoviária, que sabe essas cidades do interior na época, rodoviária é quase uma parada de ônibus (risos). Desde que eu desci já totalmente hostilizado por um monte de cooperados. Mas uma coisa que foi bacana, que deixaram a gente trabalhar e a gente conseguiu acalmar aquela situação, desmembrar e criar novas frentes. Tudo isso, eu acho que é parte da escola, você tá aprendendo também, você tá aprendendo a resolver grandes conflitos. No Pontal mesmo nós tínhamos cinco mil famílias, era bastante gente. Tinha família que tinha quinze filhos. Então, era muita gente que dependia de você. E é interessante que de Bauru, todas as cidades, nós trabalhávamos como se fossem linhas, Sorocabana, Araraquarense, Paulista, então nessas linhas que acho que era pela antiga ferrovia, todas as cidades eu visitava, que era onde a cooperativa mantinha suas filiais, ou as cooperativas a ela filiadas. Então eu conheci muito, muito, muito. Não só a colonização japonesa, porque muitas cooperativas também já eram de brasileiros. E acho que isso também enriqueceu muito essas culturas diferenciadas. Fez com que hoje acho que também é um dos suportes em sala de aula, porque em sala de aula com 40 alunos são 40 diferentes. Então esse poder de você poder negociar, o poder de você poder trabalhar com o diferente, acho que é fruto desse aprendizado de tantas negociações que fizemos nesse período que eu estive a frente de cooperativas. Foi muito legal eu acho. E nós montamos cooperativas educacionais, uma pena que não deu certo. Porque o princípio seria maravilhoso, uma cooperativa formada por pais, mães interessados numa boa educação que se organizavam numa cooperativa e ofereciam educação básica. Mas a questão mercantil de lucrar é tão forte nas pessoas que elas desvirtuam essa ideia de solidariedade, todo mundo quer visar lucro, né? E eu montei acho que umas 30 cooperativas educacionais, foi muito interessante. E nenhuma existe hoje. É coisa de cultura das pessoas mesmo que têm a necessidade do dinheiro antes da formação, da cultura. E a cooperativa é um tipo de empresa atípica, que não pode entrar em falência, não pode ser vendida, ela é uma sociedade. Como um clube, você se torna sócio, se você quer você sai, tem sua cota parte, você é responsável pela sua cota parte. E é uma grande frustração que nós trabalhamos, eu e outros colegas, inclusive eu trabalhava com cinco mulheres maravilhosas do sistema, que eram cinco Marias, Maria Henriqueta, Maria Magalhães, Maria Cecília, eram todas Marias (risos). Então era eu e as Marias. Nós trabalhamos muito para tentar implantar o sistema e implantar a ideia mesmo do cooperativismo, e fomos vencidos, eu acho, sabe? Porque a cooperativa hoje ainda é essa ideia. O cooperado usufrui, na hora de dar o retorno à cooperativa, que seria a ele mesmo, porque ele é um dos donos, um dos sócios, ele acaba usando bons negócios fora. Então não sei até onde valeu a pena. Eu só vejo que outros países como a França, a Holanda, a própria Alemanha, o próprio Estados Unidos com algum princípio da ideia de cooperativa deu muito certo. Pra nós eu não sei, nós temos boas cooperativas hoje, principalmente no sul que predomina uma cultura mais europeia, né? Mas o resto eu acho que é sempre assim, alguém sempre querendo levar vantagem. E aí eu acho que não é útil ao segmento, né? E hoje eu perdi o contato porque o ingresso, desde 1998, na educação básica e logo em seguida no ensino superior, eu mudei totalmente o meu foco.
P/1 – Como é que foi essa aproximação com a pedagogia, através do trabalho na cooperativa até essa formação?
R – Veja lá, eu já trabalhava nas cooperativas, montava escola, organizava escola e punha funcionando. Entregava as chaves, vamos dizer assim. Mas com o advento da lei de base da educação em 1996, uns dois, três anos anos já se dizia da necessidade de quem atuasse na educação tem que ter o ensino superior e formado em Pedagogia. Então eu acabei fazendo a Pedagogia exatamente para convalidar todos os meus atos, para assumir direção de escolas, essas coisas. Aí, com o nascimento da própria Fernanda, eu percebia que estava parando no mundo, sabe quando você parece que tá ficando a desejar para você mesmo? Eu queria continuar estudando e lá não me oferecia essa oportunidade. O que eu fiz? Eu comecei a mandar currículos para assumir a educação básica que já era o meu forte, aquilo que eu estava fazendo nos últimos quinze anos. Recebi um convite para trabalhar nessa escola, para dirigir essa escola, e era uma oportunidade de vir e também continuar estudando. Então continuei como diretor administrativo, depois pedagógico, e ao mesmo tempo no Mackenzie eu acabei desenvolvendo o mestrado, então eu acabei acho que dando mais um passo em prol da minha própria formação, mas em prol de novos rumos na minha vida. Em 2003, mais ou menos, eu fui trabalhar no ensino superior a convite que eu atuava no sistema Objetivo e a própria Universidade Paulista, a Unip, achou que era interessante a gente compartilhar aquela experiência toda e eu comecei