Depoimento de Nichan Bertezlian
Entrevistado por Cláudia Leonor e Valéria Barbosa
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 11 de janeiro de 1995
Transcrita por Rosália Maria Nunes Henriques
P - Bom, senhor Nichan, eu queria começando, é... que o senhor falasse o nome do senhor completo, o local e a data de nascimento do senhor.
R - O meu nome completo é Nichan Bertezlian. Parece que a preocupação dos meus antepassados foi tamanha pra me identificar, deram a mim a obrigação de carregar duas vezes a identificação do armênio porque o 'ian' é um sufixo que se agrega ao sobrenome do armênio para que, onde quer que ele tenha nascido, onde quer que ele possa estar, ao pronunciar o seu nome e sobrenome, o 'ian' o qualificará pra sempre no conceito das pessoas ouvintes de que realmente ele tem a sua origem na velha e distante Armênia, que foi um dia, por vontade de Deus, o berço da atual civilização humana. Porque quando Deus, preocupado que esteve, do encaminhamento da primeira geração humana pediu ao Noé que preparasse uma arca e que lá salvasse a... o... a existência animal, de então, e também a existência humana. Quando então, essa arca em, pairando em Ararat, que era o cume mais alto daquela região, deu origem para que então existisse uma nova geração humana. E parece que os séculos se passaram e a história foi se desfolhando e quem sabe novamente Deus preocupado com o comportamento humano dos nossos dias, no começo deste século XX, designou que se formasse uma nova arca, mas muito mais gigantesca, e que desta feita, Ele que foi armênio um dia, e determinou que a arca pairasse no Ararat, quem sabe brasileiro que Ele se sentiu, nomeou uma nova arca gigantesca que desta feita havia que recolher os seres humanos do mundo inteiro, de todas as regiões, nesta nova arca, que é então, chamado pela minha imaginação: Brasil! Porque neste país, a verdade maior é que se tem armênios e que neste momento de viva voz,...
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Entrevistado por Cláudia Leonor e Valéria Barbosa
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 11 de janeiro de 1995
Transcrita por Rosália Maria Nunes Henriques
P - Bom, senhor Nichan, eu queria começando, é... que o senhor falasse o nome do senhor completo, o local e a data de nascimento do senhor.
R - O meu nome completo é Nichan Bertezlian. Parece que a preocupação dos meus antepassados foi tamanha pra me identificar, deram a mim a obrigação de carregar duas vezes a identificação do armênio porque o 'ian' é um sufixo que se agrega ao sobrenome do armênio para que, onde quer que ele tenha nascido, onde quer que ele possa estar, ao pronunciar o seu nome e sobrenome, o 'ian' o qualificará pra sempre no conceito das pessoas ouvintes de que realmente ele tem a sua origem na velha e distante Armênia, que foi um dia, por vontade de Deus, o berço da atual civilização humana. Porque quando Deus, preocupado que esteve, do encaminhamento da primeira geração humana pediu ao Noé que preparasse uma arca e que lá salvasse a... o... a existência animal, de então, e também a existência humana. Quando então, essa arca em, pairando em Ararat, que era o cume mais alto daquela região, deu origem para que então existisse uma nova geração humana. E parece que os séculos se passaram e a história foi se desfolhando e quem sabe novamente Deus preocupado com o comportamento humano dos nossos dias, no começo deste século XX, designou que se formasse uma nova arca, mas muito mais gigantesca, e que desta feita, Ele que foi armênio um dia, e determinou que a arca pairasse no Ararat, quem sabe brasileiro que Ele se sentiu, nomeou uma nova arca gigantesca que desta feita havia que recolher os seres humanos do mundo inteiro, de todas as regiões, nesta nova arca, que é então, chamado pela minha imaginação: Brasil! Porque neste país, a verdade maior é que se tem armênios e que neste momento de viva voz, um deles aqui está falando a vocês, trazido que foi pelo imigrante armênio em 1926, aos meus aproximadamente cinco anos. Eu imagino, que não restará nenhum povo do mundo que não tenha tido os seus filhos como imigrantes neste Brasil e de cujos descendentes se formará um país que o mundo há de se estarrecer em ver as glórias, o destino e os feitos humanos dignos, cheio de amor a Deus e aos seres humanos que se nos cerca neste Brasil maravilhoso, cujo futuro e cuja glória, tende certeza vocês jovens, que um dia nós amanheceremos com orgulho no peito, envaidecidos em cada coração porque nós somos brasileiros!
P - Certo. Seu Nichan, em que cidade que o senhor nasceu?
R - Eu, por acaso, depois do massacre otomano, meu pai, que foi um peregrino de muitas cidades, eu nasci na cidade de Aleppo, na Síria. De onde aos meus cinco anos aproximadamente fui carregado pelos meus pais ao lado da minha família com quatro irmãos, e o cônjuge, meu pai e a senhora minha mãe, pra ser transferido para o Brasil. E como eu nunca tinha visto o mar, a primeira cidade que nós havíamos que ir era Líbano, porque em Aleppo não havia porto. E quando pela vez primeira eu me deparei com o mar, achei aquilo uma coisa assombrosa! E havia sinais de luzes acendendo e apagando que eu não sabia o que era, e que de repente soube posteriormente porque a admiração se me calou, tinha vergonha de perguntar, sabia que eram os remos dos barcos que ao se reluzirem contra o sol, que era por volta do meio-dia; conforme aqueles remos se adentravam a água do mar apagavam-se as luzes, quando saíam os remos da água se acendiam duas luzes! Depois é que fui saber o que era. E nesse tempo eu fui acolhido pela minha tia que morava já lá no Líbano e que nós havíamos que naquele dia embarcar para o Brasil. Então, nesse dia foi a primeira luta minha com os meus primos que hoje são elementos de destaque na odontologia brasileira: doutor (Nubarakrabian?) e doutor (Antranick Angrabian?), que na verdade tenho por eles um carinho muito especial e um respeito profundo porque foram dois grandes eméritos colaboradores com este país pra onde também imigraram em 1928. Então, eu gostaria de lembrar-lhes uma pequena passagem porque eu sempre fui um homem muito revoltado e muito briguento. Porque mais tarde vocês vão ouvir que eu fui expulso de quatro colégios, quase, quase de quatro, mas de três, eu fui. Eu me lembro como uma pequena, como uma nuvem de lembrança que um dia em Aleppo meu pai chegou trazendo uma carroça cheia de frutas pra minha casa. E eu querendo fazer uma chantagem, talvez chorando e tal, então o meu pai falou: "Por que você está chorando?" "O meu amiguinho me bateu." Que eu estava no curso primário, não é nem primário, é infantil, e eu estava achando que meu pai ia me beijar, me abraçar porque eu estava chorando. Qual foi a minha surpresa, levei uma surra! E disse: "Se outra vez que eu te ver chorando, eu te mato." E começou a pancadaria. "Que nunca mais você venha aqui chorando, se tiver qualquer conta com alguém na rua, no colégio, onde quer que seja, trata de acertar, mas nunca chore." A partir desse dia, mudou a minha vida, eu passei a ser um elemento agressivo e a minha briga foi uma constante em tudo que se me cercou e até hoje. Apenas, eu dou graças a Deus que um dia eu encontrei o caminho da vida, o professor Pedro Voz, do Ginásio Oswaldo Cruz, que ao invés de me expulsar mudou totalmente a minha filosofia, a minha psicologia, porque ele achou que eu era um santo. E eu imaginando que ele era um bobo, (risos) mas pra acertar o conceito dele eu comecei a me moderar, o meu comportamento, e de repente hoje eu me vejo totalmente, porque às vezes a minha senhora me diz que eu devia ser padre tanta a mudança que teve na minha vida.
P - Seu Nichan, voltando um pouco pra... pra coisa da vinda ao Brasil. O senhor sabe por que é que vocês escolheram o Brasil?
R - Porque na oportunidade, o armênio daquelas regiões todas buscava uma sobrevivência! Até no inferno que fosse, do mundo, mas que pudesse sobreviver. E talvez se convenceram que eu não sei porque da decisão deles de vir ao Brasil, à América, ao Brasil. Onde imaginando eles que depois de um espaço, de um tempo, fizesse uma América, a fortuna e voltasse àquela Armênia pra onde nem eu jamais aos 74 anos de idade tive oportunidade de voltar. Só posso voltar um dia a um passeio porque a minha vida felizmente está alicerçada, plantada, tem as raízes neste país, porque eu tenho quatro filhos maravilhosos e tenho oito netos que me dignificam e honram o Brasil, esse é o meu orgulho! Então, foi por aí que vieram ao Brasil, em busca da sobrevivência. E que eu me lembro nós morávamos num curral numa fazenda próxima de São Miguel Paulista, aqui e nós todos dormíamos com os bois, em cima de capim. Foi pouco tempo, graças a Deus, mas foi assim. E a cada noite, meu saudoso pai, colocava os quatro filhos, a esposa e ele, ajoelhado, rezando, agradecendo a Deus porque nós estávamos vivos! E sempre nos deixou um legado, uma recomendação: "Filhos, a este país vocês têm que dar tudo, tudo que nós não pudemos dar à nossa Armênia infeliz, porque aqui nós encontramos todos os meios, os recursos e a felicidade de ter vida e sobrevivência! Então, dignifiquem a este país porque quem não ama aquela terra, aquele povo que o acolhe, e dá todas as oportunidades de sobrevida, então, nem é digno de ter de Deus o direito de viver!" E este legado, eu me empenho a cada passo e a cada momento que possa dignificar os meus santos antepassados para que eles possam dormir o sono leve, sob essa terra maravilhosa que os acolhe! E que à inspiração deles e de milhares e milhares de imigrantes quero estender a todos os povos que imigraram neste país possam nos inspirar a todos e nós, voltando o pensamento à formação desta nação tenhamos certeza que nós brasileiros somos filhos do Planeta Terra! Porque do Planeta Terra nós temos aqui descendentes de todas as nacionalidades, por isso nós havemos de vencer! Chegaremos a um destino de um Brasil de Primeiro Mundo.