trabalhando na Unip. E lá, já dentro do curso de Pedagogia na formação de professores, e aí não parou mais. Hoje já trabalhei em todas as grandes universidades, trabalho com uma paixão tremenda porque amo o que eu faço, amo os meus alunos, amo as minhas aulas. E hoje é interessante, hoje eu trabalho aqui em São Paulo, na Faculdade das Américas, eu ministro aula e coordeno o curso de Pedagogia. E tem um curso que estamos acabando de implantar que é pós-graduação em Psicopedagogia, lato sensu com clínica institucional, então esse é o meu trabalho aqui na FAM, muito prazeroso o trabalho que eu desenvolvo. Eu coordeno vários projetos sociais dentro da própria faculdade, que é uma interface com o próprio município e o próprio estado, exige uma dedicação extra-faculdade muito grande, daí o fato de eu dormir muito pouco e estar sempre ligado nos meus alunos. Na cidade de Santos eu trabalho na primeira Universidade de Medicina, lá eu trabalho na Pedagogia também, na formação de professores, trabalho na Radiologia, na Medicina. Então eu já fui migrando, as disciplinas, os componentes curriculares. Então você trabalha, como é horista, cada aula você ensina um assunto afim daquela formação. E um trabalho que eu também desenvolvo, é um pouco cansativo, porque você fica a semana inteira nesse vai e vem, chego em casa meia-noite, quase uma hora e acordo quatro e meia, cinco e quinze eu já estou indo para algum lugar, então você dorme muito pouco, é tudo muito corrido. Aos sábados eu trabalho num programa de formação de professores de alunos que na verdade são professores que já atuam no Centro Paula Souza, das escolas profissionalizantes, são professores iniciantes, professores com dez, quinze, vinte anos de profissão, e o Centro Paula Souza oferece para eles mais uma capacitação. E eu capacito-os em diversos componentes, com currículo, com a gestão, a gente vai buscar essas habilitações. Um exemplo, você tem um advogado, você tem um engenheiro, você tem um médico, mas eles querem ministrar aula, eles precisam passar pela licenciatura. E aí, eu faço essa capacitação, entendeu? Então, é assim, sábado que seria um dia própria de descanso a gente trabalha acho que mais, porque das oito até as seis são turmas diferenciadas e é muito prazeroso. Acho que o interessante é isso, você se relacionar com as pessoas, com os colegas, são meus colegas, professores já. Eu acho que é uma oportunidade que me é propiciada aonde eu posso compartilhar aquelas coisas que eu já fiz de legal e o que eu posso passar como referencial. Não que você esteja ensinando, mas que você deixa como objeto de reflexão e pesquisa para que eles possam melhorar sua formação. Então eu tenho feito isso ao longo de todos esses anos e assim, um pouco apaixonado até por isso. Acho que a gente tem sido de grande utilidade a esses alunos. E uma preocupação que eu tenho é com o próprio curso de Pedagogia da Faculdade das Américas, que é um curso totalmente diferente, não conheço um igual na cidade de São Paulo, mesmo no Brasil, que eu pesquiso bastante sobre. Ele é um curso que ele forma um profissional para atuar na educação básica, conforme a legislação determina. Mas também para que o pedagogo atue em espaço que não é escola, um espaço que é educacional, mas que não seja escola. Um exemplo, aqui no Museu da Pessoa, nós poderíamos ter um pedagogo aqui trabalhando com vocês, porque ele aprendeu a planejar estratégias, projetos, uma série de coisas, que ele ganha também um dinheiro às vezes muito mais significativo que até a própria educação básica. Então nosso curso tem essas duas vertentes que eu acho que são muito interessante, entendeu? Por quê? Porque o princípio básico da educação brasileira é que a educação ocorre em todos os espaços, ocorre na família, ocorre nos eventos culturais, nas associações, ocorre aqui no Museu da Pessoa. Então, se existe a educação, tem que ter por trás a educação formal, a organização dessa educação formal. E aí o pedagogo é um profissional indicado para desenvolver esses projetos, sabe? Uma coisa que é legal esse Brasil Social hoje, onde todos têm oportunidade, é legal você organizar as ONGs, você organizar as associações de bairros, os núcleos. E nós tivemos oportunidade de fazer muitos projetos interessantes. Hoje eu tenho uns cinco projetos que estamos aplicando aí, até mesmo para mostrar que é viável, que são projetos de alfabetização com produtos recicláveis, e eu tenho um que é muito interessante que é com tampinhas de garrafas PET, tampinhas de lata, então um dia se você quiser eu trago as caixas aqui, eu tenho muitas tampinhas. Mas com aquelas tampinhas eu consigo desenvolver duzentos projetos educacionais, que seria o lixo que vira um reciclável, aí você pode inclusive focar o meio ambiente sustentável, sabe? Acho que é super interessante criar essas coisas. Inicialmente parece coisa de maluco, mas a hora em que você põe em prática mostra a viabilidade e a gente quer mostrar que a educação pode ser desenvolvida, a alfabetização pode ser desenvolvida mesmo quando você não tem recursos materiais. Veja um exemplo, nós estamos hoje no mês de julho de 2012, em plena era virtual, era tecnológica. Nós temos escola que não tem nenhum equipamento ainda, não tem nada, nada funciona, não tem nem… Quando tem lousa já é muito. Mas eu acredito ainda em usar a criatividade para criar possibilidades de educar. Então a gente fica pesquisando essas coisas também e esses projetos levando à prática para ver se funciona. Se funciona você vai vendo quem deseja dar continuidade. E uma coisa que eu acho que eu aprendi com o Paulo Freire, que foi muito legal. Às vezes os meus amigos, colegas de trabalho, questionam: “Pô, mas você não vai patentear, não vai vender as ideias?”. Não é coisa de vender, eu acho que eu tenho um dever cósmico de pagar uma conta que um dia alguém fez por nós, sabe? Um exemplo, o fato do Riga um dia ter me tirado da rua, eu e a minha esposa já tiramos várias crianças da rua, já pagamos escolas particulares, os melhores colégios onde nós andamos aí por esse interior, pagando para essas crianças que não tinham as mesmas chances que eu tive. Eu acho que isso é uma forma de você devolver aquilo que um dia alguém fez por você. É super bacana isso, eu acho. A gente pelo menos não criou condições financeiras ainda de você falar: “Não, eu tenho, eu tenho”. A gente não se preocupou com a questão de ter, acho que a gente ser útil é o nosso maior capital, você poder ajudar as pessoas. Acho que isso é a nossa bandeira maior aí. E é bacana porque assim nós vamos levando a vida, sempre com um sorriso, que eu acho que a educação tem que ser feita com sorriso mesmo, e a escola deveria ser um lugar alegre. Eu fico muito preocupado, eu não sei se vocês convivem com uma mulher de três aninhos, dois aninhos e meio, mas ela põe a mãozinha na cintura, vira uma xícara assim e ela te questiona que você não tem respostas, até a inspiração na Heloísa que é a menininha que eu abro o meu livro contando sobre ela, ela questionava tudo. Então, não importa se você vai chamar uma geração X, Y, índigo, blue, cristal, o que importa é que uma mulher como você, que é uma mulher jovem, você é muito diferente do que é a sua mãe, do que é a sua avó, entende? E você tem muito mais chance de manifestar a beleza interior para dentro de você. É um mundo que eu acho que é super bacana, que ele oportuniza isso pras pessoas que desejam, sabe? É uma pena que a gente vê aí ainda a sociedade envolvida nas coisas fúteis. Eu trabalho em plena Rua Augusta, onde a sexualidade é uma cultura nova, nós estamos aprendendo ainda sobre, e as drogas estão em todas as esquinas, então, são opções. Eu brinco muito que eu falo que escolha você tem que fazer, escolher uma coisa você tem que renunciar outra, quem escolheu esse caminho... Agora, eu ainda fico perplexo com os adolescentes de quarenta, quarenta e cinco, cinquenta anos. Acho que eu morro de inveja quando eu subo a Augusta às seis da manhã (risos), que eu vejo aqueles jovens ainda de quarenta, cinquenta, bebendo à vontade. Quem é que paga a conta? Minha pergunta é essa, quem que paga a conta? Somos nós pais os culpados porque nós pagamos as contas eu acho. Então, sei lá, eu penso que a humanidade melhorou, as pessoas estão melhores, as pessoas estão mais bonitas, elas estão mais vaidosas, elas sabem o que elas têm como foco. E uma coisa que é interessante que eu venho pesquisando seria esse confronto de uma mulher jovem como você com quem já tem uma cultura que tá distante da sua, então há um choque de cultura, e esse choque gera muitas possibilidades. Eu tenho ficado atento a isso, porque eu já mapeio isso há uns dez anos na minha vida. E uma coisa que é interessante também que eu acho que é o que motivou inclusive a vir aqui um dia, é que desde que eu entrei para trabalhar no ensino superior eu faço duas coisas, sei lá, já fui até taxado de um tanto insano, mas eu insisto. Primeiro, que eu peço pro aluno, independente do componente curricular que eu vá ministrar, se é de Gestão, se é de Ética, ou o que quer que seja, se é a própria Medicina, eu peço que o aluno me escreva uma breve história de vida, um breve relato, ele vai me contar quem é ele. Por que? Eu até explico. A Educação diz que você tem que partir da realidade do aluno, como é que eu vou partir da sua realidade se eu não escuto você, se eu não sei quem é você? Eu venho querendo colocar conteúdo dentro de você, e você não quer aprender meu conteúdo porque ele é chato. Então, eu preciso entender um pouquinho quem é você para que eu possa achar um ponto, aquela estratégia que eu falei que aprendia com os cooperados, como é que eu vou falar a sua linguagem? E tem até uma disciplina que criamos em Santos que eu falo as múltiplas linguagens da criança. Eu acho que a criança fala muitas línguas que nós não compreendemos, nós não temos formação para entender. Isso, com a história de vida de cada aluno, não importa qual é o número de classe, eu crio um sujeito coletivo, ou seja, eu crio uma história de classe. Aí, a minha classe