P - Seu Nichan, eu queria que o senhor falasse um pouco da viagem de vinda ao Brasil e a impressão do senhor na hora em que o senhor chegou, o que é que o senhor lembra?
R - Quando nós chegamos... ao embarque no Líbano, o navio... não tinha naquela ocasião, na década do 20, nenhum porto onde o navio pudesse se atracar. O navio ficava ao longo do largo do oceano e os passageiros haviam que ser transportados através de grandes barcos onde levavam aproximadamente 50 passageiros por vez até o navio. E era um navio preto, alto, eu nunca tinha visto um navio, e tinha uma escadaria de ferro até as águas do oceano. Então, meu saudoso pai pegou as minhas mãos, me pôs primeiro na escadaria de ferro que havia que subir até o navio. Qual não foi o meu susto uma hora quando o meu pé escorregou daquela escada e eu fiquei um peixe na mão dele e felizmente depois embarcamos. Mas durante a trajetória deste barco que nos levou até o navio, havia um grande número de imigrantes armênios que viemos juntos no Navio Guarujá, que eles tinham aquele alaúde e cantavam, cujas músicas ainda se me entoam ao ouvido. E por aí e sempre eu fui envolvido pela música, pela arte, porque a minha saudosa mãe que havia que costurar roupas me colocava diante da máquina dela, de costura, me ensinando a tocar bandolim, e ensinando a cantar músicas sacras porque não sabia eu dessas razões. Por quê? Quando na década do 80 veio uma tia minha da Argentina e me contou uma história fantástica que me deixou doido, emocionado, porque eu tive dois irmãos meninos antes de mim, os dois foram batizados de Davi, que era o meu avô paterno, e os dois meninos faleceram. Quando eu nasci minha mãe pediu pro meu pai suplicando que o meu nome fosse Nichian que é o nome do meu avô materno, porque a minha mãe estava preocupada porque todo nome Davi para ela parece que o menino morria, ela tinha essa impressão. Qual não foi o acontecido que a minha tia contou, que um dia eu estava à morte e que estavam providenciando o meu sepultamento e nesta noite a minha mãe ficou a noite inteirinha suplicando, chorando a Deus que: "Se desse a este menino a vida, eu a entregarei à Igreja Armênia." Eu não sabia, eu soube disso quase aos meus 70 anos. E daí a minha mãe todo domingo me levava a Igreja Armênia, na Rua Florêncio de Abreu, uma concessão do casal Ryskallah Jorge que deu aos armênios a oportunidade de ter a primeira igreja onde eu comecei a freqüentar aos meus seis anos e aprendi toda a música sacra, para o orgulho e satisfação da minha mãe, que nunca me contou do porquê. E assim foi que começou a minha introdução na Igreja Católica Apostólica Armênia do qual fui um servo até os meus 24 anos de idade, quando depois de casado, entendi eu, que eu nunca mato ninguém, não roubo ninguém, que pecado que eu tenho pra todo domingo ir à igreja? Sem saber do pecado que eu estava fazendo porque não sabia da história até então. Então, assim foi uma fase de introdução da minha vida ao Brasil. Depois eu passei a morar, naquele tempo o imigrante armênio e imagino todos os imigrantes alugavam uma casa e em cada aposento desta casa morava uma família, com filhos e tudo. E cada senhora, mãe de cada família, tinha um fogãozinho feito de lata de água ou lata de azeite com tijolos, pra acender o carvão e fazer a comida, fazer o café, fazer o leite etc. Cada senhora tinha o seu fogãozinho particular. E cada família ordenadamente havia que usar o toilette, os banheiros que era um só pra cinco, quatro, às vezes, até pra seis famílias. E assim começamos um vida onde toda noite e toda manhã havíamos que rezar e agradecer a Deus. E que hoje, com tanta saudade e felicidade, eu me lembro como era feliz aquela vida porque os nossos pais estavam muito felizes rodeando com alegria os filhinhos porque estavam vivendo num país fraterno, amigo e com todas as condições de sobrevivência, com todos os direitos de cidadania. Eu quero frisar isto, da grandeza do povo brasileiro porque é do seio de um povo que se emana o homem do poder! Nenhum governador deste país, nenhum presidente pode ser estrangeiro, será ele sempre um brasileiro. E enquanto um povo tiver esta sensibilidade humana, esta grandeza divina de acolher aos que estão lacrimejados, enxugando-lhes o rosto, é preciso se render homenagem a um país como este! Que oxalá um dia Deus me dê a oportunidade, uma das minhas últimas aspirações, que eu chegue à ONU pra dizer do Brasil, como um imigrante armênio, como um cidadão armênio, que viveu sete décadas no seio deste povo e na terra generosa deste país para que eles saibam, como eu sei, e posso dizer-lhes e transferir, e transmitir, pra que aprendam o que é Brasil! E porque que é este país digno de todo direito de ser respeitado porque aqui neste país se dá ao menino imigrante armênio, como eu sou, a própria testemunha e a própria história. Então, este país há que ser venerado! Porque país como este não sei quantos terá. E é por isso que eu acho que neste Brasil nós estamos numa panela efervescendo, efervescendo. Um dia quando chegar o momento da explosão o mundo há de ver o que é Brasil, o que que é ser brasileiro, o que que é ser digno, o que que é ser honrado. Porque um ser humano despido de todas as condições, que não tenha dinheiro pra pagar o que deve é porque eles nos exploraram e não permitiram que nossas economias crescessem à altura, porque o homem é um ser cheio de inveja e de tendenciosidade. E nós, um dia, nos livraremos de tudo isto e eles verão que no Brasil nascem homens tão igualzinhos quanto qualquer outro homem do mundo. Quando nós tivermos a oportunidade de dizer, isto é seu, isto é meu.
P - Seu Nichan, e... que bairro que o senhor morava quando chegou aqui em São Paulo, como era?
R - Eu morei naquela fazenda, depois que eu saí de lá vim morar na Rua da Conceição, onde tinha um senhor sapateiro chamado (Dikrian Kolanian?), e aquilo era tudo bosque. Hoje eu estou com o escritório quase em frente daquele local. (riso) E esse coitado desse senhor, sapateiro chamado (Dikrian Kolaian?), ele nos alugou um aposento. Eu era pequenininho, um dia estava fazendo pipi e a senhora dele abriu a porta do banheirinho e eu era moleque atrevido, chamei-a de prostituta porque ela abriu a porta. (riso) Aí a senhora disse: "Cala a boca seu moleque sem-vergonha, tal, tal" e me deu umas palmadas na bunda. (risos) Daí nasceu, infelizmente, uma situação difícil porque o meu pobre pai tinha que arrumar uma outra casa, tinha que mudar e pra mudar ninguém alugava mais casa pra quem tivesse crianças. Então, meu pai encontrou o senhor (Kalil Derani?), era um fabricante de malas, na Rua Santo André, e pediu a ele que se alugasse uma... um aposento pra ele e o senhor (Kalil?) perguntou se ele tinha filhos. Ele disse que não, e o senhor (Kalil?) alugou, ele pagou o mês adiantado, tal, fomos... foram mudar pra lá, na Rua Senador Queiroz. E nós fomos levados à casa de uma tia porque nós não pudemos ir junto com a mudança porque o senhor (Kalil Derani?) também morava lá. Como isso foi num dia de semana, até domingo nós ficamos na casa da tia. No domingo fomos nós e os dois primos: (Barakrabian e Antranik?) pra lá. E qual não foi a surpresa do senhor (Kalil Derani?), tão desagradável, uma surpresa horrível, mas chamou meu pai na segunda-feira e disse: "Seu (Agoupe?), o senhor não disse que não tinha filhos?" "Mas eu disse que eu não tinha filhos, eu não tenho filhos." "Mas como, e aquela criança?" "É da minha mulher." (risos) E assim justificou e ficamos mais por lá durante alguns meses sempre intimados a mudar e fomos morar na Rua Anhangabaú, perto da fábrica do meu pai. Lá moramos de 34 a 37. Em 1937 nós fomos morar pra Rua São Caetano, 551, onde hoje é o Bradesco, uma agência do Bradesco. E lá conheci muita gente das imediações.