passa a ser aquela que é composta com as histórias. E aí, eu falo para uma classe e não para um aluno específico. E uma coisa super legal é que dá a sensação que eu to falando de você, ela tem a sensação que eu estou falando dela, mas na verdade eu não to falando nem de você, nem dela, eu to falando do perfil que eu criei da classe. Então isso tem sido muito prazeroso, eu escrevi, já publiquei várias coisas sobre a necessidade da história de vida, hoje estamos publicando mais um trabalho científico sobre isso que é a história de vida na narrativa biográfica. Eu já palestrei por esse Brasil afora sobre a influência da história de vida no setor profissional. A mulher Olívia, qual é a influência dela, da história de vida dela, dentro do Museu da Pessoa, que isso é fundamental tentar entender. Eu trago isso, que aqui no Museu, ele presta um relevante serviço à comunidade graças às pessoas que estão dentro dele. Então, temos uma ideia, uma estrutura, nós temos uma organização, mas a diferença são essas pessoas, e essas pessoas têm uma história de vida que às vezes não foi contada. E precisa ser contada, né? Eu acho que isso é interessante. Outra coisa, assistindo outro dia o filme “Um sorriso de Monalisa”, que formava normalistas no ano de 1950, que era para casar bem com cara rico. Como disse o Paulo Maluf um dia: “Você não ganha pouco, professora. Você casou com o marido pobre”. Então, nas aulas, não importa qual seja, ministrando a aula eu deixava um prato, olha só, parece um pouco insano, uma receita de dez, quinze reais onde comem quatro pessoas. Uma receita diferente. E isso foi interessante que nós fomos pesquisando receitas, fazendo receitas diferentes, que um dos hobbies que a gente tem é a culinária, fazer coisas diferentes. Eu e a Elisabete nós vivemos inventando pratos diferentes, então, eu compartilho isso com os alunos, a ponto dos alunos, quando você não passa a receita eles cobram: “E a receita?” “Eu quero uma receita tal, eu vou cozinhar pro meu namorado, faz uma torta disso e você traz a receita”. Então eu criei um personagem, quem sabe uma hora a gente consiga transformar em livro também, eu acho que eu tenho umas duas mil receitas diferentes, eu sempre passo uma delas lá. É a ideia do capital, com o mínimo você faz o máximo. Então é mais ou menos isso. Tem sido muito prazeroso isso tudo, e isso acaba tomando um tempo da vida da gente.
P/1 – Bom Sidney, eu tenho algumas perguntas ainda. Queria entender como é que foi esse processo de escrever esse livro, dos questionamentos que você trouxe para gente.
R – O livro foi assim. Ele é um pouco, às vezes não é tão interpretado bacana porque as pessoas querem ler um livro. Ele não é um livro de ler, ele é um livro de reflexão. Por isso que eu coloquei que as perguntas são simples, mas a resposta é muito difícil. Porque é você tentar se encontrar, você responder para você, não é para ninguém. E ali eu trabalho desde a energia pélvica, sexualidade, religiosidade, como que você namora, como que você não namora, com quem você quer ficar, com quem você quer casar, como é que vai descasar. Porque na vida, a própria família te orienta a casar, mas alguma família te orientou a descasar? Não, mas o descasar é parte integrante das pessoas. E o livro surgiu a ideia dessa garotinha da educação infantil. Eu era muito criticado pelos mantenedores na época que eu me reunia semanalmente com os alunos da educação infantil, crianças de dois, três anos. Eles falavam: “Você tá perdendo tempo”. Eu não tava perdendo tempo porque eles não sabiam escrever, mas eu mandava eles fazerem a ata da reunião e eles desenhavam. Eu tenho isso tudo. E eu tenho uma caixa cheia de bilhete de amor de alunas de três aninhos, quatro aninhos, quando aprendiam a escrever. E brincadeiras. Eu queria construir um aluno crítico, e eles reivindicavam através dessas reuniões. Eles não sabiam escrever mas eles desenhavam o tipo de brinquedo que queriam. E eu colocava em prática, atendia a reivindicação, por quê? A escola era um lugar de criança feliz, um lugar de trabalho, um lugar de produção, a gente também trabalha o lado desejoso que era de brincar. Era um brincar mas também cuidar e educar. E tinha uma garotinha, chamava Heloísa, ela tinha cinco aninhos. E ela cuidava, inclusive, do irmãozinho de dois, ela sempre chegava com o irmãozinho de dois. Os nossos ônibus passavam pegando as crianças e chegava a Heloísa com o irmãozinho. E ela era uma mulher questionadora, tudo ela queria saber por que. E de tanto perguntar por que eu fui juntando perguntas. Mas por que a Heloísa pergunta tanto? E fui questionando. Aí eu fui fazendo uma coletânea de perguntas e foi crescendo. Onde eu achava um questionamento eu fui registrando. E eu fiz acho que ao longo de uns dez anos, mais ou menos, até que surgiu a necessidade de transformar no livro e compartilhar a ideia com as pessoas. Porque o livro, a proposta é que você se conheça um pouquinho mais sobre você, os seus limites, a sua cultura que você se conheça um pouco até aonde você