P - Como é que era a Rua São Caetano, nessa época?
R - A Rua São Caetano nessa época era uma rua estreita, tinha trilho de bonde e era cheio de lojas pobres, de acordo com a época. E em 1944 eu me casei e saí daquela casa, fui morar num apartamento na época, sem poder até, mas como o moço nunca pode medir as conseqüências de seus feitos e que de repente vê que ele próprio quebrou as canelas mas até lá vai aprendendo, é a vida. E em 1948 eu fui despejado dessa casa por não poder mais pagar o aluguel. E no dia do despejo comecei a xingar a Deus, perguntando o que que ele queria de mim, com os meus móveis na calçada. E aí, estava sentado numa meditação profunda, um córrego passava pela calçada, sarjeta, e eu perguntei a mim: "Mas você quem é, seu Nichian? Você é um bobo." Eu já era formado em Ciências e Letras pelo Ginásio Oswaldo Cruz, trazia comigo o orgulho no peito de ser um cidadão formado em ginásio, que era raro. Mas, e eu era artista, já tinha trabalhado em filme brasileiro, da Edson Filmes do Brasil, na Rua José Bonifácio. Eu já tinha fundado a Sociedade Artística Melodias Armênias, eu já tivera sido radialista, ator, cantor, mas a minha vida não vencia porque eu não sabia viver dentro das minhas circunstâncias. Eu estava parecendo o nosso governo do Brasil nos últimos tempos, que gastava muito mais do que ganhava. Não me enquadrava dentro das minhas condições. Eu queria viver com os milionários, e os milionários me faziam pagar as contas. Eu imaginando sempre que eles pudessem me poupar, era mera ilusão que a experiência da vida me ensinou. E a partir de quando eu entendi que eu era um cara qualquer, um bobo, que eu não era nenhuma expressão humana, aprendi a coordenar e administrar o meu bolso dentro das minhas possibilidades, passando a viver uma vida pacata dentro dos recursos permitidos. Daí pra frente a minha vida começou a mudar. E estou lutando até hoje, correndo, correndo sem olhar pra trás. E vos afianço não vou parar nunca! Quanto mais eu puder trabalhar contanto que, ao eu ter desaparecido pela vontade do Pai Eterno, eu tenha a certeza que tudo que tenha deixado para os meus filhos, sem nenhuma dúvida eu tenho, será apenas um acervo para o Brasil, a quem devo tudo o que sou e por quem lutarei até o meu último momento de suspiro. Adoro este país porque ao olhar dentro de mim, neste coração que aquele bandido do Jatene cortou duas vezes, (riso) que não sei que veneno colocou, porque eu nunca trabalhei tanto depois de operado. (riso) Ele nunca me contou o que pôs aqui mas vai ter que contar porque ele agora é ministro, mas já falei isso pra ele quando já era ministro da outra vez, do Collor. Eu perguntei na presença da filha e do filho médico, que ele me confessasse, pelo amor de Deus: "Que tipo de veneno o senhor colocou porque eu nunca fui tão louco pra trabalhar. O senhor me deixou alucinado." Então, eu adoro este país e por ele trabalharei até o último momento porque quando chamado, e me colocar frente ao meu pai e ele disser, me perguntar qual foi o meu comportamento no Brasil, se eu dignifiquei os legados dele, eu possa dizer: "Sim, deixei quatro filhos e quiçá oito netos, mas, que um dos meus netos seguiu a coisa mais apaixonada da vida dele", que foi colecionador de armas e foi guerrilheiro daquela oportunidade, daqueles massacres. E o meu neto, hoje, oficial das Forças Armadas, é o meu maior orgulho. Os outros também estão encaminhados pra cada qual ser um orgulho neste país, pros brasileiros todos que possam um dia lembrar que este moço é descendente de armênios. É só e será o meu maior orgulho, e o orgulho de todos daqueles imigrantes que um dia me trouxeram ao seu próprio colo e preocupados de me inspirar, de me orientar, de me aconselhar, para que eu pudesse ser sempre um armênio. E que hoje tenho orgulho de dizer, a eles, todos os imigrantes que se me desfila nesse momento na imaginação, de que eu preenchi as aspirações, os desejos, e tudo mais, que um armênio tem obrigação de ser onde quer que esteja, sob qualquer bandeira e qualquer território do Planeta Terra pra fazer, sempre conduzir a velha Armênia onde pairou a arca de Noé, os louros e as glórias dos seus feitos, o amor, a amizade e o carinho dos povos onde ele viveu para que (fim da fita 061 / 01-A) no seu próprio exemplo seja amado como um filho de Deus, digno de um pequeno povo mas um povo que na verdade no meu conceito, quiçá do mundo, deve ser um grande povo. Se ele puder dar a cada povo onde convive homens tão grandes quanto ele aprendeu no convívio de cada nação, no perfil, na sombra de grandes criaturas que puderam lhe ensinar a ser o que eu sou, aprendendo também nesse Brasil a amar porque quando eu nada signifiquei como cidadão eu fui amado neste país, eu fui acolhido neste país, eu fui instruído, preparado, tudo que eu sou por um país e um povo que tem que merecer o meu respeito até o último momento, até quando eu for enterrado, faço questão que se saiba que eu devo o que sou a esta nação, a este povo maravilhoso com o qual eu vivo ao longo de 70 anos.
P - Seu Nichan, eu queria voltar um pouquinho a... Eu queria que o senhor nos dissesse as lembranças que o senhor tem da época da escola.
R - A primeira escola minha foi Prudente de Morais. Uma das passagens jamais esquecíveis por mim foi quando a um 14 de novembro, devia ser de 1928, se adentrou à sala o inspetor Casimiro e eu nesse tempo... na minha família ninguém sabia dizer um vocábulo português, só se falava armênio porque outra coisa não se... não tinha como falar outro idioma. E o nosso... meus pais se comunicavam por gesticulações, e de repente o inspetor entra na sala, todo mundo de pé naquele tempo, e em cada aula não tinha senão meninos ou meninas, não eram salas mistas. Ele entrou, mandou sentar e eu infeliz de vergonha do meu nome Nichan que sempre era qualificado de turco e todo dia quebrava o pau na escola, na saída. Nesse dia, não sei porque, pus o meu nome de Alexandre. Olha que bronca eu arrumei na minha vida. Alexandre! Era o primeiro aluno da lista! O inspetor se adentrou, pegou a lista na mão, perguntou pela professora dona Ercília que aula era, se era aula de História do Brasil. Ela confirmou. Voltou a ver a lista e falou: "Quem é Alexandre?" Opa, de pé mas eu estou tremendo, mas eu nem falo bem português, falo só xingação, algumas palavras quaisquer, estou lá nem sei como, numa escola brasileira. Disse: "Meu filho, quem foi Rui Barbosa?" Mas meu Deus, o que sei eu? Estou de pé, falei: "Rui Barboso..." Quá, caiu a classe, pela pronúncia, né? Eu olhei pra trás pra marcar quem estava rindo quando eu voltei a professora estava rindo e o inspetor também. Então, eu devo ter pisado na bola! Eu falei: "Rui Barboso, era uma homem barbudo." Falou: "Está bom meu filho, está muito bom, pode sentar." Nesse dia um desafio me nasceu que eu fui humilhado de tantas gargalhadas porque eu não sabia falar português e que eu me pus numa posição de desafio que eu havia um dia que aprender esse idioma pra ensinar até o próprio inspetor e os professores cujo aprimoramento do idioma infelizmente até hoje ainda persigo pra cada vez poder falar melhor para que tenha dignificado os meus próprios sentimentos. E aquela revolta hoje se transformou numa alegria em mim. Oxalá, eu pudesse encontrar aqueles meninos todos pra lhes dar um banquete porque se não tivera acontecido aquele incidente eu não tivesse sido talvez um homem procurando uma eloquência vocabular pra dignificar até o Brasil. Porque se um dia eu for a um cenário internacional e tiver que falar do Brasil, eu gostaria de falar num dos dois idiomas que graças a Deus eu sei dominar, o português em homenagem ao Brasil ou em armênio, em homenagem aos meus antepassados, pra eles verem o filho que eles deram para que vivesse nesse mundo.
P - Na prática, como o senhor fez pra aprender o português?
R - Isso foi uma luta tremenda e a cada noite o maior amor eu dediquei pra aprender numa pressa incessante de buscar a necessidade de poder ser eloqüente. Porque eu tive uma professora, a dona Nair, que graças ao amor que a ela tive e que eu tenho as fotografias aqui para vocês verem quem é, eu tive um caderno de cem páginas com nota dez de caligrafia. E eu estou pronto pra escrever a caligrafia pro mundo ver como é que se escreve o português, com modéstia e humildade sempre. Mas foram certos incidentes que me colocaram num caminho de desafio e eu passei a ser o homem do desafio, confesso.
P - O senhor falou... comentou que o senhor nunca parou em escola nenhuma. O que é que acontecia, seu Nichan?
R - Bom, na Escola Armênia eu tive a ousadia um dia de xingar as maiores blasfêmias pra um professor-diretor e esse me espancou, tal, me rolou duas escadas, os dois lances de escada quando eu fui parar lá baixo, comecei tudo de novo, a xingação. Aí não teve outra alternativa porque eu era um diabo, oxalá que aqueles alunos de então, poucos remanescentes hoje pudesse contar do terror que eu era. Eu tinha que ser expulso!
P - O que o senhor fazia?
R - Se tivesse sido eu o diretor... Eu só tinha que bater em todo mundo. Oh, meu Deus do céu! Então, isso não é procedente, não é uma coisa normal, eles tinham razão. Meu pai era membro da escola, era membro da igreja e teve que ter o dissabor de ver o seu filho expulso e muito bem feito. E hoje eu aprovo e na época toda manhã na saída da escola eu voltava lá pra bater pras crianças. E um dia, pra escapar das garras do tal diretor saí correndo, era uma rua estreita a Avenida Senador Queiroz, onde tinha um depósito de ferro-velho, inclusive, e naquela época tinha uns caminhões da CGT, aqueles caminhões enormes. Pra escapar das garras daquele diretor, que se me pega me bate, eu passei entre as duas rodas em movimento de um caminhão da CGT, na época. E não fui atropelado!, era um diabo, eu era o menino sempre que tinha a medalha das corridas, sempre. E tinha instrutores pra me derrotarem através de outros meninos que eles preparavam, mas nunca me venceram.
P - O senhor estudava e trabalhava ou não?
R - Estudava e trabalhava.
P - Como é que era? Trabalhava onde?
R - Estudava e viajava. Quando ginasiano eu viajava já pelo Brasil todo em busca do pão da família porque o único gato que o meu pai tinha pra caçar, nem cachorro tinha, era gato, era eu. E ele me colocou na estrada da vida pra forjar e preparar este homem que hoje com muito orgulho pertence a este Brasil. E eu tenho um coração coberto por duas bandeiras: a bandeira tricolor da Armênia e a bandeira brasileira, este verde e amarelo que traduz tanta riqueza e tanto amor!
P - Mas o senhor começou trabalhando na fábrica do seu pai... no Anhangabaú?
R - Do meu pai, na Rua Anhangabaú.
P - O que o senhor fazia?
R - Eu quebrava as máquinas porque quando os operários saíam para o almoço eu queria trabalhar nas máquinas, eu não sabia trabalhar. Um dia havia uma máquina de pontear que é aquela que costura o sapato, era uma máquina de procedência alemã composta de mais de 500 peças, depois eu dominava totalmente essas máquinas. E durante o almoço a fábrica fechava, eu fiquei escondido, todo mundo imaginando que a fábrica estava fechada mas eu estava lá dentro, e peguei essa máquina, quis costurar um sapato. Aquilo deu uma explosão infernal! Eu levei um susto desgraçado sem saber agora o que fazer, porque eu estou dentro da fábrica, a fábrica está fechada, eu não tenho como sair. Esperei até a fábrica abrir. Eu estava escondido e quando a fábrica abriu eu saí do banheiro lá do fundo, cheguei e sentei numa máquina de escrever - Remington, que meu pai comprou por 20 mil réis pra eu aprender a escrever, até hoje eu só sei escrever daquele jeito que aprendi, mas eu escrevo. Aí chega o italiano que era o ponteador mais famoso, que quando as máquinas quebravam, da colônia armênia, eles chamavam ele pra consertar. Naquele tempo o empregado havia que conhecer a máquina pra poder trabalhar e eles trabalhavam por produção. Então, o cidadão chega, a máquina arrebentada, um sapato na máquina. Ficou louco: "Mas diabo, pomarola, porcadio." E xingou a Nossa Senhora e xingou tanto, gente, e começou a brigar com todo mundo lá pra saber quem foi que fez aquilo. E eu lá, na distância ouvindo quieto feito um gato, safado, nunca souberam quem fez aquilo de verdade. (risos) Aí eu larguei da máquina de escrever, porque ele tinha que dar um jeito na máquina porque senão não ia ganhar o dia. Naquele tempo as fábricas trabalhavam três dias por semana porque não havia trabalho. Falam em crise e recessão! Crise e recessão no mundo sempre teve, o que o homem não pode é se conter diante das dificuldades, há que transpor, ele que sabe. No cérebro humano tem caminho e remédio pra tudo, que o homem tenha coragem, disposição e ânimo de buscar. O homem não pode se sentir derrotado naquele primeiro momento que se lhe ofusca os seus passos, mas há que parar, como você a pouco dizia: "Pára! Pense!" Eu já pus isso na mesa do meu filho: Pare e pense, equacione, siga, há de buscar o caminho. Assim foi a minha vida. Então, nós não temos outra alternativa, pensar e seguir. E nesse dia o cidadão veio, arrumou a máquina, e tal, e tal. Sei que no futuro quando eu fui representante de alguma fábrica de calçados, do saudoso Samuel (Asdurian?), um dia teve greve na fábrica e o pessoal começaram a arruinar todas as máquinas e eu tinha vendido horrores, mas nessa situação a fábrica não ia poder entregar as mercadorias pro fim de ano, eu não podia sofrer esse desgaste, porque não entregar mercadoria no fim do ano pra um comerciante que está esperando o que se lhe comprou, e prejuízo de outros que ele deixou de comprar, você sentenciou a sua morte como representante. Eu não tive outra alternativa, tive que por a mão nas máquinas e o pobre Samuel estava assustadíssimo sem saber: "Pelo amor de Deus, já está tudo encrencado aqui, mas você entende alguma coisa disso?", não sei o que, mas estava assustado. Eu falei: "Vamos até a Rua Anhangabaú", no Duarte Callado que vendia peças de máquinas. Chegamos lá eu pedi: "Me dá uma garganta da máquina de grampear, me dá um martelo, me dá uma faca." Pegamos, voltamos pra fábrica, desmontei aquilo tudo, montei e comecei a trabalhar. E ele ficou todo feliz: "Mas como você conhece tudo isso?" Digo: "Devo tudo isso ao meu pai, que teve capacidade de suportar tanto prejuízo pra que eu pudesse evoluir tanto e hoje eu tive que aplicar porque eu preciso, eu preciso entregar, se eu não entregar eu perco todas as comissões e perco todos os amigos, meus clientes." E aí nós... esava conversando com ele no escritório e eu vejo o montador pegando nas chaves pra mexer nas peças, ah, eu saí correndo, abandonei o papo com ele: "Olha, o senhor não me mexa em nada." "Ah, mas queria regular." Eu disse: "O senhor não precisa regular nada." Dei um reaperto nas peças de novo, peguei as chaves própria da máquina, trouxe para o escritório, e falei pro Samuel: "Você me tranca isso aqui e não me dá pra ninguém, eu vou estar aqui..." Porque eu não tinha mais como trabalhar, toda a produção estava vendida, então, eu fiquei tomando conta da fábrica. No dia seguinte peguei a máquina de pontear, desmontei tudo, montei de novo, porque os homens tinham mudado as galerias - que aquilo, mudar uma galeria desarranja tudo. E assim eu fiquei até o fim do ano, toda a manhã o Samuel passava na minha casa, me apanhava e eu ia pra fábrica, fiquei até a última entrega dos pedidos, das encomendas. E essa foi umas façanhas de 1950 ou 51, não me lembro, mas foi no ano que nasceu a (Naide?), minha filha, e foi assim.
P - Quais eram as fábricas que o senhor representava nessa época?
R - Eu representei Fábrica de Calçados Murad, dos Irmãos Muradian, representei (Svizatian?) S.A., de saudosa memória, representei Calçados Santa Maria, da família Luciano, representei Manuel (Kerlakian?) S.A., que fui o maior terror de vendas, que quando eu entrei nesta fábrica o contrato rezava o seguinte: o representante não pode vender a nenhum cliente de Manuel (Kerlakian?) S.A.. Item dois: todas as vendas que o representante por acaso tenha feito a clientes de Manuel (Kerlakian?) S.A. não terá direito a comissões porque as comissões serão levadas a crédito do vendedor do tal cliente; o representante somente poderá vender os produtos da representada pra firmas que nunca compraram em Manuel (Kerlakian?) S.A.. A fábrica tinha 28 representantes, passado pouco tempo havia um quadro que se escrevia o nome do primeiro colocado, do segundo, terceiro, passei a estar no primeiro lugar e poucas vezes tive dissabor de chegar no segundo, porque havia um representante dos mais respeitáveis no Rio de Janeiro chamado (Aracati?), oxalá esteja vivo, e que esse era o maior diabo de vendas, mas um dia ele teve que ser infelizmente subjugado por um armênio diabólico, (risos) desgraçadamente terrível. E nunca mais desci do primeiro lugar.
P - Seu Nichan, e quais... pra quais regiões o senhor vendia? Era pro interior...?