aceita mudança, até onde você não aceita, né? E aí eu procurei algumas editoras e não fui tão feliz porque elas informavam que não era um material de interesse para comercialização, não é um livro que venderia. Mas talvez o fato de eu não ter um nome construído como autor de livros porque eu tenho uma ideia que é um livro de bolso de um americano que ele pôs só duzentas perguntas, o livro dele vendeu cem milhões de cópias nos Estados Unidos. E o meu tem mais de cinco mil perguntas (risos), então alguma coisa não bateu. Então, aí me fez acreditar que valeria a pena editar o livro. Como eu não consegui editora eu resolvi editar pessoal, fazer a edição própria. Aí eu fui procurar saber como é que você registra o livro, como você registraria o seu direito autoral, essas coisas assim. Aprendendo, me cadastrei como autor, aquelas coisas todas, paguei todas as minhas taxinhas, tal, e solicitei autorização para impressão da primeira edição. E na época eu tava com um expediente bem maior com a cidade de Santos e eu lancei na cidade de Santos o livro, que é o “Simples perguntinhas, difíceis respostas para ferver os seus neurônios”. E qual é a ideia dele? Não é um livro de ler. Você abre e procura refletir sobre cada uma daquelas perguntas. Eu penso que ele funciona como se fosse um GPS sintonizando quem é você, ele vai canalizar o seu pensamento, ele vai te propiciar um espelho dizendo: “Olha, eu sou assim, isso eu topo, isso eu não topo, isso aqui eu não vou fazer nunca, não. Isso eu vou fazer”. Acho que te dá essa oportunidade. Eu abro contando a história da Heloísa, que inclusive por conta da necessidade nós fizemos uma pecinha de teatro que eu até conto lá também como foi essa pecinha, coisas de educação infantil, entro com mais de cinco mil perguntas. Aí, cansou um pouco as perguntas, eu faço uma brincadeira, que eu acho que é esse meu jeito alegre, eu falo: “Bom, já cansei de te fazer perguntas, vou te dar algumas respostas”. E eu dou algumas respostas, acho que tem quase mil, que são coisas assim, tão óbvias que você fala: “Meu, é insano isso, mas não é”. Um exemplo, para você compreender o que eu quero dizer. “Você escova seus dentes?” “Não, eu não escovo meus dentes”. Então, na época que eu tava escrevendo isso, o carro do ano, o carro que todo mundo queria ter, não sei se você vai lembrar da Jeep Cherokee, era uma perua maravilhosa que andava pelas ruas aí. E a Jeep Cherokee todo mundo queria ter. Hoje não, hoje nós temos as peruas, as mais mais aí na rua. Mas então eu dizia assim: “Se você não escovasse o dente, quem ia comprar uma perua Jeep Cherokee era a sua dentista”, entendeu? Porque ela quer ficar com o lucro. E vou contando essas coisas tão óbvias, mas que a gente negligencia.
TROCA DE FITA
R – Então, parece até que é um pouco confuso, mas você perdeu o joelho você percebe que você não consegue se locomover mais, é muito difícil. E o pai e mãe, às vezes a gente tem, tem em vida e não aproveita, e quando perde fica então a comparação que eu fiz com o joelho, aí você sente na pele o que é perder um pai ou uma mãe. Então, coisas assim que a gente retratou no livro. Abro com uma mensagem legal, e apaixonado pelas mulheres eu faço também com a proposta de quem é você, que a Cora Coralina tem um poema maravilhoso sobre quem é ela, achei que era super bacana você colocar como fechamento da mensagem. O livro, em síntese é isso daí, propiciar pras pessoas um momento oportuno de buscar se conhecer um pouquinho mais, eu acho. Acho que é uma colaboração deixada. Tem outros aí, mas... E também não tem a ver com o meu profissional, vamos dizer. Às vezes a pessoa fica até indignada: “Nossa, você escreveu aquilo lá?” “É, então, escrevi”. Mas é o desejo de compartilhar uma ideia, acho que isso é o que valeu, né?
P/1 – Bom Sidney, você falou bastante sobre essa paixão pelo trabalho agora nessa última fase da Pedagogia, de escrever o livro. Eu queria saber o que você faz nas suas horas livres? O que você tem de hobby?
R – Eu tenho algumas paixões. Eu tenho acho que um, dois, três, quatro hobbies. O primeiro dele é fotografia. Até a Fernanda tá entrando no ramo, eu acho que a foto é muito mágica, que é um tema também da minha dissertação de mestrado, que acho que a foto fala com você. E eu comecei trazendo a foto como orientação vocacional, depois eu trouxe a foto como um processo de alfabetização, e hoje eu trago a foto como lazer. Já fiz algumas exposições, muito bacana. Eu gosto de fotografar centros históricos, então eu tenho mais de seiscentas fotos do centro histórico da cidade de Santos, que é uma magia muito grande ali em Santos por conta até da oportunidade de trazer mesmo o povo brasileiro. Eu tenho uma hoje que é muito engraçada, as mulheres não me compreendem, mas eu colecionando mãos e unhas pintadas. Eu já tenho quase quatrocentos, eu quero chegar em quinhentos para então fazer uma exposição de unhas pintadas. Eu aprendi com a minha filha Fernanda, ela pinta a unha em cinco minutos e eu achei aquilo insano. Ela põe um copo com água, joga um monte de esmalte, enfia o dedo, tira, a unha tá toda transada, toda linda. E como que é isso? E foi a partir de algumas unhas tão lindas que eu comecei a juntar e veio a ideia de ter pelo menos um número para formar um acervo e fazer uma exposição. Acho que a próxima exposição que eu vou fazer é sobre unhas femininas porque eu acho que é