R - Eu normalmente vendia na capital. Onde eu fui preparado, eu fui lapidado de ser um homem diabólico que sou porque cada cliente que eu chegasse ele tinha aprontado uma pra mim. (risos) Pra deixar a situação difícil da fábrica pra conseguir mais desconto, mais prazo enfim, interesses comerciais. E de repente o imprevisto, o improviso, eu havia que defender o contrário do que ele queria e esse foi o meu maior exercício durante 30 anos. E decorrente disto, quando um dia juiz do trabalho, eu era perseguido por grandes advogados pra me humilharem nas audiências com todas as artimanhas jurídicas e inteligências deles pra me colocar numa situação pejorativa aos quais sempre defendi de improviso e de momento o contrário daquilo que se me impunha. E sempre Deus me iluminou porque a virtude maior, a glória e o mérito é daquele meu Pai Eterno porque Ele é que me dotou com o privilégio de nascer com tamanha sanidade que eu nunca vou poder retribuir nem pagar. A única maneira que eu poderia retribuir a Deus que me mantém ainda depois de duas vezes safenado, eu só tenho uma possibilidade de encontrar os filhos Dele que me encaminhar e a cada um deles estender a mão porque Deus sempre me estendeu a mão no momento difícil do clamor, da necessidade. Um dia um amigo meu escreveu e vocês terão no meio dos papéis e eu vou procurar saber, disse: "Que eu era homem com o rosto sujo de poeira, suor e sangue na luta de uma arena." Isso deve ser escrito de algum escritor. Depois de colocar essa frase daquele escritor, ele disse: "Doutor Nichan, o senhor é um desses homens com o rosto sujo de poeira e sangue, mas o senhor vai ser muito invejado, mas como um homem como o senhor que está ligado ao mais perfeito e justo" - que quis dizer o Pai Eterno - "a eles somente restará o sabor da inveja, porque o senhor vai vencer." Vocês vão ver esse escrito no meio da papelada, e vão ter a oportunidade de ver, eu só tenho que agradecer a Deus por poder ter sido qualificado isso naquele tempo que hoje ao olhar pra trás eu vejo realmente uma verdade que eu também não sei porque, não sei explicar, só sei agradecer a Deus porque em 1981 quando eu fui safenado pelo professor... professor doutor Bento, bom, o nome todo eu vou lembrar dele porque já faz tempo, mas é o professor doutor Bento, da equipe Jatene, Jatene, um emérito médico perante quem quero me curvar neste momento pra dignificar aquela equipe toda. Inclusive gostaria de declinar o nome do doutor Enilton, Enilton da... da equipe do Jatene, que na vez primeira me cirurgiou, só não perdôo pro Enilton quando me ludibriou na segunda vez que entrei no hospital dizendo que só ia me fazer um exame. (risos) No fim tinha me deixado lá pra ser operado de novo, pela segunda vez em 1989, quando então fui operado pelo próprio professor Jatene, mas eu vou acertar as contas dele, por enquanto não posso porque ele é ministro. (risos) A hora que ele sair desse cargo nós vamos acertar as contas.
P - Seu Nichan, como era o dia-a-dia do senhor como representante. O senhor visitava as lojas, visitava as fábricas... Como era?
R - Um dia um dos clientes me fez um clamor, um suplício. Disse-me: "Nichan, pelo amor de Deus, quando é que eu vou me livrar de você?" Porque se eu estivesse num freguês ou ele comprava... eu respondi pra ele: "Pra você se livrar de mim tem três aspectos, três condições: ou você compra, já fica livre, se você realmente não quiser comprar, você pode se suicidar, aí eu não vendo pra defunto, se você não tem coragem de se suicidar... você está vendo aquele negão que está passando na calçada? Chama ele e dá cinco mil réis que ele mata cinco de mim. Manda me matar. Mas se você me mandar matar não tenha dúvida que eu vou te esperar lá no São Pedro, quando você chegar lá um dia, vai ser muito rápido porque cem anos lá passa muito rápido, você vai ficar numa fila pra entrar no paraíso. Aí você vai ver um grande anjo de roupa branca, fazendo a seleção das pessoas, quem vai pro inferno e quem vai pro paraíso, e no meio da fila vai aparecer o anjo guarda e você vai dizer: quem é aquele que tá lá na mesa. Aquele é um tal de (Nichian?) que o Cury matou na rua..." aquela rua importante da... como se chama meu Deus do céu, aqui do Tatuapé, Antônio de Barros, "...aquele é um representante que o Cury matou na rua tal, em mil novecentos e não sei quantas... e que que ele faz aqui? Ele é o chefe aqui. Meu Deus do Céu, você vai levar um susto. Quando você chegar lá está tremendo de susto e eu vou chamar outro anjo e vou dizer: esse moço você leva no melhor lugar do paraíso porque graças a ele hoje eu sou chefe aqui, então eu preciso tratar dele muito bem." Aí ele não teve outra alternativa, teve que comprar e nós fomos almoçar. Um outro dia num outro cliente, eu estou chegando, eu era o homem que entrava com as malas na mão dançando, eu fazia teatro onde eu chegasse, eu vivi a maior vida possível pra um ser humano dentro da maior pobreza e falta de recurso, mas os dotes que eu trouxe de Deus eu tinha condições pra empolgar multidões, tinha capacidade de viver na solidão. Eu vivo na solidão, quanto vocês quiserem, também vivo numa multidão. Aí estou chegando lá dançando e tal. "Nichan, ponha-se pra fora daqui, eu peço por favor, ponha-se fora daqui e nunca mais você me entra na minha casa." Eu estou pensando que ele está brincando. Eu dei o primeiro crédito pra ele, comi quantas vezes na casa da senhora mãe dele, é muito meu amigo, eu não estou entendendo se é verdade isso. Aí eu parei pus a mala: "Você está falando sério desse negócio?" "É, porque você veja aí." Tinha vindo três títulos do cartório do (Mackerle?), Manuel (Kerlakian?), o homem estava alucinado e tinha recebido naquele momento. "Mas o que é o negócio: é dinheiro, é isso aqui, é isso que te faz falar isso tudo pra mim? Eu sempre pensei que você fosse gente, não sabia que você se chama dinheiro. Um momento por favor, dá licença." Peguei o telefone e liguei pra fábrica. "Ítalo, era o chefe, me faz um favor de pegar três duplicatas e debita na minha conta neste momento e manda retirar os títulos do cartório." Nada mais, só disse a ele que eu sempre tive uma palavra que eu honrei e me preocupei de honrar. "O senhor pode ficar tranqüilo que os títulos vão sair do cartório, só que eu levo em mim o maior sentimento e o maior dos ressentimentos porque pensei um dia naquela casa de sua santa mãe, onde quantas vezes almocei, que eu estava numa casa em cujo berço havia sido embalado um homem como você que pudesse ter trazido um sentimento materno e humano, o que infelizmente hoje eu estou decepcionado porque você não percebeu nada daquele leite materno, que nada te inspirou e você está me trocando por dinheiro, está esquecendo do tempo onde você não tinha onde cair morto e eu te abri todas as portas e os créditos. Hoje por causa de título em cartório você teve este comportamento comigo, você me feriu muito, você mudou muito o meu conceito sobre você." No fim, fomos almoçar num restaurante lá na Penha, voltamos, vendi mais sapato pra ele e os títulos foram debitados pra mim e entreguei a ele quitados.
P - Como é que eram as formas de pagamento, seu Nichan?
R - Um dia o saudoso Manuel (Kerlakian?) me chamou pra tirar um sarro de mim. Disse-me: "Olha, você é um moço inteligente." Esse inteligente era gozação. "Eu não tenho mais capital, você me ensina como fazer pra vender a prazo, a não ser que você me arrume uma conta." Quer dizer, aonde é que um cara como eu, sem ter onde cair morto havia que arrumar uma conta. Eu respondi pra ele: "O senhor me dá o Evandro..." - que era o filho dele, de saudosa memória também os dois - "o carro e cem contos." "Como? Cem contos tudo bem, o carro por quê? E o Evandro por quê?" "Porque eu vou falar com o Juscelino Kubitschek." E fui. "E vou buscar um financiamento." Fiquei 15 dias porque o Juscelino só voava, até que um dia peguei. O Juscelino outorgou a abertura de uma conta de 30 milhões naquele tempo que eu duvido a empresa que tivesse a capacidade de ter esse crédito pra fazer. Voltei, como havia essa conta fiz um plano de venda com seis pagamentos, 30, 60, 90, 120, 150 e 180 e, às vezes, 210 e até 240 excepcionalmente algum. E comecei e nós fomos produzir, naquele tempo , cinco mil pares de calçados por dia numa indústria paulista, coisa inédita no território nacional, e assim foi. E quem inventou esses 10%? Por quê? Porque não tivesse o freguês a ousadia de não pagar nesses vencimentos parcelados. Então, o freguês deixava de pagar qualquer um, mas o (Mackerle?) ele pagava porque perdia 10%. Esse 10% foi criado por mim como símbolo de revestimento e segurança do comportamento de cada cliente.