muito legal a mulher transar sua unha, pintar, deixar bonitinha. E uma outra coisa que eu sou apaixonado há muitos anos, tenho todos os livros e coleciono, tenho mais de quinze mil tirinhas que eu acho que é um dos grandes mestres que eu tenho é o Calvin. O Calvin e o Haroldo. Eu tenho livros do Bill Watterson, todos eles, e as tirinhas do Calvin, sempre que eu acho interessante eu coleciono. Eu tenho caixinhas e caixinhas cheias de tirinha, dessas que saem em jornais e revistas. Porque o Calvin, hoje o Calvin teria uns 50 e tantos anos, mas na tirinha ele é um garotinho de cinco, seis aninhos, que a escola é o terror da vida dele, e a babá também. E em todas as artes que ele desenvolve nas tirinhas, eu acho que é real na vida das crianças. Ele é um grande mestre no sentido de mostrar que a coisa não funciona. Então, como hobby gosto de música New Age, as mais melancólicas, as irlandesas tipo Enya, sabe? Eu acho que pela escola filosófica ela é bem relaxante, ela faz com que você se encontre, né? As tirinhas do Calvin eu acho que é uma coisa muito legal você poder mexer naquela tirinha de vez em quando, e também, como que eu vou dizer para você, as fotos. Porque as fotos, eu acho que quando você tem oportunidade de retratar épocas, situações, eventos, é muito legal as pessoas terem. Eu tenho assim muitas, mas muitas fotos. E fotos femininas. Eu acho assim, embora eu não sou evangélico, o fiel, mas eu chamo a Elisabete de “bem”, eu acho que ela é a grande mulher, a grande mentora, a grande parceira da vida da gente, eu acho que você não pode desprezar as mulheres bonitas. Então eu tenho fotos de mulheres bonitas. E o Brasil é um dos maiores produtores de mulheres bonitas que tem aí, né? Aquelas paixões, porque acho que o que te motiva é isso. Você vê gente bonita, gente cheirosa, está perto de gente diferente. Então isso é como hobby. Agora, em um tempo escasso, porque tem sido muito trabalho, eu brinco que pagar conta não é tão fácil, nem bem paga uma e já chega outra, e às vezes elas se encontram na mesma empresa (risos). Mas acho que é isso, é trabalhar. O que eu penso que é bacana é próximo dos meus sessenta e dois eu me sinto ainda com um desejo muito grande de produzir muitas coisas. Eu vejo pessoas com a minha idade que já se aposentaram literalmente, perderam aquele tesão, aquela paixão de viver. Acho que não é por aí. Se eu posso ajudar, por que não, e se eu posso trabalhar, por que não? Acho que é isso que tem sido minha vida.
P/1 – E você tá morando agora na Praia Grande...
R – Praia Grande eu já moro há seis anos, vai fazer sete agora.
P/1 – Como vocês foram parar lá?
R – É, foi assim. Eu participei de uma equipe que nós íamos reorganizar uma universidade na cidade de Santos. Nós fomos, fizemos uma auditoria, todo um levantamento lá nessa instituição, mas no momento de ser contratado, com a auditoria que nós fizemos a família mantenedora resolveu vender, e nós ficamos sem a mínima condição de trabalhar. Mas como nós estávamos tão achando que... Por isso que hoje eu defendo a ideia, achando é bom porque não te pertence (risos). Eu achava que ia trabalhar na instituição, tinha que se relocalizar porque ia tomar um tempo total da gente nessa instituição. Abortando a ideia de trabalhar eu consegui trabalhar nessa instituição que estou até hoje, que é a UniLuz. Então, continuei lá, mas eu sempre trabalhei no ABC, São Caetano, Santo André, dividindo. Trabalhei em São Paulo. Então, a Praia Grande, pela condição financeira de não poder morar em Santos que é muito diferente os valores, compramos o apartamento na Praia Grande, ela virou um dormitório, vamos dizer, praticamente. A gente vai, dorme, sai, trabalha terça e quarta em Santos, segunda, quinta e sexta em São Paulo, sábado eu volto no Paula Souza, ora Santos, ora aqui em São Paulo, ora algum pólo onde eles encaminham a gente. Então ficou assim a vida profissional. Agora São Paulo, essa questão do trânsito, você não anda aqui, com essa chuvinha então você trava. Para que eu chegue na Rua Augusta no meu horário que é oito eu acabo chegando às seis porque eu saio de casa às cinco e quinze, quando é seis, seis e cinco, seis e dez eu estou na faculdade. Então, eu não tenho trânsito. Quando eu saio, eu saio tarde, também não tenho trânsito. Eu trabalho nos contra-fluxos, então facilita. Hoje tá o caos a cidade de Santos, também com trânsito, você tem que saber a hora que você vai, a hora que você volta. Quando eu ministro aula manhã e noite eu já vou e já fico e só volto à noite. Tem sido assim, muito corrido tudo, mas aonde a gente ocupa semanalmente.
P/1 – E Sidney, você falou que você voltou para Garça depois de um tempo. Como é que foi?
R – Foi assim, nós estávamos numa situação até o momento diferente, de viajar, era o momento de férias como agora e estávamos indo ao sul. E para ir ao sul poderia cortar pelo norte do Paraná, porque aí a gente ia visitando cidades. Quando eu tava passando para chegar no norte do Paraná eu falei com a Elisabete, fizemos uma votação, eu tinha a Daniela e o Leonardo só: “Vamos conhecer onde eu nasci?”. E foi super interessante, “Ah vamos, vamos lá”. Então nós fomos à Garça. Porque eu tenho muitas fotos de Garça que eram do álbum de família, álbum da minha mãe, que retrata toda a situação, mas é coisa de até 1946, 1947. Depois disso foram raras porque em 1951 nós mudamos de lá. E uma época queimou a cidade inteira, eu tenho essas fotos, super bacana. Mas uma coisa que me encantou é que lá tem a Praça dos Namorados, e a Praça dos Namorados que é uma das praças centrais tem no meio uma árvore que é a cerejeira e quando ela está florida, não sei se você já viu flor de cerejeira, mas é a coisa mais linda do mundo. Então justifica até porque as pessoas vão lá namorar. Eu achei super interessante. E recente, num dos congressos que eu estava palestrando, uma professora que coordena um curso na cidade de Garça, “Ah, você é de Garça?”. Porque perguntaram de onde eu era. “Ah, eu coordeno um curso lá”. Então ficou um vínculo lá, um referencial. Mas eu nunca mais voltei porque não fez sentido, a vida tomou outro rumo, entendeu?
P/1 – E essa busca pelas origens da sua família que você comentou?
R – Ah, essa origem, eu acho que a Daniela, morando nos Estados Unidos, tinha necessidade de estar lá e é complicada essa vida de imigrante, então me fez com que eu fosse procurar a nossa origem italiana através da documentação para fazer o passaporte italiano dela. E é uma das coisas que eu recomendaria a todas as pessoas porque eu descobri coisas da minha família, onde eu vim descobrindo tudo isso. Primeiro que nós éramos muito ricos e ficamos pobres, segundo que meu avô italiano que veio e não veio, ele desceu e já voltou. Então, é super bacana você ir rastreando os seus ascendentes. Porque você vai chegando no avô do avô do avô. Eu cheguei hoje, com documento, até 1800 mais ou menos. É muito legal essa documentação. Eu espero que meus filhos, minhas netas, embora americanas as meninas, possam fazer uso dessa documentação. E é uma coisa que eu não canso de falar pros meus alunos que seria buscar a sua origem, escrever sua história de vida. Hoje, muito antes de eu estar aqui com você, aquele primeiro dia que eu vim, eu já falo para vir aqui registrar histórias, você tá entendendo, porque eu soube que vocês registram a história de todo mundo através daquela entrevista da Karen. Eu digo: “Vai lá que os caras registram sua história”. Porque quem tem história bacana para contar dessa cidade, das pessoas que você já se relacionou, acho que tem que ficar aí para algum dia alguém vir buscar essa informação. E acho que vocês são o referencial. Eu sempre falo isso, busque através de documentos, aí é fuçar, é buscar documentos, é pedir favor, é viajar atrás. Mas é muito interessante. Meu pai que sempre dizia que era mineiro de Juiz de Fora, eu fui descobrir que ele nunca morou em Juiz de Fora, ele morava muito distante. Sabe aquela coisa ‘eu moro no Morumbi’, mas na verdade você mora lá na casa do caramba e fala que é o Morumbi? (risos). Quer dizer, você dá o referencial das grandes cidades. Só que na busca dificulta. E você conta também com a boa vontade das pessoas para te ajudar. E é legal que você documenta isso. Hoje eu tenho todas as certidões, é muito interessante, que possibilita, inclusive, a quem deseja a dupla nacionalidade, pode buscar aí.
P/1 – E a Heloísa do livro, você chegou a revê-la?
R – A Heloísa é assim, eu to criando coragem, porque quando eu fiz menção a ela, embora só Heloísa eu sei muito bem quem ela é, talvez ela vá lembrar quem eu seja, eu ainda não contei para ela do livro. São duas pessoas que eu procurei, ela eu já sei onde está, que ela acaba se relacionando com a minha filha, de Facebook, Orkut. E eu procuro um aluninho que eu tinha que é o meu anônimo do Calvin, que é um aluninho que eu também queria saber onde ele anda. Ele eu não encontrei em nenhuma rede social, mas a Heloísa eu já encontrei. Hoje ela deve ter um pouquinho mais de idade do que você, eu não sei como você tem de idade, mas ela tem entre seus vinte e três e vinte e quatro anos, que é uma mulher muito bonita por sinal, mas eu preciso procurá-la pessoalmente, sei lá, e contar para ela: “Olha, você começou meu livro, ou me inspirou pelo menos”. E é um respeito que eu tive através dela de respeitar as crianças porque eu acho que nós que somos educadores temos que se curvar à criança e não a criança ficar te olhando. Eu acho que quem se propõe a educar somos nós. E a Heloísa é o tipo de aluno que faz a diferença numa escola, ou foi na época. Ela questionava tudo e eu acho que questionando você consegue as mudanças. Muitas coisas não são de mudar, então não adianta, mas coisas que são de mudar dependem de você se manifestar. E precisa tomar essa atitude, e ela tomava a atitude, daí a minha inspiração. Então foi assim que começou. Eu conto isso no livro lá que quando ler você vai ler a historinha dela.
P/1 – E Sidney, você falou dos seus netos, que eles devolveram um contato com a infância...