P - Seu Nichan, o que aconteceu que o senhor deixou de ser representante e foi montar uma fábrica? (fim da fita 061 / 02-A)
R - Em 1967, tive a ousadia de levar o meu filho Ricardo comigo a uma das fábricas que me solicitou, que tinha mais de 10 mil pares de estoque, que é muito estoque na época para ser colocado. Esse homem se chamava (Kerhian Kadicikian?), cujos filhos aqui estão, hoje um deles é um grande arquiteto de nível e honra nacional. Eram todos crianças naquele tempo e o (Kerhian?) me pediu por favor de colocar esse estoque, o que eu me propus a ajudar. Quando cheguei lá, me doeu o coração pelo preço que ele me deu porque ele estava perdendo muito dinheiro, eu conheço o ramo. Resolvi de repente ir colocando esse produto a um preço muito insignificante mas a dor do coração me fez com que eu fosse à fábrica do (Chiarelli?), fábrica de fôrmas, e pedisse a eles pra me ajudarem a fazer uma nova fôrma e aqueles cortes, aquele material ser colocado numa fôrma que fosse aceito pelo público. E de repente, no dia em que levei o meu filho comigo pra fazer uma visita, pela vez primeira, a fábrica estava entregando as fôrmas com o caminhão do (Chiarelli?) e qual não foi a minha infelicidade que ao me adentrar na fábrica o (Kerhian?) começou a me xingar horrivelmente, mas nós éramos grandes amigos, qualquer diálogo por mais agressivo entre nós tinha cabimento pelo amor que reciprocamente tínhamos um pelo outro porque ele me ajudou muito no tempo que eu passava a lágrima e fome, o (Kerhian Kadicikian?). Então, o que que aconteceu? Nessa discussão, o meu filho Ricardo que pela vez primeira... foi a uma indústria que eu representava, ele estava num canto do carro na volta, disse assim: "Pai, o senhor é bobo." Digo: "Por que, meu filho?", "Qual é a moral dessa história que o senhor faz modelo, faz fôrma, faz blé, blé, blé...", - aquele tinha uma loucura de falar rápido" - e eles quer brigar com o senhor. Falei: "Mas ele é meu amigo entre nós cabe qualquer..." "Como seu amigo?" Eu falei: "Eu compro a fábrica dele" "Como o senhor compra a fábrica dele e é empregado dele?" Essa palavra se me gravou e me transformou num homem congelado. Não tive mais condições de vender nada, "o senhor empregado", e a consciência, o cérebro começou a girar, girar, girar, perguntando como será o conceito que você está deixando no seu filho de ser você um vagabundo, sem levar em conta a minha luta, o meu trabalho. Mas não se me restou alternativa nem possibilidade de pegar em uma mala de amostras, de repente, chega pelas Engas S.A., a... o despejo de um armazém que eu tinha na Rua Cachoeira, naqueles dias resolvi colocar lá uma fábrica de calçados e assim aconteceu. Tantos me pediram, suplicaram que eu não fizesse isso porque eu era homem pra vender milhares de pares de sapatos. "Como é que você vai fabricar quantos pares aqui, você não tem recurso." Eu falei: "Eu vou fabricar dez pares, 20 pares, mas vou fabricar." Todo mundo achou que eu era louco. E um dos grandes amigos meus, de saudosa memória, Jorge (Abrikian?), disse assim: "Você é um bobo porque você não sabe das tragédias, das convulsões, das dificuldades que você vai encontrar como empresário." O que é verdade, e é até hoje essa verdade. Eu falei: "Eu estou procurando o maior dos infernos pra encontrar lá o maior diabo, que eu quero acertar a minha vida com ele, eu não tenho medo." E não levou dois meses e eu estava atolado, perdido, arrebentado. Um sábado, eu fugindo do mundo, fui pra fábrica já resolvido a abandonar esta fábrica, insuportável diante do comportamento de tantas coisas que eu não tinha mais como suportar. E eu, estava totalmente revoltado e inconformado e as lágrimas se me rolaram. Estou sozinho dentro daquela fábrica no escritório, num plano superior, e de repente se me desfila a imagem daqueles homens que tanto me suplicaram pra que eu não... eu não me metesse aí e das respostas que eu lhes dei. Então, a moral me revoltou e disse-me: "Você rapaz, seu covarde, seu ingrato, que a ninguém ouviste e a eles respondeste que você queria o maior dos infernos pra encontrar o maior diabo do mundo, que você não tinha medo, como é que fica agora, seu safado, covarde, como é que você vai falar com eles agora, porque que você falou muito?" Hoje, me preservo a falar. Aí as lágrimas continuaram. "Agora você resolva ou você morre ou você vence. Se você morrer você morre como homem e se você vencer também serás um homem, pra nunca mais você dar uma de bom. Pode morrer." Saí de lá feito um gato, sem moral, sem ânimo. Busquei o domingo que era o dia seguinte pra poder me recompor. E humilhado diante de mim mesmo às 7 horas da manhã estava naquela fábrica na segunda-feira. E tudo continuou e a luta veio chegando e eu não tenho medo da luta, me dê o direito a comer e me dêem a saúde, nunca vou parar, vou trabalhar pra que cada vez mais este país seja grande. Mas, que nesse momento, eu quero fazer um apelo aos homens públicos deste país em cujas mãos estão o governo, a ordem e tudo mais que nesta nação se lhes hipotecou através do sufrágio e do voto de um grande povo. Que levem de mim o clamor que eu faço nesse momento e que quantas vezes fiz-lhes pessoalmente, em oportunidades, em congressos, em encontros de sindicatos, de confederações, etc., cujo material está nas vossas mãos para que tenham piedade do empresário brasileiro, para que façam as revisões necessárias pra dignificar e honrar o empresário brasileiro, que um mártir. Porque nós quando chegamos em casa, por volta das 20, 21 horas quase, ao estendermos a chave da porta para abrir a casa, onde queremos chegar pra encontrar a paz que não pudemos buscar durante o dia porque a cada dia nos sobra ainda problemas para o amanhã. De repente nos deparamos com o fantasma da insônia que nos acompanha no resto da noite. Porque quando chegamos ainda temos que ouvir pela rádio, pela televisão, que nós somos sonegadores. Talvez nós fomos feito sonegadores por Deus, porque eu disse há pouco que Deus agora é brasileiro e como grande brasileiro que é procurou preservar o tesouro do Brasil. Por quê? Porque Ele sabia que o tesouro ia ser saqueado. E o tesouro foi saqueado que vocês próprios são testemunhas, e que Deus na sua onipotência, inteligência, quis preservar esse tesouro porque é da sua pátria, da sua nação, de seu povo, criou mil peripécias, impedimentos, dificuldades, percalços para que o empresário pequeno tivesse que fazer uma escolha: ou os cofres públicos ou a sua existência, ou os cofres públicos ou o seu pão, ou os cofres públicos ou a sua subsistência, para que assim Deus preservasse o tesouro nacional. Porque Deus confiava mais aos empresários inadimplentes do que a certas pessoas do poder que saquearam o tesouro nacional. Porque Deus tinha esperanças que quando uma nova aurora cercasse esta nação e nós pudéssemos voltar a ter mais felicidade, aqueles empresários inadimplentes, neles estaria a esperança de que em recolhendo ao pouco aquilo que eles devem era muito mais seguro para o nosso tesouro do que aqueles que felizmente com grandeza de espírito e amor à pátria contribuíram, mas o fruto dessa contribuição no tesouro foi saqueado e liquidado!
P - Bom, senhor Nichan, eu gostaria que o senhor falasse pra gente um pouco sobre a família do senhor, o casamento do senhor, como que o senhor conheceu a sua esposa...
R - Eu tive pretensões com quatro moças da colônia armênia porque no tempo do meu casamento havia um preconceito diferente e que pelo menos os velhos imigrantes sempre gostariam que cada filho de armênio se casasse com uma filha de um armênio. De certa feita, quando na fábrica de Manuel (Kerlakian?), eu tive que receber o governador, Porfírio da Paz, um cidadão que tinha sempre muita inveja de mim, que era o nosso contador, depois do meu pronunciamento de recebê-lo, foi dizer a ele na minha frente que tudo o que eu dissera no meu discurso teria que ser falso em relação ao Brasil porque eu era um dos homens que era contra o casamento de brasileiros com armênios, ou qualquer outra mistura. Frente a frente. Olha que... em que situação eu fui colocado. Eu disse: "Olha, senhor governador, tudo o que ele está falando é verdade, agora, eu faço uma pergunta pra Vossa Excelência e pra ele, se tivéssemos, nós brasileiros, uma colônia lá na distante Armênia será que nós brasileiros, lá na Armênia, não gostaríamos, naquela colônia, que os nossos filhos casassem com filhas de brasileiros? Primeiro, e o segundo: existe aí uma grande filosofia, por que eu sou adepto desse princípio? Porque se eu casar com filha de armênio, ela come as mesmas comidas que eu, cultua na mesma igreja que eu, e tem os mesmos princípios, costumes, tradições, etc., nada será estranho. Ao passo que se eu casar com uma chinesa, uma brasileira, uma italiana, nós vamos ter pequenos ou quem sabe grandes atritos, porque ela gosta de macarrão, eu gosto de quibe, ela tem uma maneira de cultuar a sua religião, eu tenho outra. Então, é pra preservar tudo isso, seu governador, é que eu sou adepto do princípio que ele citou. Mas se existe nisso algum crime gostaria que os senhores me ensinassem para que eu pudesse me... consertar, todos os meus erros que eventualmente tenha cometido." (Eu disse isso?) porque eu não tenho resposta melhor e não é melhor isso, é a verdade. Hoje, graças a Deus, eu tenho um neto italiano, tenho genro italiano, tenho nora italiana, tudo mudou. É a vivência do Brasil e do momento humano. Então, nós temos que saber hoje que o mundo é pequeno pro ser humano, todas as distâncias hoje se encurtaram pela tecnologia. Onde se vê que eu levei 30 dias pra atravessar um oceano pra chegar ao Brasil e que hoje você vai em algumas horas pra lá.
P - E como que o senhor conheceu a sua esposa?
R - Eu estava dormindo numa noite e havia um casamento no nosso vizinho, da família (Bladiglian, Bladiglian?). E meu pai, como foi um homem sempre de muitas relações e amizades, ele não tinha vontade de ir a este casamento que era próximo, me tirou da cama na marra pra ir ao casamento, eu e minha irmã Maria, indo lhe representando e representando a família (Bertezelian?) que fora convidada. De repente lá chegando eu vi uma jovem com uma roupa estampada amarela, parecia um sol, mas não sabia quem era porque era difícil eu não conhecer algum armênio, até hoje, se me derem o sobrenome eu direi quem é o pai, quem é o avô, digo tudo. Aí eu chamei a Maria, digo: "Quem é aquela menina lá?" Minha irmã diz: "Mas eu não sei." "Então, procura saber quem é." Quando ela foi saber, era filha do senhor (Astur Cherkerian?), que era um dos homens mais conhecidos e até por mim porque poucos imigrantes passaram por São Paulo que um dia não tiveram que ser acolhido, endossado, ajudado pelo meu sogro, que foi apelidado de (Ará, Ará?) quer dizer, um grande homem que a todos ajuda, nobre. "Mas como, é filha do senhor Astur?" "É, me informaram assim." Eu nunca tinha visto ela porque não havia lar que eu não tivesse me adentrado como precursor, fundador do Sama, e que eu precisava buscar apoio de todos os armênios pra instituir o programa da Sociedade Artística Melodias Armênias, o qual foi fundado na Rádio Cruzeiro do Sul, entoando as músicas armênias a 15 de agosto de 1942, às 14 horas, num domingo que eu não pude estar presente porque estava numa fazenda gravando um filme da Edson Filmes do Brasil. E que por isso, felizmente ou infelizmente, eu não sei dizer, eu era um homem conhecidíssimo e conhecia todas as famílias. Não sei qual foi a ironia do destino que eu não conheci a Adele, quando soube de quem era filha fiquei feliz. Naquele tempo nenhuma moça podia dançar sem a outorga, sem a autorização do pai ou da mãe. Fui lá, pedi licença, pedi ela pra dançar. Eu estava dançando com ela, ela estava com o sanduíche na mão e estava com o sanduíche no meu ombro. Quando eu vi, eu mordi o sanduíche dela. Não soube, no dia, que ela tinha jogado fora esse sanduíche que eu tinha... tinha mordido. (risos) Assim foi, mas eu com muito cuidado porque já tinha pedido quatro moças em casamento e não deu certo. Eu tinha uma honrabilidade e amor próprio, entendi que dessa vez ia mais devagar ao pote pra não quebrar. Falei pro pai, meu sogro, Deus tem em bom lugar, que eu ia fundar um novo programa de músicas e precisava de uma pianista, se ele permitia que eu fosse com a minha irmã à casa dele pra fazer os ensaios, no que se me concedeu. Olha que safado, hein? Que ia arrumar um novo programa, que ia fazer ensaios, se eu podia ir lá com a minha irmã. Naturalmente ele concedeu. Mas a minha intenção era outra, fui lá, fiz o ensaio, conheci a família, o meio, o ambiente, etc., etc. Acabei me casando com ela, isto acontecia em abril, no dia 22, eu já fui noivo, não 24 de abril, e no dia 11 de novembro daquele mesmo ano de 1944 com todas as crises, com todas as dificuldades, porque tudo era fila de pão, de leite, de tudo, eu me casei com essa moça a 11 de novembro de 1944, ficando seis anos sem ter um filho, louco, louco pra ter um filho na vida, mas sempre quieto.
P - Como que é o nome dela?
R - Adele. Era Adele (Cherkerian?), mas ela aceitou e até hoje me dignifica e me honra se chamando Adele (Bertezelian?), se bem que eu nunca impedi que agregasse o nome da família dela porque é uma das famílias honradas que esta coletividade um dia conheceu e conhece. Meus cunhados, minhas cunhadas, e tudo mais, todos os descendentes do meu sogro moram no meu coração, porque um homem na minha idade não pode guardar nem mágoas nem ressentimentos nem pode deixar de adorar qualquer criatura humana. Quanto mais daqueles que um dia tirando do seu seio, me entregaram uma menina aos seus 18 anos e que de repente, na noite de ontem, exigia às 11 horas da noite, quando eu estava mergulhado em tantos documentos, que fosse buscar sorvete pra ela, (risos) e eu tive que buscar, e sou feliz por isso. E prossegui o resto do meu trabalho. E aqui estou com vocês.
P - Seu Nichan, a gente está caminhando pro fim da entrevista, eu queria perguntar uma coisa pro senhor. O que o senhor gostaria de realizar ainda, o que o senhor tem vontade de fazer?
R - O meu maior sonho e suplício a Deus, que me coloque nos caminhos da ONU para que lá eu possa com a sabedoria do Pai, com a serenidade que Ele possa me dar, colocar à mesa a situação de um país que se chama Armênia, e simultaneamente também de um outro, que se chama Brasil. Para que seja traduzido em todos os idiomas o meu pronunciamento sobre a Armênia, os seus direitos esquecidos, de tantos massacres e de tantos patrimônios que foram engolidos. E também pra colocar no seu lugar devido, merecido, honrado e divino, porque Deus é Brasil, e Brasil é o sentimento da divindade, do Pai Eterno. E que eu pudesse um dia falar de tudo aquilo que eu ouvi neste país, de todas as verdades que eu defendo de forma incontestável da vida que levei neste país, que foi de muita dignidade, foi de um altruísmo de um povo, da honradez de uma nação, da pureza de um território onde... de onde se emanam inspirações maravilhosas pra quem quiser ter sensibilidade pra sentir. Isso tudo que um dia eu gostaria de colocar em cheque ao mundo dos homens de mais alto nível possível pra derramar sobre as consciências humanas o louvor, a gratidão, e o amor que tenho por duas pátrias, cujas bandeiras trago entrelaçado, pra acalentar esse coração que tanto precisa transmitir, a necessidade dos seres humanos, seres humanos adorarem uns aos outros, com carinho, com nobreza.
P - Bom, e a última pergunta agora, né? O que o senhor achou de ter passado essa hora com a gente dando entrevista, deixando registrada a sua experiência de vida, a sua história?