R – É... A Mariana tem três anos. A Mariana é tudo o que você imagina da era digital, de uma inteligência fantástica, ela te fala coisas que eu ponho no twitter inclusive. Porque meu twitter é um pouco diferente, não é de ficar contando como a rapaziada usa, eu conto frase, eu ponho coisas interessantes, e a minha revolta com as políticas todas que ocorrem com o transporte, saúde e educação, né? Mas ela me fala coisa que eu tenho que por lá. Ela fala coisa muito engraçada. Ela fez três anos agora, então, ela elabora frases, faz questionamentos, que você não sabe como você vai responder para ela. E a irmãzinha dela é a Isabela, tem oito. A Isabela é uma menina que já tem toda uma vivência, já vem de um outro país, a Isabela é muito diferente. E considerando a minha filha que também é bem rápida, então eu consigo compreender que na ramificação de mãe, filha e as filhas da filha, a humanidade tá muito melhor. A Mariana mostra que o mundo é melhor, é diferente, e não dá mais para gente ficar nesse blablabla que é a nossa educação. Nós temos que atendê-la, fazer com que ela seja uma mulher feliz. E o mundo que ela cobra é um mundo muito diferente desse mundo que a gente tá propondo entregar para ela, sabe? Eu acho que as crianças nos ensinam.
P/1 – Sidney, já encaminhando para uma parte de finalização aqui da entrevista. Você comentou que você tem muita vontade de viver, muita vontade de fazer alguma coisa. Tem algum grande sonho nos dias de hoje?
R – Ah, eu tenho ainda. Eu tenho uma vontade muito grande, inspirado pela filosofia, pela coisa mais mística, fazer o caminho de Santiago de Compostela. Eu acho que isso é uma coisa muito forte ainda. Eu tenho uma ligação com as músicas e eu tento compreender o porquê com a Irlanda, então eu acho que um dia eu quero ir à Irlanda ver o que é que a Irlanda tem para me mostrar porque não é possível gostar tanto da Irlanda, tanto das músicas. E eu tenho também uma verdadeira paixão, embora nesse momento falar disso é louco, mas eu amo de paixão Buenos Aires (risos). Então essa coisa de argentino com brasileiro, até mesmo agora Corinthians com Argentina, né? Eu acho Buenos Aires uma cidade, como se fosse uma Paris sul americana. Porque a cultura é muito forte. Em Buenos Aires eu marco um encontro com você para namorar numa livraria, num lugar prazeroso. E quem entra numa Livraria Cultura aqui da Paulista tem a sensação que você teria em Buenos Aires em todas as esquinas. É muito bonita, a cultura é muito forte. É um povo que também sofre tanto quanto sofre o Brasil, mas eu acho que eles resgataram uma coisa que nós no Brasil não resgatamos, que é o lance da cultura, da educação. Então acho que isso é um desejo para gente conseguir fazer um dia, se for possível.
P/1 – E Sidney, como é que foi contar a sua história aqui hoje, chegar no Museu, relembrar tudo isso?
R – Olha, eu começo escrevendo na minha história que está na internet que falar de si não é tão fácil assim porque são muitos lampejos que a gente tem, e a gente não sabe nem por onde começar. Graças a você, você foi direcionando ainda, permitindo que eu fosse localizando. Mas eu devo confessar para você que é uma emoção muito forte contar de você até mesmo porque não há essa cultura, nem essa educação para que a gente fale da gente. Eu sei falar muito bem de você, eu nem te conheço, mas eu sei falar de você. Mas quando eu vou falar do Sidney ficou difícil. E acho que o ambiente que vocês duas proporcionaram também, de deixar bem informal, facilitou muito que eu pudesse buscar. Aqui na minha mente está funcionando como se fosse um filme, eu estou passando as cenas, são muito fortes todas essas cenas. Quando eu falava para você de catar coisas na feira eu sinto o cheiro da maçã, eu sinto cheiro de algumas coisas. É como se você me permitisse voltar, resgatar, trazer e te contar, entendeu? Então daí que eu penso, e que eu recomendo, já venho recomendando há um tempo, pras pessoas terem a mesma oportunidade, porque eu acho que todos precisam ter essa oportunidade de falar um pouquinho de si. Até mesmo porque a própria família conhecer um pouquinho mais, eu acho que isso é muito legal. Então olha, eu posso dizer para você, vou resumir que foi uma emoção muito legal estar aqui, de poder compartilhar e poder deixar registrado.
P/1 – Muito obrigada, Sidney, pelo seu depoimento! Foi ótimo!
R – Ah, obrigado vocês! Pela paciência, por tudo, você tá entendendo? Eu espero que agora a gente possa ir travando alguns contatos, eu não sei, mas eu vou referendando as pessoas, se precisar da gente eu estou à disposição, tem a minha página na internet que vocês acham fácil, tem o meu twitter, quem quiser seguir e ver coisas assim, da minha impulsividade está lá também. Que não condiz muito com o meu trabalho, mas sim com a minha postura de homem, do que eu acredito, do que eu acho que vale a pena, entendeu? E eu acho que o maior ensinamento nosso é através de postura e comportamento. Eu sou eu assim, e se mudar, que às vezes a Elisabete me cobra muito: “Você fala muito palavrão, muita besteira, você é professor universitário, toma cuidado”. Eu acho que o dia que eu perder essa minha essência eu não seja mais quem eu sou, e aí perde o sentido, eu penso. Mas eu que agradeço bastante a oportunidade, tá bom?
P/1 – Tá certo.
R – Acabou?
P/2 – Espera, não terminou! Tem uma parte da entrevista que a gente faz, só um segundinho...
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