R - Foi um dos momentos mais sublimes de toda a minha vida, mas vou justificar porquê. Se tudo isso que eu narrei eu tivesse que ir à rua e gritar aos ventos, dizendo que eu sou tudo isso, talvez alguém tivesse que me recolher pra levar num manicômio porque eu devia ser um louco. Porque ninguém nada me perguntou. "O Nichan perdeu a cabeça, ficou lelé da cuca, está falando nas ruas aí, coisas que eu nem sei se é verdade, o que é, o que deixa de ser." No entanto, vocês é que me deram a oportunidade de viver esses momentos dos mais sublimes da minha existência e que eu jamais me cansaria de ficar cinco dias, dez meses com vocês pra falar de tantas coisas que trago na aprendizagem da vida ao longo dos 74 anos, cujos finais me propiciaram, me impulsionaram, numas ondas parece que mandadas por Deus e que eu jamais sonhei de aqui estar hoje ao lado de vocês pra responder tantas coisas, que confesso, não significa nem um milésimo% de quanta coisa que eu podia dizer como experiência, como recomendação, como exemplo, como um traçado de vida. E a minha maior alegria, confesso, é o fato de ter podido falar alguma coisa para que sirva como um verdadeiro acervo dos vossos feitos, para que alguém que possa ter paciência, por cuja paciência eu já quero agradecer nesse momento, pra poder examinar dentre bilhões de vidas humanas, mas uma, esta pequena, mas quem sabe algum conteúdo tenha pra nortear, pra ajudar, pra ilustrar e pra dar esperanças pra quem não tiver coragem. Porque a coragem é a coisa mais sublime que Deus pode colocar em um ser humano, porque quem não tiver coragem nunca mais terá ânimo pra fazer nada. Me permita agora só uma palavra, do meu saudoso pai, que a ele devo muito da minha coragem, muitíssimo, esta vem da velha Armênia: "Onde quer que tenhas notícias do que um gigante seja tão promovido, não te desmoralizes, não te sintas tão pequeno. Vá até ao gigante, verás que aquele assombro todo que dele se falou, a altura do gigante ou alcança a sua cintura, ou alcança os seus joelhos." Então, o homem tem que estar sempre preparado por aí pra chegar até lá. Um dia, infelizmente, quando cheguei pra me inscrever na Adesg me deparei com um cidadão que foi mandado por Deus pra fazer tudo o que me fez, para que num desafio eu pudesse concluir aquele curso. Porque naquele curso se faltar um dia, o senhor é eliminado, não interessa justificativa nenhuma, se o senhor morreu o senhor já está fora do curso, se o senhor não morreu, se o senhor faltou o senhor está fora também. Então, de repente quando eu fui lá, apresentei os meus documentos de juiz, etc., etc. para que o homem que estava fazendo a inscrição em verificando me autenticasse os documentos porque isso se faz na própria Justiça. O moço me recebeu muito mal, talvez ele não estava bem naquele dia, me jogou toda a papelada: "Não, isso aqui é problema do senhor, o senhor vai tirar a autenticação no cartório, não sei o que", mas me falou horrores pra mim. Tive paciência, recolhi tudo, mas faltava poucos momentos pra encerrar a inscrição, pedi pra uma moça que tinha uma máquina de escrever se me permitia escrever, preencher a minha inscrição. Falou: "Pois não." Sentei na máquina, daqui a pouco aquele senhor Walter, chegou no papel, riaque, arrancou da máquina, jogou na minha cara no meio de tanta gente e disse: "O senhor vai preencher onde o senhor quiser, a máquina é da escola, o senhor não tem nada que fazer aqui." Olhei bem pra ele, firme, indignado, revoltado: "O senhor sabe que o senhor tem razão, esta cara é muito feia, tanto é feia que eu comprovo porque a cada manhã (fim da fita 061 / 02-A) quando me deparo com ela no espelho levo o primeiro susto, mas tive que aprender a coordenar e a conviver com esta cara feia que eu tenho e que lhe prometo que a cada noite aqui estarei te cumprimentando pra te ensinar a conviver com horror esta cara feia e a cada noite lhe darei uma boa noite. E o senhor cuida da minha inscrição, porque ai do senhor se eu não tiver inscrito." No fim me barraram porque só podia se inscrever até 65, depois de tantas discussões, alguém dos membros entendeu que eu havia de ser aceito porque um homem nessa idade, juiz, "tanta vontade de vir aqui, mas explorar os conhecimentos e a bagagem dele", e assim fui aceito.
P - Seu... Nichan, pra terminar a entrevista eu queria... o senhor tem todo um lado musical, né? Eu queria que o senhor escolhesse uma música, uma canção e cantasse pra gente. Pode ser? Seu Nichan, antes da música, né, eu queria que o senhor falasse rapidamente das sociedades que o senhor fez parte, ajudou a fundar.
R - Bem, nas minhas memórias primeiras a partir do momento que estive na Escola Armênia, nos idos de 27, 28, eu conheci a Sociedade (Homeratman?), que era uma sociedade, uma entidade esportiva do mundo armênio, que preparava o homem armênio para o esporte e para o mundo, para que ele fosse um homem, homem no sentido completo da palavra. Esta foi a primeira sociedade da qual eu fui escoteiro. Posteriormente, eu fui um dos fundadores da Sociedade Juvenil Armênia - (Haybadenagan Mitu?), já falei em português. Depois eu fui convidado pra ingressar no (Armenian Iradatazse Mitu, Armenian Iradatazse Mitu?), quer dizer, Sociedade Armênia da Mocidade. Posteriormente, quando esta sociedade também pereceu, aliás, antes do perecimento dessa sociedade também existiu a Sociedade (Chaparas Volperu Mitu?), Sociedade dos Órfãos Maturecidos, Sociedade dos Órfãos Conscientes, já emancipados como cidadão humano. Em seguida, tendo perecido a Sociedade (Armenian Iradatazse Mitu?), numa das suas assembléias gerais só compareceram três elementos, ou melhor, quatro elementos: (Azatarikian?), de saudosa memória, (Antranik, Antranik Barsomian, Michian Bertezlian e Girai Tarikian?), quatro homens pra uma assembléia geral. Nesse dia, eu já era um homem que cantava nos interiores, em rádios, etc., sonhei e aspirei que existisse a música armênia no rádio, que não havia! E foi uma luta tremenda, até que se conseguiu que foi uma realidade. Depois dessa sociedade, eu fundei a Sociedade... Sociedade Recreativa e Cultural (Marachá?), depois fui fundador da Sociedade Brasil-Armênia, participei na fundação da União Geral Armênia de Beneficência, é uma entidade que se fundou durante a Primeira Guerra Mundial para que se cuidasse de todos os órfãos, de todas as entidades, de todas as necessidades que se fizessem ao longo dos tempos pela gente remanescente daquela tragédia toda que assolou a milhão e meio de almas. Depois dessa, fui convidado pra participar de uma reformulação da (Homeratman?) como diretor cultural. Fui dos fundadores da Associação Nacional dos Juizes Classistas do Brasil. Hoje, sou convidado, e faço parte uma chapa que será sufragado semana que vem mas eu nada sei. Foi por aí que eu participei de todas as sociedades Armênias de São Paulo e do Brasil, quiçá. Esta é uma pequena pincelada a respeito de tudo isso. Hoje eu tenho um grande orgulho de saber que felizmente com tanto sacrifício fui fundador da Sociedade Artística Melodias Armênias que hoje é clube Armênio. A (Marachá?) é uma outra entidade, muito boa, e todas as demais. E fui um homem assíduo e freqüentei a escola... a Igreja Apostólica Armênia do Brasil até o meu casamento e até hoje sou um homem que canto a missa armênia, a missa cantada. É uma lembrança mais ou menos rápida que eu posso pincelar.
P - Então, agora o senhor escolhe uma música, uma canção dá um...
R - Bem, primeiro, em homenagem ao Brasil, eu gostaria de cantar o Brasil mesmo, que já diz do que é esse país, e essa pátria. E depois se vocês me permitirem eu cantarei uma pequena música armênia.
[Canta música]
"As salvas lhe deram nas noites teus ritmos bárbaros
Os negros trouxeram de longe reservas de pranto
Os brancos falaram de amores em suas canções
E desta mistura de vozes nasceu teu canto
pã-pã-pã-pãram
Brasil, minha voz enternecida, já dourou os teus brasões
Da expressão mais comovida, das mais ardentes paixões
Também a beleza desse céu onde o azul é mais azul
Na aquarela do Brasil eu cantei de Norte a Sul
Mas agora o teu cantar
Meu Brasil quero escutar nas preces da sertaneja nas ondas do rio e mar
Oi, esse rio turbilhão entre selvas de rojão, continente a caminhar
No céu, no mar, na terra, canta Brasil, canta Brasil!"
P - Fantástico.
R - Vocês perdoem, vocês me pegam de surpresa, sem saber a tonalidade, sem acompanhamento.
P - Imagina. (risos)
R - Vocês vão ter responder por tudo que vocês fizeram. Nesse momento eu vou cantar 'Ierevan', esta música o autor a escreveu especialmente por ocasião de quando Ierevan se tornou uma cidade trimilenar e ela se chama por isso mesmo 'Ierevan'. Depois traduzirei a letra, se der tempo, em português.
[canta música armênia]
Diz essa música na sua tradução em português: "A Ierevan, capital da Armênia, um dizendo que te tornaste trimilenar, minha Ierevan. Mas que os séculos se desfolharam e passaram e você se manteve jovem. Ao lado do seu pai Massis - Massis é tradução de Ararat, que os nativos chamam de Massis e de Ararat - com o seu pai Massis, que diz Ararat, e a sua mãe, Arax - que é o rio que banha aquela região da Armênia. Que com o seu pai Ararat e a sua mãe Arax, você continue ao longo dos séculos jovem como és Ierevan." Então, esta é a tradução para que os brasileiros que tem por direito de saber de tudo o que vai pela alma de qualquer cidadão que a ele deram o apoio, a vida, e o acolhimento ao longo de 70 anos, tem direito de saber o que se nos transborda do coração. Porque se nós não tiver... não tivéssemos tido o amor àquela Armênia que aprendemos a amar, não teríamos condições de amar tanto, com tanta profundidade este Brasil que de fato me merece todo o meu carinho e o máximo do meu coração e do meu amor.
P - Fantástico senhor Nichan.
P - Muito obrigada.
P - A gente agradece muito a colaboração do senhor.
R - Estamos aqui, se vocês precisarem de qualquer coisa é só ordenar, eu venho aqui tal dia, tal hora.
P - Obrigada, obrigada.
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